Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
º 151/98-C
Prisão preventiva
Notificação da acusação
Princípio do contraditório
Intérprete
Nulidades processuais
Interrogatório de
arguido-preso
Instrução contraditória
Sumário:
Acórdão
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal Supremo:
2. D..., ou E..., também conhecido por F..., solteiro, nascido em 1975, informador da
Polícia e da Contra-Inteligência sul-africanas, filho de G... e de H..., natural de
Morrumbene e residente há dez anos na África do Sul (sendo portador do cartão de
identidade sul-africano com o n.º 7506175871085);
4. L..., de 37 anos, agente da PRM, filho de M... e de N..., natural da Maganja da Costa e
residente na Av. do Trabalho, n.º 54, 3º andar, flat 7, em Maputo;
5. O..., solteiro, de 35 anos, técnico de Recursos Humanos, filho de P... e de Q..., natural
de Massinga e residente na Av. Eduardo Mondlane, n.º 2221, 4º andar, em Maputo;
7. U..., solteiro, de 25 anos, funcionário do SISE, filho de V... e de X..., natural de Pemba
e residente no Bairro de Laulane, quarteirão 7, em Maputo,
Uma vez com o armamento na RSA, o réu I... vendia-o ilicitamente a um tal Zulu,
cidadão sul-africano residente em Hostel, Soweto, Johannesburg;
O preço estabelecido era de 400,00 Rands por cada pistola e de 1.000,00 Rands
por AKM;
O tráfico de armas foi correndo, até que o réu I..., em data imprecisa de 1993,
sofreu um acidente de viação do qual resultou a destruição total do veículo
adaptado para aquela actividade ilícita;
O certo é que, para levar a efeito essas transacções, este réu contou sempre com
os serviços dos co-réus R..., U..., O... e L..., todos integrados nas Forças de Defesa
e Segurança de Moçambique;
Porém, este co-réu D... tinha duas faces, pois, ao mesmo tempo que adquiria
armas ao I..., dava informações à Polícia e à Inteligência sul-africanas sobre os
movimentos do seu fornecedor;
A 2 de Janeiro deste ano o D... veio a Maputo para tentar convencer o I... a reatar
os fornecimentos, pois, segundo ele, havia três boers interessados em grandes
quantidades de armamento e dispostos a pagar em dolares americanos;
Foi assim que, na data aprazada, se estabeleceu o primeiro contacto pessoal entre
os co-réus I... e A..., servindo o D... de intérprete;
De facto, algum tempo depois, A... e D... voltaram a Maputo, viajando desta vez
de automóvel - um Nissan Sani 4x4, com a matrícula SMS618T – mas, como não
tivessem encontrado o I..., rumaram até à província de Inhambane, acompanhados
de um tal Y..., tio do D...;
Durante a viagem, o D... aproveitou para pedir ao tio que tentasse arranjar uma
casa e um barco, a fim de guardar as armas e exportá-las depois para Portugal …;
Os autos mostram ainda que o réu A... veio a Moçambique à revelia do seu
Governo, e por sua conta e risco, para investigar o tráfico de armas a partir de
Moçambique, tráfico que envolve altos quadros das Forças de Defesa e Segurança
do nosso país, com o objectivo de anunciar o resultado das suas investigações na
sessão do Conselho de Segurança da SADC, realizada no dia 23 de Março último;
Não deu a conhecer esta sua actividade às comissões bilaterais que trabalham
conjuntamente na área do combate ao crime;
– Contra a pronúncia assim deduzida interpôs recurso de agravo o réu A... Nas
respectivas alegações refere, em síntese:
Ainda antes de ter sido notificado da acusação teve o ensejo de arguir nulidades de
actos praticados durante a instrução preparatória e de denunciar situações de violação
dos seus direitos, mas o despacho de pronúncia é completamente omisso em relação a
elas, violando desse modo o disposto nos arts. 354º e 366º, nº 6, do C. P. Penal;
O referido despacho foi objecto de recurso, e este admitido, tendo a defesa apresentado
as respectivas alegações, que estão juntas aos autos. A decisão das questões suscitadas
por este recurso prejudicaria a continuação da instrução contraditória. O despacho de
pronúncia é omisso em relação a todas estas questões relacionadas com a violação dos
arts. 352º, 353º e 354º do C. P. Penal;
O juíz não sustentou nem reparou o agravo, pelo que o Tribunal Supremo deverá
conhecer de todas as questões suscitadas nas alegações do recurso interposto contra a
decisão que recebeu provisoriamente a acusação e ordenou a abertura da instrução
contraditória;
a) que o despacho de pronúncia seja declarado nulo e de nenhum efeito, nos termos
do art. 668º, n.º 1, alínea d), do C. P. Civil, aplicável aos despachos por força do n.º
3 do art. 666º do mesmo Código, disposições aplicáveis por força do disposto no §
único do art. 1º do C. P. Penal, porque não conheceu de questões de que deveria
tomar conhecimento;
e) que o recorrente seja restituído à liberdade e lhe sejam devolvidos todos os seus
bens apreendidos nos autos.
O segundo recurso, contra o despacho que mandou notificar a acusação definitiva, nos
termos do art. 352º do C. P. Penal (III volume, fls. 697). São, em resumo, os seguintes os
fundamentos invocados: a) não haver justificação, nos resultados da instrução
contraditória, para o surgimento de uma nova acusação (definitiva); b) não poderem os
processos que foram apensos aos autos e que contêm diligências realizadas pela PIC, sem
o conhecimento do tribunal, já depois de declarada aberta a instrução contraditória, servir
de base à alteração da acusação; c) dever esta acusação ser declarada nula e ignorada, não
podendo servir de base à realização de novas diligências e ao prosseguimento da
instrução contraditória, que foi declarada encerrada; d) dever o tribunal pronunciar ou
despronunciar, apenas tendo em consideração a primeira acusação (deduzida como
provisória), que foi recebida e serviu de base à instrução contraditória.
– Conforme a respectiva certidão, que se mostra junta aos autos a fls. 190 v. (I volume), o
recorrente foi notificado da acusação provisória, na pessoa do seu advogado, em 28 de
Abril de 1998. Nessa altura, já havia arguido, por requerimento que dera entrada na
secretaria do tribunal em 22 de Abril, diversas nulidades e irregularidades processuais
ocorridas durante a instrução preparatória, nomeadamente:
c) o facto de ter sido detido sem culpa formada no dia 9 de Março, em Ressano
Garcia, sem que lhe tivesse sido entregue o duplicado do mandado de captura, nos
termos do art. 296º, § 2º, do C. P. Penal, nem informado sobre os motivos da
detenção;
d) o facto de, ao arrepio dos preceitos legais pertinentes e dos princípios adoptados
pela Assembleia Geral das Nações Unidas para a Protecção de Todas as Pessoas
Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, o recorrente ter sido
sistematicamente impedido de comunicar com o mundo exterior à cadeia,
nomeadamente com os familiares mais próximos (esposa, pais, irmão e filhos).
Se bem entendemos, o Mmo. Juíz admite que a circunstância da eventual fuga do arguido
para o estrangeiro é justificação bastante para a prática de um acto ilegal, pelo menos na
sua forma, porque expressamente afastado do espírito e da letra da lei que o regula. É o
que se pode deduzir da sua afirmação segundo a qual o cumprimento do formalismo legal
quando se efectua uma captura “depende das circunstâncias…”.
Ora, em face da lei positiva e do mais elementar bom senso, é evidente que esta posição
não pode ser acolhida. O que está em causa, convém não esquecer, é um dos direitos
fundamentais da pessoa humana, consagrado nas Constituições de quase todos os países
(v., no nosso caso, o art. 98) e em várias convenções internacionais, algumas já
ratificadas por Moçambique e adoptadas como direito interno: o direito à liberdade,
strictu sensu. Daí que o legislador seja, geralmente, bastante rigoroso na prescrição das
formalidades a que deve obedecer a detenção ou prisão de um indivíduo, sobretudo
quando esta se verifica fora de flagrante delito (v. arts. 286º e segts. do C. P. Penal,
especialmente os arts. 291º e 293º). E não se duvide que a captura do recorrente teve
lugar fora de flagrante delito, não obstante a conclusão em contrário do Mmo. Juíz da
instrução, no seu despacho de “legalização” (I volume, fls. 34): ele não foi detido no
momento em que o alegado facto punível se estava cometendo, nem resulta dos autos –
mormente da informação de fls. 3 e segts. - que tenha sido perseguido logo após a
perpretação de tal facto ou encontrado a seguir à sua prática com objectos ou sinais que
mostrassem claramente que o cometera ou nele participara (v. art. 288º do C. P. Penal).
Pergunta o Mmo. Juíz se, num caso como este, era de deixar o arguido passar a fronteira
enquanto lá não chegassem os mandados de captura que provavelmente seriam enviados
pelos Correios…
Obviamente que a resposta a esta interrogação só pode ser negativa. A execução das
ordens de captura está, aliás, regulamentada no art. 296º, por remissão do art. 298º,
ambos do C. P. Penal. Mas a verdade é que a lei impõe como requisito formal da prisão
fora de flagrante delito que esta seja levada a efeito mediante ordem por escrito de certas
autoridades (cfr. o art. 293º do diploma em referência, na redacção actualizada pela Lei
n.º 2/93, de 24 de Junho) e, nos dias de hoje, existem meios técnicos ao alcance de todos,
capazes de enviar em poucos minutos documentos escritos para qualquer ponto do globo
onde esses meios técnicos estejam disponíveis. Estamos em crer que no posto fronteiriço
de Ressano Garcia há uma máquina de fax ou de telex a funcionar. Na remota
eventualidade de assim não suceder, dever-se-ia ter recorrido a outra solução, em
harmonia com o que se acha estipulado na própria lei: ser a captura solicitada
telefonicamente ao comandante do posto local da P. R. M., que mandaria emitir e
assinaria a respectiva ordem por escrito, visto ser autoridade com poderes para tal,
conforme determina o n.º 2º do § único do art. 6 da citada Lei n.º 2/93.
– No dia imediato àquele em que foi notificado do despacho que recebeu a acusação
provisória e ordenou a abertura da instrução contraditória, o recorrente interpôs recurso
de agravo contra este despacho (v. I volume, fls. 183 e segts.). Argumentou, em
substância,
e) em conclusão, que o agravo deve ser reparado, dando-se sem efeito o despacho
recorrido, e o juíz pronunciar-se sobre a rejeição, recebimento, ou abertura da
instrução contraditória só depois de decorrido o prazo fixado no art. 352º do C. P.
Penal, contado a partir da altura em que o processo estiver disponível para exame
na secretaria. Se assim não for entendido, que o despacho seja revogado.
O Mmo. Juíz admitiu o recurso sem reparar o agravo, vindo a esclarecer, na primeira
parte do despacho de pronúncia, que, “…verificando nada obstar ao requerido pelo
Ministério Público, segundo a regra estabelecida no art. 329º do C. P. Penal, declarou
aberta a instrução contraditória e ordenou a realização das diligências nela
promovidas…” (III volume, fls. 749), assim tendo agido em conformidade com a lei.
Por força destas disposições de lei, sempre que é proferida uma acusação em processo
penal, deve o juíz mandar notificá-la aos arguidos e seus advogados nos prazos ali
indicados. A partir da data da notificação, o processo deverá ser facultado para exame aos
advogados dos arguidos que, no prazo de cinco dias, poderão agir conforme acharem
mais conveniente a bem da defesa. Só após o decurso deste prazo o juíz proferirá o
despacho de recebimento ou rejeição da acusação, ou ordenará a instrução contraditória,
como no caso couber.
a) não fala nem compreende a língua portuguesa; apesar disso, foi ouvido perante o
juíz da instrução sem que lhe tenham nomeado intérprete (v. I volume, fls. 32 v. e
segts.). A falta
de nomeação de intérprete constitui nulidade, nos termos do art. 98º, 3º, do C. P.
Penal, implicando a nulidade do próprio acto e dos actos posteriores;
c) consta dos autos que os co-réus D... e I... foram ouvidos em perguntas sem a
presença de um advogado ou defensor oficioso, o que constitui outra nulidade, nos
termos do art. 98º, 4º, do C. P. Penal.
Mais uma vez o Mmo. Juíz de Direito se absteve de tomar posição relativamente a cada
uma destas invocadas nulidades. Na já mencionada primeira parte do despacho de
pronúncia, e referindo-se aos interrogatórios a que o réu A... foi submetido durante a
instrução, incorreu em manifesto equívoco ao responder que nunca aquele fora ouvido
sem a presença de defensor oficioso (primeiro interrogatório) ou do advogado constituído
(interrogatórios subsequentes)…
Na verdade, o que o recorrente veio alegar foi a ausência de intérprete idóneo aquando da
audição pelo juíz da instrução criminal. E essa ausência é perfeitamente visível através do
correspondente auto de perguntas (I volume, fls. 31 e segts.), no qual, aliás, o réu
escreveu a seguinte anotação, no momento em que assinava: “I accept even though I do
not understand Portuguese” (“aceito, embora não compreenda português”).
A falta de nomeação de intérprete idóneo ao réu, quando este não fale nem compreenda
português, constitui, como se alega, a nulidade processual prevista no n.º 3 do art. 98º do
C. P. Penal. No caso concreto entendemos, porém, dever considerar-se tal nulidade
sanada, nos termos do § 4º da mesma disposição, visto que as declarações prestadas no
primeiro interrogatório vieram a ser ratificadas em momento posterior pelo recorrente, já
com o auxílio de intérprete.
Pelo contrário, a falta de nomeação de defensor oficioso dos réus D... e I..., quando
interrogados na instrução preparatória, bem como a impossibilidade de estabelecer o
adequado nexo causal entre as armas apreendidas e referidas como instrumentos do crime
e os factos imputados a qualquer dos réus, por inexistência do necessário auto de
apreensão (a que se refere o art. 206º do C. P. Penal) e de elementos indiciários
suficientes sobre a origem daquelas, são nulidades processuais que, de modo nenhum, se
podem considerar sanadas, porque foram arguidas em devido tempo e, a persistirem,
poderão afectar a justa decisão da causa.
Uma vez que estas questões já foram anteriormente apreciadas, tendo sido reconhecida a
justeza das alegações do recorrente, não vemos necessidade – quanto mais não seja, por
homenagem ao princípio da economia processual - de voltar a pronunciar-nos sobre as
mesmas.
Por último, há ainda que dar razão ao recorrente quanto ao incumprimento do preceituado
nos arts. 335º e 363º do C. P. Penal. Estas disposições estabelecem a obrigatoriedade de
notificação do arguido, finda a instrução contraditória, para, no prazo de cinco dias
(tratando-se, como no caso em apreço, de processo de querela), dizer o que se lhe
oferecer, antes de os autos serem continuados com vista ao Ministério Público a fim de
manter ou modificar a sua acusação. Mais uma vez, foi aqui ignorado o princípio do
contraditório e menosprezados os legítimos interesses da defesa.