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THEOTONIO NEGRÃO
Coordenação José Roberto F. Couvêa
DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES
Mestre e Doutor em Processo Civil pela USP.
Professor de Processo Civil na UNIP, no Curso Praetorium RJ/BH, no
DIEX/SP e na Fundação Escola Superior do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios. Advogado em São Paulo.
AÇÕES PROBATÓRIAS
AUTÔNOMAS
2008
Editora
Saraiva
IS B N 978-85-02-05274-1 (obra completa)
IS B N 978-85-02-06995-4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bibliografia.
1. Ação declaratória - Brasil 2. Medidas cautelares
- Brasil 3. Processo cautelar - Brasil 4. Processo civil
- Brasil 5. Prova (Direito) - Brasil Título. II. Série.
Saraiva
Av. Marquês de São Vicente, 1697 — CEP 01139-904 — Barra Funda — São Paulo-SP
Vendas: (11) 3613-3344 (tel.) / (11) 3611 -3268 (fax) — SAC: (11) 3613-3210 (Grande SP) / 0800557688
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VII
2. Prova emprestada e princípio da oralidade............. 86
3. Razões justificadoras da existência da prova empres
tada ................................................................. 91
4. Exigências para a utilização da prova emprestada.... 98
4.1. Contraditório.............................................. 99
4.2. Identidade do juiz do processo em que a prova
é emprestada e daquele em que é recebida.... 110
5. Atipicidade da prova emprestada......................... 114
6. Valoração da prova emprestada e da prova produzi
da antecipadamente........................................... 129
7. Prova emprestada e produção antecipada de provas.. 132
' VIII
7A .1.2. Periculum in mora................... 205
7.2. Liminar...................................................... 209
7.3. Respostas do requerido................................ 214
7.3.1. Exceções rituais................................. 215
7.3.2. Reconvenção..................................... 217
7.3.3. Contestação....................................... 219
7.3.4. Preparação e realização da prova......... 223
7.3.4.1 Prova oral.............................. 223
7.3.4.2. Prova pericial.......................... 229
7.3.5. Repetição no processo principal da prova
produzida antecipadamente................. 231
7.3.6. Sentença........................................... 234
7.3.7. Ônus de sucumbência ........................ 237
IX
4.4. Respostas do demandado............................. 285
4.5. Ausência de exibição................................... 287
4.6. Sentença..................................................... 290
X
2. O procedimento sumário documental do mandado
de segurança...................................................... 359
3. Coisa julgada secundum eventum probationis nas
ações coletivas................................................... 373
4. Princípio da eventualidade e dacongruência.......... 387
5. Litisconsórcio alternativo..................................... 409
6. Conciliação e mediação extrajudicial................... 424
7. O pedido genérico do art. 286, II,do CPC............ 439
XI
A FIGURA ADMIRÁVEL DE
TH EO TO N IO NEGRÃO
XIII
«
anos, tendo presidido, e com absoluto sucesso, a prestigiosa
Associação dos Advogados do seu Estado, entidade que sempre
lhe devotou especial carinho, a exemplo do não menos con
ceituado Instituto dos Advogados, do qual era sócio benemérito
e de quem recebeu o honroso prêmio 'Barão de Ramalho'.
Membro do Tribunal Regional Eleitoral, enriqueceu o judi
ciário naquele período com sua habitual lucidez e reconhecida
correção, sendo portador de substancioso curricufum, onde
pontilham manifestações culturais e estudos jurídicos de elevada
qualidade, além de grande número de meritórias distinções.
Resistente ao exercício do magistério (comenta que por
timidez e excessiva modéstia), foi, no entanto, professor de
todos nós.
Pesquisador seguro, minucioso e confiável, fonte indispen
sável de consulta e orientação, por meio de suas obras jurídicas
passou a freqüentar os nossos gabinetes, a Universidade, as bi
bliotecas, os escritórios e até as nossas casas, sendo insuperável
no estilo que adotou, de anotar as legislações civil e processual
civil, colacionando as mais variadas manifestações da jurispru
dência, assim como as vertentes da doutrina, suas divergências
e inclinações. Ético e idealista, foi inigualável naquilo a que
corajosamente se propôs na seara jurídica: ser útil.
Todos nós, nos mais diversos pontos do território nacional,
somos seus leitores, consultamos seus magníficos códigos, de
inestimável utilidade, que, como se proclama orgulhosamente
em São Raulo, transformaram o seu Autor em substantivo, na
medida em que os consumidores, nas livrarias, ao adquiri-los,
acostumaram-se a pedir 'um Theotonio'.
Não obstante seu majestoso perfil cultural, o que mais se
admira em Theotonio Negrão é a sua biografia como ser hu
mano.
Despido de vaidades, culto e excepcionalmente simples, a
todos encantava já ao primeiro contato, o que mais se acentua
va à medida que dele mais nos aproximávamos. Era afável,
educado, lhano de trato, de conversa agradável e espirituosa,
elegante nos gestos e cordial no afeto.
XIV
Um jurista qualificado pela grandeza, um ser humano de
dimensão ainda maior.
Ao finalizar, Senhor Presidente, desejo assinalar a profunda
admiração que Sua Excelência tinha por este Tribunal, por sua
operosidade, pelo conteúdo de seus julgamentos e pela sua
postura moral, reiteradas vezes manifestada. Daí a razão pela
qual, a par do registro já feito na Quarta Turma, renovo a home
nagem neste Órgão maior, como preito de saudade, mas também
de justificada admiração, rogando a Vossa Excelência e aos em.
Pares o seu lançamento na ata dos nossos trabalhos, com comu
nicação à sua família e aos Órgãos representativos da nossa
comunidade jurídica, especialmente de São Paulo".
XV
Com o tftulo /\ções probatórias autônomas, pretendeu-se
apontar, desde o início e de forma consideravelmente direta, o
objetivo do presente trabalho, qual seja, uma análise do que já
existe no ordenamento processual pátrio em termos de ações judi
ciais que tenham como objeto a produção de uma prova. Além da
análise daquilo que já se encontra positivado em nosso ordenamen
to, o estudo também se presta à propositura de algumas idéias
novas, por vezes até mesmo de lege ferenda, com o claro propósi
to de aumentar o âmbito de abrangência dessa espécie de ação.
A justificativa da escolha do tema pode ser encontrada
durante todo o trabalho, em especial nos capítulos 8 e 9, em que
se procede a uma exposição detalhada de alguns benefícios ao
sistema processual que seriam gerados a partir da adoção de
uma ação cautelar probatória autônoma genérica. O tema da
prova é, por si só, um dos mais importantes do processo civil,
por definir o destino de diversos processos e, conseqüentemen
te, o destino de seus litigantes, já que determina a sua vitória ou
derrota. Excelentes trabalhos já foram desenvolvidos sobre o
tema da prova, mas, aparentemente, a doutrina nacional pouco
se preocupou em tratar especificamente das ações autônomas
que tenham como objeto a produção probatória; esse é o prin
cipal enfoque do presente estudo.
Atualmente as ações probatórias autônomas estão quase
exclusivamente previstas pelo Livro III do Código de Processo
Civil, que tem como objeto o processo cautelar. Nesse livro do
estatuto processual, destaca-se a previsão da: (i) produção ante
cipada de provas; (ii) exibição de coisa ou documento; e (iii)
justificação, processos analisados de maneira pormenorizada
em capítulos específicos. Conscientemente, preferiu-se não
tratar dos processos de protestos, notificações e interpelações,
ainda que se possa afirmar que nesses processos há uma carga
probatória, pois, por meio deles, prova-se o fato de o autor ter
1
ingressado com a demanda e feito chegar à parte contrária al
guma espécie de informação.
A partir do pressuposto de que as ações probatórias autôno
mas encontram-se positivadas quase exclusivamente nas três es
pécies de ação cautelar anteriormente mencionadas, fez-se ne
cessária a elaboração introdutória de um capítulo a tratar, de
forma genérica, dessas demandas. No capítulo 2, portanto, ana
lisa-se a efetiva natureza cautelar da produção antecipada de
prova, a exibição de coisa e de documento e a justificação, a
partir de premissa unânime na doutrina nacional, de que, sem o
perigo de a prova não poder ser produzida posteriormente, não
existirá ação cautelar de natureza probatória. Com um novo con
ceito de periculum in mora, mais voltado ao resultado do proces
so e não tanto à garantia da produção da prova, sugere-se uma
abrangência maior para essas espécies de ações probatórias.
Nesse capítulo também se aponta a inadequação de enten
dimento arraigado na doutrina nacional de que só existirá cau-
telaridade nas provas produzidas antecipadamente por meio de
uma ação autônoma, de modo que não existe prova antecipada
durante o trâmite do processo. Demonstra-se o equívoco da
doutrina, que parte da premissa falsa de que, na produção an
tecipada, a prova não é produzida, mas meramente assegurada
com o auxílio de doutrina estrangeira, em especial a argentina
e a portuguesa. Também se fazem algumas considerações a
respeito da autonomia do processo cautelar e se conclui por sua
manutenção, ainda que flexibilizada pelo art. 273, § 7Q, doCPC,
mas cuja dispensa se justifica quando se tratar de prova produ
zida antecipadamente durante o processo de conhecimento.
Ao realizar-se a introdução a respeito da efetiva natureza
cautelar das ações probatórias atualmente positivadas em nosso
ordenamento jurídico, passa-se, no capítulo seguinte, à demons
tração de que a prova produzida antecipadamente é uma espé
cie de prova'emprestada quando for utilizada no processo
principal. Rara chegar a tal conclusão, faz-se uma análise das
principais características da prova emprestada, a qual se com
para com as princ4pais características da prova produzida ante
2
cipadamente, de modo a perceber que a única diferença entre
as duas é que, no primeiro caso, a prova é produzida em um
processo para convencer o juiz que originariamente a produziu
e, eventualmente, outros que a recebem de forma emprestada,
enquanto, no segundo caso, a prova já é produzida originaria
mente para ser emprestada, não sendo valorada pelo juiz res
ponsável por sua produção.
A caracterização da prova produzida antecipadamente como
espécie de prova emprestada é de suma importância para afastar
um dos maiores equívocos da doutrina nacional a respeito do
tema, a qual, de maneira praticamente uníssona, afirma que, na
produção antecipada de prova, não ocorre efetiva produção, mas
mera asseguração. O direito brasileiro, na realidade, desconhece,
ao menos de maneira positivada, ações de mera asseguração da
prova, como as existentes no direito espanhol. No Brasil, todas
as ações probatórias previstas pelo ordenamento processual ge
ram, efetivamente, a produção da prova, ainda que a valoração
da prova não seja do juiz do processo probatório, mas daquele
que o receberá sob a forma de prova emprestada.
A prova produzida antecipadamente é utilizada como pro
va emprestada no processo principal, de forma que é produzida
originariamente no processo cautelar sob a forma oral ou pericial,
restando documentada por meio da ata de audiência ou laudo
pericial. Essa prova documentada ingressa no processo principal
sob a forma de documento e com conteúdo de prova oral ou
pericial, sendo produzida novamente nesse processo, não mais,
evidentemente, sob a forma oral ou pericial, porque essa produ
ção já ocorreu, mas sob a forma documental.
Nos capítulos seguintes — 4, 5 e 6 —, analisam-se os pro
cessos cautelares de produção de prova, sua nomenclatura, sua
natureza jurídica, as questões referentes à competência, à legiti
midade, à intervenção de terceiros, à coisa julgada, e os principais
aspectos procedimentais. A análise é necessária porque, em ter
mos positivados, o autor somente pode socorrer-se dessas espécies
de ações quando pretender tão-somente produzir prova por meio
de ação autônoma probatória. Dessa forma, é de extrema impor
3
tância ao tema do presente estudo uma análise exaustiva dos
aspectos processuais dessas ações cautelares probatórias, que foi
exatamente o que se tentou nos capítulos 4, 5 e 6.
Após a devida atenção dispensada às três espécies de ações
consideradas como probatórias autônomas, procura-se traçar,
no curto capítulo 7, um panorama atual da abrangência dessas
ações na praxe forense, a demonstrar, com esteio nas conclusões
obtidas nos três capítulos antecedentes, que o âmbito de atuação
dessas demandas probatórias, com ou sem natureza cautelar,
levando em conta o conceito clássico de periculum in mora nas
cautelares probatórias, é bastante amplo. Essa conclusão é de
suma importância para demonstrar que o direito brasileiro, em
bora não seja perfeito no tratamento do tema, apresenta espécies
de ação que podem, com uma interpretação mais liberal, atingir
todas as pretensões de, exclusivamente, produzir provas. Em
alguns casos, como ocorre com a justificação, a prova ora! nem
mesmo demandará qualquer perigo, de modo que sua pouca
utilização prática somente se explica pelo desconhecimento do
instituto pelos praxistas.
De qualquer forma, mesmo que aparentemente se possa
defender a tese de que as ações probatórias autônomas, com
aquilo que já se encontra previsto no ordenamento processual,
são aptas a permitir a produção de uma prova de forma autôno
ma, independentemente da existência do perigo de essa prova
não poder ser produzida mais tarde, eventuais restrições inter-
pretativas poderão colocar-se como obstáculos a essa aceitação
ampla e genérica sugerida. Diante de eventuais dificuldades
advindas de interpretações mais restritivas, sugere-se, de lege
ferenda, a adoção de uma ação probatória autônoma cujo úni
co e exclusivo propósito seria a produção de uma prova cujo
objetivo é a maior definição da situação fática.
Com vistas a demonstrar a utilidade prática das ações pro
batórias autônomas, o capítulo 8 é integralmente destinàdo a
apresentar, objetivamente, alguns benefícios de uma permissi-
bilidade ampla e irrestrita da existência de demandas que tenham
como objetivo exclusivo a produção de uma prova.
4
A primeira utilidade de uma produção prévia da prova é
obter uma prova documentada, que se diferencia da prova do
cumental, para instruir a petição inicial de mandado de segu
rança, que, em razão de sua sumariedade instrumental, não
admite dilação probatória, por exigir do impetrante a prova de
seu direito líquido e certo já com a petição inicial. Apesar de a
doutrina majoritária defender que a única prova possível no
mandado de segurança seja de natureza documental, procurar-
se-á demonstrar o equívoco desse entendimento ao apontar para
a possibilidade de a prova ter outra natureza, mas estar devida
mente documentada, justamente em meio material que será
anexado pelo impetrante com a petição inicial do mandamus.
A segunda utilidade lembrada para a prova produzida de
forma autônoma e anteriormente à demanda diz respeito à coi
sa julgada secundum eventum probationis, presente nas deman
das coletivas que tenham por objeto direitos difusos ou coletivos.
Após a análise de alguns pontos polêmicos a respeito do insti
tuto, aponta-se para a utilidade da produção da prova de forma
autônoma como maneira de evitar a repetição de processos
coletivos em que não exista a prova nova, condição sine qua
non para afastar a coisa julgada da primeira sentença transitada
em julgado. Em vez de desenvolver todo o processo coletivo,
geralmente custoso e demorado, para somente em seu final
descobrir que a imprescindível prova nova não existe, extinguin-
do-se o processo sem o julgamento do mérito, o legitimado a
propor a demanda coletiva ingressaria com uma ação probatória
autônoma para obter a prova nova, que utilizará de forma do
cumentada ao propor a ação coletiva.
Em terceiro lugar, apontaram-se alguns problemas referen
tes à adoção pelo direito brasileiro do princípio da eventualida
de, que não admite a modificação dos fatos que compõem a
causa de pedir após o saneamento do processo. Dessa maneira,
são diversos os casos em que o autor narra causa de pedir de
feituosa em virtude de dúvidas a respeito dos fatos, e, com isso,
vê-se derrotado no processo após a produção da prova. Por não
se admitir a modificação dos fatos jurídicos que compõem a
causa de pedir, ao perceber que a narração da causa de pedir
5
«
no aspecto fático foi realizada de forma inadequada pelo autor,
este assistirá passivamente a sua derrota, somente podendo in
gressar com nova demanda, agora com os fatos já precisados a
compor sua causa de pedir. Em vez de dois processos de conhe
cimento, muito mais racional seria admitir a ação probatória
autônoma e o ingresso do processo de conhecimento com nar
rativa fática perfeita da causa de pedir.
A questão do litisconsórcio alternativo diz respeito à quar
ta utilidade prática da ação autônoma probatória genérica. Esse
instituto não se encontra positivado no direito brasileiro, mas
vem sendo admitido na prática forense, não obstante a pouca
atenção que tem despertado na doutrina pátria, O litisconsórcio
alternativo ocorre sempre que exista dúvida fundada a respeito
de quais sujeitos devem compor os pólos — ativo e passivo — da
demanda; nessa situação, admite-se que se forme um litiscon
sórcio mesmo sabendo que um dos sujeitos que o compõem não
é parte legítima na demanda, o que somente se poderá apontar
com exatidão após a produção da prova. Nesse sentido, melhor
seria admitir uma ação probatória autônoma para definir a ques
tão da legitimidade, de modo a preparar, com exatidão, os ele
mentos subjetivos do processo por vir, como ocorre nas diligen
cias preliminares previstas no ordenamento espanhol, argentino,
uruguaio, chileno e boliviano.
A quinta utilidade da produção autônoma de prova diz
respeito à otimização dos meios alternativos de solução de con
flitos, em especial a conciliação e a mediação. O objetivo seria
proporcionar às partes maior definição da situação fática para
que as propostas tendentes à realização do acordo se encontrem
mais próximas do efetivo direito existente entre as partes. Eviden
temente, nessa utilidade a prova pericial teria posição de desta
que, devido às dificuldades de precisar a situação fática sem ela,
o que, inclusive, motivou o legislador italiano a recentíssima
alteração do CPC, que inclui dispositivo que admite a prova
técnica autônoma e prévia com o fim de melhorar a posição das
partes para a celebração de eventual acordo. No direito norte-
americano também se encontra técnica de solução alternativa de
6
conflitos, consistente na realização de prova técnica por espe
cialista, alcunhada sugestivamente de expertfactifinding.
Por fim, a sexta utilidade prática diz respeito à necessidade
que o autor tem de elaborar pedido certo e determinado, o que
nem sempre se mostra fácil no momento da propositura da de
manda. Mais uma vez, mostra-se com freqüência na prática
forense a necessidade de produção de prova técnica para aferir
a quantificação do pedido, o que leva os tribunais a ampliarem
a interpretação do art. 286, inc. II, do CPC, uma das hipóteses
permissivas do pedido genérico. A utilidade da produção autô
noma de prova serviria ao autor para, judicialmente e em con
traditório, produzir uma prova técnica suficiente a quantificar
seu pedido e, conseqüentemente, a respeitar a regra de que o
pedido deve ser certo e determinado.
O último capítulo destina-se à análise da ação meramente
declaratória. Primeiramente, procede-se a uma análise não
exaustiva da amplitude interpretativa que se dá ao art. 4Q, inc. I,
do CPC, quando se refere à declaração de existência ou inexis
tência de relação jurídica. Depois, passa-se a analisar a ação
meramente declaratória de fatos, exclusivamente positivada no
tocante à declaração de autenticidade ou de falsidade documen
tal {art. 4C, inc. II, CPC).
Rassa-se, então, a defender que a limitação legal não é deri
vada da impossibilidade jurídica de uma ação meramente decla
ratória de fatos genérica; trata-se, exclusivamente, de opção legis
lativa. Indicam-se lições de doutrinadores nacionais e estrangeiros
que, apesar de excepcionalmente tratarem do tema, demonstram
que a ação meramente declaratória de fatos genérica não é algo
tão distante da realidade acadêmica e mesmo forense.
Ainda no capítulo 9, aponta-se para as principais críticas
feitas pela doutrina a respeito da adoção de uma ação meramen
te declaratória de fatos de maneira genérica, não somente ex
cepcional, de modo a demonstrar que tais críticas não se sus
tentam. Demonstra-se a possibilidade de existir interesse de agir
do autor nessa espécie de açãoAapós breve análise dessa con
dição da ação à luz das ações meramente decIaratórias, e se
7
conclui que o interesse de agir deve ser analisado casuistica-
mente, não se podendo defender que sempre faltaria interesse
de agir ao autor na propositura dessa espécie de ação.
Por fim, demonstra-se a utilidade de adotar uma ação me
ramente declaratória de fatos, de modo a finalizar a análise com
a demonstração da possibilidade de sobrevivência conjunta das
ações probatórias autônomas e da ação meramente declaratória
de fatos.
O presente trabalho tem como principal pretensão suscitar
a discussão da doutrina a respeito desse importante assunto,
mesmo por meio da adoção de propostas de lege ferenda. As
sugestões feitas certamente encontrarão diversas críticas, que,
feitas de forma construtiva, auxiliarão a trazer maior clareza a
tema de inegável importância na praxe forense.
8
1. NATUREZA IU R ISD IC IO N A L
Tema dos mais polêmicos no processo civil é a classificação
da tutela cautelar, em especial quando se considera que cada
doutrinador, nacional e estrangeiro, adota diferentes critérios, o
que leva a diversas espécies de classificações oriundas, inclusi
ve, do mesmo autor. Entre os objetivos traçados por este trabalho
não está fixar uma originária classificação das tutelas cautelares
ou ainda adotar plenamente uma das classificações já feitas. O
tema, que não será abordado com profundidade, entretanto,
mostra alguma importância no que tange à discussão do assun
to que será objeto de nosso estudo.
A classificação da tutela cautelar importa nos limites da
determinação da natureza cautelar ou não das ações probatórias
previstas pelo Livro III do Código de Processo Civil. Pâra tanto,
será necessário descobrir qual a relação que a tutela probatória
autônoma guarda com a tutela cautelar, o que ensejará uma
análise do instituto que é o objeto central deste estudo à luz das
regras gerais dos processos cautelares, sempre levando em con
ta, naturalmente, as especificidades procedimentais.
Antes, propriamente, de ingressar no tema da cautelaridade
ou não dos processos probatórios previstos pelo ordenamento
processual como cautelares nominadas — ou típicas —, o que
será feito em tópico específico, é importante afirmar que esses
processos probatórios são espécies de processos jurisdicionais,
sendo inadmissível crer em uma natureza administrativa ou
qualquer outra que não a jurisdicional1. Esse entendimento
*
9
parece o mais correto até mesmo em situações em que as ações
cautelares probatórias são destituídas de qualquer espécie de
conflito de interesses, de modo a funcionar como homologação
judicial dos interesses dos sujeitos que buscam o Poder Judiciá
rio, ou ainda quando se produz uma prova sem que exista resis
tência do demandado.
Nada impede que, em situações excepcionais, a tutela cuja
natureza é prevista pelo Código de Processo Civil como cautelar
se manifeste por meio de procedimento de jurisdição voluntária,
o que não significa dizer que a atividade exercida pelo juiz
deixe de ser jurisdicional2. Aliás, existem alguns procedimentos
10
probatórios em que se discute, com bastante ênfase, sua própria
natureza cautelar, sendo bem mais pacífica sua natureza juris-
dicional, ainda que se trate de jurisdição voluntária, como no
caso da justificação autônoma.
Embora não seja especificamente objeto do tema central
do presente trabalho, é importante frisar ser absolutamente in
viável o entendimento pela natureza não jurisdicional desses
processos cautelares — ou simplesmente previstos como tais
pelo Código de Processo Civil —, mesmo que se desenvolvam
por meio de jurisdição voluntária. Esse posicionamento decorre
do entendimento, partilhado por grande parte da doutrina, mas
distante da unanimidade, de que a jurisdição voluntária compõe,
ao lado da jurisdição contenciosa, o instituto da jurisdição. É
antigo o debate em torno da natureza da jurisdição voluntária,
havendo aqueles que a entendem administrativa e outros que a
vêem jurisdicional. Ao defender a natureza jurisdicional de toda
e qualquer ação prevista como cautelar pelo nosso ordenamen
to processual, torna-se necessário, ainda que não de forma
exaustiva, traçar algumas ponderações a respeito da natureza
jurídica da jurisdição voluntária.
Giuseppe Chiovenda3, um dos expoentes da corrente ad-
ministrativista entre os estudiosos do processo, afirma que os
11
atos praticados na jurisdição voluntária são atos de simples ad
ministração, "tratando-se, porém, de atos que exigem especial
disposição e especiais garantias de autoridade nos órgãos a que
competem, é natural que o Estado utilize para corresponder a
essas exigências a mesma hierarquia judiciária comum". Para
EnricoTulio Liebman4, a jurisdição voluntária seria substancial
mente administrativa e formalmente jurisdicional, e, para José
Frederico Marques5, materialmente administrativa e subjetiva
mente judiciária. Também são partidários da corrente que en
tende pela natureza administrativa da jurisdição voluntária,
entre outros, no direito pátrio, Arruda Alvim6; no direito italiano,
Calamandrei7e Proto Pisani8; no direito espanhol, Jaime Guasp9;
no direito argentino, Lino Enrique Palacio10; e, no direito portu
guês, josé Lebre de Freitas11.
12
Corrente doutrinária contrária à anteriormente exposta
defende a natureza jurisdicional da jurisdição voluntária, tese
sustentada por Francesco Carnelutti12, para quem o nome juris
dição voluntária "faz alusão mais à falta de um conflito de von
tades, do que a do conflito de interesses e, por isso, na realida
de, à falta dos elementos formais do litígio". A corrente que
aponta a natureza jurisdicional da jurisdição voluntária é repre
sentada, entre outros, no direito italiano, por Salvatore Satta e
Carmine Punzi13, Vittorio Denti14, e, no direito pátrio, por Pontes
de Miranda15, Leonardo Greco16, José Maria Rosa Tesheiner17e
Cândido Rangel Dinamarco18.
A atribuição de natureza administrativa ou jurisdicional à
jurisdição voluntária passa, necessariamente, pelo conceito de
jurisdição, matéria que também é objeto de controvérsia entre
os doutrinadores que tratam do tema. Tradicionalmente, a dou
trina — tanto nacional como estrangeira — indica alguns prin
cipais elementos para classificar a jurisdição: substituição,
inércia, coisa julgada, lide e imparcialidade. É interessante
verificar que, seguindo as características tradicionais da juris
dição, dificilmente seria possível incluir nesse instituto a juris
dição voluntária. Como já afirmado, parece correta a tese de
natureza jurisdicional da jurisdição voluntária, e por essa razão
12 Cf. Sistema de direito processual civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. São
Raulo: ClassicBook, 2000, v. I, p. 362.
13 Dirittoprocessuale civile. 12. ed. Padova: Cedam, 1996, p. 985.
14 "La giurisdizione volontaria revisitata". Rivista Trimestrale di Diritto e Pro-
cedura Civile. Milano: Giuffrè, 1987, p. 325.
15 Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1977, t.
XVI, p. 3 e ss.
16 Jurisdição voluntária moderna, cit., p. 15-21.
17 Jurisdição voluntária, cit., p. 40-54.
18 "Procedimentos especiais de jurisdição voluntária". In:______. Fundamen-
■ tos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, t. I, p.
380-386.
13
será preciso justificar um distanciamento dos tradicionais ele
mentos lembrados para classicamente definir o conceito de
jurisdição.
Segundo corrente doutrinária antiga, a jurisdição tem como
principal característica o caráter substitutivo, em que o Estado-
juiz, com uma atividade sua, substitui as atividades daqueles
sujeitos que estão envolvidos no conflito de interesses trazidos
à apreciação do Poder Judiciário19. Nesse ponto, haveria um
distanciamento da jurisdição voluntária, a considerar que nesta
não há, propriamente, substituição de atividades, mas a mera
integração judicial para que o acordo de vontades celebrado
entre os sujeitos possa gerar efeitos jurídicos.
Apesar de ser majoritária na doutrina a percepção de que
o efeito substitutivo é característica imprescindível da jurisdição,
não parece que para haver jurisdição seja necessária a obser
vância de tal requisito. Basta lembrar da chamada execução
indireta, em que não há propriamente substituição da vontade
do executado, mas sim o emprego de meios de pressão psico
lógica para que o próprio demandado cumpra sua obrigação
(art. 461, CPC). Não se duvida de que tais medidas tenham na
tureza jurisdicional, apesar de não serem substitutivas da von
tade do sujeito processual20.
Decretada a prisão civil de um devedor de alimentos ou
de um depositário infiel — para aqueles que entendem possível
a prisão do último após o Pacto de São José da Costa Rica e da
14
Emenda Constitucional n. 45 — em um processo executivo,
não se duvida de que o cumprimento da obrigação não será
realizado em razão da efetivação dessa medida, de modo que
serve a prisão somente como meio de coerção psicológica para
que o devedor cumpra sua obrigação. É evidente que, nesse
caso, o Estado-juiz não substitui a vontade do devedor, mas
atua sobre ela para que o direito do credor seja satisfeito. O
mesmo ocorre sempre que, nas obrigações de fazer, não fazer
e entrega de coisa, o juiz aplica a multa (astreinte) prevista
genericamente para processos com esse objeto no caso de
descumprimento da prestação (art. 461, § 4Q, CPC). Tanto em
um caso como em outro, não seria adequado falar em substi
tuição de vontade, mas nem por isso os processos de execução
em que tais medidas foram adotadas deixaram de ter natureza
jurisdicional.
Quanto à idéia de definitividade, ao afirmar que a coisa
julgada seria característica da jurisdição, é preciso lembrar que,
para a doutrina amplamente majoritária, não será possível falar
em coisa julgada no processo cautelar21, não obstante seja ine
gável sua natureza jurisdicional. Há ainda as sentenças termi
nativas (art. 267, CPC), que não fazem coisa julgada material,
21 Registre-se não ser essa nossa opinião pessoal, conforme já tivemos opor
tunidade de defender em Preclusões para o juiz — precíusão pro iudicato
e precíusão judicial no processo civil, São Raulo: Método, 2004, p. 300-308;
não se pode deixar de admitir, entretanto, ser minoritária a tese que enten
de haver coisa julgada material no processo cautelar. No sentido do texto,
Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de processo civil. 5. ed. São Paulo: Re
vista dos Tribunais, 2000, v. I, p. 46. No direito espanhol, Manuel Ortelis
Ramos, Derecho procesal — introducción, cit., p. 157, a comentar os de
feitos da coisa julgada como característica distintiva da jurisdição: "Por una
parte, resulta excesiva porque hay supuestos en que Ia actuación del De
recho mediante Ia potestad jurisdicional no produce cosa juzgada o Ia
produce con importantes singularidades respecto del concepto general de
esta-institución. Es el caso de los procesos sumários y de Ia tutela judicial
cautelar".
15
não se tornando, portanto, imutáveis ou indiscutíveis. Soma-se
a tudo isso a polêmica proposta de relativização da coisa julga
da, que, aliás, encontra-se parcialmente positivada (art. 741,
parágrafo único, e art. 475-L, § 1o, ambos do CPC), a fim de
visualizar condições suficientes para afastar o conceito de juris
dição do fenômeno da coisa julgada material.
Segundo lição de José Maria Rosa Tesheiner22, "a coisa
julgada pode, sim, funcionar como indicativo da natureza juris
dicional de um ato", o que significa dizer que, se o ato produzir
coisa julgada material, tornando-se imutável e indiscutível, po
derá afirmar-se com certeza que se trata de ato jurisdicional. A
ausência de tal efeito, entretanto, não será suficiente para afirmar
a natureza não jurisdicional desse ato, que, assim, poderá ou
não ter natureza jurisdicional. A coisa julgada material, nessa
visão, não é condição sine qua non da jurisdição, já que pode
haver jurisdição sem coisa julgada material, mas não há coisa
julgada material fora da jurisdição.
O entendimento exposto anteriormente deve ser interpre
tado com a devida atenção, em especial em razão da arbitragem,
mais especificamente da sentença arbitrai23, e da decisão profe
rida pelo Conselho de Contribuintes contrária ao Fisco, que, para
16
alguns doutrinadores, não pode ser revista judicialmente. A Lei
n. 9.307/96, que trata da arbitragem em nosso país, abre impor
tante exceção ao pensamento do processual ista gaúcho, consi-
derando-se em especial o art. 31 de referida lei, ao disciplinar:
"A sentença arbitrai produz, entre as partes e seus sucessores, os
mesmo efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Ju
diciário e, sendo condenatória, constitui título executivo". Inte
ressa ao presente debate a primeira parte do dispositivo legal,
que assemelha no tocante aos efeitos a sentença arbitrai à sen
tença judicial.
Segundo parcela majoritária da doutrina nacional, o dis
posto no art. 31 da Lei n. 9.307/96, apesar de se referir a efeitos
da sentença, permite a interpretação da possibilidade de veri
ficação da coisa julgada material na arbitragem. É sabido que
os efeitos da sentença não se confundem com a coisa julgada
material, o que se passou a admitir de forma incontestável a
partir das lições de Enrico Tulio Liebman a respeito do tema.
Uma interpretação literal do artigo legal, portanto, levaria o
operador a entender que, como na sentença judicial, também
na sentença arbitrai seria possível a geração de efeitos — eficá
cia — condenatórios, constitutivos e meramente declarató-
rios24 —, incluindo-se ainda os efeitos mandamentais e execu
tivos lato sensu para os defensores da teoria quinária da classi
ficação das sentenças.
Esse entendimento, entretanto, não aparenta ser a melhor
solução para o problema enfrentado. Apesar de ser inconfundí
vel a eficácia da sentença da autoridade da coisa julgada mate
rial, não se pode negar que a imutabilidade e a indiscutibilidade,
próprias da coisa julgada material, também devam ser geradas
na arbitragem, sob pena de tornar-se tal meio alternativo de
solução de controvérsias em um simples passatempo antes do
ingresso de processo perante o Poder Judiciário. Assim, com as
17
exceções legais (art. 32 da Lei n. 9.307/96)25, a sentença arbitrai
fará coisa julgada material26.
Já o art. 1.111 do CPC deve ser interpretado com os devidos
cuidados, sendo incorreta a afirmação peremptória de que a
sentença proferida em sede de jurisdição voluntária não faça
coisa julgada material. A afirmação é muito simplista e deve ser
objeto de análise mais apurada. Ainda que seja possível afirmar
que a coisa julgada típica da jurisdição contenciosa não se for
ma na jurisdição voluntária27, não se pode entender que as de
cisões proferidas em sede de jurisdição voluntária sejam abso
lutamente instáveis, revogáveis e modificáveis a qualquer mo
mento e sob qualquer circunstância. Cumpre afirmar que a
previsão do dispositivo anteriormente mencionado, a exigir que
a modificação da decisão esteja limitada a "circunstâncias su
pervenientes", coaduna-se com o disposto no art. 471 do CPC,
que trata da coisa julgada nas sentenças determinativas, espécie
25 Conforme bem exposto por Flávio Luiz Yarshell, Ação rescisória — juízos
rescindente e rescisório/ São Pâulo, Malheiros, 2006, p. 204-207, não cabe
ação rescisória para a desconstituição da sentença arbitrai.
26 Na defesa da ocorrência de coisa julgada material na arbitragem, Carlos
Alberto Carmona, Arbitragem e processo/ cit, p. 314: "A equiparação entre
a sentença estatal e a arbitrai faz com que a segunda produza os mesmos
efeitos da primeira. Por conseqüência, além da extinção da relação jurídica
processual e da decisão da causa (declaração, condenação ou constituição),
a decisão de mérito faz coisa julgada às partes entre as quais é dada (e não
beneficiará ou prejudicará terceiros)"; joel Dias Figueira Jr., Arbitragem,
jurisdição e execução, cit., p. 259-262, ressaltando os limites objetivos e
subjetivos da coisa julgada; José Cretella Neto, Comentários à lei de arbitra
gem. Rio de janeiro: Forense, 2004, p. 169-172, com indicação de legisla
ção comparada. Contra a posição referida anteriormente, Alexandre Rreitas
Câmara, Arbitragem — Lei 9.307/96/ cit, p. 135-137.
27 Rara Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de direito processual civil/ cit, p. 44-50,
não se verifica coisa julgada material nos processos de jurisdição voluntária
em razão de não haver, nessa jurisdição, declaração de direitos, de modo a
sobrepor-se a eficácia constitutiva. Rara o processualista gaúcho, na jurisdição
voluntária o juiz nada declara, com eficácia suficientemente relevante para a
produção da coisa julgada, em situação análoga à do processo cautelar. No
mesmo sentido, José Maria Rosa Tesheiner, jurisdição voluntária/ cit, p. 52.
18
de decisão que tem por objeto obrigações de trato continuado.
Nestas, também se passou durante algum tempo a falsa idéia de
que não haveria coisa julgada material, já tendo a melhor dou
trina demonstrado o desacerto de tal afirmação28.
Finalmente, a idéia de condicionar a jurisdição à existência
de lide — conforme clássica definição de Francesco Carnelutti,
do conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida
— não explica a existência das ações constitutivas necessárias,
nas quais, independentemente da existência do conflito de in
teresses, existirá o processo e, por conseqüência lógica, a juris
dição. A anulação de casamento é exemplo típico de ação
constitutiva negativa necessária, na qual a lide somente poderá
ser considerada abstratamente, em uma espécie de presunção
absoluta de lide, independente de efetiva resistência do réu29. E
não se duvida de que a ação de anulação de casamento faça
parte da jurisdição contenciosa e não voluntária, o que ocorre
também, por exemplo, com o divórcio.
O mesmo poderá ser dito a respeito da ação inibitória, que
tem como objeto impedir a prática, continuação ou repetição
de ato ilícito, sem que, na hipótese de impedir um ato que ain
da não se verificou, seja exigida da parte a demonstração da lide
19
na acepção clássica do termo. Na realidade, a mera perspectiva
da prática de um ato ilícito já será suficiente para a parte encon
trar tutela jurisdicional.
Como se percebe dessa brevíssima incursão ao tema da
jurisdição, as características tradicionais de tal instituto jurídico
encontram-se fortemente abaladas como suficientes para sua
conceituação, de modo que se faz necessária uma revisita a tal
instituto, tarefa já desenvolvida por parcela da doutrina. A nova
visão a respeito dos elementos essenciais da jurisdição demons
trará, de forma bastante convincente, que também a jurisdição
voluntária tem natureza jurisdicional
Como é corretamente sustentado por Giovanni Verde30,
mostram-se insuficientes todos os conceitos de jurisdição que
levam em conta para a conceituação do instituto seu conteúdo,
sua teologia ou sua estrutura, sendo possível, como feito ante
riormente, encontrar falhas em todos eles. Acertadamente, o
jurista italiano abandona tais características, chegando à con
clusão de que a única forma suficientemente adequada para a
conceituação de jurisdição passa por uma definição que leve
em conta seu aspecto subjetivo. Assim, deve ser considerada
jurisdição toda atividade exercida pelos juízes, que são sujeitos
imparciais e independentes, os quais agem somente quando
provocados e, quando isso ocorre, decidem de maneira funda
mentada após a observância do devido contraditório.
É importante lembrar, nas precisas palavras de Leonardo
Greco31, que esse entendimento
-20
"não transforma em jurisdicionais todos os atos dos juizes,
mas apenas aqueles que são praticados no curso de um
processo (giudizio), como procedimento no curso do qual
são exercitadas funções jurisdicionais decisórias, inseridas
num sistema jurídico de princípios, garantias, direitos sub
jetivos e regras de controle. E aí a jurisdição voluntária é
essencialmente jurisdicional".
21
todos eles têm, efetivamente, natureza cautelar, ou se a opção
do legislador de reunir todos eles no Livro III do Código de Pro
cesso Civil, responsável pela previsão dos processos cautelares,
mostra-se equivocada.
22
Não se nega que a instrumentalidade seja característica de
todo e qualquer processo, considerando-se que este serve de
instrumento para a parte obter o bem da vida desejado, ampa
rado no direito material. A idéia do processo como mero instru
mento na busca do direito material está amplamente consagrada
pela doutrina processual contemporânea. A característica espe
cial de instrumentalidade no processo cautelar deve-se justa
mente ao fato de que ele não serve de instrumento para a ob
tenção do bem da vida, mas sim para tornar possível tal obtenção.
Dessa forma, surge a nomenclatura "instrumento do instrumen
to" ou "instrumentalidade ao quadrado", que aponta para a
característica peculiar do processo cautelar de servir de instru
mento para o processo principal — que também é instrumento
— para que a parte obtenha o bem da vida pretendido.
A instrumentalidade da tutela cautelar faz com que tal es
pécie de tutela sirva como instrumento apto a garantir que o
resultado finai do processo seja eficaz, significando que tal re
sultado tenha condições materiais para gerar os efeitos práticos
normalmente esperados. O próprio nome do instituto — caute
lar — expressa de maneira clara a idéia exata de que essa espé
cie de tutela presta-se a garantir, acautelar, assegurar alguma
coisa, que é, como visto, justamente o resultado final do proces
so principal A característica analisada da tutela cautelar refere-
se, essencialmente, à função de proteger o resultado final do
processo principal, seja esse de conhecimento, seja de execução.
Nesse ponto de vista, qualquer processo que não gere o conhe
cimento ou satisfação do direito material, mas somente prepare
o caminho para tais realizações, poderá ser considerado como
processo cautelar. Ao garantir a eficácia e a utilidade do resul
tado final, de modo a acautelar uma situação fática para que,
no momento da concessão definitiva, possa gerar seus efeitos, o
processo cautelar teria a característica da instrumentalidade.
No tocante a essa característica, é importante notar que a
instrumentalidade é hipotética, pois é impossível prever se uma
tutela cautelar será, efetivamente, apta a garantir um resultado
eficaz do processo final, inclusive por não ser possível saber, por
ocasião do acautelamento, se o interessado é realmente o titular
23
do direito material que se busca preservar. A tutela cautelar é
concedida pelo magistrado com fundamento em um juízo de
mera probabilidade — fumus boni iuris —, sendo plenamente
possível imaginar que na futura ação principal se mostre sem
qualquer direito o sujeito protegido pela tutela cautelar. Quando
o vencedor da tutela cautelar é derrotado no processo principal,
fica claro que a instrumentalidade é meramente hipotética33.
Essa qualidade de instrumentalidade hipotética manifesta-se
também de outras formas, além da referida situação de derrota
no processo principal do beneficiado pela tutela cautelar. No
caso de o processo principal não vir a se instaurar em razão de
o beneficiado pela tutela cautelar obter, voluntariamente, o re
conhecimento ou a satisfação de seu direito, a tutela cautelar
também não terá servido a emprestar eficácia ao resultado do
processo principal, que simplesmente não existirá, por pura
falta de necessidade. Assim, se for efetivado um arresto cautelar
na hipótese de obrigação ainda não inadimplida e, no momen
to da efetiva satisfação do direito, o devedor cumprir sua obri
gação, o resultado que poderia ser obtido pelo processo princi
pal já terá sido alcançado sem a necessidade de sua instauração,
o que retirará da tutela cautelar sua característica de instrumen
talidade.
O que se pretende demonstrar é que nem sempre existirá
o processo principal, sendo possível imaginar que, diante da
concessão da tutela cautelar, o derrotado nesse processo sim
plesmente cumpra sua obrigação, de modo a satisfazer comple
24
tamente o direito da parte que foi contemplado pela tutela de
garantia. A conclusão é obtida mediante uma análise técnica,
sem importar a freqüência com que isso possa ocorrer na prática,
embora, nas cautelares probatórias, tal situação ocorra até com
maior freqüência que nas demais. Parece inegável, entretanto,
que, em todas as hipóteses de acautelamento, o direito pode ser
satisfeito voluntariamente, o que demonstra, de maneira absolu
tamente clara, ser a instrumentalidade sempre hipotética.
Esse entendimento será de extrema valia na fundamentação
da conclusão a que se pretende chegar no presente capftulo, qual
seja, de que todas as medidas probatórias previstas como caute
lares pelo Código de Processo Civil têm, efetivamente, natureza
cautelar, ainda que o conceito do periculum in mora tenha de
ser compreendido de maneira diversa da tradicionalmente feita
pela doutrina nacional em algumas situações específicas.
A parafrasear o grande processualista Giuseppe Chiovenda,
o processo será considerado perfeito quando entregar ao vence
dor exatamente aquilo que receberia se o devedor tivesse cum
prido voluntariamente sua obrigação. Significa dizer que o re
sultado mais eficaz e útil que um processo pode atingir é justa
mente aquele que cria um resultado prático idêntico ao cumpri
mento voluntário da obrigação.
Diante dessa constatação, é plenamente possível defender
a tese de que, ao ser obtida uma tutela cautelar e ao ser cumpri
da a obrigação voluntariamente, dispensando-se o processo
principal, de alguma forma a tutela cautelar terá auxiliado, não
para que o resultado do processo seja útil e eficaz, já que esse
processo nem mesmo existirá, mas para que, no plano prático,
tenha-se gerado situação idêntica àquela que se busca classica-
mente com a tutela cautelar, qual seja, a preservação efetiva do
direito material De maneira indireta, portanto, sempre que uma
tutela dita cautelar — tendente a preservar a eficácia e utilidade
do resultado do processo final — auxilia de alguma forma uma
solução extrajudicial, terá também, apesar da ausência do pro
cesso principal, servido para garantir a preservação e plena
efetividade do direito material da parte. Não terá sido o instru
25
mento do instrumento, mas pode servir, de maneira indireta, para
levar o sujeito à satisfação de seu direito material.
Tal situação se verifica com maior clareza nas cautelares
probatórias, porque, nessa espécie de demanda judicial, a ob
tenção da prova de determinados fatos — em tese favoráveis ao
requerente, titular do direito material — poderá levar o requeri
do a adotar determinada postura que não adotaria diante da
incerteza fática anterior. Não é absurda a hipótese de, ao ser
demonstrado determinado fato, restar claro o direito do reque
rente, o que forçará o requerido a celebrar uma transação extra
judicial ou até mesmo a satisfação do direito para evitar uma
demanda judicial na qual já sabe que sairá derrotado. Nesses
casos, a cautelar probatória terá contribuído, de forma suigene-
ris, para uma tutela jurisdicional efetiva sem nem ao menos
existir o processo principal.
26
telar, inclusive para as chamadas cautelares probatórias, que são
aquelas que mais interessam a este estudo. Pàra a doutrina na
cional — e também grande parte da estrangeira —, a ausência
do periculum in mora em sua acepção clássica retira do proces
so qualquer natureza cautelar. Com base nesse pensamento,
excluir-se-iam do âmbito cautelar os processos probatórios sem
pre que não existir perigo de que a prova não pudesse ser pro
duzida em seu momento adequado.
Em uma análise comparativa de legislações estrangeiras,
percebe-se com freqüência a mesma tônica quando se trata de
produção antecipada de prova: a necessidade de que haja perigo
de a prova não poder ser produzida em seu momento adequado.
Salvo algumas exceções, como as encontradas no direito francês,
alemão e inglês, que serão comentadas no momento adequado,
bem como as diligencias preliminares previstas no ordenamento
processual do Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia e Espanha — que
também serão analisadas em momento oportuno —, as legislações
exigem, para a concessão de tutela de prova produzida de forma
autônoma, o perigo de que essa prova não possa ser produzida
no momento adequado previsto em lei. É interessante porque
alguns ordenamentos prevêem a produção antecipada de provas
como cautelar, enquanto outros a tratam no próprio capítulo re
ferente às provas, mas a sua maioria traz consigo tal exigência.
No Cod/ce di Procedura Civile italiano, o perigo de a prova
não poder ser produzida em seu exato momento encontra-se
expressamente previsto em dois dispositivos legais, o art. 692
— prova testemunhai — e o art. 696 — prova pericial e inspeção
judicial34. Na Ley de Enjuiciamiento Civi'/espanhol, a exigência
de temor fundado de impossibilidade de produção da prova em
27
seu momento processual regularmente previsto encontra-se no
art. 29335. Em Portugal, o art. 520 do Código de Processo Civil
indica a impossibilidade ou a dificuldade extrema de produzir
a prova no momento adequado36. A mesma exigência é encon
trada no direito austríaco, positivada nos arts. 384-389, ZPO37.
O Código Federal de Procedimientos Civiles mexicano
contém tal exigência em seu art. 92. No direito argentino, a
previsão encontra-se no art. 326 do Código Procesal Civil y Co
mercial de la N a c ió n O Código General del Proceso uruguaio
28
contém previsão semelhante em seu art. 306.2. Na Colômbia,
a previsão que exige o periculum in mora para as chamadas
ações de asseguração de prova encontra-se no art. 803 do Có
digo judicial3,9.
Mesmo no direito norte-americano, cujo sistema processu
al é bastante diferente daquele existente nos países da tradição
da civil law, a doutrina aponta, como um dos objetivos da d/s-
covery, a preservação de uma prova que não poderá ser produ
zida no momento do julgamento, de modo a admitir a colheita
de prova antes do início do processo. As hipóteses mais lembra
das em que se permite a produção da prova antes do início do
processo em virtude do perigo de ela se perder no tempo não
divergem dos motivos previstos pela lei brasileira para a oitiva
de testemunha de forma antecipada, apontando a doutrina nor
te-americana para a doença ou idade avançada da testemunha,
bem como a possibilidade de ausentar-se do país antes do trial
— julgamento40.
Distanciando-se dos ordenamentos analisados encontra-se
o direito francês, no qual há disposição positivada no estatuto
processual, que trata do tema da prova produzida antecipada
mente por meio de processo autônomo, não se exigindo — ao
menos não necessariamente — que a prova corra perigo de não
poder ser produzida novamente. Segundo o art. 145 do CPC
francês, existindo motivo legítimo para conservar ou estabelecer
39 Jorge Fabrega, Teoria general de Ia prueba. 2. ed. Bogotá: Ed. Jurídicas Gus
tavo Ibánez, 2000, p. 293: "Mediante el asseguramiento de Ia prueba — fun
dado en el derecho a Ia prueba — se obtiene una prueba para el caso de
extravio o deterioro del medio probatorio, o de precaverse de Ias dificulta-
des que pudiera surgir en su oportuna obtención".
40 Jack H. Friedenthal, Mary Kay Kane, Arthur R. Miller, Civilprocedure. 3. ed.
Saint Raul: West Group, 2004, p. 386-387: "Modem discovery has three
major purposes. First is the preservation of relevant information that might
not be available at trial. The earliest discovery procedures in the federal
courts were designed basicaly for this purpose. If a witness is ill or infirm,
or will be out of the country at the time of trial, thetestimony of that witness
can be taken and preserved, and ultimately used at trial".
29
antes do processo a prova de fatos dos quais poderá depender a
solução de uma controvérsia, será permitido à parte, por requete
ou refere, produzir a prova por meio de processo probatório
autônomo. Será justamente a definição de quais sejam esses
motivos legítimos que demonstrará que o periculum in mora é
dispensável, embora evidentemente a existência do perigo de a
prova não poder ser produzida posteriormente deva ser entendi
da como motivo legítimo para sua produção antecipada.
Depois de certa indefinição nos Tribunais, a Corte de Cas
sação francesa firmou o entendimento de que a prova produzi
da antecipadamente não exige a presença do periculum in mora,
até mesmo porque o texto do art. 145 do CPC francês menciona
a conservação e a fixação de fatos; somente a primeira circuns
tância estaria ligada à idéia de cautelaridade41. A exigência
feita pela jurisprudência francesa a respeito do "motivo legítimo"
diz respeito exclusivamente à relação que o fato deve guardar
com a exigida indispensabilidade à solução de uma controvérsia,
exigência também positivada no art. 145 do CPC francês. Enten
de-se que o fato deve ser relevante, o que significa dizer que
deve ser suficiente para que o juiz conheça o objeto do futuro
e eventual processo de conhecimento. Além da relevância, exi
ge-se do autor a demonstração de que a demanda gerará me
lhora de sua situação do ponto de vista probatório42.
30
No direito alemão, o § 485 do ZPO estabelece cinco hipó
teses de cabimento do processo probatório autônomo. No inc.
I há duas previsões: primeiro está a característica do periculum
in mora, a apontar para a circunstância de o meio probatório
poder perder-se ou ter seu uso dificultado. A previsão apontada
indica a natureza cautelar tradicionalmente prevista em tantos
outros ordenamentos processuais43. Em segundo lugar, já distan
te da natureza cautelar, a única exigência que o dispositivo legal
faz é que ocorra um acordo de vontade entre as partes. Tanto em
um caso como em outro, a demanda autônoma probatória po
derá ter lugar tanto antes como durante a demanda judicial na
qual a prova funcionará para o convencimento do juiz.
Nas demais previsões permissivas da ação probatória autô
noma, exclusivamente anterior ao processo, não há qualquer
previsão de perigo de a prova não poder ser produzida poste
riormente, ao divorciar-se totalmente da natureza cautelar. Estão
reunidas no inc. II do dispositivo legal ora comentado: (i) para
determinar o estado de uma pessoa, o estado ou valor de uma
coisa; (ii) causas de dano pessoal, dano em coisa ou vício da
coisa; e (iii) o custo de um dano pessoal, dano na coisa ou vício
na coisa, desde que exista interesse jurídico se essa determinação
poder servir para evitar um litígio.
O direito alemão, entretanto, não é tão amplo como o fran
cês no que toca à produção da prova autônoma sem que ocorra
perigo de a prova ser produzida posteriormente. O limite lembra
do pela melhor doutrina diz respeito, em especial, ao meio de
prova possível de produzir-se antecipadamente, o que não ocor
re no direito francês. No direito alemão, somente a prova pericial
poderá ser objeto de produção antecipada sem periculum in mora;
exige-se também um objeto pré-determinado e útil ao acertamen-
to dos fatos com a finalidade de evitar o processo principal44.
43 James Coldshmidt, Direito processual civil. Trad. Lisa Rary Scarpa. Campinas:
Bookseller, 2003, p. 307; Othmar Jauering, Direito processual civil. 25. ed.
Trad. F. Silveira Ramos. Lisboa: Almedina, 2002, p. 282.
44 Chiara Besso, La prova prima del processo, cit., p. 107-108.
31
A Inglaterra, embora seja país da tradição da commom law,
recentemente passou por modificação substancial em seu siste
ma processual, ao adotar em 1998 um Código de Processo Civil
— Civil Procedure Rules 1998. No art. 31.16, instituíram-se os
pre-actíon protocols, que permitem à parte requerer a exibição
de um documento em poder de sujeito que figurará no pólo
passivo da futura e eventual demanda. Permite-se uma discovery
limitada a instituto processual muito similar à exibição de coisa
ou de documento existente no direito brasileiro, a dispensar
qualquer perigo de que a prova não possa ser produzida duran
te o processo, que seria seu momento adequado.
As três hipóteses previstas pelo dispositivo legal mencio
nado permitem a produção da prova prévia, desde que: (i) a
exibição permita uma determinação mais completa dos elemen
tos probatórios em razão dos princípios da boa-fé e da lealdade
processual, de modo a possibilitar a propositura de uma ação
devidamente fundamentada; (ii) auxilie as partes a resolver seu
conflito sem a necessidade da instauração do processo, por
meio de uma transação; e (iii) economize custos45. Há doutrina
a entender que, além da exibição de documento, também será
possível, pelas mesmas razões, a oitiva prévia de prova teste
munhai46.
A legislação pátria sobre o assunto não discrepa muito das
legislações estrangeiras indicadas — à exceção da francesa,
32
italiana (prova pericial), alemã e inglesa (estas duas últimas de
forma restrita); há também a expressa menção em dispositivos
do Código de Processo Civil brasileiro de que é exigido o perigo
de a prova não poder mais ser produzida no futuro como con
dição essencial para a produção antecipada de uma prova. Assim,
o art. 847 do CPC exige a ausência iminente, idade avançada
ou moléstia grave da testemunha para antecipar seu depoimen
to, ou ainda o art. 849 do CPC, que expressamente exige receio
de que venha a tornar-se a prova pericial impossível ou muito
difícil de ser produzida.
No processo de produção antecipada de provas (arts. 846
a 851, CPC), as previsões legais anteriormente referidas levam
parcela da doutrina a apontar a existência de processos proba
tórios satisfativos, em que ausente estaria a característica de
cautelaridade. Nesse sentido está o entendimento de Carlos
Alberto Alvaro de Oliveira47, deGraciela lurk Marins48e de Vic-
tor A. A. Bomfim Marins49, para quem "nem sempre será caute
lar a produção antecipada de prova, seja ela qual for, interroga
tório da parte, inquirição de testemunhas, exame pericial, ou
mesmo exibição, por não apresentar algum dos elementos cons
titutivos dessa modalidade de atuação jurisdicional", e Sérgio
Sahione Fadei50, que defende o indeferimento do pedido quan
do estiver ausente o periculum in mora.
Mesmo nas cautelares previstas pelo ordenamento que não
trazem tal exigência expressamente na lei, a doutrina exige a
presença do requisito do periculum in mora, como no caso da
exibição de coisa ou de documento, sob pena de não se atribuir
a tais demandas a natureza cautelar.
33
Especificamente no tocante à ação de exibição (arts. 844 a
845, CPC), Ovídio A. Baptista da Silva51é peremptório ao afirmar
que "nem toda a pretensão a que se exiba coisa ou documento
é pretensão cautelar". No mesmo sentido, o entendimento de
HumbertoTheodoroJr.52, a defender que, em algumas Fiipóteses,
a "pretensão nada tem de preparatória. Satisfaz apenas a um
direito material da parte". Também nesse sentido são as lições
de Cândido Rangel Dinamarco53, que deixa transparecer a idéia
de que nenhuma ação de exibição seria cautelar, e de Carlos
Alberto Alvaro de Oliveira54, que indica quatro espécies de exi
bição, sendo somente uma delas cautelar. O tema será aprofun
dado em capítulo específico a respeito do tema.
Não é diferente o entendimento no que diz respeito ao
processo — ou, para alguns, mero procedimento — de justifica
ção (arts. 861 a 866, CPC), em que, além da dispensa do peri-
cuíum in mora, também seria dispensado o requisito do fumus
boni iuriss5. Diante de tais dispensas, a doutrina, de forma ma
joritária, entende não ter tal processo natureza cautelar. Também
se afirma não serem cautelares os protestos, notificações e in
terpelações (arts. 867 a 873, CPC), considerados procedimentos
de jurisdição voluntária e por isso excludentes do caráter de
cautelaridade, com o que não se concorda, conforme anterior
mente exposto, sendo possível que, no âmbito da jurisdição
voluntária, existam formas de tutela cautelar.
34
Em síntese conclusiva parcial a respeito de todas as chamadas
cautelares probatórias, vale a transcrição das lições de Luiz Fux56,
que bem espelham a posição doutrinária atual sobre o tema:
56 Cf. Curso de direito processual civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004,
p. 1.630. O ministro do STJ ainda complementa seu pensamento: "Em
conseqüência, a exibição de documento ou coisa urgente, a justificação
mediata, a oitiva imperiosa das partes ou de testemunhas, que se realizam
sob pena de frustrar-se o processo principal, enquadram-se na categoria
cautelar. Entretanto, as mesmas medidas podem ser apenas preventivas, caso
não se sustentem em alegação de periculum in mora".
confusão entre eles, conclui-se, equivocadamente, que nem todo
processo cujo objeto é a produção de prova em processo autô
nomo tem, efetivamente, natureza cautelar.
Ao falar em periculum in mora nas cautelares probatórias,
a doutrina, de forma uníssona, refere-se à impossibilidade de
produzir a prova em seu momento adequado, qual seja, a fase
instrutória do processo de conhecimento. Assim, o perigo de
demora estaria ligado diretamente à própria produção da prova,
que, se não for objeto de tutela cautelar, não mais reunirá con
dições de ser produzida no momento adequado57. Não é, por
tanto, o direito material da parte que se busca preservar com a
produção antecipada da prova, mas sim o direito processual à
produção probatória. A preservação do resultado útil e eficaz do
processo não é o objeto imediato da cautelar probatória, de
modo que é absolutamente plausível a circunstância de a prova
ser produzida de forma antecipada sem que com isso se garan
ta a eficácia de resultado favorável, e vice-versa.
Basta imaginar um processo de produção antecipada de
prova no qual o requerente busque configurar a existência de
dano estético em razão de acidente automobilístico. Ao ser re
alizada a perícia, por meio da qual é demonstrada a desconfi-
guração facial, o autor ingressa com a ação principal, mas, du
rante esta, o réu dilapida todo o seu patrimônio, sem que o
autor se tivesse utilizado de outra medida cautelar para assegu
rar o resultado final. A sentença desse processo, fundada na
prova produzida antecipadamente, será favorável ao autor, mas
nem por isso será eficaz ou útil, a considerar que o réu não terá
patrimônio para garantir sua plena satisfação. Garantiu-se, com
a produção antecipada da prova, sua produção e, por conse
qüência, o resultado favorável ao autor do processo, mas não
36
sua eficácia. O mesmo ocorrerá se desde sempre o réu não tinha
patrimônio apto a gerar a satisfação do direto do autor. Nem por
isso se deixará de considerar cautelar a demanda em que a pro
va foi produzida, com a lembrança de ser a instrumentalidade
da cautelar tão-somente hipotética.
Nesse ponto, parece que a doutrina se distancia do concei
to de periculum in mora tradicional do processo cautelar, que
diz respeito não à preservação da prática de algum ato proces
sual — como a produção de uma prova —, mas sim à garantia
de um resultado útil e eficaz do processo, que, como visto, por
si só, não estará preservado com a produção antecipada da
prova58. Sob esse ponto de vista, nenhuma das cautelares pro
batórias poderia ser considerada classicamente uma cautelar,
porque somente garantiria a utilização de uma prova no con
vencimento do juiz e não automaticamente a eficácia e a utili
dade do resultado final do processo. A eficácia e a utilidade,
portanto, ficam restritas à produção da prova em si, e de forma
hipotética e conseqüencial ao resultado do processo.
Na doutrina argentina, há importante corrente que defende
não ter nunca natureza cautelar a produção antecipada de pro
va, justamente pelo motivo referido. Por prender-se à concepção
*57
tradicional de periculum in mora como o perigo de ineficácia
do processo, essa corrente doutrinária defende que o mero pe
rigo de a prova não ser produzida no momento adequado não
preenche tal requisito, de modo a afastar-se a natureza cautelar
de tal demanda judicial. Afirma-se que a prova antecipada mira
a prolação da sentença, não sua eficácia, que não estará garan
tida com a produção de prova antes do momento adequado,
ainda que a justificativa para tal produção seja a impossibilida
de de esperar tal momento processual59.
A doutrina tradicional, de forma praticamente uníssona,
entende que a única justificativa plausível para que as provas
sejam produzidas antes do momento adequado e por meio de
ação autônoma de natureza cautelar é divorciar-se efetivamente
da eficácia ou da utilidade do resultado final, de modo a centrar-
se não nos efeitos da decisão final, mas sim no seu conteúdo,
que é o objeto de análise quanto ao que se estará garantindo.
Isso significa dizer que a prova, se não fosse produzida anterior
mente e não pudesse sê-lo no momento adequado, impediria o
juiz de tomar conhecimento dos fatos, bem como, por conse
qüência, impedi-lo-ia de julgar favoravelmente à parte que tem
razão, de forma que o resultado positivo — no que tange ao seu
objeto, e não a seu efeito — é garantido por tal produção ante
cipada. A vitória judicial — eficaz ou não — só foi possível em
razão da produção antecipada da prova.
É evidente que, de forma reflexa, a cautelar probatória po
derá também levar ao preenchimento do periculum in mora no
38
sentido tradicional, de modo a preservar o resultado eficaz e útil
do processo, mesmo porque um resultado somente poderá ser
útil e eficaz se for positivo, considerando-se que o resultado
negativo não gera qualquer efeito pretendido pelo autor (senten
ça de improcedência). Sempre que a prova for imprescindível
para a obtenção de tal resultado poder-se-á dizer que a cautelar
probatória terá servido para garantir a eficácia e resultado útil
do processo, de forma a conceder ao juiz elementos necessários
para decidir favoravelmente ao pedido do autor. O que deve
ficar bem claro é que, antes de falar em eficácia, é preciso cen
trar a atenção no conteúdo do resultado final, que, se não for
positivo ao autor, jamais lhe poderá ser efetivo ou útil. Garante-
se o resultado positivo, e somente após esse momento se consi
dera que, por meio da obtenção de tal resultado, garanta-se, no
plano fático, a plena satisfação do direito do autor60.
A garantia do resultado favorável seria, portanto, os resultados
finais da tutela, passando pela preservação da prova, que, uma
vez produzida, permitiria tal resultado, condição imprescindível
para que haja efetividade e utilidade. Matematicamente, poderia
ser assim explicado o pensamento por meio de uma fórmula:
cautelar probatória = produção da prova =conhecimento do juiz
da verdade dos fatos e provável resultado positivo = possibilidade
de efetividade do resultado final. É justamente por esse entendi
mento que a cautelar probatória terá uma instrumentalidade ao
cubo, porque essa ação garante a prova, que é instrumento de
convencimento do juiz, que garante o resultado positivo do pro
cesso e que, por fim, torna possível a efetividade e a eficácia
desse resultado. A cautelar garante a prova, esta garante o resul
tado favorável, o qual garante a obtenção do direito material pelo
autor, tudo isso, evidentemente, pensado de forma hipotética.
39
Neste ponto, volta-se a ressaltar um aspecto já levantado
nesse capítulo, que é a especial instrumentalidade hipotética da
tutela cautelar probatória, que poderá, simplesmente, não pre
servar a efetividade de qualquer resultado, tanto nas hipóteses
em que o resultado é negativo quanto naquelas em que, apesar
de conteúdo positivo, não se consegue efetivar no plano fático
a decisão. Além disso, é lícito crer que a satisfação voluntária
do direito sem a necessidade do processo principal possa também
ser hipótese em que não haverá qualquer instrumentalidade da
tutela cautelar probatória. O simples fato de possivelmente gerar-
se esse resultado positivo e, como conseqüência, a efetividade
e a utilidade de tal resultado já deve ser o suficiente para carac
terizar-se a cautelaridade da prova produzida por ação autôno
ma antes do momento adequado.
Na análise feita, afastou-se do conceito de periculum in
mora existente para as cautelares probatórias, aplicando-se,
também para elas, o conceito de periculum in mora existente na
teoria geral da cautelar. Dessa forma, mira-se o resultado final,
e não somente o resultado intermediário de tornar possível a
produção da prova. Vale relembrar algo que já foi, repetidamen
te, afirmado: a função da tutela cautelar é garantir que o resul
tado final do processo seja útil e eficaz, entregando ao vencedor
da demanda exatamente aquilo que ele tem direito a receber,
ou, mais precisamente, nas palavras de Chiovenda, entregar ao
vencedor exatamente aquilo que ele teria recebido se o devedor
tivesse cumprido, voluntariamente, sua obrigação. Justamente
nesse ponto é possível afirmar que todas as ações preventivas
probatórias têm, efetivamente, natureza cautelar.
Ao deixar de aplicar a exigência do perigo de a prova não
poder ser produzida no momento adequado e ao pensar no
resultado final favorável e hipoteticamente eficaz e útil do pro
cesso, sempre que uma prova é produzida antecipadamente,
ainda que não se anteveja o ingresso de uma ação principal, não
há dúvida de que é possível vislumbrar uma proteção a algum
direito material. Ao aparelhar-se melhor com relação à prova de
um fato, a parte simplesmente se coloca em-posição privilegia
da em termos probatórios, o que poderá inclusive evitar o pro
40
cesso principal, resolvendo-se o conflito de interesses extrajudi-
cialmente. Sob esse ponto de vista, estar-se-ia obtendo uma
satisfação sem a necessidade do processo principal, exatamen
te o resultado prático que seria gerado por um resultado útil e
eficaz. Em termos de efeitos, como já visto, o resultado útil e
eficaz eqüivale ao cumprimento voluntário da obrigação.
O que se pretende demonstrar é que, independentemente
do periculum in mora, como tradicionalmente pensado para a
produção da prova de forma antecipada, estar-se-á diante da
instrumentalidade hipotética típica da tutela cautelar, de modo
a garantir o eventual resultado positivo e eficaz do processo
principal Se a prova produzida for de tamanha robustez que
leve a parte contrária ao reconhecimento jurídico do pedido
extrajudicialmente (submissão), com o conseqüente cumprimen
to da obrigação, mesmo sem o processo principal, a parte terá
seu direito material satisfeito, de forma ampla e irrestrita, de
maneira que se atinge justamente o objetivo perseguido pela
tutela cautelar.
Sob esse ponto de vista, discorda-se da doutrina brasileira
para classificar todas as ações probatórias autônomas previstas
como cautelares — de jurisdição contenciosa ou voluntária —
como realmente cautelares, ao considerar que, sempre que a
parte, antes da existência de um processo principal produzir uma
prova, o processo no qual esta é obtida tem natureza cautelar.
A efetiva existência do processo principal não preocupa tanto,
diante da instrumentalidade meramente hipotética do processo
cautelar, no qual mais interessa a garantia de um resultado prá
tico efetivo e útil, que poderá tanto ser obtido pela efetivação de
um resultado positivo no processo principal, comopelo cum
primento voluntário da obrigação pela parte.
Essa característica, aliás, emprestaria às tutelas cautelares
probatórias, afastadas do conceito de periculum in mora defen
dido pela doutrina, uma função preventiva de extrema impor
tância no cenário processual atual. Ao reconhecer que a obten
ção de uma prova é apta a evitar o processo judicial, proporcio
nando o cumprimento da obrigação com a conseqüente satisfa
41
ção daquele que tem o direito material, estar-se-á atribuindo a
tais cautelares uma função correlata à de preservar a efetividade
e a utilidade de um resultado positivo, buscando no mundo
prático tal satisfação, ainda que não seja necessário qualquer
processo principal.
A proposta é bastante simples: deixar de exigir para a con
cessão de uma produção autônoma de prova a comprovação —
ainda que de forma sumária — do perigo de que, se não for
produzida em momento antecedente, não mais será possível sua
produção ou esta se tornará muito difícil É possível, sem retirar a
natureza cautelar dessas ações, somente modificando o ângulo
de visão a respeito do periculum in mora, admitir a qualquer in
teressado a provocação do Poder Judiciário para a produção de
uma prova, ainda que seja plenamente possível produzi-la poste
riormente, durante a fase instrutória de eventual processo princi
pal. Parece que, mesmo com nossa atual legislação, ao aplicarem-
se princípios da teoria geral da cautelar, seria possível chegar a tal
conclusão. De qualquer forma, e essa é a proposta principal do
presente trabalho, ainda que preso à definição clássica de pericu
lum in mora para as cautelares probatórias, seria interessante ao
ordenamento uma mudança de lege ferenda, para que se criasse,
em nosso ordenamento, uma ação autônoma de produção de
prova, independente de perigo ou não para sua produção, o que
se verá com mais detalhes em capítulo próprio.
Registre-se que a possibilidade de ação autônoma proba
tória — chamada de cautelar probatória —, sem a necessidade
de periculum in mora em seu conceito tradicionalmente defen
dido pela doutrina nacional para essa espécie de demanda, já
foi aventada por Piero Calamandrei61, que, em tradicional obra
42
sobre a tutela cautelar, aponta para a ação declaratória de falsi
dade documental como espécie de tutela cautelar, na qual a
parte teria certeza sobre a falsidade ou autenticidade de um
documento, o que lhe poderia ser útil no processo principal.
Afirma, categoricamente, que não se discute, nesse tocante, o
perigo de tal prova ser produzida no momento adequado, ao
afirmar que,
43
que tem alguma pretensão em sede principal. Ovídio Baptista
A. da Silva62, que faia, expressamente, em dispensa do pres
suposto, afirma que,
f’2 Cf. Do processo cautelar/ cit., p. 367. No mesmo sentido, Carlos Alberto
Al varo de Oliveira, Comentários ao Código de Processo Civil, cit., p. 246.
44
— periculum in mora e fumus boili iuris — não se pode admitir
a ação preventiva de produção de prova63.
A jurisprudência também tem grande influência ao permitir
que sejam produzidas provas de forma antecipada ainda que o
periculum in mora não esteja totalmente demonstrado. Assim,
existem diversas decisões judiciais, corroboradas pela doutrina,
em que o pressuposto do periculum in mora não precisa estar
claramente preenchido para que o juiz produza as provas pedi
das em sede de cautelar probatória, afirmando-se que, em caso
de dúvida, será melhor produzir a prova, ainda que seja ques
tionável o perigo de não ser possfvel produzi-la posteriormente
na fase de instrução do processo de conhecimento. Há nftida
tendência a flexibilizar o preenchimento desse requisito64.
Por outro lado é corrente, na prática judicial, a permissivi-
dade jurisdicional no que tange às ações chamadas de produção
antecipada de prova, embora não exista efetivamente nenhum
perigo em sua produção posterior. Conforme se verá em capítu
lo destinado ao estudo específico da ação cautelar de produção
antecipada de prova, no caso de pedido autônomo e anteceden
te de perícia com vistas a preparar a ação reivindicatória, a
doutrina majoritária entende não existir natureza cautelar — onde
estaria o perigo em sua posterior produção? —, mas, ainda assim,
45
permite o ingresso e exige o julgamento do processo, com a
produção da prova. Verificam-se, portanto, situações em que,
independentemente do perigo de impossibilidade de produção
posterior, admite-se a produção antecipada, e por meio de pro
cesso autônomo, da prova.
Na exposição das cautelares probatórias em espécie, de-
monstrar-se-á a aplicação da tese ora defendida, que, apesar de
aparentemente ter importância exclusivamente acadêmica, per
mite que todas as cautelares probatórias sejam tratadas de forma
uníssona, de modo a dispensar o rigor do periculum in mora,
atualmente exigido pela doutrina para sua classificação como
cautelar. A conseqüência natural desse abrandamento é o au
mento significativo de hipóteses em que o jurisdicionado pode
rá valer-se de uma das ações cautelares probatórias para a pro
dução autônoma da prova, conforme será analisado em seu
devido momento.
46
de certos fatos na pendência da ação é admissível o exame pe
ricial")65. Este último dispositivo, aliás, prevê exclusivamente a
possibilidade de produção de prova antecipada pericial quando
já estiver pendente o processo principal, limitação já totalmen
te superada pela doutrina e pela jurisprudência, que aceitam,
tranqüilamente, o processo cautelar antecedente de produção
de prova pericial.
Vale a transcrição da crítica de Ovídio A. Baptista da Si Iva66,
que bem representa o entendimento da doutrina nacional, ao
tratar do art. 847 do CPC, afirmando que
65 Grifos nossos.
66 Cf. Do processo cautelar, cit., p. 365. A compartilhar da mesma opinião,
Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janei
ro: Forense, 1976, t. XII, p. 258; Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Comen
tários ao Código de Processo Civil, cit., p. 235; Humberto Theodoro jr.,
Processo cautelar, cit., p. 295. F^rece também ter esse entendimento Piero
Calamandrei, Introduccion al estúdio sistemático de Ias providencias cau
telares, cit., p. 53-54.
47
Registre-se que não é só a legislação processual pátria que
trata, no mesmo momento, da prova produzida antecipadamen
te por meio de processo autônomo anterior ao processo principal
daquela produzida de forma incidental a esse processo, ou seja,
durante seu próprio trâmite, mas antes do momento adequado
previsto em lei. Também a legislação italiana (art. 699, Codice di
Procedura Civile), espanhola (art. 293, Ley de Enjuiciamiento
Civil), mexicana (art. 92, Código Federal de Procedimientos Civi-
les), alemã (ZPO, § 485) e argentina (art. 326, Codigo Procesal
Civil y Comercial). No direito português, aliás, parece ser a pro
dução incidental a regra, e a produção antecedente a exceção,
como se depreende do teor do art. 520 do Código de Processo
Civil, o qual indica que a prova pode ser produzida de forma
antecipada "até antes de ser proposta a acção".
Na Argentina, a doutrina que tratou do tema vê com natu
ralidade a existência da produção antecipada de prova inciden
tal, e não se nota qualquer crítica a esse respeito quanto à pre
visão legal. O único fator levado acertadamente em consideração
pela doutrina processual daquele país é o de que a prova pro
duzida antes de seu momento ideal, que seria a fase de instrução
do processo de conhecimento, corra risco de não poder mais
ser produzida nesse momento processual. Assim, pouco impor
ta à natureza do instituto a sua característica autônoma e prece
dente ou incidental; para que seja considerada produção ante
cipada da prova, basta ser produzida antes do momento proces
sual adequado para tanto em razão da urgência67.
Novamente, não se mostra correta a crítica feita pela dou
trina nacional O legislador, ao prever, conjuntamente, tanto a
produção antecipada de prova antecedente como a incidental
ao processo principal, agiu de forma absolutamente correta, em
razão da evidente natureza cautelar de ambas as situações. Fica
ainda mais claro o acerto ao exigir o requisito do periculum in
67Alfredo Jorge di lorio, Prueba anticipada/ cit., p. 36-41; Luis Luciano Gardella,
La prueba anticipada, cit., p. 15-16; Jaime A. Velert Frau, Diligencias preli
minares y prueba anticipada. Mendoza: Ed. Jurídicas Cuyo, 2002', p. 40.
„ 48
mora em sua conceituação tradicional para as cautelares proba
tórias, porque, nesse caso, não há como defender que a produção
antecipada de prova incidental não tem natureza cautelar, já que
ela também servirá para evitar a perda da prova68. Ao exigir para
a antecipação, nas duas circunstâncias, o preenchimento do
mesmo requisito ligado ao perigo de esperar o momento adequa
do para a produção da prova, sob pena de perecimento, resta
indubitávei a identidade de naturezas jurídicas entre elas.
Basta imaginar um processo de conhecimento em trâmite,
em fase postuiatória — portanto, ainda iniciai —, em que surja
a notícia de que uma testemunha planeja iminente mudança
para o exterior e a parte interessada sabe que não poderá aguar
dar a audiência de instrução e julgamento para ouvi-la. Nesse
caso, ao ser requerida a produção antecipada de prova, mostra-
se suficientemente claro que a oitiva de tal testemunha em
momento anterior ao adequado presta-se, de forma inequívoca,
a garantir a eficácia da prova, ou seja, exatamente a mesma
função exercida pela prova produzida antecipadamente de for
ma autônoma69. Já que uma tem natureza cautelar, não há como
defender que a outra tem natureza jurídica diversa.
A confusão é gerada, mais uma vez, em virtude de premis
sa absolutamente equivocada: a de que, no processo autônomo
49
e antecedente de produção antecipada de provas, a prova não
seria efetivamente produzida, mas somente assegurada, enquan
to, na produção antecipada incidente, a prova seria efetivamen
te produzida, embora em momento anterior àquele previsto pela
legislação. Nesse tocante, inclusive, parece ainda mais inade
quado o entendimento defendido pela doutrina nacional, base
ado na ilusória diferenciação entre asseguração de prova — ins
tituto desconhecido no direito processual pátrio — e a produção
antecipada.
O processo autônomo e antecedente de produção anteci
pada de provas não se presta a meramente assegurar a prova que
será produzida no processo principal, como entende a majori
tária doutrina nacional. O que ficará restrito ao processo prin
cipal é a valoração da prova, momento no qual se saberá se a
prova gerou efetivamente os seus efeitos ou não. Essa fase do
procedimento probatório, entretanto, não se confunde com a
fase de produção da prova, de forma que é absolutamente cor
reto falar em efetiva produção autônoma de prova, conforme se
demonstrará, de forma clara, no capítulo específico sobre o tema.
Ao ouvir uma testemunha ou realizar uma perícia, que diferen
ça material existe se tal ato processual foi realizado de forma
autônoma ou inctdental?
A doutrina nacional majoritária procura distinguir as duas
situações baseada justamente em uma suposta diferença nos seus
Ed. Coimbra, 1950, v, líl, p. 333: "A acção já foi proposta; está na fase dos
articulados, sobrevêm qualquer ocorrência que torna urgente a produção
de certa prova antes de o processo chegar à fase da instrução: uma futura
testemunha adoece gravemente, surge um evento que convém verificar por
inspecção ocular cujos vestígios são de molde a apagar-se, etc. Qualquer
das partes pode requerer a produção imediata da respectiva prova". Também
no direito argentino: Lino Enrique Pàlacio, Manual de derecho procesat
civil, cit., p. 347: "Las medidas a que se refiere el art. 326 CPN solo tienen
lugar antes de trabada Ia litis y, después de esa etapa, cuando mediasen las
razones de urgência indicadas en Ia misma norma, o cuando el juez Io
dispusiere, en uso de las facultades instructorias que le acuerda el art. 36,
inc. 2o (CPN, art. 328)".
50
procedimentos probatórios. Segundo lições da unanimidade dos
doutrinadores que trataram do tema, na prova produzida de for
ma autônoma, por meio de processo cautelar exclusivamente
com esse objetivo, as fases de propositura e de admissibilidade
somente ocorrerão no processo principal, naturalmente após a
asseguração da prova verificada no processo cautelar — a dou
trina nega-se a afirmar que, nesse caso, teria ocorrido efetivamen
te a produção, já no caso de prova produzida antecipadamente
de forma incidental, a propositura e a admissibilidade da prova
precederiam à sua efetiva produção. Essa diferença, entretanto,
despreza, de forma evidente, a forma material que a prova pro
duzida antecipadamente de forma autônoma adquire.
Como será visto de forma exaustiva em capftulo próprio, a
prova produzida por meio de um processo autônomo cautelar
utilizada em outro processo é espécie de prova emprestada, a
considerar suas principais características. Remete-se o leitor ao
capítulo específico sobre o tema para melhor compreensão do
entendimento ora defendido, mas já é possível adiantar as con
clusões nesse tocante; sendo prova efetivamente produzida em
um processo a gerar efeitos em outro, trata-se, inegavelmente,
de espécie de prova emprestada. Dessa forma, apesar de conti
nuar a ter natureza oral ou pericial, formar-se-á um documento
para representar materialmente a existência dessa prova, como
a ata de audiência ou o laudo pericial Será esse documento,
que atesta a produção da prova oral ou pericial, que será junta
do ao processo principal, para neste gerar seu regular efeito, qual
seja, formar o convencimento do juiz70.
51
Justamente em razão da natureza material de prova docu
mental da qual a prova emprestada se reveste, é absolutamente
compreensível a diferença procedimental entre a prova produzi
da antecipadamente de forma autônoma e de forma incidental,
sem que com isso se possa afirmar que, no segundo caso, esse
fenômeno processual não teria natureza cautelar. Ao ser produzi
da antecipadamente por meio de um processo cautelar autônomo
e antecedente, a prova, apesar de ter natureza jurídica oral ou
pericial — dependendo do caso — será representada material
mente por um documento, que seguirá, no processo principal, o
procedimento probatório adequado para tal espécie de prova. A
parte interessada juntará aos autos a ata de audiência que contém
a oitiva da parte contrária ou de testemunha ou ainda o laudo
pericial, e a partir desse momento o juiz do processo principal
fará o juízo de admissibilidade, aceitando ou não a prova e reser
vando sua valoração ao momento da prolação da sentença.
Evidentemente, no caso de produção antecipada de prova
de forma incidental — em momento procedimental anterior ao
previsto em lei —, tanto a propositura como a admissibilidade
serão fases verificadas antes mesmo da produção da prova, o que,
entretanto, não retira de tal medida seu caráter cautelar. Caso a
prova tenha sido produzida antes do momento adequado por
motivos de urgência — entenda-se com a doutrina tradicional o
perigo de a prova não poder mais ser produzida se for necessário
aguardar o momento adequado —, se sua conseqüência for a
preservação da prova, terá nitidamente natureza cautelar.
Para a doutrina tradicional, essa diferença procedimental
seria suficiente não só para defender a tese da "asseguração
da prova", como também para descartar a natureza caute
lar da prova antecipada produzida incidentalmente71. A
52
mera possibilidade de o juiz do processo principal não admitir
a prova objeto do processo autônomo estimula a doutrina a
afirmar que tal prova não teria sido produzida no processo cau
telar, sendo somente assegurada sua produção, o que não ocor
reria com a prova antecipada incidental. A tese, entretanto, não
pode prosperar, bastando, para tanto, perceber que a prova
produzida em processo autônomo é espécie de prova empres
tada, de forma que eventual utilização ou não no processo
principal nada tem que ver com sua produção, que efetivamen
te já ocorreu. O juiz simplesmente admitirá uma prova já pro
duzida e deixará para valorar seus efeitos no momento do jul
gamento.
Nunca é demais lembrar que, no juízo de admissibilidade
da prova, o juiz, de alguma forma, já estará exercendo uma
atividade valorativa, se não de seu conteúdo, ao menos de sua
relevância para a formação do seu convencimento. É evidente
que, ao fazer um juízo de admissibilidade da prova a ser cons
tituída nos autos — oral e pericial —, o juiz não tem conheci
mento de seu conteúdo, simplesmente verificando a aptidão
eventual de tal prova para auxiliá-lo na busca da verdade. O
conteúdo da prova é absolutamente desconhecido ao juiz, que
fará uma análise meramente hipotética das condições da produ
ção de determinada prova ser apta a gerar efeitos em seu con
vencimento.
Por ser uma análise meramente hipotética, já que é desco
nhecido o conteúdo da prova, uma vez produzida a prova o juiz
poderá frustrar o objetivo daquela, ao entender que a prova em
53
nada contribuiu à formação de seu convencimento. Assim, do
ponto de vista da função da prova, que é convencer o juiz de
um fato, uma prova considerada inadmissível e uma prova ad
mitida, mas que não convença o juiz, frustram, da mesma forma,
esse objetivo final, de maneira que podem até mesmo ser equi
paradas em sua ineficácia. Essas características, entretanto, não
se aplicam, em sua inteireza, à fase de admissibilidade da prova
produzida antecipadamente em processo autônomo.
O juiz do processo principal, ao fazer o juízo de admissibi
lidade da prova produzida antecipadamente em outro processo
de natureza cautelar, já saberá, de antemão, o conteúdo dessa
prova, e, ao analisar se admite ou não a prova, no processo prin
cipal, naturalmente estará verificando se, pelo conteúdo da
prova, tem sentido incluí-la no conjunto probatório que levará à
formação de seu convencimento. Ao analisar a relevância da
prova pré-constituída — como é o caso de toda prova empresta
da em geral, e das produzidas por processos cautelares autônomos
em específico —, evidentemente analisa seu conteúdo à luz do
objeto do processo principal/ sendo possível concluir que, ao
afirmar inadmissível tal prova, o juiz poderá implicitamente de
clarar que seu conteúdo em nada tem a colaborar com seu con
vencimento, o que seria o mesmo que admitir a prova e não
utilizá-la na fundamentação fática de sua decisão72.
54
Nesse caso, portanto, fica claro que a inversão da ordem
das fases de propositura e admissibilidade — antes ou depois da
produção da prova — é absolutamente irrelevante, já que im
porta tão-somente o grau de convencimento que as provas geram
ao juiz do processo principal. Dessa forma, a prova produzida
por processo autônomo será sempre admitida quando puder
colaborar no convencimento do juiz, o que nem sempre ocor
rerá com prova produzida durante o próprio processo principal,
antecipadamente ou no momento adequado. Ademais, a produ
ção antecipada de prova ocorre em momento embrionário do
procedimento, não se podendo exigir do juiz uma análise tão
robusta de sua admissibilidade, considerando que não estará na
posse de todas as informações a permitir uma decisão mais se
gura, fundada em cognição exauriente a esse respeito. Basta
imaginar uma petição inicial em que já se requer a produção
antecipada da prova, momento procedimental em que o juiz
terá exclusivamente conhecimento das alegações do autor, o
que certamente não lhe fornecerá todos os elementos necessários
para uma análise completa da admissibilidade da prova reque
rida antecipadamente.
Tentou-se demonstrar que, apesar de singelas diferenças no
tocante às duas fases do procedimento probatório — propositu
ra e admissibilidade —, a característica principal de preservação
da prova em razão do perigo do tempo para sua produção en-
contra-se presente tanto na produção antecipada autônoma de
prova como na produção antecipada incidental73. Em ambos os
55
casos, tem-se a efetiva produção da prova, não mera asseguração,
figura desconhecida pelo direito pátrio — prevista, por exemplo,
na legislação processual espanhola —, restando claro que a
ordem em que se verificam as fases de propositura e de admis
sibilidade não acarreta qualquer alteração na natureza cautelar
da prova produzida já durante o processo principal, mas antes
do momento adequado para tanto.
Já foi defendida, neste capítulo, uma nova visão do concei
to do requisito do periculum in mora nas cautelares probatórias
em geral, pela qual a amplitude de cabimento de tais medidas
estaria diretamente ligada à garantia de um resultado favorável
no processo principal, não à ameaça de não mais ser possível
ou de tornar-se excessivamente difícil a produção probatória se
a parte tiver de aguardar o momento adequado previsto em lei.
Em capítulo próprio será feita a defesa, ainda que de /ege feren-
da, da desvinculação total e absoluta do periculum in mora, com
a possibilidade de uma ação autônoma de produção de prova
independente da existência de perigo na espera para o momen
to legalmente previsto para a produção probatória. Em virtude
de tal proposta e principalmente pela forma de encarar a ampli
tude de cabimento das ações cautelares probatórias, cresce o
interesse sobre a análise da produção de prova antecipada re
querida incidentalmente no processo principal.
Como será visto no momento próprio, a proposta de ação
autônoma de produção de provas independente da existência
de perigo quanto à possibilidade de sua posterior produção
assenta-se, entre outras finalidades, na função preventiva de
conhecimento dos fatos, que poderá prestar-se a evitar litígios,
56
favorecendo eventual composição entre as partes. Seria, dessa
forma, uma maneira de evitar o processo, ao levar as partes a
acordos extrajudiciais, conotando tal ação autônoma de preven
tiva de processos. A tentativa de aplacar tal pensamento é um
dos objetivos principais deste trabalho, mas a própria justifica
tiva da existência de tal ação autônoma de produção antecipada
de prova mostra que o mesmo tratamento não se poderia dar às
situações em que a parte requer, no próprio processo principal,
a produção de prova anteriormente ao momento previsto em lei
para isso.
Por ser a proposta ampliativa de cabimento do processo
autônomo de produção de provas fundada na possibilidade de
evitar a instauração do processo, entre outras utilidades ligadas
a eventual propositura da ação principal, não fará sentido admi
tir tal amplitude quando o processo já tiver sido instaurado,
somente se justificando a antecipação incidental de produção
de provas se algum motivo sério assim ensejar, até mesmo porque
a inversão na ordem da prática de atos processuais pode gerar
indesejável confusão procedimental. Nesse caso específico, o
único motivo plausível para permitir uma inversão na ordem da
prática dos atos processuais, com a produção de prova fora do
momento adequado para tanto, é justamente o perigo de esperar
tal momento, o que poderá levar à impossibilidade ou à extrema
dificuldade em sua produção. Incidentalmente, portanto, exigir-
se-ia o periculum in mora, conforme a conceituação feita tradi
cionalmente pela doutrina nacional
Em síntese conclusiva, a possibilidade de produção de
prova antecipada de forma incidental demonstra, de forma ain
da mais clara, sua natureza cautelar, a considerar que a única
justificativa plausível para sua ocorrência é justamente o perigo
que a espera do momento adequado poderia gerar em sua efi
cácia. Por mais ampliativa que seja a proposta sugerida no
presente trabalho para o cabimento do processo autônomo de
produção antecipada de provas — tanto a proposta feita com
base na atual legislação como aquela feita de lege ferenda —,
a produção antecipada incidental reservar-se-ia às hipóteses em
que efetivamente, durante o processo, o aguardo do momento
57
adequado à produção da prova pudesse sacrificá-la. Isso signi
fica dizer que tal tutela seria mais restrita, que seria somente
admitida quando ficasse configurado o periculum in mora, con
forme é tradicionalmente conceituado pela doutrina nacional
para as cautelares probatórias.
Por mais paradoxal que possa parecer, a única tutela efeti
va e exclusivamente cautelar à luz do conceito defendido pela
doutrina nacional de periculum in mora é justamente aquela
concedida de forma incidental no processo principal. Por tratar-
se de ação autônoma de produção de prova, conforme é defen
dido no presente capítulo, o perigo de a prova não poder ser
produzida durante a fase de instrução do processo de conheci
mento poderá até mesmo se verificar no caso concreto, mas é
dispensável. Na produção antecipada de prova incidental, ao
contrário, tal perigo é indispensável.
A doutrina tradicional, que afasta a natureza cautelar da
prova produzida antecipadamente de forma incidental no pro
cesso principal, utiliza-se de tal entendimento para justificar a
desnecessidade de um processo autônomo para a produção
antecipada de tal prova. Pelo entendimento de que não tem
natureza cautelar e de que se trata somente de inversão na ordem
dos atos processuais, a prova se produziria no próprio processo
principal, sem necessidade de instauração de um processo cau
telar incidental de produção antecipada de provas. A premissa
é incorreta, mas a conclusão de dispensa do processo cautelar
incidental, nessa hipótese, é absolutamente correta.
Poderá parecer, à luz do princípio da autonomia da tutela
cautelar, que, em virtude do entendimento aqui defendido de
que a prova antecipada produzida incidentalmente tem nature
za cautelar, faça-se necessária a instauração de um processo
cautelar incidental. Como forma de justificar o equívoco dessa
conclusão, já que o processo cautelar incidental não será neces
sário nessa hipótese, passa-se a uma breve análise da caracte
rística da autonomia da cautelar e sua relação com as cautelares
probatórias.
58
2.3.2. Autonomia da tutela cautelar
Existe antiga e conhecida polêmica na doutrina nacional
— e também na doutrina estrangeira, em especial na italia
na — a respeito da existência ou não de um direito substancial
de cautela. Apesar de ser essa uma discussão tangencial aos
objetivos traçados pelo presente trabalho, far-se-á uma breve
exposição das opiniões doutrinárias a respeito do tema, consi
derando que o posicionamento a respeito da existência ou não
de um direito substancial de cautela gera, de alguma forma,
reflexos no entendimento a respeito da autonomia do processo
cautelar.
Na doutrina italiana, há autores que, apesar de apresentarem
em suas lições algumas diferenças pontuais, convergem para a
conclusão de que realmente existe um direito substancial de
cautela, o que, evidentemente, indica a plena autonomia do
processo cautelar, tanto sob o aspecto procedimental — com a
necessidade de instauração de processo autônomo, independen
te do processo de conhecimento e executivo — como sob o
aspecto material — ao não se entender o processo cautelar como
instrumental de outro processo. Como neste trabalho se busca
tão-somente demonstrar a autonomia instrumental do processo
cautelar, para os "substancialistas" essa autonomia não só é
evidente como necessária.
Giuseppe Chiovenda, a partir de seu entendimento parti
cular sobre o conceito de ação — entendida como direito
potestativo —, que não se confundiria com o conceito mera
mente processual de ação, como o direito de exigir uma res
posta do Poder Judiciário, mas sim correspondente à relação
jurídica deduzida em juízo, enxerga um verdadeiro direito
substancial de cautela, exercido por meio de uma ação caute
lar. Ao considerar que a ação corresponderia à pretensão inse
rida no objeto litigioso, tendo por fundamento a afirmação de
direito subjetivo que não foi possível satisfazer pela via da
prestação, a ação cautelar deveria ser considerada genuína
ação, por não haver outro modo que não o processo para a
59
obtenção do efeito material de segurança urgente74. Também
merecem destaque nesse tocante as lições de Cario Calvosa75
e Ugo Rocco76.
No direito brasileiro, é possível apontar quatro principais
doutrinadores que entendem pela existência do direito substan
cial de cautela: Pontes de Miranda77, josé Ignácio Botelho de
Mesquita78, Kazuo Watanabe79 e Ovídio A. Baptista da Silva80.
60
Este último faz questão de ressaltar que a existência de um di
reito substancial de cautela não guarda absolutamente nenhuma
ligação com as teorias civilista, concretista ou ainda com a teo
ria do direito abstrato de ação. Faz, inclusive, crítica à maioria
da doutrina por confundir a existência desse direito substancial
de cautela com essas teorias a respeito do conceito de ação.
Como se pode perceber, apesar de respeitáveis vozes, a
teoria que defende a existência de um direito substancial de
cautela é minoritária tanto na doutrina nacional como na estran
geira. A doutrina majoritária prefere entender que não existe um
direito material que seja objeto do processo cautelar, que servi
ria, exclusivamente, para permitir que esse direito material venha
a ser resolvido de forma útil e eficaz no processo principal. De
qualquer forma, ao menos para os estreitos fins buscados neste
capítulo, a divisão doutrinária não será tão significativa. É certo
que, no caso daqueles que defendem a existência do direito
substancial de cautela, é inegável a autonomia procedimental
pela qual será exercido tal direito. Por ser titular de um direito
material, o jurisdicionado deverá buscar sua proteção por meio
de processo próprio, e em nada se confunde o processo cautelar
com o de conhecimento ou o de execução.
O ponto essencial para os objetivos colimados pelo presen
te trabalho é que mesmo aqueles que não concordam com a
existência de um direito substancial de cautela, ao afirmar que
a tutela cautelar é sempre instrumental de um processo principal,
em que será discutida a efetiva existência de um direito material,
ou se buscará sua satisfação, concordam que a função cautelar
é diferente da exercida no processo de conhecimento e no pro
cesso de execução; dessa forma, pode-se concluir que a não-
existência de direito material a ser discutido no processo caute
lar não retira deste sua autonomia procedimental. A autonomia,
assim, não estaria ligada à existência ou não de discussão acer
ca de direito material, mas sim às diferentes funções exercidas
pelos processos.
Segundo lições de EnricoTulio Liebman, "o processo acau-
telatório tem, de fato, como organismo processual; uma indivi
61
dualidade própria: uma demanda, uma relação processual, um
provimento final, um objeto próprio, que é a ação acautelató-
ria"81. No mesmo sentido são os ensinamentos de Sérgio Shimu-
ra82, para quem atualmente
81 Cf. Alfredo Buzaid, "A influência de Liebman no direito processual civil brasilei
ro". Revista de Processo/ São Fbulo, Revista dos Tribunais/ n. 27/ 1982, p. 19.
82 Cf. Arresto cautelar. 2. ed. São Píaulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 37. A
doutrina é praticamente uníssona no que tange à autonomia do processo
cautelar: Victor A. A. Bomfim Marins, Tutela cautelar. 2. ed. Curitiba: juruá,
2003, p. 104-107; HumbertoTheodoro jr., Processo cautelar/ cit., p. 69-68;
Galeno Lacerda, Comentários ao Código de Processo Civil/ cit., p. 2-4; Er-
nane Fidélis dos Santos, Manual de direito processual civil. 9. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, v. II, p. 305; Luiz Orione Neto, Processo cautelar. São Pàulo:
Saraiva, 2004, p. 65-67.
62
A referida autonomia do processo cautelar inclusive foi
saudada pelos doutrinadores como indicativo de avanço cientí
fico do Código de Processo Civil de 1973, a considerar a con
fusão gerada entre os processos pela legislação anterior83. Desde
o Regulamento n. 737, de 1850 (Parte I, Título VII), passando
pelos Códigos Estaduais e chegando ao Código de Processo
Civil de 1939, a legislação brasileira sempre tratou as cautelares
como medidas preventivas, sob a epígrafe no último diploma
legal citado de processos acessórios (art. 675 e ss.). Durante
longo lapso temporal, portanto, no conceito dessas medidas
encontrava-se, de forma preponderante, a acessoriedade do
processo preparatório, preventivo ou incidente, colocado em
confronto com o processo principal, o que, segundo parcela da
doutrina, estaria ainda preso ao conceito civilístico da ação, o
que servia para retardar as novas idéias que reconheciam a au
tonomia do processo cautelar84.
O atual Código de Processo Civil, de 1973, deixa bem
clara a opção pela autonomia do processo cautelar, inclusive ao
destinar um livro (III) específico para esse processo, ao lado de
outros dois livros destinados a regular processos, um para o
processo de conhecimento e outro para o processo de execução.
Tal opção também resta bastante clara na Exposição de Motivos
do Código de Processo Civil, que, ao justificar a utilização da
expressão "processo cautelar", afirma que
63
nhecendo-lhes caráter autônomo, reuniu os vários procedi
mentos preparatórios, preventivos e incidentes sob a fórmu
la geral, não tendo encontrado melhor vocábulo que o ad
jetivo cautelar para designar a função que exercem".
64
cautelar, a considerar que, no caso da medida cautelar requeri
da no próprio processo principal, haveria inaceitável e indese
jável confusão procedimental, por meio de prática de atos com
diferentes objetivos em um mesmo processo.
Em síntese conclusiva parcial, a autonomia do processo
cautelar — seja ele antecedente ou incidental — justifica-se
principalmente por dois fatores: a) a diversidade de fins perse
guidos pelo processo cautelar quando comparado com os pro
cessos de conhecimento e executivo; b) a diferença procedimen
tal entre esses processos, que, uma vez unificados, poderia
acarretar indesejáveis confusões procedimentais.
65,
nosso ordenamento processual, apontou os problemas que po
deriam surgir no caso de pedido de uma tutela antecipada
quando, na verdade, a tutela adequada fosse de natureza cau
telar. Advertiu que não seria de estranhar tal ocorrência em razão
das dificuldades, do ponto de vista cientffico e dogmático e, por
conseqüência, natural prático, de traçar uma nítida linha divi
sória entre a tutela cautelar e a antecipada. Concluiu não haver
"obstáculo irremovível à admissão de um requerimento pelo
outro, determinando-se que o processamento observe a discipli
na adequada à verdadeira natureza da matéria", desde que com
isso não se altere a substância do pedido.
Percebe-se das lições antes transcritas que a preocupação
do processualista versa, exclusivamente, sobre as situações em
que, ao ser requerida tutela antecipada de nítida natureza cau
telar, em razão da falta de nitidez na definição dessas duas es
pécies de tutela, o juiz pudesse conceder a medida cautelar na
busca de salvaguardar o direito da parte. Em nenhum momento
é possível extrair das lições transcritas a defesa do fim da auto
nomia do processo cautelar incidental ou algo do gênero. A
preocupação restringe-se a uma situação particular, situação
esta, inclusive, que veio a ser tutelada peto art. 273, § 7Q, do
CPC, dispositivo legal que será comentado a seguir.
Outros doutrinadores foram além, deixando de exigir o
equívoco quanto à natureza do pedido e admitindo que a parte,
desde logo, faça um pedido de natureza cautelar incidentalmen-
te ao processo principal sem a necessidade de um processo
autônomo. Araken de Assis88, em texto específico sobre a fungi-
para joeirar com precisão uma e outra espécie de tutela. Ao contrário, de
verá agir sempre com maior flexibilidade, dando maior atenção à função
máxima do processo a qual se liga à meta da instrumentalidade e da maior
e mais ampla efetividade da tutela jurisdicional. É preferível transigir com a
pureza dos institutos do que sonegar a prestação justa a que o Estado se
obrigou perante todos aqueles que dependem do Poder Judiciário para
defender seus direitos e interesses envolvidos no litígio".
88Cf. "Fungibilidade das medidas inominadas cautelares e satisfativas". Revis
ta de Processo, São Píaulo, RT, n. 100, 2000, p. 54-55. Também nesse sen-
66
bilidade das tutelas de urgência, após afirmar que, mesmo com
o advento do art. 273,
67
nomo cautelar incidental. Chegou-se até mesmo à propositura
de um tratamento conjunto dessas duas espécies de tutela de
urgência.
Nesse sentido, EduardoTalamini, amparado em substancial
doutrina89, defende, de /ege ferenda, um regime jurídico único
para as tutelas de urgência, inclusive com a possibilidade de um
pedido de antecipação de tutela autônoma e um pedido de tu
tela cautelar incidental ao processo principal, sem a necessida
de de instauração de um processo autônomo. Há, inclusive,
propostas de alteração legislativa feitas pelo Instituto de Direito
Processual Brasileiro nesse sentido, o que possibilitaria o pedido
de medida cautelar e tutela antecipada tanto de forma autônoma
quando antecedente, como de forma incidental, quanto já exis
tir o processo principal
Mesmo antes do advento do art. 273, § 7Q, do CPC, o autor
já defendia a possibilidade de fungibilidade, o que seria reser
vado, entretanto, a situações em que houvesse dúvida séria e
objetivamente exteriorizada a respeito da natureza da medida
de urgência, opinião modificada com o advento do dispositivo
legal mencionado, conforme se verá no próximo capítulo90.
Percebe-se das citações anteriores que, a partir do momen
to em que nosso ordenamento processual passou a contar com
a antecipação de tutela (art. 273, CPC), se não de forma defini
tiva e geral, o princípio da autonomia do processo cautelar co
meçou a enfrentar suas primeiras críticas, ao defenderem alguns
doutrinadores uma fungibilidade não escrita e não prevista ex
pressamente entre a tutela antecipada e a tutela cautelar. Outros
68
foram além, ao defender a possibilidade de pedido de medida
cautelar incidental ao processo principal, com a conseqüente
dispensa do processo cautelar autônomo. A Lei n. 10.444, de
2002, ao incluir no art. 273 do CPC o § 7Q, adotou, expressa
mente, o primeiro entendimento, o que para alguns também
consagrou implicitamente o segundo.
1)1 P^ra uma análise abrangente sobre as dúvidas geradas pela alteração legis
lativa, Daniel Amorim Assumpção Neves, Nova reforma processual civil. 2.
ed. São Raulo: Método, 2003, p. 126-131.
69
realidade, cumpre analisar a abrangência desse dispositivo e
suas efetivas conseqüências no tocante à autonomia do proces
so cautelar.
Certa corrente doutrinária viu no dispositivo bem mais do
que seria possível extrair de sua interpretação literal. Em virtude
do novo dispositivo legal, passou essa parcela da doutrina a
defender a possibilidade de o autor pedir, desde já, a tutela
cautelar de forma incidental no próprio processo de conheci
mento, de modo a dispensar o processo autônomo cautelar in
cidental Alguns doutrinadores que já defendiam tal possibilida
de após o advento da tutela antecipada, ainda com mais razão,
agora supostamente ancorados por norma legal, voltaram a de
fender a tese de extinção do processo autônomo cautelar inci
dental92. Outros que não se haviam ainda manifestado sobre o
tema se encorajaram a defender a tese93, enquanto outros foram
ainda mais longe, ao apregoar o fim da autonomia do processo
cautelar como um todo, não somente do processo incidental94.
70
Nota-se, na doutrina, uma tendência ao extermínio da au
tonomia das ações, de modo a alçar a patamar elevadíssimo o
sincretismo processual. Primeiro, percebe-se o afastamento gra
dual da autonomia do processo de execução — arts. 273, 461
e 461 ~A do CPC e Lei n. 11.232/05); agora parece ser a vez do
processo cautelar. Conforme é bem colocado por Joel Dias Fi
gueira Jr.95, com o advento do art. 273, § 7U, do CPC,
cesso cautelar autônomo duas únicas utilidades: a) como ação cautelar inci
dental (art. 800 do CPC), tendo em vista a necessária estabilização da deman
da acautelada (arts. 264 e 294 do CPC), que já fora ajuizada, e também como
forma de não tumultuar o processo com o novo requerimento; b) nas hipóte
ses em que a ação cautelar é daquelas que dispensam o ajuizamento da ação
principal, exatamente porque não se trata de medida cautelar (exibição — arts.
844 e 845 do CPC; caução — arts. 826 a 838 do CPC), ou porque não se
trata de medida cautelar constritiva (produção antecipada de provas, arts. 846
a 851 do CPC)". Ainda Juvêndo Vasconcelos Viana, "A antecipação de tutela
de acordo com a Lei 10.444/2002". Revista Dialética de Direito Processual,
São Raulo, Dialética, n. 2, 2003, p. 54: "O parágrafo em comento pratica
mente acaba com a autonomia da cautelar incidental. Teremos, pois, medida
cautelar incidental sem o instaurar de processo próprio (cautelar). Sem dúvi
da uma disciplina voltada à economia processual, mas seria esse um 'come
ço do fim' do processo cautelar? O legislador talvez tenha dado, ali, o pri
meiro passo nesse sentido, mas isto somente o tempo dirá".
95 Cf. Comentários à novíssima reforma do CPC. Rio de Janeiro: Forense, 2002,
p. 117-118.
71
a legitimidade para a propositura concomitante de pedido cau
telar e principal, tampouco a dispensa do processo autônomo
cautelar para pedir uma tutela dessa natureza de forma inciden
tal. Ainda assim, é possível afirmar que essa corrente doutrinária,
de alguma forma, dentro da interpretação literal do art. 273, §
7C, do CPC, também pode retirar do objetivo legal mais do que
seria possível. Para essa corrente doutrinária, os únicos requisi
tos exigidos pelo legislador para a concessão da medida caute
lar são: (i) seu pedido sob a forma de tutela antecipada e (ii) a
presença do fumus boni iuris e do periculum in mora. Dessa
forma, apesar de vislumbrar, no caso, nítida hipótese de fungi
bilidade entre as tutelas de urgência, não exigem os pressupos
tos tradicionais desse instituto, como a dúvida fundada e a
inexistência de erro grosseiro96.
Não se pode concordar com esse entendimento, que des
virtua o fenômeno da fungibilidade, princípio não escrito, o qual
não exige, para sua aplicação, que se contenha expressamente
em norma legal a previsão de preenchimento de seus requisitos
tradicionais. A par da dificuldade de verificação da má-fé no
caso concreto, que poderá até mesmo ser dispensada, para a
aplicação da fungibilidade parece ser essencial a verificação de
dúvida objetiva quanto à natureza da tutela de urgência a ser
requerida e a inexistência de erro grosseiro. Sem esses requisitos
será inviável a aplicação da fungibilidade conforme prevista no
dispositivo legal ora comentado97.
72
Além disso, acolher entendimento que afaste o preenchi
mento de tais requisitos seria um convite à fraude processual,
abrindo as portas para um cinismo indesejável Sem poder re
querer, de forma incidental, a tutela cautelar no processo prin
cipal, mas sabendo que, se o fizer sob forma de tutela antecipa
da, obterá medida cautelar sem a necessidade de instauração de
processo autônomo, a parte, com certeza, nomeará equivoca-
damente seu pedido. Ao dispensar a dúvida objetiva e a inexis
tência de erro grosseiro, seria possível até mesmo a desfaçatez
de o autor pedir uma cautelar indiscutivelmente típica, como
um arresto ou seqüestro, sob o nome de tutela antecipada. Seria,
certamente, o fim do processo cautelar autônomo incidental por
vias transversas, o que não se pode admitir.
Já tivemos a oportunidade de nos manifestar sobre o tema,
em lição que agora transcrevemos:
cipada com a tutela cautelar, ver Nelson Nery Jr., Teoria geral dos recursos. 6.
ed. São fóulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 144-167, e Flávlo Cheim Jorge,
Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 233-236.
73
Apesar do caráter público do processo cautelar, ligado a
preservação de um resultado útil, não nos parece que o le
gislador pretendeu abrir caminho para desvirtuar o processo
cautelar nominado. Se no caso concreto é em tese cabível o
seqüestro, por exemplo, não nos parece que possa o autor
requer a providência fundando-se no art. 273 (e nem mesmo
no art. 798) se não preenche os requisitos previstos pelo
procedimento nominado. A aceitação de uma tutela ainda
que pedida outra, que ora se analisa, se não for aplicada
levando-se em conta a tradição dos requisitos de aplicação
da fungibilidade, pode significar a expressa permissão legal
para um verdadeiro 'drible' do autor nas hipóteses onde
seria cabível em tese uma ação cautelar nominada.
É importante consignar que estamos tratando das cautelares
nominadas que de fato exercem uma função cautelar, e não
aquelas que estão listadas entre as cautelares somente em
virtude de ausência de norma que permitisse a antecipação
de tutela de forma genérica. Assim a separação de corpos,
medida tida como cautelar, e que tem evidente caráter de
antecipação de um dos efeitos da sentença de procedência
da ação principal. Não se pode, nesse caso, falar-se em erro
grosseiro por parte do autor que ingressa com uma separa
ção judicial e pede em sede de antecipação a separação de
corpos"98.
74
Registre-se ser benéfico e acertado um tratamento mais
unificado entre as tutelas de urgência, até mesmo com a possi
bilidade de concessão de medida cautelar incidental no próprio
processo principal em determinadas circunstâncias, sem a ne
cessidade de instauração de processo autônomo. O que fica
claro, entretanto, é que tal possibilidade passa obrigatoriamen
te por uma modificação legislativa, pois não se pode extrair do
art. 273, § 7Q, do CPC a permissão genérica e ampla de dispen
sa do processo cautelar autônomo incidental ou ainda do pro
cesso cautelar antecedente. A interpretação muito elástica de tal
dispositivo — que vem sendo feita por substanciosa doutrina
— mostra-se incorreta, embora se reconheça nela a preocupação
dos doutrinadores com a otimização e faciIitação da entrega da
prestação jurisdicional, em respeito aos princípios da economia
processual e efetividade da tutela jurisdicional. O que não se
pode admitir é o desvirtuamento do objetivo de uma norma para
atingir objetivos outros que exijam para sua efetivação uma
modificação de lege ferenda.
Nesse sentido, a opinião de EduardoTalamini", que sugere
interessante modificação legislativa no tocante a um regime
jurídico único no tratamento das tutelas de urgência. No ponto
que mais interesse traz ao presente tema, o processualista para
naense afirma:
Parece ter também esse entendimento Arruda Alvim, "Notas sobre a disci
plina da antecipação da tutela na Lei 10.444, de maio de 2002". In: Arruda
Alvim e Eduardo Carreira Alvim (Coords.). Inovações sobre o direito proces
sual civil: tutelas de urgência. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 8, nota de
rodapé 5.
99 Cf. "Medidas urgentes ('cautelares' e 'antecipadas'): a Lei 10.444/2002 e o
início de correção de rota para um regime jurídico único, cit., p. 27. O
Instituto Brasileiro de Direito Processual — 1BDP, por meio de comissão
formada pelos juristas Ada Pellegrini Grinover, José Roberto dos Santos
Bedaque, Kazuo Watanabe e Luiz Guilherme Marinoni, apresentou esboço
de anteprojeto sobre a estabilização da tutela antecipada que adota parcial
mente as propostas vistas no texto: "Art. 273-A. A antecipação de tutela
poderá ser requerida em procedimento antecedente ou na pendência do
processo".
75
"a) distinção entre a.1) as tutelas dessa espécie que se vincu
lam funcional e estruturalmente a um provimento final, e
que, por isso, não tendem à definitividade (o que abrange,
no sistema vigente, a tutela antecipada e a maioria das me
didas cautelares), e a.2) as que não apresentam necessária
relação instrumental com provimento final (como ocorre com
medidas atualmente previstas no art. 888); b) no âmbito da
tutela de urgência não definitiva (sub 'a.1'), a autorização de
que tanto a providência antecipadora quanto a conservativa
(hoje dita 'cautelar') sejam requeridas b.1) em procedimento
preparatório, quando ainda não for possível a reunião de
todos os elementos para a propositura da demanda principal,
ou b.2) no próprio processo que gerará a tutela principal,
quando este já estiver em curso ou o autor já possuir os sub
sídios para sua adequada instauração. Na hipótese sub 'b,1',
o procedimento preparatório deixaria de ter curso autônomo,
vinculando-se ao andamento do procedimento principal,
depois que este já estivesse instaurado (o que já ocorre, na
prática, com as cautelares preparatórias)".
*
76
antecipada, está mantido o processo cautelar autônomo inci
dental. Diante desse posicionamento, faz-se necessário justificar
por qual motivo será dispensado o processo autônomo de pro
dução antecipada incidental de provas. Ao entender pela manu
tenção da autonomia do processo cautelar no ordenamento
processual e ao acreditar que a prova produzida antecipadamen
te de forma incidental tem natureza cautelar, por qual motivo
será dispensado, nesse caso, o processo autônomo? Os motivos
encontram-se justamente nas razões pelas quais se exige um
processo autônomo cautelar, ainda que em sede incidental ao
processo principal.
Nas lições já analisadas neste capítulo, verificou-se que a
melhor doutrina entende ser autônoma a tutela cautelar, que se
desenvolve por meio de um processo também autônomo, em
razão da diversidade de seu procedimento e de seus fins100. A
diversidade de procedimentos e de objetivos a serem alcançados,
portanto, exigiria que a tutela cautelar se desenvolvesse de forma
autônoma, até mesmo para não embaralhar o procedimento
principal, com a prática de atos que em nada auxiliariam seu
desenvolvimento, pelo contrário, somente gerariam indesejáveis
confusões procedimentais.
É claramente compreensível que uma cautelar de arresto,
por exemplo, deva ser instaurada por meio de processo cautelar
autônomo, até mesmo porque em torno de tal medida se prati
carão atos processuais e se suscitarão questões totalmente alheias
ao processo principal, ainda que evidentemente mantenha com
eles pontos de contato, como se poderá notar da análise do fumus
boni iuris. De qualquer forma, nesse caso, avulta a diversidade
procedimental e, principalmente, a diversidade de objetivos
perseguidos pelo processo cautelar de arresto — simplesmente
garantir patrimônio suficiente do pretenso devedor até o mo
mento em que seja possível a satisfação do pretenso credor — e
pelo processo principal, quer seja ele de conhecimento — que
'“ Assim, especificamente, José Carlos Barbosa Moreira, O novo processo civil
brasileiro/ cit., p. 305, e Sérgio Shimura, Arresto cautelar/ cit., p. 38.
77
busca reconhecer o direito do autor e condenar o réu ao paga
mento — ou de execução — que busca a efetiva satisfação do
exeqüente. Mas será que o mesmo ocorre com as cautelares pro
batórias? Parece que a resposta deva ser dada negativamente.
A produção antecipada de prova incidental constitui efeti
va produção da prova, que, entretanto, somente será valorada
num momento processual posterior. O procedimento dessa es
pécie de cautelar, conforme será analisado em capítulo especi
fico sobre o tema, é bastante simples, inclusive com limitação
no âmbito objetivo de defesa do requerido, que, apesar de poder
elaborar defesas de mérito e processuais, estará invariavelmente
limitado a rebater as razões de urgência que legitimariam a
antecipação da produção da prova. As matérias processuais são
aquelas que não sofrem os efeitos da preclusão, podendo ser
alegadas tanto num processo autônomo cautelar como no próprio
processo principal.
O principal aspecto do procedimento da produção anteci
pada da prova é justamente sua preparação e realização, que
envolvem atos processuais como o arrolamento de testemunhas,
a intimação de sujeitos a comparecer à audiência, a efetiva oi-
tiva das testemunhas ou da parte contrária, a indicação de que
sitos e de assistentes técnicos, a efetiva realização da perícia que
resulta no laudo pericial, a impugnação feita pelas partes por
meio dos pareces de seus assistentes técnicos etc. Após a reali
zação da prova, o juiz porá fim ao processo por meio de sen
tença meramente declaratória do encerramento do procedimen
to, que nem mesmo precisa respeitar os requisitos do art. 458
do CPC.
Com essa breve explicação do procedimento das cautelares
probatórias, pretendeu-se demonstrar que os principais atos de
tais processos são aqueles referentes à preparação e realização
da prova, justamente atos que são naturalmente praticados na
fase probatória de um processo de conhecimento. Significa dizer
que o procedimento das cautelares probatórias não é substan
cialmente diferente do procedimento do processo principal, em
especial de sua fase instrutória. Há, nesse caso, nítida identida
78
de entre esses dois procedimentos, até mesmo ao se considerar
os outros atos processuais praticados que não sejam referentes
à preparação e realização da prova. Em vez de petição inicial,
um pedido que explicite as razões da antecipação — os motivos
da urgência; em vez de citação da parte contrária, sua intimação;
em vez de contestação em cinco dias, manifestação no mesmo
prazo impugnando os motivos da urgência, e, finalmente, em
vez de sentença que dá por encerrado o procedimento, a omis
são do juiz, que deixará suas ponderações sobre a prova para a
sentença.
O que se pretendeu demonstrar é que o procedimento de
um processo cautelar autônomo de produção antecipada de
provas lato sensu não encontra diferenças substanciais com atos
processuais que já são normalmente praticados no processo
principal, de forma que a alegada confusão procedimental na
prática de atos tendentes à análise e à concessão da tutela cau
telar simplesmente não se verifica no caso das cautelares pro
batórias. Por esse ângulo de visão, portanto, a autonomia de um
processo cautelar incidental não se justificaria, de modo que
não haveria qualquer significativo prejuízo ao procedimento do
processo principal na cumulação de um procedimento inciden
tal de produção antecipada de prova.
Ao superarem-se as dificuldades procedimentais, faz-se
necessário o enfrentamento do segundo aspecto que se mostra
como alicerce da autonomia da tutela cautelar. Segundo a melhor
doutrina, uma das justificativas da autonomia do processo cau
telar reside nos objetivos perseguidos por esse processo, incon
fundíveis com os objetivos traçados para o processo de conhe
cimento ou de execução. Nesse ponto, a doutrina analisa, cor
retamente, as nítidas diferenças da função cautelar, cognitiva e
executiva — embora não se possa mais afirmar que, em cada
um desses processos, somente haverá a função respectiva. Ocor
re, entretanto, que esse pensamento se mostra inadequado no
tocante às cautelares probatórias.
O objetivo perseguido pelo processo de conhecimento é
verificar a existência òu não do direito material alegado pelo
79
autor e, dependendo do caso, tão-somente assim declarar — pro
cesso de conhecimento declaratório —, e constituir uma nova
situação jurídica — processo de conhecimento constitutivo —,
ou, ainda, assim declarar e condenar o réu ao cumprimento de
uma prestação — processo de conhecimento condenatório. Seja
como for, todo e qualquer processo de conhecimento buscará,
em um primeiro momento, a declaração a respeito da efetiva
existência do direito material alegado pelo autor em sua petição
inicial, o que somente será possível com a descoberta da verda
de a respeito dos fatos. Pode-se, então, dizer que, apesar de o
objetivo final do processo de conhecimento ser a declaração da
existência do direito material do autor — e, em algumas hipó
teses, somado a isso um plus (constituição ou condenação) —,
para que o juiz possa assim fazer deverá primeiramente conhe
cer a verdade fática que envolve o processo colocado à sua
apreciação.
A descoberta da verdade, portanto, coloca-se como fase
obrigatória ao juiz que pretende decidir com o maior acerto
possível, podendo-se até afirmar que, de maneira indireta ou
prejudicial, a descoberta da verdade é um dos objetivos do pro
cesso principal, apesar de nunca ser um fim em si mesma. Isso
não significa que a verdade satisfaça independentemente o autor
ou réu desse processo, mas, ao servir como fase obrigatória do
juiz na busca de seu mais completo convencimento, pavimen
tará o seu caminho para a vitória. A descoberta da verdade, como
se sabe, é obtida pela produção de provas no processo, de forma
que, ao produzi-las, o juiz estará, de alguma forma antecedente
e prejudicial, praticando ato que o auxiliará no julgamento a
respeito da existência ou não do direito alegado pelo autor,
objetivo final do processo de conhecimento.
Na produção antecipada de prova, o objetivo perseguido
é, justamente, a produção da prova, ainda que a justificativa para
tal produção seja uma situação de emergência que poderia tor
nar impossível ou extremamente difícil sua produção no mo
mento adequado. O que se pretende demonstrar, portanto, é que
o objetivo perseguido pela produção antecipada de prova não
se distingue do objetivo prejudicial do juiz no processo de co
80
nhecimento, que é o conhecimento da verdade dos fatos. Nesse
caso, inclusive, existe uma nítida identidade, em que, tanto em
um quanto em outro, busca-se a produção de prova para o con
vencimento do Juiz, fase sempre restrita ao momento da senten
ça do processo de conhecimento, quando a prova já produzida
será valorada.
Procurou-se, com as explicações apresentadas, demonstrar
que os motivos os quais legitimam, atualmente, a existência de
um processo autônomo cautelar incidental — diferenças proce
dimentais e de objetivo —- não se aplicam às cautelares proba
tórias, o que, por si só, justifica a produção antecipada de provas
incidente no próprio processo principal, independente da ins
tauração de um processo autônomo para tal fim. Com esse
pensamento é que se justifica a desnecessidade do processo
cautelar autônomo incidental nesse caso, apesar da evidente e
indiscutível natureza cautelar da prova produzida no próprio
processo principal antes do momento previsto em lei.
81
Sb, %"■ : : H * ! *
82
funcionou duplamente no que tange ao convencimento do juízo:
primeiro, diante do próprio juiz que a formou, e, posteriormen
te, diante de outro juiz, que a emprestaria do primeiro para
auxiliar a formação de seu convencimento101. Resta evidente
que, ao ser adotado tal entendimento na conceituação da prova
emprestada, não será possível fazer a defesa da tese proposta no
presente capítulo, considerando que a prova produzida em
cautelar antecedente não gera qualquer efeito probatório no
processo em que é produzida, pois se reserva o efeito de con
vencimento do juiz ao processo principal, justamente aquele
que a receberá de forma emprestada102.
Não se pode concordar, entretanto, com esse entendimen
to; é mais adequado o pensamento de outra corrente doutrinária,
que dispensa a idéia de geração de efeitos em dois processos,
por entender que basta o empréstimo de prova formada em
determinado processo para outro para que se possa qualificá-la
como emprestada103. Esse entendimento mostra-se superior ao
83
primeiro apresentado; para chegar a tal conclusão é suficiente
a lembrança de uma situação em que prova produzida num
processo não convença o juiz da veracidade dos fatos alegados
pela parte. Não se exclui a possibilidade de transferir essa prova
a um novo processo, em que o mesmo fato esteja sendo deba
tido, no qual poderá, perfeitamente, convencer o juiz, diferen
temente do que ocorreu no processo em que foi a prova origi-
nariamente produzida104.
Como se percebe na situação descrita anteriormente, a pro
va, apesar de ser produzida em determinado processo, nele não
chegou a gerar os seus efeitos — o de convencer o juiz da vera
cidade de fatos — , mas nem por isso perde sua qualidade de
prova emprestada se for transferida a outro processo. A única
diferença entre essa situação e a verificada pela produção ante
cipada de prova é que, no primeiro caso, o resultado da prova foi
anômalo, já que foi produzida com vistas a convencer o juiz, o
que não veio a ocorrer, enquanto no segundo o resultado normal
é justamente não formar qualquer convencimento no juiz que a
produziu. De qualquer forma, apesar dessa diferença quanto ao
resultado programado da prova e a seu resultado efetivo, parece
bastante claro que em ambos os casos a prova poderá ser legiti
mamente utilizada, desde que preencha os requisitos legais que
serão adiante analisados, como prova emprestada.
prova emprestada é aquela que "já foi feita juridicamente, mas em outra cau
sa, da qual se extrai para aplicá-la à causa em questão". Com a mesma opinião
Luiz Fux, Curso de direito processual civil/ cit., p. 669; Antônio Carlos de
Araújo Cintra, Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Fo
rense, 2001, v. IV, p. 14; Eduardo Talamini, "Prova emprestada no processo
civil e penal". Revista de Processo, São Paulo, RT, n. 91, 1998, p. 93: "A prova
emprestada consiste no transporte de produção probatória de um processo
para o outro. É o aproveitamento de atividade probatória anteriormente desen
volvida, através do traslado dos elementos que a documentaram".
104Com esse entendimento, Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direi
to processual civil/ cit., v. III, p. 99, para quem não "importa se a prova a
ser trasladada teve ou não o poder de convencer o juiz do processo de
origem".
84
Registre-se a existência de diversos doutrinadores pátrios
que, ao definir a prova emprestada, utilizam-se do termo "pro
duzida". Afirmam que prova emprestada é aquela produzida em
um processo e utilizada em outro105. Conforme será visto no
capftulo destinado ao processo de produção antecipada de pro
vas, corrente majoritária entende não existir, efetivamente, pro
dução de provas nesse caso, mas mera asseguração da prova
para que esta possa ser produzida eficazmente no momento
legalmente adequado para tanto. Caso se adotasse o entendi
mento dessa corrente doutrinária, evidentemente estaria exclu
ída a prova produzida antecipadamente do âmbito da prova
emprestada.
Tal entendimento, entretanto, não se mostra o mais correto,
como já se teve oportunidade de afirmar reiteradamente. Ao
adotar o melhor entendimento a respeito do tema — de que a
prova é realmente produzida antecipadamente, e não somente
assegurada sua produção —, quando objeto de uma ação cau
telar de antecipação de provas, a crítica feita pela doutrina
majoritária torna-se superada. A prova produzida antecipada
mente, portanto, é efetivamente produzida no processo cautelar,
embora reserve a geração de seus efeitos para o processo prin
cipal em que será, porventura, utilizada.
Nem se fale que esse posicionamento, ao admitir que a
prova emprestada somente gere seus efeitos no processo em que
a recebe, demonstre contrariedade ao próprio nome do instituto,
que, tecnicamente, mostra-se absolutamente inadequado. Ao
falar em empréstimo da prova, pensa-se em prova que vai de um
processo a outro e depois é devolvida a esse processo, o que,
85
efetivamente, não ocorre. A prova é trasladada de um processo
a outro, e, a partir de então, a relação entre esses dois processos
extingue-se. Melhor seria chamar tal prova de prova trasladada,
como, aliás, acertadamente, prevê o Código-modelo de Proce
dimiento Civil para lberoamérica, do Instituto lberomaricano de
Derecho Procesal, que utiliza, corretamente, a expressão "prue
ba trasladada"'06.
A conclusão parcial que se pode obter é a de que, pelo
próprio conceito do fenômeno processual ora analisado, resta
inegável ser a prova produzida em um processo cautelar de
produção antecipada de prova uma espécie de prova empresta
da, considerando que sua principal característica — formação
em um processo e utilização em outro — encontra-se presente
na prova produzida antecipadamente. Certamente, o nome do
instituto utilizado pela doutrina nacional não auxilia o caminho
trilhado para chegar a essa conclusão, mas, além de tratar-se de
mera nomenclatura, já se demonstrou sua inadequação, prefe
rindo-se o termo "prova trasladada" em vez de "prova empres
tada", embora se reconheça a consagração desta última nomen
clatura diante da doutrina e da jurisprudência nacional.
86
identidade física do juiz. Tal realidade, entretanto, além de não
ser exclusiva da prova emprestada — está presente inclusive na
produção antecipada de provas —, dela não retira qualquer
validade ou carga probatória, o que se imaginou ocorrer em
tempo passado.
A exceção ao princípio da imediatidade mostra-se evidente,
considerando que esse princípio baseia-se, justamente, na pos
sibilidade de o juiz participar diretamente na produção da prova,
tendo como característica principal a colheita direta de provas
pelo juiz. Nas palavras de Giuseppe Chiovenda107, tal princípio
107Cf. "Procedimento oral". Trad. Osvaldo Magon. Revista Forense/ Rio de Janei
ro, Forense, n. 74, 1938, p. 187. jefferson Carús Guedes, O princípio da
oralidade. São Raulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 57-58: "A coleta direta
da prova pelo juiz é a essência da oralidade, impondo ao magistrado sua
participação na produção das provas, retirando-o da função inerte de recep
tador indireto dos elementos probatórios. Por esse princípio o juiz deve ter
contato imediato e franco com a parte e com a produção de provas". Rara Rui
Portanova, Princípios do processo civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advo
gado, 1999, p. 224, "o objetivo do princípio da imediatidade é aproximar o
quanto possível o juiz da prova oraI, para o fim de propiciar ao julgador, com
os dados colhidos tão diretamente, proximidade com a verdade". Esse prin
cípio vem expresso no diploma legal alemão (§ 355, I, ZPO), embora a dou
trina aponte seu afastamento em situações excepcionais: Othmar jauering,
Direito processual civil. 25. ed. Trad. F. Silveira Ramos. Coimbra: Al medi na, 2002,
p. 281, e James Goldschmidt, Direito processual civil, cit., t. I, p. 123*124.
87
O mesmo ocorre com o princípio da identidade física do
juiz, que também sofre exceção em virtude do instituto da pro
va emprestada, considerando que esse princípio exige uma
identidade entre o juiz que produz a prova e aquele que senten
cia a demanda, sendo exatamente o contrário o que ocorre com
a prova emprestada, produzida por um juiz, mas valorada por
outro em sua sentença. Registre-se que o princípio da identida
de física do juiz não é excepcionado exclusivamente pelo fenô
meno da prova emprestada, mas também por outros fenômenos
processuais e materiais, como a prova produzida por carta pre
catória ou rogatória, a aposentadoria, promoção ou afastamen
to do juiz que conduziu a produção da prova oral108.
Advirta-se que, no caso concreto, a identidade física do juiz
pode até mesmo ser respeitada, ainda que a prova seja empres
tada; para tanto, o mesmo juiz deve ser o responsável por sua
produção em determinado processo e por sua valoração em
outro processo. Para que isso ocorra, basta que haja uma coin
cidência, primeiramente, de competência e, depois, de juiz
quanto aos dois processos. Apesar de ser possível tal ocorrência,
não se pode alçar a identidade física do juiz a princípio regula
dor da prova emprestada, considerando a raridade em que ha
verá tal identidade entre o juiz que produz a prova em um
processo e aquele que a valora em outro.
,08Sobre o art. 132 do CPC, o qual exige que o juiz que produz a prova sen
tencie a demanda, "salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por
qualquer motivo, promovido ou afastado", consulte-se Arruda Alvim, Ma-
nua! de direito processual civil/ cit., v. I, p. 35-38; Ernane Fidélis dos Santos,
Manual de direito processual civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. I;
Athos Gusmão Carneiro, jurisdição e competência/ cit., p. 163-171, com
rica indicação jurisprudência! A tratar genericamente do tema, indicando
as diversas exceções ao princípio, Moacyr Amaral Santos, Prova judiciária
no cível e comercial/ cit., v. I, p. 308-309, e Nelson Nery Jr., Princípios do
processo civil na Constituição Federal/ cit., p. 151 -152. A respeito de provas
produzidas em outro juízo, Hernando Devis Echandía, Teoria general de la
prueba judicial/ cit., t. 1, p. 120, e Hans Walter Fasching, "A posição dos
princípios da oral idade e da imediação no processo civil moderno". Revis
ta de Processo, São Paulo, n. 39, p. 29.
88
Os exemplos são diversos; pode ser trazida à colação uma
situação retirada da atividade forense: em determinada região,
um fato que teria gerado um dano ambiental foi objeto de ação
civil pública movida pelo Ministério Público. Na mesma comar
ca em que tramitava tal processo — no caso, diante de um
mesmo juiz, por ser o único do lugar — havia algumas deman
das individuais de moradores da região a pleitear ressarcimento
por danos materiais que teriam sofrido em virtude de tal fato.
Nesse caso, após a realização da prova pericial na ação civil
pública, amplamente desfavorável ao réu, todos aqueles que
tinham ações individuais passaram a utilizar-se da perícia já
produzida, sob a forma de prova emprestada. Como se percebe,
nesse caso concreto, preservou-se a idéia de identidade física
do juiz, mas por mero acaso, e não por se tratar de princípio que
rege o instituto.
Por fim, verifica-se também exceção ao princípio da con
centração dos atos processuais. Giuseppe Chiovenda109, histori
camente um dos maiores defensores do procedimento oral,
afirma que do respeito a esse princípio dependerá a sobrevivên
cia dos outros dois já analisados. Chega, inclusive, a afirmar, no
desejo de realçar a importância desse princípio, que "dizer ora
lidade é quase o mesmo que dizer concentração". O princípio
da concentração exige maior produção de atos processuais em
um menor período de tempo possível, o que se obtém por meio
da redução do número de atos processuais e do encurtamento
do lapso temporal entre eles; isso não ocorre no caso da prova
emprestada, em que os atos processuais de produção da prova
no primeiro processo e de sua valoração no segundo não só
estarão temporalmente distantes um do outro como serão prati
cados em diferentes demandas judiciais.
A respeito de tais exceções, é importante lembrar que são
tantas as exceções legalmente previstas e praticamente realizadas
na praxe forense que a idéia da oralidade como um dos princí
89
pios do processo civil brasileiro é algo bastante discutível110. A
preferência pelo procedimento escrito é notória, tanto por parte
do legislador como por parte do operador do direito — este com
ênfase ainda maior. É sintomático perceber que a contestação do
procedimento sumário e sumaríssimo (Juizado Especial), apesar
de faculdade concedida às partes de serem apresentadas oral
mente, invariavelmente é apresentada por escrito pelos patronos
do réu. Também nas alegações finais se percebe a preferência
pelo escrito, com a sistemática substituição dos debates orais
pelos memorais, ainda que não exista qualquer complexidade
fática ou jurídica que justifique o afastamento do ato oral111.
Essas constantes exceções ao princípio da oralidade e a seus
princípios correlatos, que chegam até mesmo a colocar em xeque
a oralidade como princípio do processo civil brasileiro, justificam
90
plenamente a existência da prova emprestada, que, também fun
dada em outros relevantes princípios, tais como a economia
processual e o acesso à ordem jurídica justa, não encontra limi
tação à sua existência ao se afastar do princípio da oralidade112.
O estudo do princípio da oralidade diante da prova empres
tada — melhor seria até dizer "o estudo da não-aplicação do
princípio da oralidade" — serve, especificamente, para trazer à
tona mais um fator de inegável identidade entre a prova empres
tada e a prova produzida por meio de processo cautelar antece
dente. O estudo mais aprofundado a respeito da produção an
tecipada de provas demonstrará, de maneira inequívoca, que
também nesse instituto se afasta o princípio da oralidade e todos
aqueles que a esse princípio são correlatos, em especial a ime
diação, a concentração e a identidade física do juiz113.
No tocante às exceções ao princípio da oralidade e a seus
princípios correlatos, há nítida identidade entre prova empresta
da e prova produzida antecipadamente por meio de um proces
so cautelar antecedente. Será, como se demonstrará no decorrer
do presente capítulo, mais um elemento que torna incontestável
a adequação da proposta sugerida de entender a prova produzi
da antecipadamente como espécie de prova emprestada.
91
processual e busca da verdade possível114. Saber a qual desses
dois significativos valores de nosso ordenamento processual a
prova emprestada se refere no caso concreto dependerá, essen
cialmente, da possibilidade ou não de nova produção da prova
no processo em que se suscita receber a prova já produzida de
forma emprestada, sob a mesma forma de produção do proces
so originário. A depender do caso concreto, as exigências para
que a prova seja emprestada modificam-se, justamente em razão
da mudança do princípio que o empréstimo probatório buscará
resguardar.
Em um primeiro momento, a prova emprestada pode pres
tar-se à aplicação prática do princípio da economia processual,
de modo a evitar a repetição desnecessária da produção de
provas em dois processos distintos. É sabido que a fase instrutó-
ria do processo, em especial do processo de conhecimento, é a
mais demorada e onerosa do processo, de forma que submeter
as partes a mais demora e gastos quando for possível o simples
empréstimo de uma prova já produzida atentaria, claramente,
contra o princípio da economia processualns.
92
Basta imaginar a produção de uma prova pericial, comple
xa por natureza e, invariavelmente, o meio de prova mais de
morado e custoso do processo. Após meses de espera pelo re
sultado da prova, adiantados os honorários periciais e as custas
com a realização da prova, será extremamente ilógica, do pon
to de vista do princípio da economia processual, a repetição
dessa prova. Outro exemplo que ressalta a valoração da econo
mia processual é a oitiva de testemunha que se mudou para o
exterior, hipótese em que uma nova oitiva redundaria na expe
dição da complicada, cara e complexa carta rogatória. Percebe-
se, dos exemplos mencionados — e muitos outros poderiam ser
dados —, o ganho em qualidade e em eficácia da prestação
jurisdicional com a utilização da prova emprestada.
Ao considerar a produção antecipada de prova, como é
tradicionalmente feito pela doutrina nacional, que condiciona
sua existência à verificação concreta de periculum in mora,
entendido como o perigo de não ser possível produzir a prova
no momento adequado previsto em lei — fase probatória do
processo de conhecimento —, a conclusão lógica é que tal
instituto está totalmente desvinculado da idéia de economia
processual. O objetivo da produção antecipada seria evitar o
prejuízo da parte que não poderia produzir a prova em decor
rência do tempo necessário para que a fase prevista em lei para
tanto ocorra. Sob esse ângulo de visão, portanto, estaria afastada
a idéia de economia processual.
Conforme já se afirmou no capítulo precedente, existe a
possibilidade de uma ação autônoma de produção de prova
ção de tal espécie de prova: "Le uniche ragioni che può forse essere possi-
bile individuare e che qualche volta traspaiono dalle singole pronunzie,
sembrano essere quelle delia salvaguardia dei prindpi di economia proces-
suale e delia non dispersione dei mezzi di prova". Hans Walter Fasching,
"A posição dos princípios da oralidade e da imediação no processo civil
moderno", cit., p. 30, em que afirma: "a repetição das provas traz consigo
elevado dispêndio de tempo e de custos, o qual só é justificado pelos resul
tados nos casos mais raros".
93 '
independente da existência do periculum in mora em sua con
cepção tradicional, que se prestaria tão-somente a permitir que
as partes tenham um conhecimento mais amplo e claro dos fatos
que poderão ser objeto de um futuro processo. Essa proposta
tem como uma das principais preocupações diminuir o número
de processos absolutamente infundados em decorrência de a
pretensão do autor estar baseada em fatos reconhecidamente
falsos, o que só será possível descobrir após a produção da pro
va. Sob esse ponto de vista, portanto, em idéia que será desen
volvida no seu devido momento, a existência de um "processo
exclusivamente probatório" serviria também ao princípio da
economia processual, por otimizar as composições entre as
partes, o que, em última análise, diminuiria o número de pro
cesso, em especial aqueles infundados.
De qualquer forma, na hipótese descrita estará afastada a idéia
de prova emprestada, levando em conta que a prova teria uma
função exaustiva no próprio processo em que foi formado. Ao se
convencerem as partes a respeito dos fatos e ao permitir-se que mais
elementos sejam de seu conhecimento, otimizar-se-ia a realização
de transações, de modo a evitar a existência de novo processo ao
qual essa prova seria emprestada, considerando que o conflito já
estaria resolvido. Preservaria-se o princípio da economia processu
al, mas se desvincularia da idéia de prova emprestada. Porém, se a
transação — mesmo diante das provas produzidas — não for al
cançada e o processo de conhecimento for proposto, voltar-se-ia à
idéia de prova emprestada e, nesse caso, é inegável que sua utili
zação representaria justamente a economia processual.
Caso haja prova já produzida em processo autônomo es
pecífico para esse fim e ainda assim seja necessário o retorno ao
Poder Judiciário por meio de outro processo, evidentemente
aquelas provas produzidas poderão ser utilizadas como forma
de prova emprestada. Nesse caso, seria absolutamente — ao
menos em tese — possível a repetição da prova, considerando
que o motivo de sua produção anterior não foi o perigo de a pro
va não poder ser praticada posteriormente, mas sim o desejo das
partes de se cientificarem com maior segurança a respeito dos
94
fatos. Nesse caso haverá uma hipótese em que a prova não en
contra nenhum obstáculo para ser produzida novamente, mas a
idéia de preservação do princípio da economia processual fun
damentará a opção pela prova emprestada.
Tentou-se demonstrar que, diante da nova realidade pro
posta pelo presente trabalho, de admitir um processo com o
único objetivo de produzir a prova em juízo para maior conhe
cimento e segurança fática dos sujeitos envolvidos no conflito,
a possibilidade de utilização de tal prova em processo futuro
estará absolutamente amparada no respeito ao princípio da
economia processual, por evitar a repetição inútil de atos pro
batórios. A focar exclusivamente na questão da urgência para a
prática da prova, presume-se ser impossível sua repetição du
rante a fase instrutória do processo de conhecimento, e a utili
zação da prova já produzida ganha nova dimensão, justamente
aquela apontada pela doutrina como a outra justificativa — ain
da mais importante que o respeito ao princípio da economia
processual — da prova emprestada.
Segundo a doutrina que enfrentou o tema, embora a prova
emprestada possa servir ao princípio da economia processual,
existem hipóteses em que não é precisamente esse o princípio
que ela resguardará. São situações em que se mostra impossível
nova produção da prova, como na hipótese de testemunha que
falece no tempo que medeia um processo e outro, ou ainda o
bem objeto de perícia que sofre deterioração irreversível. Nesses
casos, o instituto da prova emprestada não se presta a preservar
a economia processual, considerando que, mesmo que se quei
ra, a prova não poderá ser produzida novamente. Rara essas si
tuações, fala-se na preservação da verdade possível, corolário
da interpretação moderna do conceito de inafastabilidade da
tutela jurisdicional, que significa permitir ao juiz o efetivo co
nhecimento dos fatos, o que, indubitavelmente, levará a uma
prestação jurisdicional de melhor qualidade116.
95
Nas corretas palavras de Eduardo Talamini157,
96
risdicional de melhor qualidade. A impossibilidade da renovação
da prova poderá, no caso concreto, constituir uma barreira in
transponível à parte na missão de provar suas alegações, o que
poderá conduzi-la a injusta derrota. Ao juiz — consciente de
seu nobre ofício — interessa conhecer o maior número de ele
mentos para a formação de seu convencimento, levando em
conta a constatação empírica e indiscutível de que, quanto mais
próximo chegar da verdade, melhor qualidade terá sua decisão
judicial O que se busca preservar, portanto, por meio do em
préstimo da prova, é a própria promessa constitucional da ina-
fastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5a, inc. XXXV, CF), en
tendida, atualmente, como garantia à ordem jurídica justa1’8. É,
como se pode perceber, garantia das mais importantes.
Esse fundamental aspecto da prova emprestada ganha ain
da mais importância quando aplicado à produção antecipada
de provas. Como já visto anteriormente, a doutrina nacional
tradicionalmente exige, para admitir a produção antecipada de
prova, a ocorrência de uma situação de perigo, entendida como
a provável impossibilidade de produção da prova em momento
posterior. Por apego à cautelaridade da situação, entende-se
tratar-se do periculum in mora. Isso significa dizer que, na maio-
97
ria das oportunidades em que uma prova tenha sido objeto de
processo antecedente autônomo, será impossível sua renovação
no chamado processo principal, o que, inclusive, justificaria sua
produção antecipada. Como regra, portanto, a prova produzida
antecipadamente não poderá ser renovada, sendo, nesse aspec
to, idêntica àquela produzida em determinado processo — que
não tenha como objeto exclusivamente a produção da prova
— e emprestada a outro quando impossível ou extremamente
difícil for sua reprodução.
A análise feita leva à conclusão de que a utilização da
prova anteriormente produzida em processo cautelar de produ
ção antecipada de provas deve ser aproveitada no processo
principal como forma de garantir à parte o acesso à ordem jurí
dica justa, idéia que tenta tornar a promessa constitucional da
inafastabilidade da tutela jurisdicional algo real e efetivo, não
simplesmente promessa oca e formal. Ao tratar de um dos prin
cipais princípios processuais, a questão do traslado da prova do
processo cautelar para o processo principal deve ser encarada
sob o ângulo de garantia constitucional analisado.
Por fim, resta novamente claro mais um ponto de contato
entre a prova emprestada e a prova produzida antecipadamente.
Ambas poderão — na verdade, a primeira como exceção e a
segunda como regra — não ser passíveis de repetição, o que
justificaria até mesmo uma flexibilização na exigência dos re
quisitos para o traslado da prova. Seja como for, é inegável a
existência de mais um ponto de contato — ou mesmo de iden
tidade — entre os dois institutos.
98
sido produzida em processo em que haja identidade parcial ou
integral de partes do processo que receberá a prova, em respei
to ao princípio do contraditório; a necessidade de a prova ser
produzida perante um juiz; finalmente, a necessidade de ser o
mesmo juiz o responsável pelos dois processos, em respeito ao
princípio do juiz natural.
Desses quatro requisitos principais indicados, dois podem ser
descartados sumariamente, considerando sua pouca importância
para os fins perseguidos no presente trabalho. Trata-se da necessi
dade de regularidade formal da prova emprestada — esse tema,
na verdade, será tratado incidentalmente — e da necessidade de
a prova ser produzida perante um juiz — nesse caso, a prova fora
do Judiciário somente se tornaria atípica. Os dois principais requi
sitos que merecem uma análise detalhada são: (i) a questão do
contraditório e (ii) a necessidade de identidade física do juiz que
produz a prova e que a recebe de forma emprestada.
4.1. Contraditório
A quase-unanimidade de doutrinadores que enfrentaram o
tema da prova emprestada o fez à luz do princípio do contradi
tório. Esse princípio, que pode ser considerado como um dos
mais importantes de nosso ordenamento processual, inclusive
alçado ao próprio conceito de processo por alguns doutrinado
res119, tem, inegavelmente, forte influência no tema probatório
em geral e na prova emprestada em específico. Evidentemente
não se fará uma análise exaustiva de tão complexo princípio
processual, o que demandaria um trabalho específico sobre o
tema, mas é importante analisar sua influência na questão da
atividade probatória.
Basicamente, o princípio do contraditório é entendido como
a exigência de que, no processo, as partes sejam informadas de
99
«
todos os atos processuais, de que a elas seja sempre concedida
uma oportunidade efetiva de reação de forma a influenciar o
juiz na preparação do julgamento. A idéia de informação-reação
—-por vezes meramente eventual, como nas hipóteses de direi
tos disponíveis, e por vezes obrigatoriamente efetiva, como nas
hipóteses de direitos indisponíveis — é a base do respeito ao
princípio do contraditório, que deverá permear todo o trâmite
procedimental.
Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira120,
100
pretende valer-se. Significa, a seguir, que não deve haver
disparidade de critérios no deferimento ou indeferimento
dessas provas pelo órgão judicial. Também significa que as
partes terão as mesmas possibilidades de participar dos atos
probatórios e de pronunciar-se sobre os seus resultados".
101
Diante de tal iniciativa legislativa, aplaudimos a modificação
e afirmamos
102
processual português, a exigência vem expressa no art. 5172do
Código de Processo Civil, sob o título princípio da audiência
contraditória!24:
stato detto, è relativa sia al diritto alia prova, sia al metoclo di acquisizione,
per Tappunto in contraddittorio, di essa; garanzia, in particolare, di un
metodo che, appartenendo al contenuto minimo ed irriducibile del con-
tradditorio, si impone, salva Ia díversità delle forme, cosi nei processi a
cognizione piena (dei quali soltanto intendo ocuparmi) come nei processi
sommari, cautelari e no (salva, in alcuni di essi, 1'eventualità del contraddi-
torio posticipato) en el processo esecutivo", e Luigi Paolo Comoglio; La
garanzia costituzionale del!'azzione ed i! processo civile. Padova: Cedam,
1970, p. 219 e ss. No direito espanhol, lições doutrinárias amparadas na
previsão do art. 289 da Ley de Enjuiciamiento Civil: Juan Montero Aroca. La
prueba en el proceso civil/ cit., p. 152: "El principio de contradicción per-
tenece a Ia essencia del proceso y, en Io que se refiere a Ia práctica de Ia
prueba en el proceso civil, se manifesta en que todas las pruebas se practi-
can con contradicción y en vista pública (art. 289.1) con Ia plena interven-
ción de las partes, a cuyo efecto han de ser citadas". Ainda Antonio Díaz
Fuentes, La prueba en Ia nueva ley de enjuiciamiento civil. 2. ed. Barcelona:
Bosch, 2004, p. 85. No direito argentino encontramos as lições de jorge K.
Kielmanovich, Teor/a de Ia prueba y medios probatorios, cit., p. 54: "El
principio de contradicción de Ia prueba, de raigambre eminentemente
constitucional (art. 18, Const. Nac.), en cambio, implica que Ia misma, para
ser válida o por Io menos efizaz, debió haber sido producida con audiência
o con intervención de Ia parte contraria, de modo que ésta pudiese haber
fiscalizado su ordenada asunción y haber contado con Ia posibilidad de
ofrecer prueba en descargo", e Lino Enrique Pàlacio, Manual de derecho
procesal civil, cit., p. 66. No Uruguai, os ensinamentos de Eduardo J. Cou-
ture, Fundamentos do direito processual civil, cit., p. 174-175: "O contra
ditório ocorre, portanto, antes, durante, e depois da formação da prova,
dentro das formas estabelecidas pelo direito positivo". No direito francês,
consultar Gérard Couches, Procédure civile. Paris: Dalloz, 1998, p. 122.
124Alberto Reis, Código de Processo Civi) anotado, cit., p. 313, ao referir-se ao
antigo CPC português — o antigo art. 522 representa o art. 517 atual: "Para
que determinada prova possa ser invocada contra alguém ou tenha plena
eficácia com relação a certa pessoa, é necessário que esta tenha sido pro
duzida com a intervenção real ou potencial da pessoa contra a qual se quer
fazer valer. Por quê? Porque o direito de defesa é uma garantia fundamental
da ordem jurídica. O princípio da audiência contraditória é, na verdade, uma
expressão e uma consagração do direito de defesa; pela mesma razão por
que o art. 3“ não consente que a acção seja julgada sem que o réu seja cita-
103
"1. Salvo disposições em contrário, as provas não serão
admitidas nem produzidas, sem audiência contraditória da
parte a quem hajam de ser opostas. 2. Quanto às provas
constituendas, a parte será notificada, quando não for revel,
para todos os actos de preparação e produção da prova, e
será admitida a intervir nesses actos nos termos da lei; re
lativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à
parte a impugnação, tanto da respectiva admissão como da
sua força probatória".
do, o art. 522 exige a audiência contraditória para que a prova seja oponí-
vel com eficácia plena". José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil
anotado/ cit., p. 404, descreve interessante rol exemplificativo de aplicação
do princípio no sistema probatório português.
104
tendem ser necessária a identidade apenas da parte que será
prejudicada com a utilização da prova no segundo processo.
Ada Pellegrini Grinover125— que vê com bastante reserva
a amplitude de utilização da prova emprestada — afirma, pe-
remptoriamente, que as partes devem ser sempre as mesmas no
processo em que a prova foi formada e naquele que a receberá
de forma emprestada, entendimento perfilhado por inúmeros
doutrinadores nacionais, segundo os quais, basicamente,
105
Apesar de não se concordar com esse entendimento, por
parecer que a identidade de partes não necessita ser integral, é
preciso registrar que esse requisito será sempre respeitado no
caso da produção antecipada de provas, considerando que,
nesse caso, sempre haverá identidade entre as partes do proces
so cautelar e as do processo principal Conforme será desenvol
vido em capítulo próprio, até mesmo nas hipóteses de sujeitos
que poderão intervir no processo principal sob uma das formas
de intervenção de terceiros vedada no processo cautelar, serão
chamados ao processo para que a prova produzida também
contra eles possa gerar plenamente seus efeitos. Dessa forma,
apesar de ser inadequadamente radical o entendimento da iden
tidade plena no tocante a todas as espécies de prova empresta
da, esse requisito não será obstáculo ao empréstimo da prova
produzida em processo cautelar antecedente.
Ainda que o problema a respeito da identidade plena ou
parcial das partes esteja absolutamente resolvido no tocante à
prova produzida de forma antecipada em processo cautelar
antecedente, é oportuno o esclarecimento a respeito do melhor
enfoque a ser dado ao tema. Parece, basicamente, que a iden
tidade não precise ser plena para que o contraditório seja
respeitado; basta que a prova tenha sido produzida perante a
parte a qual será oposta. Deve-se lembrar que, em se tratando
de direitos disponíveis, o contraditório não exige efetiva reação,
o que possibilita à parte que não participou da formação da
prova aceitar seu empréstimo se acreditar que esta lhe será
benéfica.
Nesse sentido, merece elogios o Código de Processo Civil
português, que, em seu art. 522Q, assim disciplina a matéria,
sob o título valor extraprocessual das provas: "1. Os depoimen
tos e arbitramentos produzidos num processo com audiência
contraditória da parte podem ser invocados noutro processo
contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n. 3 do
artigo 355ü do Código Civil". Como se percebé da literalidade
do dispositivo legal, além do mérito de tratar, expressamente,
do instituto da prova emprestada — no que nosso ordenamen
to processual se omitiu — , condiciona o traslado da prova
106
somente à identidade da parte contra a qual a prova será invo
cada128.
Parece mesmo ter mais sentido a disposição antes transcri
ta do que o entendimento já exposto. Por ser o contraditório
meramente eventual, já que a atividade das partes no processo
— inclusive a fase probatória — é desenvolvida primordialmen
te fundada em ônus processuais, é perfeitamente possível admi
tir que uma parte, embora não tenha participado da formação
da prova, aceite-a no processo como forma de prova empresta
da. Isso significa simplesmente dizer que, apesar de ter a sua
disposição à proteção da lei, que não permitiria, em tese, fosse
utilizada no processo prova produzida sem sua participação,
abre mão de tal proteção ao admitir sua utilização129.
Nas precisas palavras de Eduardo J. Couture130, que bem
espelham a falta de necessidade da identidade plena de partes
no processo em que se produz a prova e naquele que a recebe,
107
"as provas produzidas em outro juízo podem ser válidas,
se nele a parte teve oportunidade de empregar contra elas
todos os meios de controle e de impugnação que a lei lhe
conferia no juízo em que foram produzidas. Tais provas,
produzidas com todas as garantias, são eficazes para de
monstrar os fatos que tenham sido debatidos no processo
anterior e que voltem a repetir-se no segundo caso."
108
em capítulo próprio, a doutrina criou e a jurisprudência bem
acolheu a figura da "assistência provocada" no processo caute
lar de antecipação de provas. O instituto, basicamente, permite
que a parte requeira a intervenção de terceiro no processo cau
telar que, eventualmente, participará do processo principal como
terceiro interveniente por meio de uma espécie de intervenção
vedada no processo cautelar (e. g., a denunciação da lide). O
objetivo é que a prova produzida tenha plena eficácia entre as
partes do processo principal e o terceiro, podendo ser utilizada
sem qualquer alegação de ofensa ao contraditório.
Tome-se como exemplo um caso concreto. Vítima de aci
dente automobilístico ingressa com cautelar de produção ante
cipada de prova contra o motorista pretensamente responsável
pelo acidente, excluindo o empregador deste do pólo passivo
da demanda. A prova produzida é desfavorável ao autor, que,
no processo principal, em vez de demandar o empregado — mo
torista —, coloca o empregador no pólo passivo. É evidente que
este, ao tomar conhecimento do resultado do processo cautelar
anterior do qual não participou, poderá, amplamente, fazer uso,
no processo principal, da prova produzida naquele processo.
Ainda que não tenha participado da produção da prova, o réu
do processo principal abrirá mão de tal participação ao admitir
a prova emprestada, que, em última análise, irá beneficiá-lo no
que tange ao convencimento do juiz.
Registre-se ainda uma terceira corrente, que não encontra
muitos adeptos no Brasil, a qual entende que a simples idéia de
a prova não ser produzida perante o juiz que sentenciará a de
manda já é suficiente para que não seja admitida por ofensa ao
contraditório. Rara essa corrente doutrinária, a simples impossi
bilidade de participar da produção da prova no novo processo,
independentemente de tê-lo feito no primeiro, já descaracteri
zaria o princípio do contraditório; assim, não teria seu resultado
força de prova no novo processo, admitindo-se, quando muito,
servir como mero indício. Isso significaria dizer que poderia até
ser útil, junto com outras provas colhidas, para convencer o juiz
109
de um fato, mas jamais teria força para, isoladamente, permitir
que este considere um fato como verdadeiro131.
151Essa é a opinião de Gian Franco Ricci, te prove atipiche/ cit., p. 466: "Ciò
vale, non soltanlo per le prove sostitutive raccolta senza contraddittorio (ad.
es. testimonianze, perizie stragiudiziali), ma anche per le prove provenien-
ti da un altro processo, le quali arrivano dinanzi al giudice ad quem pur
sempre in forma documentale e per le quali il fatto che siano state a suo
tempo raccolte nelTespletamento dei principi di paritaria difesa, non vale a
costituire um equipollente del contraddittorio che avrebbe dovuto instau-
rarsi di fornte al magistrado che deve decidere". Parecia também ser essa a
opinião de Proto Pisani, Lezioni di diritto processuale civile/ cit., p. 435:
"Infine di prove atipiche si parla riguardo alie prove raccolte in un diverso
giudizio; ove il diverso giudizio sia un processo che si è svolto tra le stesse
parti, l'unico ostacolo ad ammettere le prove formatesi nel primo giudizio
deriva dalla circostanza che il diritto di difesa (e quindi Fímpegno in sede
di interrogatório di un teste o di svolgimento di una consulenza técnica ecc.)
non è qualcosa di astratto, ma um qualcosa che si commisura in concreto
in relazione all'oggetto del processo, al bene delia vita in contensa. Ma
Tesistenza oggi delTart. 238, 2a comma, CPP secondo cui 'è ammessa
l'acquisizione' nel processo penale 'di prove assunte in un giudizio civile
definitivo con sentenza che abbia acquistato autorità di cosa giudicata', è
destinata a riaprire e a porre su nuove basi di diritto positivo il problema".
132Cf. "Prova emprestada", cit., p. 115. No mesmo sentido, o entendimento de
Rogério Ives Braghittoni, O princípio do contraditório no processo/ cit., p.
58: "Por esse exato motivo, as provas têm de ser produzidas perante o juiz
natural, e nenhum outro, sob pena de nulidade absoluta. Não pode ser
convalidada a prova, por mais escorreita que tenha sido sua produção (e o
procedimento observado nessa produção), se o juiz perante o qual ela foi
produzida não era juiz natural".
110
"há de se acrescentar outro, em face do princípio constitu
cional do juiz natural, enquanto juiz competente para
processar e julgar (art. 5U, Ull, CF). É preciso, para admitir-
se a prova emprestada, que o contraditório no processo
originário tenha sido instituído perante o mesmo juiz, que
também seja o juiz da segunda causa".
111
juízo que não seja o natural nas hipóteses de prova produzida
por carta precatória ou rogatória; a natureza de prova documen
tal que a prova emprestada adquire.
A primeira justificativa é gerada pelo respeito ao princípio
da economia processual, que deverá nortear todo o estudo de
nosso sistema de nulidades, de modo a prestigiar a instrumen
talidade das formas. Para fazer essa análise, dividir-se-á a ques
tão em duas partes: atos probatórios práticos por juízos relativa
e absolutamente incompetentes, embora a conclusão seja idên
tica para ambos os casos.
No tocante à questão da incompetência relativa, mostra-se,
com ainda maior intensidade, a inaplicabilidade da exigência de
ser o mesmo juiz aquele que produz a prova e aquele que vai
somente utilizá-la em seu convencimento. À falta de norma ex
pressa sobre o tema e ao interpretar-se o fenômeno à luz do art.
113, § 2Q, do CPC, a doutrina e a jurisprudência vêm, de manei
ra uníssona, entendendo que os atos praticados pelo juízo rela
tivamente incompetente — reconhecido pelo acolhimento da
exceção interposta pelo réu — são absolutamente válidos e devem
ser plenamente aproveitados perante o juízo competente134. Sob
esse aspecto, portanto, não teria qualquer razoabilidade impedir
o empréstimo da prova sob o argumento de incompetência rela
tiva do juízo perante o qual ocorreu sua produção.
Ao se tratar de incompetência absoluta, a questão é facil
mente solucionada com a aplicação ao caso do art. 113, § 2a,
do CPC, indicativo de que, no caso de ser reconhecida a incom
petência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos de
pleno direito, o que leva à conclusão de que atos de outras na
turezas praticados no processo serão mantidos, como os atos
postulatórios — petição inicial, contestação etc. — e os proba
tórios. O legislador aplicou, nessa hipótese, a regra da propor
cionalidade para solucionar o evidente conflito entre dois prin
cípios processuais: nulidade absoluta versus economia proces-
134 Por todos Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, cit., p. 75.
112
suai135. Se o próprio texto legal indica a validade dos atos pro
batórios praticados, não se percebe qualquer problema no em
préstimo da prova, inclusive na hipótese de incompetência ab
soluta do juízo no qual houve a produção probatória.
Outro aspecto que deve ser levado em conta para afastar o
respeito ao princípio do juiz natural como elemento essencial
para o empréstimo da prova é a circunstância de ser absoluta
mente legítima a prova produzida em outro juízo, em razão das
limitações que o juiz encontra para exercer validamente sua
função jurisdicional. Em virtude do princípio da aderência ao
território — ou territorialidade —, sendo necessária a prática de
um ato probatório fora da comarca ou da seção judiciária à qual
o juiz pertence e na qual exerce suas funções, estará obrigado
a requerer auxílio de outro juízo, por meio da carta precatória
ou rogatória. Nessa hipótese, não será o juiz natural aquele a
produzir a prova, mas nem por isso a prova produzida pelo ju
ízo deprecado conterá qualquer espécie de vício. O mesmo se
poderá dizer da prova emprestada.
Por fim, contribui para este debate a forma material que
adquire a prova produzida em determinado processo a ser tras
ladado a outro. Conforme será demonstrado no tópico seguinte,
qualquer que seja o meio pela qual a prova foi produzida, para
que seja validamente trasladada desse processo para outro, to
mará a forma documental, de maneira que ingressará no pro
cesso em que não foi produzida sob a forma de prova documen
tada. Assim, é correto afirmar que a prova emprestada é forma
de prova pré-constituída, o que, por si só, afastaria qualquer
exigência de ter sido formada pelo "juiz natural".
113
Ao demonstrar a total inadequação da exigência de ser o
mesmo juiz aquele que produz a prova e aquele que a recebe de
forma emprestada, sob a equivocada justificativa de respeito ao
princípio do juiz natural, a prova emprestada será admitida qual
quer que tenha sido o juiz que a produziu. Nesse aspecto, mais
uma semelhança com a prova produzida antecipadamente por
meio do processo cautelar, que também terá plena validade, in
dependentemente da competência ou não do juiz que a produziu
com relação às regras de competência do processo principal.
m Cf. Curso de processo civil/ cit., p. 360. No mesmo sentido, Moacyr Amaral
Santos, Prova judiciária no cível e comercial/ cit., p. 309; Cândido Rangel
Dinamarco, Instituições de direito processual civil/ cit., v. III, p. 97. O direito
português é expresso a respeito, ao indicar a exclusividade dos "depoimentos
e arbitramentos produzidos num processo", segundo disposição do art. 522°
do CPC. Para José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, cit., v.
II, p. 41 7, "o preceito respeita tão-só à prova constituenda", enquanto a "pro
va pré-constituída admitida em determinado processo, pode, em princípio,
ser, sem problema, também proposta em outro processo, sem prejuízo da
reforma de documentos". A excluir, expressamente, a prova documental do
âmbito da prova emprestada, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil
anotado, citv p. 344, e Wanda Ferraz de Brito, Fernando Luso Soares e Du
arte Romeira de Mesquita, Código de Processo Civil anotado, cit., p. 446.
114
"consideram-se emprestadas apenas as provas causais, e não
as preconstituídas porventura já utilizadas em processo
anterior. Quanto a estas últimas, seu valor probatório será
sempre o mesmo, qualquer que seja a natureza do processo
em que elas se produzam, independentemente do número
de vezes em que isto aconteça. Uma escritura pública, ou
mesmo um documento particular, ainda que já empregada
como prova em processo anterior, não será considerada
prova emprestada quando novamente for produzida em
processo subseqüente — apenas aquelas provas formadas
no curso do processo anterior serão assim consideradas,
quando utilizadas novamente num segundo processo".
115
Não se trata, naturalmente, de prova documental tradicional,
conforme as que constam do rol dos meios de prova previsto
pelo Código de Processo Civil (arts. 364-399), mas não há equí
voco em entender que, sob o aspecto formal, a prova empresta
da é espécie de prova documental e deve observar as regras
desta no processo que a recebe de forma emprestada. O que as
diferencia, entretanto, é que, apesar da forma documental, a
prova emprestada não terá a eficácia probatória típica da prova
documental, mantendo a potencialidade de assumir a mesma
eficácia probatória que teve no processo em que foi produzida.
Nesses termos, caso a prova emprestada seja uma prova teste
munhai, haverá juntada de documento ao novo processo — có
pia da ata de audiência —, mas essa prova será valorada — des
de que sejam respeitados os requisitos já analisados — como
prova testemunhai.
Dessa maneira, não se pode falar, propriamente, que a
prova emprestada seja da mesma natureza daquela que foi pro
duzida originariamente, tampouco se pode afirmar que se trata
de prova documental; embora o seja formalmente, manterá a
eficácia probatória original, por tratar-se de prova documentada.
Segundo a correta observação de Eduardo Talamini138, "é tal
diversidade que confere à prova emprestada regime jurídico
específico — o qual não se identifica com o da prova documen
tal nem com o da prova que se emprestou, em sua essência de
origem". A doutrina italiana, tradicionalmente, inclui a prova
produzida em outro processo — prova que a doutrina nacional
convencionou chamar de emprestada — entre as provas atípicas,
1!BCf. "Prova no processo civil e penal", cit., p. 94. A apontar para a atipidda-
de da prova as lições de Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito
processual civil/ cit., v. III, p. 94; Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz
Arenhart, Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, v. 5 ,1.1, p. 177-1 78. Em sentido contrário, Alexandre Freitas
Câmara, Lições de direito processual civil, cit., v. I, p. 408: "A prova empres
tada terá de ser valorada como se fosse uma prova documental, o que nos
leva a crer, ao contrário do que é afirmado por alguns autores, não se trata
de uma prova atípica, mas de uma manifestação da prova documental".
116
justamente por não ter procedimento idêntico com nenhuma
dos meios de prova previstos no ordenamento processual139.
Registre-se que o mesmo fenômeno se verifica com a prova
produzida antecipadamente, que, apesar de ingressar sob a
forma de prova documental no processo principal, guarda sua
eficácia probatória originária. Sérgio Sahione Fadei140, ao criticar
o entendimento de Pontes de Miranda segundo o qual a eficácia
da sentença constitutiva da prova é documental, afirma que
117
ingresso no processo, a parte contrária deverá ser intimada para
manifestar-se a respeito da admissibilidade da prova e de seu
valor probatório. Isso significa dizer que haverá uma inversão
das fases do procedimento probatório; primeiro a análise da
admissibilidade com ampla participação das partes — contradi
tório — , e, uma vez admitida prova já produzida, a análise a
respeito de seu conteúdo para fins de convencimento do juiz
— vaíoração141.
Falou-se muito a respeito do princípio do contraditório no
tocante à prova emprestada, sobre o qual aponta a doutrina ora
para a identidade plena de partes no processo em que a prova
foi produzida e naquele em que foi recebida, ora para a identi
dade da parte contra a qual a prova será oposta. Deve-se atentar,
entretanto, ao fato de que o princípio do contraditório também
deverá ser observado no processo que receberá a prova produ
zida anteriormente em outro processo, por meio da observação
das regras referentes à garantia desse princípio no tocante à
prova documental. Como a forma da prova emprestada será
sempre a documental, seu ingresso nos autos seguirá, basica
mente, as regras procedimentais previstas para esse meio de
prova, em especial aquelas garantidoras do contraditório.
Assim sendo, caso a prova emprestada já exista à época da
propositura da demanda judicial, o autor deverá juntá-la à peti
ção inicial, enquanto o réu deverá fazer o mesmo na contestação.
Como nem sempre será possível a juntada nesse momento, até
118
porque a prova poderá ser produzida somente após o momento
inicia! da demanda que a receberá de forma emprestada, a pos
sibilidade de juntada da prova a qualquer momento do proces
so em que ainda seja possível a discussão a respeito da matéria
fática —, o que não se admite durante a fase recursal extraordi
nária — é bastante ampla, desde que não existisse tal prova no
momento inicial da demanda. Além dessa hipótese, o art. 397
do CPC excepciona a regra criada no artigo antecedente quando
os documentos se destinarem a fazer prova de fatos supervenien
tes ou para contrapô-los a outros documentos juntados pela
parte contrária.
Na realidade, como é bem observado pela melhor doutrina
nacional, a praxe forense vem demonstrando ser bem mais fle
xível a regra prevista no art. 396 do CPC, a permitir a juntada
extemporânea de documentos ainda que fora das hipóteses
descritas pelo art. 397 do CPC, em prática que encontra severa
crítica de parcela minoritária da doutrina, a qual entende que
tal abertura quanto ao momento da apresentação do documen
to em juízo contribui para a criação de tumultos procedimentais,
que resultam em maior morosidade na entrega da prestação
jurisdicional142.
A jurisprudência e parcela da doutrina exigem tão-somen-
te o preenchimento de dois requisitos para que seja admitida a
juntada extemporânea da prova documental: inexistência de
malícia ou de má-fé da parte e compatibilidade procedimental
para sua apresentação em juízo. A juntada tardia de documento
ao processo não pode mostrar-se fruto de manobra da parte para
surpreender a parte contrária. Caso entenda que a juntada ocor
119
reu em momento tardio em virtude de conduta eivada de má-fé
e de deslealdade processual, o juiz deverá determinar o desentra-
nhamento da prova, que não será utilizada em seu convencimen
to. O mesmo ocorrerá se, em razão do estado procedimental do
processo, for inviável a juntada de novo documento (e. g., o pro
cesso estar em fase de julgamento de recurso especial ou de re
curso extraordinário, em que a matéria fática não é devolvida por
tais recursos aos tribunais competentes para seu julgamento)143.
No direito português, além de norma muito similar — e
mais antiga — a nosso art. 397 do CPC, que regula a apresenta
ção em momento posterior (art. 524°, CPC), existe expressa pre
visão a permitir maior flexibilização do momento de apresentação
do documento. Embora o art. 523°. 1contenha norma idêntica, em
seu conteúdo, à do art. 396 do nosso estatuto processual, há, no
mesmo artigo, indicação de que tal exigência não se mostra
peremptória, embora seu descumprimento puro e simples gere
uma sanção à parte: "Art. 523C.2: Se não forem apresentados
com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresen
tados até ao encerramento da discussão em I a instância, mas a
parte será condenada em multa, excepto se provas que os não
120
pôde oferecer com o articulado". A doutrina encarrega-se de
expandir ainda mais a aplicação da norma legal, ao indicar
inúmeras situações em que, mesmo após a discussão em primei
ra instância — fase correspondente a nossa fase instrutória —,
será possível a juntada de documentos aos autos144.
No direito espanhol, a produção da prova documental no
primeiro ato postulatório das partes no processo — petição ini
cial e contestação — também é a regra, estabelecida pelo art.
( 270.1, da Ley de Enjuiciamiento Civil. Esse mesmo dispositivo
legal que apresenta a regra também dispõe sobre a exceção ao
seu cumprimento: "a) impossibilidade de obter ou produzir a
prova no momento inicial (270.1.1Q); b) desconhecimento prévio
de sua existência (art. 270.1.2Ü); c) impossibilidade alheia à
vontade da parte (art. 270.1.3a). O procedimento espanhol pa
rece ser mais rígido do que o português, determinando uma
precíusão definitiva de apresentação de documento após o en-
i cerramento da fase instrutória, com exceção das hipóteses em
que o juiz converte o julgamento em diligência e da juntada de
"Ias sentencias o resoluciones judiciales o de autoridad admi
nistrativa, dictadas o notificadas em fecha no anterior al momen-
I to de formular Ias conclusiones" (art. 271 ),4Í>.
Uma análise do direito comparado com os países ibéricos
mostra que, nesses países, vale regra muito similar à do direito
brasileiro e, invariavelmente, pelas mesmas justificativas: exige-
I
j
121 -
se a juntada de documentos já no início da demanda judicial
para que a parte contrária já tenha, desde o início, conhecimen
to da prova documental que em tese poderá prejudicá-la. A regra,
entretanto, encontra exceções, em especial nas hipóteses de
fatos supervenientes, nas hipóteses em que a parte não pode
produzir a prova documental no momento indicado pela lei,
como no caso de desconhecimento de sua existência ou mesmo
de ignorância quanto à sua importância para o deslinde da cau
sa, bem como para servir de contraprova a documento juntado
pela parte contrária146.
A questão a respeito do momento em que a prova docu
mental deverá ser juntada aos autos naturalmente também se
aplica à prova emprestada, conforme já verificado. Nesse parti
cular, percebe-se mais um ponto de contato entre a prova em
prestada e a prova produzida antecipadamente em processo
cautelar autônomo, considerando que, nessa segunda espécie
de ação, a juntada da prova com a petição inicial do processo
de conhecimento — e em situações mais raras até mesmo com
a contestação pelo réu — é a forma mais tradicional de juntada
de tal prova aos autos, levando em conta que o processo prin
cipal, invariavelmente, só terá seu início após a conclusão do
processo cautelar. Na improvável existência simultânea dos dois
processos, situação gerada pelo ingresso do processo principal
enquanto ainda estiver pendente o processo cautelar probatório,
a regra do art. 396 do CPC, naturalmente, será afastada, permi-
tindo-se a juntada da prova após o momento inicial do processo,
mais precisamente quando for devidamente concluída no pro
cesso cautelar de produção antecipada de prova.
Ao superar a questão do momento em que a prova docu
mentada — inclusive a prova emprestada, da qual é espécie a
122
prova produzida antecipadamente por meio de p r o c e s s o autô
nomo cautelar — deve ser juntada aos autos, resta analisar outro
dispositivo legal referente ao procedimento probatório desse
meio de prova. É essencial o respeito ao art. 398 do CPC, que
determina que, sempre que uma das partes requerer a juntada
de documento ao processo, o juiz ouvirá, no prazo de cinco
dias, a parte contrária. Essa é a expressão máxima do princípio
do contraditório no tocante à produção da prova documentada,
regra plenamente aplicável à prova emprestada, conforme des
taca a doutrina que já tratou do tema147.
A oitiva da parte contrária permitirá sua manifestação a
respeito de dois aspectos principais com relação à prova docu
mentada produzida e utilizada de forma emprestada: (i) indaga
ções a respeito do preenchimento de requisitos formais neces
sários a permitir sua devida juntada ao processo, ou seja, requi
sitos que, uma vez preenchidos, impeçam seu desentranhamen-
to, de modo a permitir que a prova emprestada sirva ao juiz
como meio de formação de seu convencimento — admissibili
dade da prova; (ii) indagações a respeito de seu conteúdo, ou
seja, argüições que digam respeito à carga probatória da prova
admitida no processo — vaíoração.
Para parcela significativa da doutrina, no tocante à admis
sibilidade da prova emprestada, poderá a parte contrária levan
tar a questão concernente ao respeito ao princípio do contradi
tório na produção da prova, aspecto já exaustivamente enfren
tado. Seria nesse momento, portanto, que a parte alegaria
afronta ao contraditório ao afirmar não ter tido oportunidade de
123
participar da formação da prova, de modo que esta seria, por
tanto, inadmissível nesse segundo processo. A divergência en
contrada na doutrina diz respeito à espécie de vício gerado pela
inobservância do contraditório no primeiro processo, sobre o
que há opiniões a situarem tal prova em diferentes planos versos
no tocante ao seu vício.
Existe corrente doutrinária a defender que o desrespeito ao
princípio do contraditório torna a prova emprestada algo que
não tem condições mínimas de ser reconhecido pelo direito
como prova no processo que a receberia de forma emprestada.
Seria uma não-prova, por não cumprir os requisitos mínimos de
sua formação; somente aparentaria ser prova, mas, na realidade,
tratar-se-ia de prova juridicamente inexistente. Essa corrente
doutrinária entende, inclusive, que a aceitação de tal prova e a
prolação de sentença fundada nessa prova emprestada gera uma
decisão juridicamente inexistente, portadora de vício que não
se convalida e que pode ser alegado a qualquer momento por
meio de ação declaratória de inexistência de ato jurídico149. Ao
considerar que a ausência de contraditório gera o mais grave dos
vícios, evidentemente essa corrente doutrinária não admite a
prova emprestada sem a observância de tal princípio.
A reconhecer a existência da prova emprestada produzida em
afronta ao contraditório — entendida como ausência da parte con
tra quem será oposta a prova no processo em que foi ela produzi
da —, existem doutrinadores que situam o vício na esfera da eficá
cia da prova em outro processo. Rarece que, nesse caso, os doutri
nadores não admitem a própria produção da prova emprestada em
razão de sua absoluta ineficácia, o que é, portanto, fator que leva
rá a sua inadmissibilidade149. Além de não se concordar com a idéia
124
de plena ineficácia, mesmo que se adote tal entendimento, não se
tratará de matéria a impedir a admissibilidade da prova. Ao enten
der a eficácia como condições de gerar efeitos e por ser o efeito
principal da prova o convencimento do juiz a respeito da matéria
fática, a questão deve ser resolvida na fase de valoração, não na de
admissibilidade. Dessa forma, a prova emprestada deverá ser ad
mitida, ainda que não tenha condições de gerar o efeito programa
do para todas as provas, qual seja, convencer o juiz.
Evidentemente, para os doutrinadores que defendem a
plena ineficácia da prova emprestada produzida em desrespeito
ao contraditório, do ponto de vista prático pouca relevância terá
a distinção feita entre admissibilidade e valoração. Ao conside
rar a prova inadmissível, será determinado seu desentranhamen-
to, de modo que é óbvia a conclusão de que o juiz não a utili
zará para formar seu convencimento no momento em que
proferir a sentença, já ao considerar questão a ser resolvida so
mente na valoração da prova, a prova emprestada continuará
nos autos, mas, da mesma forma em que ocorreria se tivesse sido
desentranhada, o juiz não a considerará na formação de seu
convencimento ao sentenciar a demanda. Nos dois casos, mos-
tra-se que a prova emprestada não teve qualquer serventia à
parte que dela pretendeu utilizar-se.
Apesar dessa identidade de resultados ao considerar a pro
va emprestada absolutamente ineficaz não admitida e admitida,
mas entendida como inapta a formar o convencimento do juiz,
a distinção é essencialmente importante, mesmo porque não se
concorda com a opinião dos doutrinadores que entendem pela
absoluta ineficácia da prova. Nesse caso, é melhor entender que
125
— ressaltada a idéia de que eficácia deve ser vista como condi
ções de gerar efeitos — a afronta ao princípio do contraditório
não gera, por si só, a ineficácia absoluta da prova emprestada,
em especial na hipótese de ser impossível sua repetição (e. g.,
testemunha que já faleceu, perícia em objeto que já pereceu).
Ao ser envolvida, nessa hipótese, a obtenção da verdade possí
vel, que, conforme foi anteriormente visto, representa um refle
xo do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, não
parece correto excluir a priori qualquer valor probatório que a
prova emprestada apresente.
A doutrina italiana, embora se mostre bastante relutante
nesse tocante, informa que a jurisprudência pacífica daquele país
aceita a prova emprestada mesmo quando produzida entre partes
diferentes, desde que, no processo em que a prova é recebida,
sejam ofertadas às partes condições de se manifestarem sobre a
prova. Discute-se muito a respeito do valor que tal prova teria no
novo processo, considerando que o desrespeito ao princípio do
contraditório não permite que tenha a mesma carga probatória
do processo em que foi produzida. Dessa forma, fala-se que a
prova será utilizada como mera presunção, ou ainda como mero
indício, embora sejam fenômenos diferentes e absolutamente
inconfundíveis. O ponto de maior interesse é que a jurisprudên
cia italiana, ainda que tente empregar a essa prova uma carga
valorativa inferior, acredita que o juiz possa perfeitamente formar
todo o seu convencimento fundando-se somente na presunção
— ou indício — em virtude do princípio da persuasão racional
do juiz. A conclusão é a de que, apesar de indicar carga valora
tiva inferior, ainda assim a prova emprestada que desrespeita o
contraditório será apta a fundamentar a decisão do juiz.
Na doutrina nacional, há autores que defendem entendimen
to bastante similar ao acolhido na jurisprudência italiana. Dentre
eles, destaca-se Moacyr Amaral Santos150, certamente o maior
especialidade no tema probatório em nosso país, para quem
150 Cf. Prova judiciária no cível e comercial, cit., v. I, p. 309. José Frederico
Marques, Instituições de direito processual civil/ cit., v. III, p. 353, afirma
126
"a prova emprestada, como todas as espécies de provas, é
sujeita à avaliação e vale pelo poder de convencimento que
carrega. Tanto poderá, por si só, convencer, como poderá
cooperar no convencimento, quando mais não seja, pelo
seu simples valor argumentai, como ainda poderá ser con
siderada inteiramente ineficiente, tudo dependendo das
condições objetivas e subjetivas que apresenta, das partes
nela interessadas, do caráter do fato probando, da natureza
do processo, enfim das circunstâncias que influem na ava
liação e estimação das provas".
que, "se a prova foi colhida sem a participação da parte contra quem deva
operar, mínimo ou quase nenhum tem de ser o seu valor", enquanto Luiz
Fux, Curso de direito processual civil/ cit., p. 700, entende que "a prova
emprestada, sem esse contraditório, tem valor relativo".
151Já se havia manifestado acertadamente nesse sentido, embora um tanto
contraditório com a defesa da inexistência jurídica da prova, Eduardo Tala-
mini, "Prova emprestada no processo civil e penal", cit., p. 112: "A única
solução concebível será a aplicação do princípio da proporcionalidade. Tais
valores (e também os que estão em jogo nos próprios pólos da situação
controvertida, objeto do processo), terão de ser ponderados de modo a se
verificar quai‘s dentre eles são os mais urgentes e fundamentais, no caso
cencreto".
127
Essas considerações formuladas no tocante à prova empres
tada podem, perfeitamente, ser aproveitadas quanto a prova
produzida antecipadamente por meio de processo cautelar au
tônomo, ainda que o respeito ao contraditório não seja um
problema tão sensível nessa espécie de prova emprestada devi
do à invariável identidade de partes do processo cautelar e do
processo principal De qualquer forma, ainda que seja mais rara
tal situação no campo das cautelares probatórias, o entendimen
to continua a ser aplicado, não se devendo colocar o contradi
tório sobre um pedestal e afirmar que em absolutamente todas
as situações o desrespeito a ele faça resultar uma prova juridi
camente inexistente ou absolutamente ineficaz.
Quanto a esse entendimento, vale a lúcida transcrição de
lição de José Carlos Barbosa Moreira152, em artigo específico
sobre o tema do princípio do contraditório na atividade instru-
tória:
128
contraditório pode constituir, e em geral constitui, precioso
instrumento de melhor acesso à verdade dos fatos. Se, to
davia, em circunstâncias particulares, se invertem os termos
da equação, e aquilo que concorria para a realização dos
fins superiores da Justiça passa a representar obstáculos à
respectiva persecução, desprezar esse dado da experiência
seria, a nosso ver, uma forma requintada de apriorismo".
129
recebe o traslado da prova não estar obrigado a convencer-se tal
qual o juiz que a formou, até porque, nesse caso, a prova em
prestada que tivesse convencido o juiz no primeiro processo
funcionaria, no segundo, como prova plena, instituto rejeitado
pela processualística moderna.
A única e excepcional circunstância em que o juiz estaria
obrigado a considerar o fato como verdadeiro seria no caso de
ação declaratória — incidental ou autônoma — de falsidade
documental. Nessa hipótese, a única em que é possível a ação
declaratória de fatos, com o trânsito em julgado da decisão que
resolve o fato de o documento ser ou não falso, o juiz de qualquer
outra demanda estará obrigado a dar o documento como falso
ou verdadeiro. Registre-se, entretanto, não se tratar, nesse caso,
especificamente de prova emprestada, mas sim de fenômeno da
coisa julgada material, que tornará a declaração a respeito da
falsidade do documento imutável e indiscutível. De qualquer
forma, caso a parte junte ao processo a perícia que demonstrou
a falsidade ou a autenticidade do documento, acompanhado da
sentença transitada em julgado, não seria totalmente incorreto
afirmar que a perícia foi utilizada como prova emprestada vin-
culativa do segundo juiz.
Essa absoluta independência valorativa do juiz que recebe
a prova emprestada no que tange à atribuição de sua carga de
convencimento, característica indiscutível do instituto, também
é verificada quanto à atividade valorativa do juiz no processo
principal que recebe prova produzida antecipadamente em
processo cautelar. Não resta qualquer dúvida, para a doutrina
cesso civil na Constituição Federal/ cit., p. 152; João Batista Lopes, A prova
no direito processual civil/ cit., p. 58. Na doutrina estrangeira, Piero Cala-
mandrei, "La sentenza civile come mezzo di prova". Rivista di Diritto Pro
cessuale. Milano, Giuffrè, 1938, p. 108 e ss.; MicheleTaruffo, "Prove atipi
che e convincimento del giudice", cit., p. 395-403; Alberto dos Reis, Códi
go de Processo Civil anotado/ cit., v. III, p. 345-346; Hernando Devis
Echandía, Teoria general de Ia prueba judicial/ cit., p. 369; jorge Fabrega,
Teoria general de Ia prueba, cit., p. 323-324; Roland Arazi, La prueba en el
proceso civil/ cit., p. 131-132.
130
que já enfrentou o tema, de que a vaíoração da prova é tarefa
do juiz do processo principal, que poderá, inclusive, desconsi-
derá-Ia completamente na formação de seu convencimento154.
A eficácia da prova produzida no processo cautelar, portanto,
dependerá do juiz que a recebe já produzida no processo prin
cipal, de forma que, também no tocante à prova produzida
cautelarmente, o juiz do processo que a recebe será o respon
sável por sua vaíoração.
É nesse aspecto que fica mais evidente a única diferença
entre a prova emprestada e a prova antecipada, sem que com
isso, entretanto, seja possível afirmar não ser a segunda espécie
da primeira. No caso da prova emprestada, haverá dupla valo-
ração, realizada tanto pelo juiz que a produziu como pelo juiz
que já a recebe produzida, enquanto, na prova antecipada, so
mente o juiz que já a recebe produzida fará sua vaíoração,
considerando que tal atividade não cabe ao juiz do processo
cautelar, o qual exaure sua função jurisdicional ao produzir a
prova. Ocorre, entretanto, que a atividade desenvolvida pelo
juiz no processo em que a prova foi produzida é absolutamente
irrelevante para os fins de comparação dos dois institutos. O que
interessa nessa análise é justamente a circunstância — e isso é
inegável — de que o juiz que recebe a prova já produzida terá
total liberdade valorativa a seu respeito.
Como se percebe, trata-se de mais uma semelhança evi
dente entre essas duas espécies de provas atípicas. A vaíoração
do juiz que as formou é absolutamente irrelevante — ou porque
não interessa ao juiz que a recebeu (prova emprestada), ou por
que nem mesmo chegou a ser realizada no primeiro processo
(prova antecipada) —, de modo a estar o juiz que recebe a pro
va absolutamente liberado para atribuir a carga de convenci
mento que entender adequada à prova já anteriormente produ
zida.
131
7. PROVA EMPRESTADA E PRO DUÇÃO ANTECIPADA
DE PROVAS
As considerações feitas neste capítulo demonstram, de
forma inequívoca, que a prova produzida antecipadamente por
meio de processo autônomo cautelar é uma espécie de prova
emprestada, devido à identidade de características dos dois
institutos. São diversos os pontos de contato entre os dois. Na
realidade, todos os pontos analisados demonstram identidade
entre a prova emprestada e a prova antecipada, à exceção da
valoração da prova no processo em que foi formada, o que
ocorre no primeiro caso e não no segundo. Tal diferença, entre
tanto, conforme já foi amplamente demonstrado, não é apta a
afastar a natureza de prova emprestada da prova produzida
antecipadamente por meio de processo cautelar autônomo.
Essa conclusão é de suma importância em razão da crítica
à doutrina nacional que defende a inadequação do nome "pro
dução antecipada de provas" e afirma que, na verdade, nessa
espécie de processo não haveria, propriamente, produção de
prova, mas mera asseguração para que a prova possa ser produ
zida no momento indicado pela legislação. Justamente a natu
reza de emprestada que tem a prova antecipada permite rumar,
de forma segura, em sentido contrário à quase-total idade da
doutrina nacional em sua injusta crítica ao legislador. Por ser
derivada da confusão entre a produção da prova e a geração de
seus efeitos — o que só ocorrerá na valoração —, a crítica ao
nome legal não se sustenta quando se passa a considerar tal
prova como espécie de prova emprestada.
Como foi visto no presente capítulo, a prova emprestada,
por ser prova documentada, tem forma documental e segue as
regras procedimentais desse meio de prova no processo que a
recebe. Assim, ao juntar aos autos a prova emprestada, a parte
estará propondo e produzindo a prova ao mesmo tempo, em
fenômeno típico do procedimento probatório das provas pré-
constituídas, especialmente a documental. Haverá, portanto,
dois momentos distintos de produção: um no processo originá
rio em que $ prova surge, por meio de oitiva de testemunha- ,
132 -
realização de perícia etc. e outro no processo que recebe tal
prova em sua forma documental. É possível tal duplicidade em
virtude das diferentes formas que as provas adquirem nesses dois
processos.
O mesmo ocorre com a prova produzida antecipadamente
— pudera, por ser uma espécie de prova emprestada —, não
sendo correto afirmar que a prova objeto da antecipação não é
produzida, mas sim meramente assegurada para que possa ser
produzida no momento adequado do processo principal. Nada
disso corresponde à verdade, o que se demonstra à saciedade
quando se considera que a produção antecipada de prova refe
riu-se aos meios de prova possíveis de serem produzidos nessa
ação — oral, pericial, inspeção judicial —, enquanto essa mes
ma prova, pela forma documental que adquire para poder ser
trasladada para o processo principal, virá a ser novamente pro
duzida nesse processo, no momento em que o traslado for jun
tado aos autos. Como na prova emprestada, são duas produções
distintas da mesma prova, em razão das diferentes formas que
tal prova adquire nos dois processos.
Com esse pensamento, a divorciar-se, definitivamente, da
equivocada idéia de que a produção da prova confunde-se com
a geração de seus efeitos — uma perícia realizada em juízo
poderá não convencer o juiz, mas nem por isso não terá sido
produzida —, é fácil entender o acerto legislativo ao chamar o
instituto que será analisado no próximo capítulo.
133
Produção antecipada deprovas
1. P R O D U Ç Ã O E A S S E G U R A Ç Ã O DA PR O V A —
IN DEVI DAS CRÍTICAS AO NOME LEGAL
O processo de produção antecipada de provas, previsto pelos
arts. 846 a 848 do CPC, encontra, na doutrina nacional, séria
crítica quanto a sua nomenclatura. Afirma-se que, durante o pro
cesso cautelar, a produção da prova não é efetivamente produzida,
simplesmente sendo assegurada, quando não puder ser produzida
adequadamente durante a fase norma! para a colheita de provas,
ou seja, a fase probatória do processo de conhecimento. Com base
nessa constatação, Pontes de Miranda sempre preferiu referir-se ao
processo de produção antecipada de prova como um processo em
que se exerce uma "pretensão à segurança da prova"155.
Apesar de chegar a conclusões acertadas, em especial no
tocante a afirmativa de que o juiz do processo cautelar não será
o responsável pela valoração da prova objeto da demanda cau
telar, tarefa reservada ao juiz da causa principal, o entendimento
parte de uma premissa equivocada — utilizada pela doutrina
majoritária, praticamente uníssona —, que diz respeito às fases
constantes do procedimento probatório, o que justificaria o receio
na manutenção do nome "produção antecipada de provas". Tudo
dependerá do que se deve entender por "produção da prova".
A doutrina nacional que entende ser inadequado o nome
legal, capaz de levar o operador a equívocos práticos, toma por
134
base preciosa lição do saudoso processualista Moacyr Amaral
Santos, certamente aquele que melhor desenvolveu o tema pro
batório entre nós. Em entendimento desenvolvido em obra
clássica, o jurista divide o procedimento probatório em três fases:
propositura, admissibilidade e produção, sendo esta última
conceituada como o momento em que a prova produz os seus
efeitos, "momento em que a prova se converte em instrumento
de percepção dos fatos alegados, ou melhor, o momento em que
estes se reproduzem de forma a deixar traços que exteriorizem
a sua existência e o modo de sua existência"156.
Não se pode concordar, nesse ponto, com Moacyr Amaral
Santos, ainda que essa rejeição rume contrariamente ao enten
dimento de doutrina, praticamente uníssona, que segue contem-
poraneamente suas lições. Tudo leva a crer que o procedimento
probatório seja divido em quatro fases, não somente em três, e
deve atribuir-se à fase de produção da prova uma concepção
um pouco diversa da defendida pela doutrina majoritária. Não
resta grande dúvida quanto à fase de propositura e admissibili
dade da prova, mas não parece correto que o procedimento se
encerre na produção da prova, pois existe ainda mais uma fase
probatória, essa sim derradeira, sua vaíoração.
Produzir a prova por meio de atuação jurisdicional é, sim
plesmente, criar a prova no processo, ou seja, realizar a prova
judicialmente, ao colocá-la em contato com o juiz, em algo
próximo ao que Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart
chamam de "formação da prova"157. A perícia, que resulta no
135
laudo pericial, é gerado por sua produção; o mesmo ocorre na
oitiva de testemunhas ou partes em juízo. Na verdade, a fase de
produção da prova é dividida em dois momentos distintos: a
preparação e a realização — ou formação. Em um primeiro
momento, as partes e o próprio juiz praticam atos de mera pre
paração, como a indicação de quesitos e assistentes técnicos ou
o ato de arrolar as testemunhas para a audiência de instrução.
Após ultrapassar com sucesso esse momento, passa-se à fase de
formação, com a efetiva realização do trabalho pericial ou co
lheita da prova oral158.
Ressalte-se que, nesse momento, somente se trata das pro
vas que não sejam pré-constituídas, já que, com relação a essa
espécie de prova, até mesmo o procedimento probatório será
diferente, inclusive com modificação da ordem em que as fases
se sucedem. Trata-se apenas dos meios de prova que podem ser
produzidos por meio do processo cautelar de produção anteci
pada de provas, que, conforme será visto com mais profundida
de no tópico referente ao objeto dessa espécie de processo, ja
mais serão provas pré-constituídas.
136
Posteriormente à produção da prova, ocorrerá a derradeira
fase processual, qual seja, a de vaíoração, que somente ocorre
rá na sentença do processo principal59. Valorar significa afirmar
se a prova foi ou não apta a convencer o juiz da veracidade dos
fatos, sendo justamente tal convencimento o que se busca como
efeito principal da prova. Parece equivocado entender que a
produção é a geração de efeitos da prova, conforme afirma Mo
acyr Amaral Santos, a considerar que a prova, mesmo formada
no processo, pode não ser apta a gerar tal efeito. Dir-se-á, nessa
hipótese, que a prova não foi produzida? Meses de perícia se
passaram, valores foram despendidos, pessoas tiveram suas vidas
modificadas com o dever de comparecer em juízo para prestar
depoimento, e, uma vez não convencido o juiz, a prova não
teria chegado a ser produzida? Não parece correto tal entendi
mento, mas sim que a prova foi realmente produzida, mas não
gerou seus programados efeitos, ou seja, no momento da valo-
ração, não convenceu o juiz a respeito da existência ou veraci
dade dos fatos que constituíram o objeto da prova.
Com esse entendimento, é possível concluir que, durante
o processo cautelar de "produção antecipada de provas", have
138
"Antes de la iniciación de cualquier proceso, el que preten
da incoarlo o cualquiera de los litigantes durante el curso del
mismo, podrá pedir del tribunal ia adopción, mediante pro
videncia, de medidas de aseguramiento útiles para evitar que,
por conductas humans o acontecimientos naturales, que
puedan destruir o alterar objetos materiales o estados de
cosas, resulte imposible en su momento practicar una prue
ba relevante o incluso carezca de sentido proponerla".
139
A legislação espanhola tem o grande mérito de demonstrar
que, de fato, há uma diferença entre produzir antecipadamente
a prova e somente assegurar essa produção. Com essa apuração
técnica, torna-se claro o equívoco da doutrina nacional em
entender que existe em nosso direito um processo de "assegu
ração da produção da prova", embora, tanto sob o prisma legis
lativo como sob o prático, nosso ordenamento contemple hipó
teses de produção antecipada de prova, não de mera asseguração.
Não se conhece medida judicial que determine o depósito de
uma coisa que tenha o perigo de ter seu conteúdo modificado
para somente em momento posterior proceder à prova pericial.
O carro batido não é mantido assim, por ordem judicial, até
chegar à fase instrutória do processo principal, para que então
se realize a perícia; esta já é realizada no próprio processo de
produção antecipada de provas161.
Evidentemente, as medidas de mera assecuração da prova
somente poderão ter como objeto coisas ou documentos, porque
o fato se serem colocados a salvo de eventuais modificações
posteriores não coaduna com as provas orais. Seria de fato ab
surdo imaginara possibilidade de isolar uma pessoa, mantendo-
a em "cativeiro", impedindo-a de, por exemplo, ausentar-se do
país, para colher seu depoimento somente durante a fase de
instrução do processo. O mesmo se pode dizer da testemunha
1fe' Cf. Antonio Diáz Fuentes, La prueba en Ia nueva ley de enjuiciamiento civil.
2. ed. Barcelona: Bosch, 2004, p. 97, ao tratar dos institutos da produção
antecipada e da asseguração da prova, "Ia diferencia radica en que, partien-
do del perecimineto de Ia posibilidad futura, una Io acepta, pero Io ataja, y
Ia otra Io elimina el aseguramiento combate Ia pérdida, impidiendo Ia mu-
tación, y Ia anticipación realiza Ia prueba y se desinteresa del riesgo de
desaparición". No mesmo sentido as lições de Juan Montero Aroca, La
prueba en el proceso civil. 3. ed. Madrid: Civitas, 2002, p. 157, ao comen
tar a produção antecipada de prova: "Si en el caso anterior se trataba de
practicar un medio de prueba, ante el peligro de que se perdiera Ia fuente
de prueba, haciendo imposible su aportación al proceso, ahora se trata de
asegurar una fuente de prueba, pero síh Ilegar a practicar el medio".
140
«
doente. Nesses casos, como assegurar a produção de seu depoi
mento sem realizá-lo?162
Não se duvida de que a vaíoração da prova produzida an
tecipadamente é fase a ser desenvolvida exclusivamente peran
te o juiz do processo principal, no que concorda a doutrina de
forma uníssona. Não é correto, entretanto, utilizar-se dessa
constatação, praticamente indiscutível no tocante à produção
antecipada de provas, para criticar o nome dado pelo legislador
a essa espécie de processo. Dessa forma, por não se compartilhar
da comum crítica da doutrina brasileira a respeito do nome do
processo que ora se analisa, será mantida tal nomenclatura, não
só em homenagem a sua consagração na praxe forense, como
também por sua absoluta correção técnica.
2. NATUREZA JU RÍD IC A
Embora a produção antecipada de provas seja tratada como
ação cautelar pelo Código de Processo Civil, existem doutrina-
dores que duvidam de sua natureza cautelar em algumas hipó
teses específicas. A conclusão é obtida pela interpretação literal
dos arts. 847 — prova oral — e 848 — prova pericial —, ambos
do Código de Processo Civil, que apontam para a exigência do
preenchimento do requisito do periculum in mora, entendido
como o perigo de a prova não poder mais ser produzida no
momento adequado a tal produção — fase instrutória do pro
cesso principal.
141
A legislação espanhola tem o grande mérito de demonstrar
que, de fato, há uma diferença entre produzir antecipadamente
a prova e somente assegurar essa produção. Com essa apuração
técnica, torna-se claro o equívoco da doutrina nacional em
entender que existe em nosso direito um processo de "assegu
ração da produção da prova", embora, tanto sob o prisma legis
lativo como sob o prático, nosso ordenamento contemple hipó
teses de produção antecipada de prova, não de mera asseguração.
Não se conhece medida judicial que determine o depósito de
uma coisa que tenha o perigo de ter seu conteúdo modificado
para somente em momento posterior proceder à prova pericial
O carro batido não é mantido assim, por ordem judicial, até
chegar à fase instrutória do processo principal, para que então
se realize a perícia; esta já é realizada no próprio processo de
produção antecipada de provas161.
Evidentemente, as medidas de mera assecuração da prova
somente poderão ter como objeto coisas ou documentos, porque
o fato se serem colocados a salvo de eventuais modificações
posteriores não coaduna com as provas orais. Seria de fato ab
surdo imaginar a possibilidade de isolar uma pessoa, mantendo-
a em "cativeiro", impedindo-a de, por exemplo, ausentar-se do
país, para colher seu depoimento somente durante a fase de
instrução do processo. O mesmo se pode dizer da testemunha
2. NATUREZA JU RÍD IC A
Embora a produção antecipada de provas seja tratada como
ação cautelar pelo Código de Processo Civil, existem doutrina-
dores que duvidam de sua natureza cautelar em algumas hipó
teses específicas. A conclusão é obtida pela interpretação literal
dos arts. 847 — prova oral — e 848 — prova pericial —, ambos
do Código de Processo Civil, que apontam para a exigência do
preenchimento do requisito do periculum in mora, entendido
como o perigo de a prova não poder mais ser produzida no
momento adequado a tal produção — fase instrutória do pro
cesso principal.
141
contrário: é imprescindível que o responsável pela produção
tenha, em seu poder, o documento. Além disso, mais importan
te para os fins buscados pelo presente estudo, na exibição, a
coisa ou o documento não permanecerá no processo até sua
extinção, diferentemente do que ocorre na prova documental,
que, uma vez produzida, será incorporada ao processo até seu
término. Quando for produzida a prova por meio da exibição,
portanto, a permanência do objeto da prova no processo será
apenas temporária.
240
2.1. Exibição como meio de prova durante a fase instru-
tória
A exibição de coisa ou de documento poderá ser requerida
como meio de prova durante a instrução probatória do processo
de conhecimento, hipótese em que não se antevê, para a doutri
na majoritária, natureza cautelar, considerando a dispensa dos
requisitos do periculum in mora e do fumus boni iuris. O direito
da parte à exibição, nesse caso, baseia-se exclusivamente na
natureza probatória de tal documento ou de tal coisa diante dos
fatos narrados na demanda que a parte pretende ver provados
com a exibição. Não se discute, nesse caso, nem quais são os
requisitos típicos da cautelar, nem se a parte que requer a exibi
ção tem qualquer direito material sobre a coisa ou o documento;
basta para o juiz deferir o pedido a importância da exibição para
a formação de seu convencimento no caso concreto282.
241
A exibição como mero meio de prova a ser desenvolvido
regularmente na fase instrutória do processo de conhecimento
tem previsão expressa no Código de Processo Civil pátrio nos
arts. 355 a 363, com regulamentação procedimental do pedido
contra a parte contrária e contra terceiros. Há outros ordena
mentos que seguem o estilo do brasileiro ao apontar a exibição
de documento contra a parte contrária ou contra terceiro, a
tratar a matéria de forma isolada, como o faz o Códice di Proce-
dura Civile da Itália, arts. 210 a 213. A regra, entretanto, é não
tratar o tema de forma isolada, mas dentro da prova documental
É o caso do Código de Procedimiento Civil do Chile, em seu art.
349; do Código General del Proceso do Uruguai, arts. 167 — do
cumentos em poder de terceiros — e 168 — documentos em
poder da parte contrária; do Código Procesal Civil y Comercial
de la Nación Argentina, arts. 388 — dos documentos em poder
de uma das partes — e 389 — documentos em poder de tercei
ro; daZPO, §§421 a 427 — parte contrária — e 428 a 431 — ter
ceiro; do Código de Processo Civil de Portugal, arts. 528a a 530a
— parte contrária — e 531a a 533c — terceiro; da Ley de Enjui-
ciamiento Civil da Espanha, arts. 328, 329 — parte contrária
— e 330 — terceiro.
A exibição como espécie de prova documental, constante
nos mais diversos ordenamentos jurídicos, é afastada pela dou
trina nacional de qualquer natureza cautelar, ainda que seja
produzida antes do momento legalmente previsto para a produ
ção da prova. O pensamento, já amplamente criticado em mo-
242
mento anterior desta obra, deve-se a enganosa concepção
existente na doutrina nacional no que se refere ao significado
da "produção antecipada de prova" e da mera "asseguração de
prova". Mais uma vez, percebem-se os problemas práticos ge
rados pelo entendimento arraigado na doutrina — embora ab
solutamente equivocado — de que, nas ações cautelares proba
tórias, não se produz, efetivamente, quatquer prova: somente se
assegura a possibilidade de essa prova ser produzida posterior
mente.
Nas palavras de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira283, ao
comentar a cautelar de exibição,
243
No caso da exibição, entretanto, há um aspecto complica-
dor da defesa da tese da prova emprestada. Já se afirmou que a
prova emprestada nunca será documental, porque, nesse caso,
não se tratará de prova atfpica, na qual será indispensável a
diferença entre conteúdo e forma. Com base nesse dado, poder-
se-ia imaginar que, no caso de exibição de coisa e de documen
to, seria absolutamente impróprio afirmar que a utilização do
objeto exibido possa servir como prova emprestada em outra
demanda, porque, nesse caso, a natureza da prova produzida e
da prova emprestada será sempre documental284.
É preciso registrar que o direito nacional, por opção legis
lativa, diferenciou os meios de prova "exibição de coisa ou de
documento" do meio de prova "documental", o que permite
afirmar que, na prova produzida pela ação autônoma exibitória
— de natureza cautelar ou não —, o conteúdo será sempre do
cumental, mas a forma de produção será ora de exibição, ora
documental A diferença é basicamente fundada no acesso da
parte que pretenda apresentar o documento em juízo; no pri
meiro caso, a coisa ou documento está com terceiro ou com a
parte contrária; no segundo, a própria parte que pretende pro
duzir a prova já está com a coisa ou documento em seu poder,
bastando apresentá-lo em juízo. É possível, assim, afirmar que,
no primeiro caso, produziu-se a exibição, e, no segundo, a pro
va documental285.
284A afirmar a mesma natureza documental dos dois meios de prova: Luigi Pâolo
Comoglio, Corrado Ferri e Michele Taruffo, Lezioni sul processo civile, cit., p.
676; Ciorgio Grassei li, L'istruzione probatoria nelprocesso civile riformato/ cit.,
p. 130-131; Crisanto Mandrioli, Diritto processuale civile, cit., p. 232-233.
285Crisanto Mandrioli, Diritto processuale civile, cit., p. 232: "Naturalmente,
la produzione del documento — che è atto spontaneo delia parte —■
presuppone che la parte che la compie — e che owiamente è la parte alia
quale il documento giova — sai in possesso del documento stesso". Francesco
P. Luiso, Diritto processuale civile/ cit., p. 117-118, afirma haver diferença
na produção desses dois meios de prova: "II meccanismo è 1'esibizione, che
si contrappone alia produzione perché quest'ultima è attivata dalla parte
che vuole usare quel documneto; 1'esibízione è invece Pattività di un altro
soggetto, che può essere la eontro parte oppure un terzo".
244
A corroborar tal entendimento encontra-se, inclusive, o
próprio conceito de exibição, já explorado. Com a produção da
prova documental por meio de exibição de coisa ou de docu
mento, somente será colocada às vistas das partes e retornará a
seu possuidor após o prazo a ser fixado pelo juiz no caso con
creto. Os interessados, dentro desse prazo, terão contato visual
com o objeto e deverão providenciar sua documentação por
meio de xerox, filmagens, fotos etc.; é possível falar, nesse caso,
de documentação da prova documental No processo principal,
registre-se, não será juntado aos autos coisa ou documento que
fora objeto da exibição, mas o documento que comprovará a
existência de tal coisa ou documento. Apesar de parecer para
doxal, ter-se-ia, nessa hipótese, uma prova documental docu
mentada, não somente uma prova documental
Ainda que assim não se entenda, ao afirmar que, tanto em
um caso como em outro, a natureza da prova será sempre do
cumental, aspecto que não sofre qualquer influência do sujeito
que esteja em poder da coisa ou do documento, afastar-se-á a
natureza de prova emprestada do caso concreto, mas ainda
assim será possível defender que houve efetiva produção da
prova na ação cautelar autônoma. Nesse ponto, volta-se ao as
pecto principal do raciocínio: a diferenciação da produção e da
valoração da prova. Não é porque o juiz do processo cautelar
não valora a prova que ela não terá sido produzida; é possível
a mesma prova documental ser produzida diversas vezes; basta,
para tanto, ser juntada a diversos processos.
Ninguém negará que, em um processo de conhecimento,
documento apresentado por umas das partes ou obtido por exi
bição seja efetivamente produzido, ainda que não chegue a ser
valorado, de modo a não influenciar o convencimento do juiz.
Basta imaginar a hipótese de uma transação que põe fim ao pro
cesso antes do julgamento de mérito. Esse documento poderá ser
novamente utilizado em outras demandas, nas quais voltará a ser
produzido, tantas vezes quantas seja juntado aos autos. Com
relação à demanda exibitória autônoma, não há diferença digna
de nota que justifique um tratamento diferenciado, de modo que
a prova é produzida, e, se porventura for utilizada em outro pro
245
cesso, neste, novamente, virá a ser produzida. A valoração — lem
bre-se — não deve ser aspecto a considerar, por não se confundir
com a fase procedimental probatória da produção.
É nesse sentido que não parece ser exatamente o momento
da exibição — precedente ou incidental — que determinará sua
natureza cautelar ou não. A partir da clássica definição de peri
culum in mora, se houver perigo de a prova não poder ser pro
duzida no momento adequado — fase probatória do processo
de conhecimento —, pouco importará se já existe processo
principal ou não; sempre que o adiantamento temporal dessa
exibição se fizer necessário em virtude do perigo de esperar o
momento adequado para a produção da prova, a exibição terá
natureza cautelar.
É evidente que só será possível chegar a tal conclusão a
partir do momento em que se reconheça que, com a exibição
da coisa ou do documento em juízo, a prova terá sido efetiva
mente produzida e a questão de sua eficácia probatória deslo
cada para a fase de valoração, posterior à fase de sua produção.
Ao adotar esse entendimento, não há como deixar de atribuir
natureza cautelar para coisa ou para documento exibidos no
próprio processo de conhecimento, mas antes do momento
procedimental adequado para tanto, que é a fase probatória do
processo286.
246
A conclusão do pensamento exposto fundamenta-se na
concepção de que não é a autonomia ou a antecedência da
exibição que determinará sua natureza cautelar ou não, mas a
necessidade de que ocorra antes do momento adequado para
tanto — fase probatória do processo de conhecimento — em
razão do periculum in mora, entendido como a impossibilidade
ou extrema dificuldade de produzir a prova posteriormente. Seja
antecedente, seja incidental a exibição, pouco importará na fi
xação de sua natureza, muito embora o art. 844, caput, do CPC
fale em "procedimento preparatório", disposição criticável que
cria a falsa impressão de que somente as exibições produzidas
por processo autônomo poderão ter natureza cautelar.
247
Nesse caso, há parcela da doutrina que defende a natureza não
cautelar da ação exibitória e aponta que a pretensão de conhecer
dados necessários da futura ação afastaria o processo da cauteia-
ridade, sendo possível afirmar que, uma vez exibido o documen
to ou a coisa, a pretensão do autor de conhecer sua forma e seu
conteúdo já estará completamente satisfeita; assim, é irrelevante,
no caso concreto, a ocorrência de qualquer perigo de a prova não
poder ser produzida posteriormente no momento adequado287.
Há em alguns ordenamentos processuais estrangeiros, em
especial aqueles que seguiram o espanhol, em sua codificação
originária de 1856 (arts. 497 e ss.), com as modificações de 1881
(arts. 222 e ss.), tais como os de vários países da América do Sul
— e. g., Argentina288, Chile e Uruguai289—, além, é claro, da
própria Espanha que contêm, em suas legislações processuais,
previsão expressa, cada qual com suas especificidades, de um
processo anterior ao principal denominado diligencias prelimi
nares ou diligencias preparatórias. O objeto principal das dili
genciais preliminares éode municiaro autor ou réu de dados
necessários a um exercício mais amplo e perfeito de seu direito
de ação ou de exceção. Registre-se que nada tem que ver com
as providências preliminares previstas pelos arts. 324 a 326 do
CPC pátrio, fase processual verificada com o processo de co
nhecimento já instaurado.
248
No direito espanhol, as diligencias preliminares encontram-
se previstas nos arts. 256 a 263 da Ley de Enjuiciamiento Civil,
indicando o art. 256, em seus sete parágrafos, as espécies de
diligências que poderão ser requeridas pela parte anteriormente
ao processo; é assim redigido o § 2C: "mediante solicitud de que
la persona a la que se pretenda demandar exhiba la cosa que
tenga en su poder y a la que se haya de referir el juicio". Esse
dispositivo legal éo que mais interessa à presente discussão — ain
da que também nos §§ 3Qe 4Qse trate de exibição de documen
tos em hipóteses específicas —, porque a doutrina espanhola
entende, de forma pacífica, tratar-se de norma legal fortemente
influenciada pela actio ad exhibendum do direito romano290.
A par de outras considerações que importarão em capítulos
posteriores, é importante observar que a doutrina espanhola
conceitua as diligencias preliminares como um processo — para
alguns, mero procedimento — que antecede o chamado proces
so principal, cujo objetivo é o conhecimento da parte de dados
necessários a propositura regular e mais completa de tal deman
da. Fica evidenciada aqui a hipótese descrita por parcela da
doutrina nacional como de exibição satisfativa, na qual o co
nhecimento dos dados advindos da coisa ou do documento, com
o propósito de preparar melhor a demanda por vir, satisfaria por
completo a pretensão do autor, sem qualquer característica de
cautelaridade.
A identidade dos institutos é manifesta, parecendo rumar a
doutrina daquele país no sentido defendido por Ovídio A. Bap
tista da Silva de que tal espécie de exibição não tem natureza
cautelar, característica, inclusive, suficiente para diferenciá-la
da produção antecipada de provas. A diferença entre as duas é
a mesma indicada pela doutrina nacional, de que o risco de ser
249
impossível ou muito difícil a produção da prova no momento
oportuno é exigência das cautelares probatórias, o que não
ocorre com a diligencia preliminar, baseada na impossibilidade
de a parte obter dados necessários ao exercício da ação ou ex
ceção sem a intervenção do Poder Judiciário291.
É importante ressaltar, entretanto, que os monografistas
espanhóis, apesar de distinguirem, com bastante ênfase, as dili
gências preliminares da prova antecipada, afirmam, acertada-
mente, que no primeiro instituto será produzida uma prova que
será utilizada no processo principal, ainda que não seja essa a
função principal do instituto292 . Faz-se, portanto, uma diferen
ciação entre o objetivo principal das diligencias preliminares e
seu objetivo secundário ou, ainda melhor, seu efeito secundário,
sendo inegável que, ao fazer a prova do fato para melhor pre
parar a petição iniciai ou a defesa, a parte obtém a prova de tal
fato, que será levado ao processo principal, tendo manifesta
mente a característica — ainda que secundária — de ação au
tônoma probatória.
291Cf. Ignacio Díez-Picazo Cimenez, Derecho procesal civil/ cit., p. 228, apon
ta a diferença, mas lembra da "zona cinzenta": "Las diligencias preliminares
no constituyen prueba anticipada, aúnque en algunos casos la frontera entre
ambas instituciones sea borrosa. Mientras el fundamento de la prueba anti
cipada está en el riesgo de que si se espera a la práctica de un medio de
prueba en su momento procesal normal, la misma puede ser imposible, el
fundamento de las diligencias preliminares está en la imposibilidad de que
el futuro demandante obtenga por si mismo y sin auxilio de la autoridad
judicial ciertos datos necesarios para poder presentar una demanda".
292Julio Banacloche Palao, tas diligencias preliminares/ cit., p. 39: "Por Io tan
to, las diligencias preliminares y la prueba anticipada que se practica antes
del inicio del proceso se asemejan en que en ambos casos se obtienen
datos relevantes para el proceso cuando éste aún no ha comenzado". A.
Alvarez Alarcón, Las diligencias preliminares del proceso civil, cit., p. 43:
"Em conclusión, las diligencias preliminares no tienen como finalidad prin
cipal la de obféner pruebas, pero és una función nada desdenable hoy y
que en un futuro debiera gozar de una mayor progresión, pues evita que las
partes cometan ilicitudes para obtener pruebas y facilita el fundamental
derecho a prueba, sobre todo respecto de aquéllas que deben aportarse con
la demanda".
250
Na Argentina, o CPCCN, em seus arts. 323 a 329, trata, sob
o título diligencias preliminares, dos institutos das medidas pre
paratórias e da prueba anticipada. Apesar do tratamento legal
sob o mesmo título, a doutrina do país vizinho parece seguir o
mesmo rumo da espanhola, ao ressaltar como diferença princi
pal entre os dois institutos a urgência da produção antecipada
de prova e a mera preparação de ingresso da ação principal das
diligências preliminares293. Cabe a lembrança da forte tendência
do direito argentino a afastar a natureza cautelar da própria
produção antecipada de prova, conforme visto no capítulo es
pecífico a respeito do tema. Nesse entendimento, nem as medi
das preparatórias nem a prova antecipada teriam natureza
cautelar, mas ainda assim haveria entre elas a diferença de for
necer dados para acionar ou para defender-se e produzir provas
de maneira antecipada.
Destaque-se, no direito argentino, a própria redação do art.
323, § 2Q, do CPCCN: "que se exhiba Ia cosa mueble que haya
de pedirse por acción real, sin perjuicio de su depósito o de Ia
medida precautoria que corresponda". Como se percebe da re
dação do dispositivo legal, não é necessária ameaça de lesão à
coisa móvel para que seja exibida, tanto assim que a medida
precautoria poderá ser cumulada com medida cautelar, caso haja
perigo efetivo sobre a coisa. Será o caso, por exemplo, de o autor
251 ^
requerer o seqüestro da coisa quando sua manutenção pelo atu
al possuidor possa representar perigo de ela vir a perder-se294.
No direito uruguaio, também é feita a distinção entre as dili
gências preparatórias entre os processos tipicamente preparatórios
ou facilitadores e os processos de asseguração, restando na primei
ra espécie as diligências destinadas a assegurar a existência do
processo principal e a integrar um elemento da demanda principal,
e, na segunda espécie, as diligências voltadas a assegurar um meio
de prova ou o resultado do processo principal Com previsão no
art. 309, 2 e 3, do CGP, a exibição da espécie ora estudada é ci
tada como da primeira espécie e serve apenas para fornecer ao
autor dados indispensáveis à propositura correta da demanda ju
dicial, o que a afastaria da produção antecipada de provas295.
Como se percebe, tanto na Espanha, que mantém o institu
to em seu ordenamento por mais de mil anos, como nos países
sul-americanos, que seguiram tal tradição, uma das espécies de
diligencia preliminar presta-se à mesma finalidade da exibitória,
que fornece ao autor os dados necessários ao ingresso de uma
demanda de forma mais exata e formalmente perfeita. Como já
foi visto, ao afastar-se da idéia de que seria necessário, para a
concessão da medida, algum perigo de que a prova não pudes
se ser produzida tardiamente, a doutrina desses países afasta
qualquer natureza cautelar da diligencia preliminar ora aponta
da, em lição muito semelhante àquela representada no Brasil,
entre outros, por Ovídio A. Baptista da Silva.
No direito brasileiro, entretanto, a doutrina não caminha
de forma uníssona, já que há forte corrente a indicar para essa
hipótese de exibição de coisa ou documento natureza cautelar,
como já afirmava Pontes de Miranda296 ao defender que
252
"a exibição de coisa móvel, para o que pede verificar-se se
é sua a coisa, não produz prova, nem entrega da coisa: é
asseguração da pretensão a conhecer os dados de uma ação,
antes de propô-la. Metê-la na classe das exibições que
correspondem a pretensão à asseguração da prova não é,
certo, contra a natureza das coisas; pois a prova se destina
ao convencimento do juiz, e o autor está promovendo a
formação de elementos que possam levá-lo ao cumprimen
to do seu ônus de afirmar e de provar
253
das probatórias autônomas. A necessidade do autor de conhecer
dados de que não dispõe, como forma de instrumentalizar mais
adequadamente sua demanda, demonstra, à saciedade, que a
função desse processo, ainda que reflexamente, é a produção
de prova, fonte do conhecimento que procura obter o deman
dante. Ao conhecer melhor a situação fática em que está envol
vido — com naturais reflexos em sua situação jurídica —, esta
rá produzindo prova que, além de auxiliá-lo na melhor prepa
ração do processo principal, servirá como meio de convenci
mento do juiz responsável por seu julgamento.
A conclusão a que se pode chegar e que será lembrada em
capítulo específico a respeito das ações probatórias autônomas
no direito brasileiro nos dias atuais é a de que, ao se entender
como exibição ora enfrentada cautelar ou satisfativa, sua natu
reza não modifica a condição de demanda autônoma que tem
por objeto — ou efeito principal ou secundário como preferem
os espanhóis — a produção de uma prova. Essa conclusão, como
já dito, será novamente abordada em momento próprio do pre
sente estudo.
254
Essa espécie de exibição, também não incluída pela dou
trina nacional no âmbito da tutela cautelar, seria decorrência de
um direito material à exibição, sendo demanda de natureza
satisfativa de um direito no piano material Como exemplos são
lembrados o art. 844, inc. II, primeira parte ("documento próprio
ou comum, em poder de co-interessado, sócio, condômino,
credor ou devedor"), o art. 844, inc. II, segunda parte ("em poder
de terceiro que o tenha em sua guarda, como inventariante,
testamenteiro, depositário ou administrador de bens alheios"), e
o art. 844, inc. ill ("da escrituração comercial por inteiro, balan
ços e documentos de arquivo, nos casos expressos em lei"),
todos do Código de Processo Civil.
O art. 844, inc. II, primeira parte, indica, em primeiro lugar,
a figura do "documento próprio", correspondente àquele para
com o qual o autor da demanda exibitória tenha direito de pro
priedade sobre o bem, o que deixa claro seu direito material a
vê-io exibido judicialmente quando estiver em poder de tercei
ro. O dispositivo legal, entretanto, não se limita a essa circuns
tância; permite também a ação exibitória de "documento co
mum", a ser entendido como aquele de propriedade tanto do
autor como do réu da demanda judicial. Em ambos os casos, o
fundamento para a demanda exibitória autônoma será o direito
de propriedade — particular ou comum — sobre o bem298.
255
É interessante notar, entretanto, que a definição de documen
to comum, estabelecida em especial pela doutrina italiana, trans
borda da questão referente à propriedade da coisa, pois permite
que seja exibida em juízo coisa ou documento cuja propriedade
não é do autor, mas a respeito dos quais demonstra ter algum
interesse probatório. Estabelece-se um ponto médio entre dois
institutos contrários: o direito à propriedade da coisa ou do docu
mento e o direito da parte a vê-los exibidos em juízo.
Ovídio A. Baptista da Silva299, alicerçado em lições de Sér
gio La China, Chiovenda e Sparano, afirma que a
256
A manifestação do doutrinador gaúcho não deixa de conter
certa incoerência, por afirmar, primeiro, que essa espécie de
exibição não tem natureza probatória, bastando a exibição para
o conhecimento da coisa que a parte repute sua ou cujo conte
údo tenha interesse em conhecer; depois, afirma que a tese do
"documento comum", fundada no "interesse comum", permite
ao não proprietário exigir a exibição de coisa ou de documento
quando o mesmo servir de meio de prova de suas alegações. O
entendimento aparentemente mais correto a respeito do art. 844,
inc. II, do CPC é o de que um direito material sobre a coisa ou
documento — propriedade ou interesse em conhecer seu con
teúdo — é o suficiente para justificar a exibição, mas, em ambas
as hipóteses, a exibição em juízo produzirá prova, ainda que
não seja o objetivo da parte utilizá-la em demanda futura.
Insista-se mais uma vez que, independentemente de o di*
reito do autor à exibição fundar-se ou não no direito à prova,
mas ao mero conhecimento da forma, do conteúdo e do estado
da coisa ou do documento, o resultado da exibição em juízo
será sempre a produção de um prova, justamente referente à
forma, ao conteúdo ou ao estado da coisa ou do documento
exibido. Poder-se-ia, nesse caso, falar em efeito indireto ou re
flexo, não pretendido de forma imediata pelo autor, mas, dese
jado ou não, será automaticamente gerado com a exibição ju
dicial. Será, portanto, um efeito de pleno direito gerado pela
exibição. Ao adotar o conceito tradicional de periculum in mora
nas cautelares probatórias, é até possível afastar tal natureza
dessa demanda, mas não parece correto afirmar não se tratar de
ação probatória autônoma, ainda que, insista-se, não seja esse
o objetivo imediato do autor da demanda.
Há, ainda, um ponto a ser enfrentado. O dispositivo legal
menciona a exibição de coisa móvel, mas deixa no ar o ques
tionamento a respeito do cabimento da demanda exibitória
também para as coisas imóveis. Não parece haver diferenças
substancias a respeito do objetivo dessa demanda, nem mesmo
do direito que a fundamenta, quando referente às coisas móveis
gu imóveis, de modo que é absolutamente possível e até mesmo
257
saudável uma interpretação extensiva do dispositivo legal, que
permitiria também sua aplicação para os bens imóveis.
Mais uma vez, estar-se-ia diante de uma exibição ampla
mente satisfativa, mas agora no plano do direito material à exi
bição da coisa ou documento, se for dispensado novamente o
autor da comprovação de fumus boni iuris e do periculum in
mora. Como modalidade dessa espécie de demanda de exibição
satisfativa, encontra-se, na doutrina nacional, o exemplo clássi
co de exibição para tomada de conhecimento da coisa com
vistas ao exercício de direito relativos à própria coisa300.
O art. 844, inc. II, do CPC ainda prevê que o documento
próprio ou comum esteja "em poder de co-interessado, sócio,
condômino, credor ou devedor; ou em poder de terceiro que
tenha em sua guarda, como inventariante, testamenteiro, depo
sitário ou administrador". O rol de sujeitos em cujo poder a
coisa poderá estar é meramente exemplificativo, sendo admis
sível que outros sujeitos, em qualidade jurídica similar àqueles
indicados pelo dispositivo legal, também tenham o dever de
exibir a coisa ou o documento em juízo.
Há ainda uma específica previsão no estatuto processual
brasileiro a respeito dessa espécie de exibição, no art. 844, inc.
III: "da escrituração comercial por inteiro, balanços e documentos
de arquivo, nos casos expressos em lei". As normas que regulam
258
a obrigatoriedade de exibição são as de natureza societária, pre
vistas atualmente no Código Civil, nos arts. 1.190 a 1.1 93301.
Em síntese conclusiva parcial, essa terceira espécie de de
manda cautelar — que, para a doutrina majoritária, não tem
natureza acautelatória, mas que, à luz do conceito defendido
de periculum in mora como todo o perigo que exista para a
existência de resultado favorável à parte, ingressaria no rol das
cautelares — terá sempre a função de proporcionar a produção
de uma prova com a exibição da coisa ou documento em juízo,
ainda que o requerente não objetive com isso provar qualquer
fato em demanda posterior. E inegável que o sócio, ao pedir a
exibição dos livros e dos papéis de escrituração comercial, ain
da que exclusivamente para tomar conhecimento da situação
atual da sociedade, fará prova dessa situação atual, o que, in
clusive, poderá fornecer subsídios a propor uma demanda judi
cial que não era seu objetivo originariamente ou utilizá-la em
demanda futura.
259
O que se pretende afirmar é que, independentemente da
discussão a respeito da natureza cautelar de tal exibição, o re
sultado prático da exibição em juízo da coisa ou do documento
será a produção de uma prova. Pode-se, nesse caso, falar até
mesmo em efeito secundário ou reflexo da exibição, consideran
do que a satisfação de um direito material sobre a coisa é a tute
la principal do processo, mas tal característica é insuficiente para
deslocar a função probatória de tais demandas. Se provar é de
monstrar um fato, qualquer que tenha sido o direito que funda
mentou a exibição, ainda que indiretamente, proporcionará uma
prova judicialmente produzida, o que já é suficiente para incluir
tal demanda no rol das ações probatórias autônomas.
A doutrina espanhola, ao apontar a não-cautelaridade das
diligencias preliminares, afirma ser a principal função de tal
instituto obter, por via judicial, informações de caráter proces
sual ou substancial sem as quais não se poderia iniciar um
processo sem o risco de a parte incorrer em erros que conduzi
riam o processo à inutilidade ou ao fracasso das pretensões a
serem exercitadas em tal demanda. Não descuidam, entretanto,
da função, ainda que secundária, da produção da prova. Defen-
de-se corretamente que, mesmo se não for esse o objetivo prin
cipal do demandante, ao obter os dados indispensáveis à pro-
positura, à regularidade ou ao sucesso da ação principal, ao ser
realizada a diligencia preliminar e exibida em juízo a coisa ou
documento — bem como ao ser obtida a confissão no caso
específico de averiguar a capacidade ou legitimação do réu —,
estar-se-á produzindo prova302.
302A. Alvaréz Alarcon, Las diligencias preliminares del proceso civil/ cit., p. 43: '
"Es aqui donde encajan las diligencias preliminares, las cuales pueden tener
como finalidad, aunque quizás de segundo orden respecto de Ia de cumplir
los presupuestos procesales, obtener alguna fuente de prueba"; Vicente
Gimeno Sendra, Derecho procesal civil/ cit., p. 270-271: "Como regia ge
neral no puede afirmarse Ia naturaleza probatoria de dichas diligencias, sino
Ia de 'actos civiles instructorios' (similares a las que se practican en el
Vorverfahren alemán — fase escrita previa a Ia audiência principal, cuya
finalidad consiste en aportar el material de hecho al proceso — o a nuestro
260
Há, até mesmo no direito espanhol, uma situação específi
ca de diligencia preliminar em que se mostra, de forma nítida e
incontestável, a natureza probatória dessa demanda de cunho
exibitório. Trata-se de normas referentes à Ley de Patentes (arts.
129-132), à Ley de Marcas (art. 40) e à Ley de Competencia Des
leal (art. 24), em que as diligências, expressamente, justificam-se
na comprovação de fatos. Nesses casos, a própria doutrina ates
ta a natureza nitidamente probatória de tal demanda judicial, o
que, inclusive, aproxima-a da prova antecipada, ainda que seja
mantida a diferença de que, na exibição, não existe o perigo de
a prova não poder ser produzida posteriormente303.
261
2.4. Exibição cautelar de coisa ou de documento
Por fim, resta a quarta espécie de exibição, de natureza
inegavelmente cautelar, sempre antecedente à ação principal
Nesse caso, será exigida a observância dos requisitos tradicionais
da tutela cautelar, em especial o periculum in mora em sua
conceituação clássica para as cautelares probatórias. O perigo
de que o documento ou a coisa não possa ser exibido futura
mente, no momento adequado para tanto — fase instrutória do
processo de conhecimento —, será determinante para que a
exibição tenha natureza cautelar e possa ser tratada à luz dos
arts. 844 e 845 do CPC.
A partir da premissa de que, se houver o perigo de a prova
não poder mais ser produzida no momento adequado a tanto,
toda exibição autônoma terá natureza cautelar, o que deverá ser
analisado no caso concreto. Assim, de todas as hipóteses de
direito à exibição previstas pelo art. 844 do CPC, será possível
verificar a cautelaridade, a depender sempre do caso concreto304.
O direito à produção antecipada da prova poderá ser puro, ou
seja, fundado no mero interesse de garantir que a prova não se
perca, como também poderá ser reflexo, sempre que, além des
se objetivo, o direito à exibição esteja fundado no direito mate
rial que o autor tem na exibição da coisa ou do documento. A
diferença entre essas duas situações é que, no segundo caso,
como o autor não necessita demonstrar que a prova corre peri
go, fundamenta seu pedido exclusivamente no direito material
à exibição, embora possa ser interessante a alegação de perigo
em eventual pedido de liminar na exibição, o que só se justifi
caria se a prova correr um iminente perigo de se perder.
O fumus boni iuris da exibição cautelar não destoa subs
tancialmente daquele exigido para a produção antecipada de
262 „
prova e já analisado de forma exaustiva em capítulo precedente.
A dificuldade na aferição de tal elemento, mais uma vez, mostra-
se clara em virtude do objeto da cautelar exibitória, que tem
como único objetivo produzir uma prova que se perderia na
hipótese de não ser interposta a demanda judicial, não se po
dendo exigir, para sua configuração, nem mesmo de forma su
mária e superficial, a existência do direito material que será
objeto da futura e eventual ação principal.
Diante da absoluta discrepância entre o direito à prova,
protegido pela exibição cautelar, e o direito material que será
objeto da ação principal, não se pode concordar com o enten
dimento exposto por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira305, para
quem "o autor da ação cautelar deve, além disso, convencer o
juiz da verossimilhança do próprio direito a ser exercido na
demanda principal e na qual pretende usar a prova, assegurada
preventivamente". O direito à prova não se confunde com o
direito material a ser discutido na ação principal, de modo que
é absolutamente possível a existência de um sem que o outro
exista. Exigir a aparência de existência do próprio direito mate
rial — em cognição sumária —, como pretende o processualis-
ta referido, é limitar demasiadamente o âmbito da cautelar
exibitória, afastando a parte que tenha, efetivamente, o direito
à prova de sua proteção, mas que, em razão do estado ainda
inicial da exposição de suas pretensões, não consiga demonstrar
a "verossimilhança do próprio direito a ser exercido na deman
da principal".
Mais uma vez, nota-se a dificuldade da verificação de tal
elemento no caso concreto, o que faz com que, na prática fo
rense, haja significativa postura de encará-lo de forma bastante
flexibilizada. Conforme já visto no tocante à produção anteci
pada de prova, por ser o objeto das cautelares probatórias com
posto pelo mero direito à produção de uma prova na hipótese
de existir perigo fundado de que a espera pelo momento ade
263
quado para tal produção a torne impossível, será simplesmente
analisado se o autor tem tal direito à prova, ainda assim por meio
de cognição sumária, típica das demandas cautelares.
Volta a ter importância o previsto no art. 344 do CPC, o
qual indica fatos que não são objeto de prova e que, bem por
isso, não dão à parte o direito de sua produção. As ponderações
feitas no tocante à produção antecipada de provas aplicam-se,
em sua inteireza, à cautelar exibitória no tocante aos fatos no
tórios e aos fatos para os quais exista presunção legal de exis
tência ou de veracidade.
No tocante ao periculum in mora, o Código de Processo Civil
foi mais feliz na cautelar exibitória do que na produção antecipa
da de provas, porque simplesmente se omitiu a respeito dos fatos
que ensejariam o perigo de a prova não poder ser produzida em
seu momento adequado, de modo a evitar quaisquer restrições ao
cabimento da ação cautelar. A postura adotada pelo legislador ao
regular a produção antecipada de provas já foi devidamente criti
cada em capítulo próprio, no qual se demonstrou que a doutrina
e mesmo a praxe forense tratam o rol de fatos que geram o pericu
lum in mora de maneira exemplificativa, ao afastar a pretendida
taxatividade presente nos arts. 847 e 849 do CPC. Com relação à
cautelar de exibição, diante do silêncio legislativo, fica ainda mais
fácil a defesa da tese de que qualquer fato que possa levar ao
fundado perigo de a prova não mais poder ser produzida enseja o
acolhimento da pretensão exibitória cautelar.
Dessa forma, qualquer que seja a alegação fática do reque
rente da ação cautelar, a comprovar, sumariamente, o perigo de
o documento não mais poder ser exibido em juízo no momento
da fase de instrução do processo de conhecimento, estará pre
enchido o requisito do periculum in mora. Inclui-se tradicional
mente, nessas situações, o perigo de destruição, de ocultação,
de modificação ou de deterioração completa ou parcial do do
cumento ou da coisa a justificar a demanda cautelar exibitória.
É natural que esses elementos sejam analisados à luz das
condições da ação, aliás, como ocorre com todas as demandas
judiciais. No processo cautelar, apesar da dificuldade-prática de
264
separar o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido
do fumus boni iuris e do periculum in mora, as condições da ação
têm papel fundamental para aferir a adequação da pretensão do
autor. Também nesse tocante, as ponderações feitas para a pro
dução antecipada de provas são plenamente aplicáveis à caute
lar exibitória, o que, mais uma vez, reforça a proximidade — ou
mesmo a identidade — dessas duas espécies de ação judicial.
No tocante a possibilidade jurídica do pedido, há um dado
a acrescentar, referente ao art. 363 do CPC, que cataloga as
principais hipóteses do direito à não-exibição, dispositivo legal
que deve ser analisado à luz do art. 358 do mesmo Código.
Nesses casos, faltará ao requerente a possibilidade jurídica do
pedido, considerando que o próprio ordenamento jurídico, no
choque entre os valores da produção da prova e da intimidade
e privacidade do sujeito que tem em seu poder o documento,
prefere resguardar o segundo. Caso não seja possível a exibição
da coisa ou do documento em juízo por vedação legal, qualquer
pretensão que esbarre nas hipóteses previstas pelo dispositivo
legal mencionado estará fadada ao insucesso por impossibilida
de jurídica do pedido306.
O art. 363, inc. I, do CPC dispõe que a parte poderá escu
sar-se em exibir em juízo documento ou coisa "se concernente
a negócios da própria vida da família". Nessa regra legal, resta
evidenciado o caráter de proteção à intimidade e à privacidade
não só do sujeito que tem em seu poder o documento ou a coi
sa como também de sua família. Assuntos familiares são prote
gidos do conhecimento de terceiros que com eles não se rela
cionam, exceto, naturalmente, aqueles que, por seu conteúdo,
sejam comuns às partes (art. 358, inc. III, CPC); excetuam-se
ainda os casos em que a parte tenha obrigação legal de exibir o
documento ou a coisa (art. 358, inc. I, CPC)307.
265
Há, no direito português, uma regra semelhante a essa, no
art. 519Q, 3, b, que trata do dever de cooperação para a desco
berta da verdade, a indicar ser legítima a recusa no caso de
"intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na cor
respondência ou nas telecomunicações". A melhor doutrina
portuguesa aponta para o respeito dos direitos fundamentais
impostos pela Constituição Federal daquele país, em especial o
direito à intimidade e privacidade, a exemplo do que ocorre no
Brasil308.
A segunda hipótese de recusa justificada em exibir prevista
pelo dispositivo legal ora comentado diz respeito à possibilida
de de violação ao dever de honra (art. 363, inc. II, CPC). A
norma legal deve ser interpretada conjuntamente com a primei
ra parte do art. 363, inc. III, do CPC, que admite a escusa na
exibição "se a publicidade do documento redundar em desonra
à parte ou a terceiro, bem como a seus parentes consangüíneos
ou afins até o terceiro grau; ou lhes representar perigo de ação
penal". Apesar da extrema dificuldade em conceituar objetiva
mente o "dever de honra", o melhor entendimento é o de que
o legislador procurou preservar a integridade do patrimônio
moral da parte, o que restaria abalado se o documento ou a
coisa viessem a ser exibidos em juízo. Nesse caso, a própria
existência do documento, além de seu conteúdo, poderá resul
tar em abalo de credibilidade da parte, por proporcionar o co
nhecimento de terceiros sobre algo que prejudique, de alguma
forma, a honra da parte ou de terceiro, que nela confiou ao
deixar em seu poder a coisa ou o documento.
266
Mais uma vez, o direito português tem norma bastante si
milar ao do direito pátrio, embora, nesse caso, mostre-se superior
em termos de clareza a respeito do objeto que se pretende efe
tivamente proteger ao admitir a escusa em exibir a coisa ou
documento. Prevê o art. 519°, 3, a, do CPC ser legítima a recu
sa se a exibição importar em "violação da integridade física ou
moral das pessoas" e deixa suficientemente claro que é o patri
mônio moral do sujeito ou de terceiro a ele próximo que se
procura preservar, por tratar-se de direito intimamente ligado às
garantais constitucionais de privacidade e de intimidade.
O art. 363, inc. III, em sua parte finai, legitima a escusa na
exibição de coisa ou de documento que possa representar peri
go de ação penal Essa hipótese de recusa é bastante curiosa;
toma-se por base para tal conclusão a impossibilidade de o juiz,
diante de fato que possa tipificar crime, deixar de tomar as de
vidas providências no sentido de enviar comunicação aos órgãos
competentes para a averiguação da conduta. Na verdade, se não
o fizer, estará o juiz tipificado no crime de prevaricação, previs
to na legislação penal. Dessa forma, o requerido terá a difícil
missão de convencer o juiz de que não poderá exibir a coisa ou
o documento sem fornecer elementos mínimos para a tomada
de atitude antes descrita. No mínimo, trata-se de um paradoxo
difícil de ser superado.
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart309tentam
dar solução ao problema:
267
investigação. Assim, sempre, o requerimento de exibição
merecerá análise preliminar pelo juiz, que, verificando, pela
descrição do documento ou da coisa a ser exibido, bem
como da finalidade da exibição, deverá ab initio declarar
que vislumbra possibilidade de incriminação no documen
to, exonerando o sujeito de exibi-lo em juízo".
268
absoluta, de modo que deve o juiz ponderar, no caso concreto,
sobre sua admissibilidade, ao aplicar a regra da proporcionali
dade. Os próprios regramentos de algumas entidades profissio
nais demonstram que a regra não é absoluta, como é o caso do
art. 102 do Código de Ética Médica, que abre a possibilidade de
o médico revelar fatos conhecidos no exercício de sua profissão
por justa causa, o que também ocorre com os advogados, em
razão do art. 34, inc. VII, do Estatuto da Ordem dos Advogados
do Brasil, que considera infração disciplinar a quebra de sigilo
profissional somente sem justa causa.
Mais uma vez, encontra-se no direito português norma
bastante similar, ao prever o art. 519Q, 3, d, do CPC a legitimi
dade na recusa nos casos em que a exibição puder violar sigilo
profissional ou de funcionários públicos. Segundo a melhor
doutrina, essa legitimidade não é absoluta,
Por fim o art. 363, inc. V, do CPC prevê hipótese que não
deixa margem para dúvidas do caráter meramente exemplifica-
3,0Cf. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado/ cit., p. .410. No
direito italiano, existe norma similar (art. 210, CPC), a remeter o direito de
não exibir a segredos previstos pelo CPP (arts. 200 a 202). O Codigo de
Procedimiento Civil do Chile, no art. 349, exime a exibição quando o ins
trumento tiver "caracter de secretos o confidenciales". .•
269
tivo dos incisos anteriores, ao admitir como legítima a recusa "se
subsistirem outros motivos graves que, segundo o prudente arbítrio
do juiz, justifiquem a recusa da exibição". Nesse tocante, caberá
ao juiz, no caso concreto, valorar o direito à produção da prova
e o direito de não exibi-la exposto pelo requerido em sua contes
tação, ao aplicar ao caso concreto a regra da proporcionalidade
para verificar qual o maior proveito em termos de direitos contra
postos, o da exibição ou não da coisa ou documento em juízo.
Registre-se ainda que, em virtude do art. 363, parágrafo
único, do CPC, "se os motivos de que tratam os incs. I a V dis
serem respeito só a uma parte do conteúdo do documento, da
outra se extrairá uma suma para ser apresentada em juízo".
Naturalmente que, se parcela da coisa ou do documento não
estiver protegida pelas causas de escusa na exibição, não teria
sentido privar o demandante de seu conhecimento, de modo
que é extremamente feliz o dispositivo legal ao permitir a extra
ção de suma de tal parte da coisa ou documento. Naturalmente,
nesse caso, a extração da suma será de responsabilidade do
demandado, sem o que o demandante teria acesso à integrali-
dade da coisa ou do documento e a proteção legal ora comen
tada restaria completamente esvaziada.
É importante ressaltar, conforme a melhor doutrina, que os
casos apresentados no dispositivo legal em exame dão ao de
mandado o direito de não exibir a coisa ou o documento em
juízo, mas será incorreta a conclusão de que crie às partes o
dever de não fazê-lo, ainda que, no caso de sigilo profissional,
tal conduta possa resultar em sanções de toda ordem — admi
nistrativas, penais e civis. Dessa forma, se o demandado, mesmo
amparado pela lei, preferir apresentar seus documentos em juí
zo, assim poderá proceder311.
270
Essa circunstância é de extrema importância para a defini
ção do momento em que o juiz deverá prolatar a sentença ex
tintiva da ação cautelar exibitória, sobre o que parece ser mais
correto sempre aguardar a resposta do requerido, que, ao alegar
e convencer o juiz de uma das matérias do art. 363 do CPC,
levará o processo à extinção pela sentença terminativa de ca
rência de ação (art. 267, inc. VI, CPC). Nesses casos, portanto,
será precipitada a extinção liminar por meio de indeferimento
da petição inicial (art. 295, incs. 1, parágrafo único, III, CPC).
No tocante ao interesse de agir, deverá o requerente de
monstrar que não teria outra forma de obter acesso à coisa ou
ao documento que não por intervenção judicial, o que não
ocorrerá, por exemplo, na hipótese de ser possível a obtenção
do documento por meio de pedido de certidão diante do órgão
competente. A inutilidade da intervenção do Poder Judiciário
para a obtenção do pretendido pelo requerente justificará o in
deferimento da petição inicial por carência de ação (art. 295,
inc. III, CPC).
No direito espanhol, a doutrina demonstra extrema preo
cupação com a necessidade de intervenção jurisdicional para a
exibição da coisa ou do documento e lembra que a instrução da
demanda fica geralmente ao encargo da parte, e somente se
admite a intervenção do Poder Judiciário quando for impossível
a obtenção dos dados necessários à propositura da demanda
judicial por atividade exclusiva da parte. A preocupação leva
em conta também o direito de posse ou de propriedade do re
querido sobre o bem, de forma a evitar seu desnecessário incô-
própria sociedade seu resguardo. Nos demais casos apontados, ainda que
ocorra a circunstância, a parte ou terceiro podem revelar fatos e apresentar
voluntariamente o documento ou a coisa. Mas, se ocorre sigilo em razão
de estado ou profissão, o próprio juiz não deve admitir a exibição", fóra
Carlos Alberto Dabus Maluf, Exibição de documento ou coisa, cit., p. 266,
o sigilo, nesses casos, é uma obrigação jurídica do demandado. Também
fala em dever, José Raimundo Gomes da Cruz, "Exibição de documento ou
outra coisa". Revista de Processo, São Paulo, RT, n. 124, 2005, p. 75.
271
modo se for possível a obtenção dos dados sem a intervenção
jurisdicional312.
A terceira e última condição da ação — legitimidade de
parte — mantém peculiaridade presente na ação de produção
antecipada de provas e já devidamente analisada no capítulo
próprio, qual seja, a de que tanto o autor como o réu da futura
e eventual demanda principal poderão mover a ação judicial
cautelar de exibição; por estar ligada ao direito de provar, qual
quer desses sujeitos poderá manusear a demanda cautelar pro
batória313. A especialidade fica por conta da possibilidade de
legitimação passiva de terceiro, ou seja, de sujeito que não virá
a compor o pólo passivo ou ativo da ação judicial principal,
característica que será analisada de forma mais detalhada ao
tratar-se do procedimento da cautelar exibitória.
272
prova, que poderá ser utilizada em outra demanda judicial, in
dependentemente de ser essa ou não a vontade originária do
requerente.
Até é possível verificar a natureza cautelar de todas essas
espécies de exibição se for conceituado o periculum in mora de
forma diversa do tradicionalmente feito pela doutrina, mas essa
questão passa a ser secundária ou a ter menor importância no
tocante à natureza probatória da demanda. Cautelar ou não, o
que dependerá do entendimento a respeito do conceito de pe
riculum in mora, a exibição terá sempre o efeito de produzir uma
prova a respeito da forma e conteúdo da coisa ou documento,
ainda que não seja esse o objetivo primeiro do autor da ação
autônoma exibitória.
Flávio luiz Yarshell314, em recente trabalho a respeito da
exibição de documento e de coisa, afirma que existem somente
duas espécies de exibição de coisa ou documento: (i) incidental
ao processo como providência instrutória e (ii) objeto de ação
autônoma, "em que a pretensão deduzida consiste precisamen
te na apresentação do documento ou coisa, de tal maneira que
o provimento jurisdicional ater-se-á a essa pretensão". Em seu
correto entendimento, toda demanda exibitória autônoma, qual
quer que seja seu objetivo — preparar a ação ou evitar a não-
produção da prova no momento adequado —, gera o mesmo
resultado, qual seja, o conhecimento pelo autor de fatos ligados
ao documento ou à coisa exibida. A serventia de tal prova, se
instruirá ou não um processo principal, se servirá para a escolha
da coisa ou se permitirá o ingresso da demanda judicial, pouco
importa para a realidade gerada pela exibição: o conhecimento
da coisa ou documento e a conseqüente produção da prova315.
273
Entre as classificações das diferentes espécies de ação de
exibição de coisa e de documento, cumpre registrar a opinião
isolada do processualista mineiro Ernani Fidélis dos Santos, para
quem a exibição de coisa ou documento, mesmo quando pre
paratória de futura demanda judicial, não terá qualquer nature
za cautelar, por fundar-se, exclusivamente, no direito de a parte
tomar conhecimento da forma e do conteúdo da coisa ou do
documento. Ao criticar a doutrina majoritária, a qual entende
que, nos casos em que a prova venha a prestar-se a um proces
so futuro, estar-se-ia diante de um processo de natureza cautelar,
o jurista afirma que o único dado interessante à exibição é o
conhecimento da coisa ou do documento para orientar possíveis
pretensões, relativas seja ao direito material, seja à propositura
de demanda judicial316.
O entendimento, de fato, é bastante interessante e vem ao
encontro da proposta principal deste trabalho, que é permitir
uma demanda cautelar autônoma sem qualquer necessidade de
que a prova a ser produzida corra algum perigo de não poder
ser produzida no futuro. O simples direito ao conhecimento da
forma e do conteúdo da coisa e do documento, como instru
mento para o demandante melhor valorar suas pretensões base
adas em tal coisa e documento, já seria o suficiente para a
parte ingressar com demanda autônoma exibitória. Apenas não
parece correta a afirmação de Ernani Fidélis dos Santos ao de
fender que o objetivo da exibição não é fazer prova, mas sim
tomar conhecimento do conteúdo da coisa ou do documento,
porque tal conhecimento é justamente a formação de uma pro-
274
va a respeito desses aspectos do documento ou da coisa, inde
pendentemente de sua utilização futura ou não317.
Apesar dessa divergência conceituai a respeito do conhe
cimento de a coisa ou de o documento ser apto a formar prova
sobre sua forma e sobre seu conteúdo, de modo a revelar-se
tanto ao autor como a terceiros, merece aplausos a teoria defen
dida pelo processualista mineiro, que defende uma ação de
exibição autônoma sem necessidade de verificação dos requisi
tos típicos da cautelar — fumus boni iuris e periculum in mora.
O mero direito a conhecer a coisa ou o documento e, ao que
parece, a fazer prova de sua forma e de seu conteúdo seria o
suficiente para proporcionar o direito de exibição autônoma da
parte, o que caracteriza a proposta principal deste estudo, da
existência de ação probatória autônoma baseada no simples
direito à produção da prova.
275
«
O art. 845 do CPC prevê: "observar-se-á, quanto ao procedi
mento, no que couber, o disposto nos arts. 355 a 363, e 381 e382",
todos do Código de Processo Civil. Essa regra remissiva, entretanto,
encontra algumas exceções no tocante à ação autônoma de exibi
ção de coisa ou documento, que serão analisadas a seguir.
4.1. Competência
No tocante à competência para a propositura da ação autô
noma exibitória, mais uma vez se levanta a questão a respeito da
aplicabilidade do art. 800 do diploma processual civil, que indi
ca como órgão competente para conhecer o processo cautelar
aquele que seja competente para conhecer o processo principal
— competência funcional, portanto de natureza absoluta. Apesar
de aparentemente importar, para a definição da competência, a
distinção entre a exibitória principal e satisfativa e a preparatória
e cautelar, porque a regra estabelecida pelo art. 800 do CPC só
poderia ser aplicada à segunda, o enfrentamento do tema à luz
do princípio da eficiência da tutela cautelar demonstrará que tal
distinção é inútil para fins de determinação de qual é o juízo
competente para a ação exibitória autônoma.
Conforme já foi amplamente explorado no capítulo referente
à produção antecipada de prova, nas demandas cautelares proba
tórias não se vê utilidade no respeito ao disposto no art. 800 do
CPC, sendo muito mais eficaz, para os fins buscados por tais de
mandas — produção da prova —, fixar a competência no locai
em que a prova deva ser produzida. Apesar de serem mais robus
tas as razões que levam à desconsideração do artigo lega! mencio
nado nas hipóteses de prova oral e pericial a serem produzidas
antecipadamente, também na hipótese de exibição de coisa ou
documento será mais consentâneo com os propósitos buscados
fixar a competência no lugar em que a prova deverá ser produzida,
independentemente de sua natureza cautelar ou satisfativa318.
276
Em vez da aplicação do art. 800, melhor será aplicar ao caso
concreto a previsão do art. 100, inc. IV, d, do CPC, que indica
como juízo competente o do local "onde a obrigação deve ser
satisfeita, para a ação em que se lhe exigir o cumprimento". Rara
tanto, basta considerar que a obrigação a ser cumprida pelo réu
é, justamente, a exibição da coisa ou do documento, de forma
que o juízo competente será o do local em que a exibição deva
ocorrer; subentende-se, nesse caso, ser o local em que se situa a
coisa ou o documento que se pretende ver exibido em juízo. Essa
regra legal deverá ser aplicada, insista-se, tanto na hipótese de
considerar a exibitória cautelar ou satisfativa, porque, em ambas,
a obrigação será de exibir, ainda que o fundamento de tal obri
gação possa variar, tendo, na primeira hipótese, natureza proces
sual, e, na segunda, natureza material.
Julio Banacíoche Fàlao319, ao referir-se à diligencia preliminar
que tenha por objeto a exibição de coisa — espécie mais similar
da exibição prevista em nosso ordenamento — em comentário
ao disposto no art. 257 da Ley de Enjuciamiento Civil, que prevê
ser competente o juízo do local do domicílio do demandado,
afirma que a regra busca otimizar a exibição e, de forma crítica,
que, na hipótese de exibição de coisa imóvel, o legislador não
foi feliz em sua escolha, já que a qualidade da prestação jurisdi
cional objetivada por ele estaria mais bem garantida com a
competência do local onde se situa a coisa — forum rei s/tae. O
mesmo não ocorreria na exibição de bem móvel, devido à difi
culdade do demandante de saber que local seria esse; por essa
razão, seria preferível a escolha do legislador em apontar como
competente o local de domicílio do demandado.
tava: "A exibição deve ser feita, no caso dos arts. 809 e 810, no lugar da
situação da coisa. Qualquer das partes pode pedir que a exibição se faça
em outro lugar, se para isso houver motivo grave".
3,9Las diligencias preliminares, cit., p. 111. O autor espanhol cita a doutrina
de Garnica Martin, da qual discorda, para quem a própria redação do arti
go legal seria o suficiente para permitir o ingresso do processo de diligências
preliminares perante o local em que se localize-o bem que será objeto de
exibição em juízo. „
277
O dado curioso a respeito da competência dessa diligencia
preliminar é sua natureza absoluta; deve o juiz analisar sua
competência de ofício e, conforme o caso, remeter imediata
mente os autos para o juízo competente (art. 257, 2, LEC). Ape
sar de ter natureza de competência territorial, a função a ser
desempenhada pelas diligencias preliminares justificaria sua
natureza absoluta. É tão grande a crença da doutrina espanhola
em que a fixação de competência no local do domicílio do
demandado se presta a otimizar a realização da exibição que o
próprio estatuto processual prevê, expressamente, tratar-se de
competência absoluta, de modo que deve ser analisada de ofício
pelo juiz, não se admitindo sua prorrogação320.
O entendimento de atribuir, em determinadas hipóteses de
competência territorial, a natureza de competência absoluta não
é desconhecida pelo direito brasileiro, como ocorre no art. 95
do CPC, no art. 2Qdo LACP e no art. 80 da lei do Idoso. É inte
ressante notar que uma das justificativas utilizadas pela doutrina
que enfrenta o tema é justamente a de que, ao exigir a proposi
tura dessas demandas no local do imóvel (art. 95, CPC) e no
local do dano (art. 2Q, 1ACP), o trabalho probatório seria facili
tado, o que, em última análise, resultaria em prestação jurisdi
cional de melhor qualidade a permitir a conclusão pela sua
natureza de competência absoluta321. Por ser o objeto da exibi
ção de coisa ou de documento justamente a produção de uma
prova — nisso todas as cautelares probatórias têm a mesma
característica —, a coerência de pensamento dessa parcela da
doutrina deveria levar a concluir por sua competência absoluta
278
do local do bem a ser exibido, o que, inegavelmente, otimizaria
a exibição e, dentro desse pensamento, proporcionaria uma
tutela jurisdicional de melhor qualidade.
Ocorre, entretanto, como já demonstrado em trabalho
anterior, que não é a facilitação da produção da prova que
determina a natureza de competência absoluta dessas hipóte
ses, mas a natureza e a relevância do direito material debati
do322. Dessa forma, a simples exibição de coisa ou de docu
mento não parece ter a relevância exigida para a exceção de
atribuir natureza absoluta à competência territorial; assim,
deve-se entender que, apesar de a regra mais adequada à boa
prestação jurisdicional ser a do local em que se localiza a
coisa ou documento, poderá haver tanto a prorrogação legal
como a convencional
4.2. Legitimidade
Conforme já se expôs anteriormente, a legitimidade para a
ação autônoma exibitória apresenta uma peculiaridade própria
das cautelares probatórias: a possibilidade de quebrar-se a regra
de que o requerente e o requerido da ação cautelar serão autor
e réu do processo principal, de modo a serem mantidos os pólos
processuais de atuação em ambos os processos. Na exibição,
será sempre possível imaginar a situação em que o futuro e
eventual réu de uma demanda judicial ingresse com ação de
exibição, cautelar ou satisfativa, simplesmente para tomar co
nhecimento do teor e do conteúdo do documento ou da coisa,
a fim de melhor se preparar para defender-se no eventual e fu
turo processo principal323.
279
A exibição proposta pelo futuro demandado no eventual e
futuro processo principal também pode justificar-se como meio
de inibição na propositura de tal demanda. Ao ser notificado de
que poderá vir a ser demandado com fundamentos equivocados
referentes a uma coisa ou a um documento, poderá exigir sua
exibição em juízo justamente para que o sujeito que pretendia
propor tal demanda perceba que não tem fundamentos para
tanto. Como a ação de exibição autônoma não decide coisa
alguma a respeito do conteúdo do documento, apenas se pres
tando à exibição em si, evidentemente essa serventia só poderá
ocorrer se o documento ou coisa estiver em posse de terceiro,
de forma que o requerido também não tenha acesso a seu con
teúdo. Se o documento ou a coisa já estiver em poder do sujei
to que pretende mover ação judicial porque acredita ter nos
mesmos os fundamentos suficientes, o provável réu de tal de
manda só poderá esperar sua citação para demonstrar, em sua
defesa, o equívoco do entendimento do autor.
Nesse caso, entretanto, o futuro e eventual autor da de
manda principal não será parte na ação autônoma de exibição,
que deverá ser promovida contra o terceiro em cujo poder se
encontra o documento ou a coisa. De qualquer forma, será
sempre possível, nesse caso, ao demandante requerer a intima
ção do terceiro — futuro e eventual autor da ação principal
— para que funcione como assistente atípico nesse processo,
com o único objetivo de que tenha, judicialmente, conheci
mento do teor da coisa ou do documento exibido. Trata-se da
atípica assistência provocada utilizada na produção antecipada
de provas, com suas devidas adaptações. Ainda que não se
entenda possível tal espécie de intervenção anômala, será sem
pre possível a remessa extrajudicial de cópia do documento ou
da coisa ao sujeito que não participou do processo, o que po
derá mostrar-se suficiente para desestimulá-lo a ingressar com
a demanda judicial.
No tocante à legitimação ativa, parece não surgirem ques
tões muito complexas; basta, para tanto, que o demandante seja
. titular do direito, material ou processual, à exibição. Nas hipó
280
teses em que haja uma ação principal na qual a prova produzi
da seja novamente produzida, agora sob a forma documental,
presume-se que o requerente da ação exibitória faça parte dela,
em regra no pólo ativo e, excepcionalmente, no pólo passivo.
Nesse ponto, entretanto, surge uma interessante característica
da exibição autônoma de coisa ou de documento. Apesar da
raridade com que vem a ocorrer na praxe forense, é absoluta
mente possível que um sujeito que não teve qualquer participa
ção na exibição autônoma tome conhecimento deste e, durante
o tempo em que a coisa ou o documento fique à disposição do
juízo, proceda a sua documentação, de modo a poder utilizá-la
em demanda totalmente alheia aos sujeitos que participaram do
processo no qual ocorreu a exibição.
É justamente em razão de tal circunstância que, diferente
mente do que ocorre na produção antecipada de prova oral e
pericial, um sujeito que não vá participar do processo principal
tenha legitimidade passiva para a demanda cautelar; basta, para
tanto, que seja o atual detentor da coisa ou do documento. Fala-
se, nessa hipótese, em demanda movida perante terceiro, sempre
com os olhos voltados à futura e eventual ação principal, porque,
na exibição, naturalmente ele será parte, ao compor o pólo
passivo. A expressão "exibição em face de terceiro" devido à
autonomia dessas duas demandas, deveria ficar reservada à
exibição incidental, na qual sua qualidade de terceiro em relação
ao processo já existente resta clara e indiscutível
Seja como for, em virtude da característica especial da
prova produzida por meio de exibição de coisa e de documen
to, que poderá gerar, regularmente, seus efeitos perante sujei
tos que não participaram do processo autônomo de exibição,
não resta dúvida de que o sujeito que não será réu na futura
e eventual demanda principal possa vir a ter legitimidade
passiva a participar do processo exibitório. O que importará
na fixação de sua legitimidade não é a relação que guarda
com a futura e eventual ação principal, mas com a coisa ou
com o documento que se pretende ver exibido em juízo. Se
estiver em poder do objeto da exibição, será legitimado pas
281
sivo a figurar na demanda que tenha como propósito sua
exibição em juízo324.
Mais uma vez, é interessante uma análise de direito com
parado com as diligencias preliminares previstas no ordenamen
to espanhol, o qual tem norma específica que atribui legitimi
dade passiva ao sujeito que tenha em seu poder a coisa a ser
exibida, de modo a permitir, de maneira bastante clara, que fi
gure no pólo passivo sujeito estranho à futura ação principal. A
melhor doutrina espanhola lembra, com acerto, que a fixação
de quem seja o sujeito que, efetivamente, tem em seu poder a
coisa ou o documento pode representar tarefa de extrema difi
culdade ao demandante, de forma que, para atribuir a legitimi
dade ao demandado, bastaria que, mesmo não tendo um poder
físico sobre a coisa ou o documento no momento da propositu
ra da demanda, disponha sobre eles de certo poder que possi
bilite sua exibição em juízo325.
282
à luz do procedimento de exibição incidental previsto pelo es
tatuto processual, no que couber.
A primeira questão que deve ser abordada diz respeito à
necessidade ou não do cumprimento do disposto no art. 801,
inc. III, que, ao exigir do demandante a indicação da "lide e de
seus fundamentos", obriga-o a indicar, na petição inicial caute
lar, o objeto do futuro e eventual processo principal, de modo a
permitir ao juiz a análise da necessária instrumentalidade típica
das cautelares. Para parcela da doutrina nacional, a necessidade
de cumprimento da exigência legal dependerá da natureza da
ação exibitória: se cautelar, deverá constar da petição inicial o
objeto da futura e eventual demanda principal, exigência dis
pensada na hipótese de exibição de natureza satisfativa326.
No tratamento da ação cautelar de produção antecipada
de provas, já houve a oportunidade de defender a tese de que o
art. 801, inc. III, do CPC é inaplicável às cautelares probatórias,
em lição que é plenamente aplicável à ação autônoma exibitó
ria. As razões lá expostas repetem-se para a espécie de ação
autônoma probatória aqui tratada, passando a ser irrelevante a
definição — para aqueles doutrinadores que o fazem — da na
tureza cautelar ou satisfativa da exibição327.
Uma especialidade digna de nota no tocante à inicial do
processo autônomo de exibição de coisa ou documento diz
respeito ao cumprimento do exposto no art. 356 do CPC, em
virtude do disposto no art. 845 do mesmo diploma legal, que
determina a aplicação das normas referentes à exibição inciden
te, naquilo que couber. Há três requisitos imprescindíveis no
dispositivo indicado:
283
cando os fatos que se relacionam com o documento ou a
coisa; III — as circunstâncias em que se funda o requeren
te para afirmar que o documento ou a coisa existe e se acha
em poder da parte contrária".
284
Por fim, as circunstâncias que levam o demandante a crer
que a coisa ou o documento existe e está em poder do deman
dado servirão para a análise do juiz, no primeiro caso, sobre a
possibilidade jurídica do pedido, enquanto, no segundo, sobre
a legitimidade passiva.
Excepcionalmente, assim como ocorre com a cautelar de
produção antecipada de provas, poderá ser concedida a liminar,
desde que presentes os requisitos exigidos pelo art. 804 do CPC.
Nessa hipótese, o juiz poderá determinar que, se necessário,
preste-se caução para garantir eventual prejuízo a ser suportado
pelo demandado na hipótese de mostrar-se, futuramente, inde
vida a exibição, também com amparo no mesmo dispositivo
legal329. Registre-se que a hipótese de concessão de liminar so
mente se justifica diante de hipótese de extrema urgência, o que
limita tal concessão às exibições denominadas pela doutrina
nacional como cautelares. Conforme já visto, nesse caso seria
possível a indicação de um advogado dativo, para que a prova
não seja produzida somente com a participação do patrono do
requerente. É interessante notar que, no direito espanhol, a
prestação de caução é condição sine qua non para a concessão
das diligencias preliminares; assim, é automaticamente exigida
pelo juiz independentemente do preenchimento de quaisquer
requisitos330.
285
do terceiro, levando em conta a situação processual de tais su
jeitos em virtude do processo já existente. Na hipótese de exi
bição autônoma, naturalmente não haverá sentido em referir-se
ao demandado como terceiro, porque, nessa ação judicial, ele
será sempre a parte contrária. Por servir a citação para integrar
o demandado ao processo, é natural a aplicação do art. 360 do
CPC, com a modificação no tocante ao prazo de resposta, para
o qual deverá ser aplicada a regra do art. 802 do diploma pro
cessual civil, de modo a conceder ao demandado o prazo de
cinco dias para sua resposta. A aplicação desse dispositivo legal,
inclusive, afasta qualquer possível dúvida a respeito da citação
do demandado e não de sua intimação.
Apesar de a redação do art. 802 do CPC apontar para o
prazo de cinco dias para o requerido apresentar contestação, já
foi devidamente asseverado o equívoco do legislador na utiliza
ção de uma espécie de resposta em vez de apontar o gênero.
Mais uma vez, torna-se desnecessário desenvolver o entendi
mento de quais espécies de respostas seriam cabíveis ao deman
dado na exibição autônoma, sobre o que se aplica aquilo que
já foi exposto quando se tratou das cautelares de antecipação
de prova. Há, entretanto, algumas especialidades dignas de nota
em virtude dos regramentos referentes à exibição incidental
previstos pelo ordenamento processual.
A segunda parte do art. 357 do CPC prevê a hipótese de o
demandado afirmar que não possuiu o documento ou a coisa,
hipótese em que caberá ao demandante o ônus de provar o
contrário, em aplicação pura e simples da regra do ônus da
prova prevista pelo art. 333 do Código Processual Civil. Apesar
da omissão da lei, é natural supor a possibilidade de o deman
dado também alegar, em sua defesa, que o documento ou a
coisa não existe, o que justificará materialmente sua não-exibi-
ção em juízo. Além dessas duas matérias, também poderá o
demandado levantar qualquer questão processual a respeito da
regularidade formal do processo e das condições da ação, hipó
tese que, se for admitida, levará à extinção do processo sem o
julgamento do mérito por meio de sentença terminativa, natu
ralmente apelável (art. 513, CPC). Além disso, poderá ainda
286
impugnar o mérito da demanda, ou seja, o direito no qual se
fundamenta a pretensão do requerente, ao apontar a inexistência
do fumus boni iuris ou do periculum in mora nas demandas re
conhecidamente cautelares e a inexistência de direito material
a ver exibida a coisa ou o documento na hipótese das chamadas
exibitórias satisfativas.
Além dessas matérias, poderá ainda o demandado alegar
qualquer das hipóteses previstas pelo art. 363 do CPC, sobre recu
sa em exibir, a que se aplica o art. 358 somente em dois de seus
incisos ("I — se o requerido tiver obrigação legal de exibir" e "lll
— se o documento, por seu conteúdo, for comum às partes"), sen
do inaplicável o inc. II ("se o requerido aludiu ao documento ou à
coisa, no processo, com o intuito de constituir prova"). A exclusão
mostra-se óbvia porque não existirá ainda processo para que o
requerido aluda à coisa ou ao documento para fazer prova.
287
mesmo fenômeno repete-se na exibição autônoma, independen
temente da natureza cautelar ou satisfativa que se atribua à
demanda judicial, porque, tanto em uma como em outra, não
haverá valoração a respeito da interligação do documento ou da
coisa exibida e dos fatos que se pretendiam — ainda que de
forma indireta — provar.
Diante de tal circunstância, a única medida possível a ser
adotada para efetivar a ordem do juiz no tocante à exibição de
coisa ou de documento é aquela tendente a, materialmente,
fazer com que a exibição efetivamente ocorra. Segundo o art.
362 do CPC, o juiz deverá determinar a busca e apreensão da
coisa ou documento, "requisitando, se necessário, força policial,
tudo sem prejuízo da responsabilidade por crime de desobedi
ência". Note-se que o legislador somente prevê medidas de
execução forçada por sub-rogação, espécie de satisfação que
despreza a vontade do "devedor", e a obtém até mesmo contra
sua resistência ao cumprimento da ordem judicial332.
Com o aprimoramento das formas de busca da satisfação
de direitos e a conseqüente adoção da execução indireta, fun
damentada em pressionar psicologicamente o devedor a cumprir
sua obrigação de fazer, de não fazer e de entregar coisa certa
(arts. 461 e 461 -A, CPC), não existe razão para sua não-adoção
na hipótese de recusa injustificada em exibir documentos ou
coisas em juízo. Como se trata o exibir de obrigação de fazer,
aplica-se, de forma indubitável, o disposto no art. 461, § 3Q, do
CPC, de modo que deve o juiz aplicar a multa — astreinte —
como forma de coerção psicológica para que a coisa ou o do
cumento sejam exibidos em juízo333.
332Francesco P. Luiso, Diritto processuale civile, cit., v. II, p. 120, informa que,
no direito italiano, o terceiro poderá sofrer uma sanção pecuniária na hipó
tese de não exibir a coisa ou documento em juízo.
333No mesmo sentido, no direito uruguaio, as lições de Santiago Garderes,
Fernando Gomes, Maria Eugenia Gonzáles, Gabriel Valentin, Código Gene
ral del Proceso de la República Oriental del Uruguay comentado, con
doctrina y jurisprudência. 9. ed. Montevideo: Fundación de Cultura Unive-
sitaria, 2005, p. 506.
288
Mais uma vez, cabe uma observação de direito comparado
com o instituto das diligencias preliminares do direito espanhol.
Há, no art. 261 da LEC, disposições concernentes à negativa de
levar a cabo a diligência preliminar, com conseqüências espe
cíficas para cada uma das hipóteses; assim, podem-se apontar
duas conseqüências básicas: adotar medidas coercitivas para
que as diligencias preliminares sejam efetivamente realizadas,
conseqüência única adotada pelo direito nacional, e considerar
verdadeiros os fatos que se pretendiam provar, de modo a vin
cular o juiz da ação principal na qual essa prova seja produzi
da, fenômeno estranho e inaplicável ao direito brasileiro334.
No direito chileno, que tem previsão do instituto das me
didas prejudiciais, que faz as vezes das diligencias preliminares
previstas na legislação espanhola, a sanção processual para o
caso de descumprimento da exibição de coisa ou de documen
to em juízo será a aplicação de multa que não exceda dois sa
lários mínimos ou o prazo máximo de dois meses (art. 276, CPC).
Essa multa, entretanto, difere da astreinte adotada pelo direito
brasileiro, porque tem natureza de sanção processual, não de
medida de coerção psicológica para que o demandado cumpra
a obrigação de exibir. Há outra interessante sanção processual
ao impedir que a parte que tinha em seu poder a coisa ou o
documento e não a apresentou em juízo a utilize no processo
principal, à exceção se a outra parte fundamentar a defesa dos
seus interesses na coisa ou no documento335.
289
Na Argentina também se encontra a figura da multa, com
seus limites expressamente previstos em lei, como forma de
sanção processual, a exemplo do que ocorre no direito chileno.
Soma-se a isso, que, na verdade, não é eficaz por si só para que
o documento ou a coisa sejam efetivamente exibidos em juízo,
o seqüestro da coisa ou do documento objeto da pretensão do
demandante, medida que deve ser entendida como a busca e
apreensão prevista no direito brasileiro, já que aqui o seqüestro
é forma constritiva de bens sob a forma de cautelar nominada
(art. 329, CPCN).
4.6. Sentença
A sentença a ser proferida no processo autônomo de exibi
ção de coisa ou de documento poderá ser de duas espécies:
terminativa (art. 267, CPC) e definitiva (art. 269, CPC). O mo
mento para a prolação dessas duas espécies de sentença poderá
ser antes da exibição ou depois dela. Quando for proferida an
teriormente à sentença, poderá ser terminativa, nas hipóteses
previstas pelo art. 267 do CPC, e definitiva, na hipótese de o juiz
entender que o direito alegado pelo demandante à exibição não
se encontra presente no caso concreto.
No caso de ser admitida a demanda e determinada a exi
bição, parece já não mais se justificar uma sentença terminativa,
mesmo porque, uma vez exibida a coisa ou o documento em
juízo, o objeto da demanda já terá se exaurido, a prova já terá
sido produzida, de modo que é absolutamente paradoxal a ex
tinção terminativa nesse momento processual. Na hipótese de
extinção do processo sem julgamento de mérito após a produção
da prova, pouco importará referida decisão, porque, uma vez
produzida a prova, não será possível voltar no tempo; assim, é
também contraproducente desprezar a priori a prova produzida
em razão de irregularidade formal do processo. Tais irregulari
dades devem ser levantadas antes da exibição, gerando a extin
ção do processo, porque, se for reconhecida após esse momen
to, será tarde demais.
290'
Uma vez exibida a coisa ou o documento em juízo, abso
lutamente nada mais haverá a fazer; nesse caso, deve o juiz
simplesmente declarar extinto o procedimento e pôr fim ao
processo, sem nada decidir a respeito do valor probatório do
documento ou da coisa exibida. Mais uma vez, como ampla
mente explorado no capítulo referente à produção antecipada
de prova, a sentença será meramente homotogatória da prova,
conforme entendimento uníssono da doutrina pátria. As mesmas
ponderações feitas naquele processo devem ser repetidas para
a cautelar exibitória autônoma.
291
1. IN TRO D UÇÃO
É possível encontrar, no ordenamento processual, algumas
palavras que têm significados diversos, conforme a sua utilização,
como ocorre com os termos "embargos" e "memoriais". Tal si
tuação volta a verificar-se, segundo a clássica lição de lopes da
Costa336, com o vocábulo "justificação", que tem, no campo do
direito processual, dois significados diferentes: a) ato de tornar
plausível um fato; e b) processo autônomo que tenha como
objeto a colheita de prova testemunhai.
A primeira hipótese diz respeito à justificação que se de
senvolve dentro de um processo já instaurado, com o objetivo
de produzir prova oral de um fato já alegado pelo autor ou pelo
réu e, por tal razão, componente do objeto processual A justi
ficação, nesse sentido, desenvolve-se para a formação do con
vencimento do juiz a respeito da situação fática apta a embasar
a concessão liminar de uma tutela de urgência, seja de natureza
conservativa — audiência de justificação da cautelar (art. 804,
CPC) —, seja de natureza satisfativa — audiência de justificação
no processo possessório (art. 928, CPC) e processos que tenham
como objeto a tutela inibitória (art. 461, § 3Q, CPC).
Interessante notar que a audiência de justificação terá sem
pre o mesmo objetivo de convencer, sumariamente, o juiz das
razões expostas pelo demandante para a obtenção liminar de
tutela de urgência; porém o procedimento poderá ser diferente,
de acordo com a demanda judicial em que a audiência ocorre.
Assim, por exemplo, a audiência de justificação a realizar-se no
processo cautelar será sempre inaudita altera parte, sem o co
nhecimento e muito menos a participação do demandado, en
293
Evidentemente, não será no sentido anteriormente apresen
tado que se desenvolverá a presente análise do termo "justifica
ção", mas no sentido de instituto consubstanciado em um pro
cesso autônomo com o objetivo de produção de prova oral, que,
conforme será visto com maior profundidade no devido tempo,
poderá ou não ser utilizado em outro processo judicial, conven
cionalmente chamado de processo principal. O Código de
Processo Civil disciplina a "ação de justificação" nos arts. 861
a 866, de modo a incluí-la entre as cautelares típicas ou nomi-
nadas, embora seja corrente na doutrina o entendimento de que
a justificação não tem qualquer natureza cautelar.
Segundo a previsão do art. 861 do CPC, quem "pretender
justificar a existência de algum fato ou relação jurídica, seja para
simples documento sem caráter contencioso, seja para servir de
prova em processo regular, exporá, em petição circunstanciada,
a sua intenção". Apesar de a redação do dispositivo legal mere
cer alguns reparos, a norma legal é suficientemente clara ao
apontar que o processo de justificação presta-se à produção de
prova testemunhai no sentido de comprovar um fato ou uma
relação jurídica que poderá ou não ter função probatória em
outra demanda judicial. É nesse âmbito que será analisado o
processo de justificação.
294
Em inevitável comparação com a prova testemunhai pro
duzida em sede de produção antecipada de provas, afirma-se
que a diferença substancial entre essas duas demandas é que,
na primeira, é necessário que o requerente comprove existir
perigo de que, se a prova não for produzida imediatamente, não
poderá ser produzida posteriormente, o que não ocorre com a
prova testemunhai a ser produzida por meio do processo de
justificação340. A conclusão, portanto, é de que, no primeiro caso,
a prova testemunhai será produzida por meio de processo subs
tancialmente cautelar, enquanto, no segundo, será produzida
por processo cautelar tão-somente no seu aspecto formal. Isso
significa dizer que, no primeiro caso, a demanda tem natureza
e procedimento cautelares, enquanto, no segundo, somente o
procedimento será cautelar.
Com essas simples constatações, pacíficas em sede doutri
nária, percebe-se que o ordenamento processual brasileiro já
conta com uma ação autônoma probatória, pela qual, a par de
qualquer cautelaridade representada pelo perigo de a prova não
poder ser produzida posteriormente, será possível a simples
produção de uma prova, de natureza oral. O objeto do proces
so de justificação será, portanto, a mera produção de uma prova,
sem que por trás disso exista qualquer espécie de direito subs
tancial de cautela. No caso da justificação, o direito substancial
é o da produção da prova oral de um fato ou de uma relação
jurídica, no que, inclusive, é mais ampla que a produção ante
cipada de provas, restrita a prova de fatos.
Alguns doutrinadores, amparados na indevida crítica ao
nome "produção antecipada de provas", por acreditar que, nes
sa espécie de processo cautelar, a prova não é produzida, mas
295
somente assegurada para produção posterior, visualizam mais
uma diferença entre esse processo e a justificação. Nas palavras
de Ovídio A. Baptista da Silva341, "enquanto na asseguração de
prova, adperpetuam reimemoriam, a prova ainda não é produ
zida, mas simplesmente assegurada para depois produzir-se na
causa a que ela se destine, na ação de justificação o que se
pretende é precisamente constituir a prova, formá-la desde logo,
para eventual utilização futura"342. Esse entendimento, entretan
to, não parece ser o mais correto, o que demonstra, mais uma
vez, serem infundadas as críticas ao entendimento já defendido
anteriormente, de que, na produção antecipada, a prova é efe
tivamente produzida e não meramente assegurada para produção
posterior.
Tomem-se os seguintes exemplos. Uma testemunha é ou
vida em um processo cautelar de produção antecipada de prova
em razão de sua idade avançada, o juiz e ambas as partes fazem
as perguntas, que são respondidas por ela, tudo devidamente
registrado na ata de audiência. Outra testemunha, na puberdade,
é ouvida em um processo de justificação, o juiz e ambas as
partes fazem as perguntas, que são respondidas por ela, tudo
devidamente registrado na ata de audiência. Ressalte-se que a
296
identidade de redação entre as duas primeiras frases do presen
te parágrafo é proposital, justamente para indicar que não exis
te qualquer diferença no ato praticado nesses dois processos,
ainda que no primeiro exista algum perigo de a prova não poder
ser produzida posteriormente, o que não ocorre no segundo.
Substancialmente, há duas pessoas inquiridas sob o crivo
do contraditório e perante um juiz em um processo autônomo,
que tem como único e exclusivo efeito a produção de tal prova.
Se em um desses processos o objetivo mediato é a utilização em
processo futuro, enquanto, no outro, essa utilização é somente
eventual, nenhuma conseqüência é gerada no tocante à efetiva
produção da prova. Ademais, será sempre possível uma inversão
nas expectativas iniciais, sendo perfeitamente aceitável uma
hipótese em que a prova produzida na cautelar de produção
antecipada de prova não seja utilizada em qualquer outro pro
cesso, enquanto aquela produzida em um processo de justifica
ção venha a servir de prova em uma futura demanda. Seria,
nesse caso, possível afirmar que, na primeira hipótese, a prova
foi produzida e, na segunda, somente assegurada, para ser pro
duzida no processo principal? Evidente que não.
Segundo a doutrina pátria, o elemento diferenciador das
duas demandas residirá justamente na ausência da cautelarida
de da justificação, enquanto na ação cautelar de produção an
tecipada de provas será necessária a pesquisa, pelo juiz, da
presença dos tradicionais requisitos dessa espécie de demanda
judicial — fumus boni iuris e periculum in mora sem os quais
a pretensão do requerente será rechaçada. É possível, portanto,
afirmar que haverá um direito substancial de cautela a ser deba
tido na produção antecipada de provas, justamente o direito de
preservar a produção de uma prova que corre perigo de não
poder ser produzida em seu momento adequado — fase proba
tória do processo de conhecimento. Na ação de justificação,
não existe tal cautelaridade; assim, é inadequado falarem direi
to substancial de preservação de prova, restando o direito ma
terial da parte à produção da prova. Poder-se-á, diante de tal
constatação, afirmar que o direito material que compõe o ob
jeto desses processos é distinto, mas essa constatação não é
297
suficiente para diferenciar seus efeitos, quais sejam, a produção
da prova, mesmo porque a cautelaridade é matéria a ser debatida
antes da efetiva produção; por isso, não envolve seu resultado.
Essa proximidade entre as duas demandas, com a identida
de de seus efeitos — produção de uma prova —, é suficiente para
a aplicação do princípio da fungibilidade, no mais, aplicável ao
processo cautelar — embora a justificação, tecnicamente, não se
trate de cautelar. Ao ser requerida a prova testemunhai de forma
autônoma por meio de produção antecipada de prova e ao en
tender o juiz não existirem, no caso concreto, os requisitos típicos
das cautelares em geral, com especial ênfase ao periculum in
mora, este poderá receber a inicial como se fosse de justificação
e fazer os devidos reparos procedimentais, mas sem deixar de
produzir a prova pretendida. Como resultado da aplicação do
princípio da fungibilidade, a prova será produzida, ainda que não
exista qualquer perigo em sua produção posterior.
Uma análise mais radical entre as duas demandas é capaz
até mesmo de levar à conclusão da plena inutilidade do proces
so de produção antecipada de provas de natureza testemunhai,
procedimento que é totalmente absorvido, por vontade do de
mandante, pelo processo de justificação. Realmente, não pare
ce muito inteligente o ingresso de processo que exige a compro
vação de perigo de a prova não mais poder ser produzida se for
possível o ingresso de outro em que tal exigência não existe.
Somente a pouca familiaridade do operador do direito com o
processo de justificação explica sua tão rara utilização no caso
concreto em comparação com a produção antecipada de provas,
processo de jurisdição contenciosa, no qual os requisitos a ser
preenchidos pelo requerente são muito mais robustos que no
processo de justificação343.
345Já havia atentado para tal circunstância, ainda no Código de Processo Civil
de 1939, Alfredo de Araújo Lopes da Costa, Direito processual civil brasilei
ro. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. III, p. 256: "Rara que a justificação?
Responde a lei: para prova de um fato a fazer valer em ação futura (art. 735).
E o depoimento ad perpetuam memoriam? Rara a mesma coisa: provar um
298
3. JU RISD IÇ Ã O VOLUNTÁRIA
A doutrina nacional que tratou do tema da jurisdição vo
luntária inclui, entre seus procedimentos, a justificação — além
dos protestos, das notificações e das interpelações —, apesar da
opção do legislador de incluí-la entre os processos cautelares
típicos. Conforme visto anteriormente, a doutrina, em primeiro
plano, afasta da ação de justificação qualquer natureza cautelar,
bem como do campo da jurisdição contenciosa. Sua natureza
de jurisdição voluntária, entretanto, nem sempre é baseada em
argumentos adequados, de modo que há certa incongruência
doutrinária nas premissas criadas para concluir sobre tal natu
reza jurídica do processo de justificação.
José Maria Rosa Tesheiner*44, em obra específica sobre a
jurisdição voluntária, afirma que tal natureza da justificação
deriva da inexistência de outro processo, chamado de principal,
como ocorre na produção antecipada de provas. Não parece
que a existência ou não de processo principal seja fenômeno
apto a fazer com que processo autônomo de produção de prova
testemunhai, chamado de justificação, possa ser considerado de
jurisdição voluntária; basta, para embasar tal conclusão, a exis
tência de processos cautelares probatórios antecedentes que,
por alguma razão no caso concreto — e são tantas —, não pro
porcionam qualquer outro processo. Nas hipóteses de exibição
de documento e de coisa, tal circunstância é ainda mais freqüen
te na praxe forense.
Também é criticável a doutrina que defende a natureza não
contenciosa da ação de justificação com base na ausência de
fato a ser aproveitado em demanda a propor (arts. 675 e 676). Tício é credor
de Mévio. O título é mútuo, verbal. A obrigação é a prazo. Deve pedir a
inquirição ou requerer a justificação? Naquela, haverá que demonstrar a
plausibilidade de um risco. Aqui, estará dispensado daquela exigência.
Quem, sem transtorno do senso, hesitará entre os dois caminhos? No abs
truso sistema do Código, a probatio ad perpetuam memoriam do art. 678,
n. VI, é uma inutilidade, em face da justificação, do art. 735".
344Jurisdição voluntária, cit., p. 155.
299
cauteiaridade, considerando que a dispensa dos requisitos do
fumus boni iuris e do periculum in mora já seria suficiente para
afastar tal demanda dos processos contenciosos e abrigá-la na
jurisdição voluntária345. O afastamento de qualquer espécie de
cauteiaridade na justificação, ponto pacífico em sede doutriná
ria que toma como base de análise o periculum in mora como
perigo de a prova não mais poder ser produzida, não é suficien
te para afastá-la do âmbito da jurisdição contenciosa; basta, para
tanto, lembrar que, em algumas chamadas cautelares de exibição
de coisa ou de documento, não existe qualquer cauteiaridade,
embora sejam processos de jurisdição contenciosa.
Há ainda corrente doutrinária que busca, em características
procedimentais da ação de justificação, o fundamento para
classificá-la como sendo de jurisdição voluntária. Atribui-se
grande carga de responsabilidade ao art. 865 do CPC, que afir
ma não caber defesa ou recurso no processo de justificação,
traços procedimentais absolutamente incompatíveis com prin
cípios processuais básicos que regem os processos de jurisdição
contenciosa346. Apesar de essas características serem analisadas
com a devida profundidade no seu devido momento, não pare
ce que a interpretação literal do dispositivo legal antes mencio
nado seja a mais adequada, por ser inviável imaginar um pro
cedimento de justificação sem qualquer espécie de resposta
defensiva à disposição do réu — ainda que seja para alegar
matérias de ordem pública — ou ainda sem a possibilidade de
o autor recorrer, por exemplo, de indevida decisão de indeferi
mento da petição inicial. O desenvolvimento de tais idéias em
345Pãrece ser esse o entendimento de Luiz Orione Neto, Processo cautelar/ cit.,
p. 388.
346A mencionar o art. 865 do CPC como responsável pela inclusão do proces
so de justificação no âmbito da jurisdição voluntária, as lições de Luiz Fux.
Curso de direito processual civil, cit., p. 1.635; Humberto Theodoro Jr. Pro
cesso cautelar, cit., p. 322; Raulo Afonso Garrido de Raula. Código de Pro
cesso Civil interpiretado. Antonio Carlos-Marcato (Coord.). São Paulo: Atlas,
2004, p. 2.319.
300
I
301
de, matéria ligada às condições de exercer validamente o direi
to de ação — interesse de agir. O pedido de produzir a prova
não necessita estar ancorado em qualquer direito material; bas
ta a mera vontade de o requerente fazer prova útil e possível de
um fato ou de uma relação jurídica processual.
Nas corretas palavras de Leonardo Greco348,
302
motivos que levam o requerente a pedir a produção probatória.
Pouco importa se pretende utilizá-la para embasar pedido no
âmbito administrativo, fundamentar pretensão processual, sim
plesmente tomar conhecimento do fato para afastar, ainda que
não definitivamente, alguma crise de incerteza, preparar-se em
melhores termos para a realização de uma transação etc. Nada
disso importa ao juiz no processo de justificação; basta o con
trole que exercerá na produção probatória, o que é suficiente
para colocá-la no âmbito da jurisdição voluntária.
303
processo349. Trata-se, portanto, de mera faculdade do requeren
te como forma de esclarecer os fatos que pretende sejam ob
jeto da justificação.
Registre-se que a atual redação do art. 863 do CPC é bas
tante superior à do art. 736 do Código de Processo Civil de 1939,
que se referia à possibilidade de o requerente juntar títulos e
documentos que pudessem comprovar a justificação. A modifi
cação legislativa, com o atual diploma processual, demonstra,
de maneira manifesta, que os documentos que a lei faculta ao
requerente juntar ao processo nada têm que ver com a "com
provação da justificação" ou mesmo dos fatos que se pretende
justificar; servem tão-somente como substrato fático à prova a
ser produzida.
Ao superar a questão da juntada de documentos como
forma exclusiva de fixar parâmetros para a produção da prova
oral, resta evidente que a justificação jamais poderá ter como
objeto exclusivamente documentos. Nesse caso, ou o documen
to já está em poder do requerente, o que demonstraria a mais
absoluta inutilidade de um procedimento em que este apresen
tasse tal documento em juízo sem que sobre ele pudesse ser
feita qualquer vaíoração350, ou o documento está em poder de
304
terceiro, hipótese em que o interessado deverá valer-se do pro
cesso autônomo de exibição de coisa ou documento, indepen
dentemente de sua natureza cautelar.
Além disso, devido à redação bastante clara do art. 863 do
CPC, representativa de tradição em nosso direito desde a Con
solidação das Leis do Processo Civil de Ribas, passando pelos
códigos estaduais e de 1939, a doutrina majoritária não admite
a produção de prova por qualquer outro meio que não seja o
testemunhai351. Assim, no âmbito da justificação, estariam ex
cluídas provas periciais, depoimento pessoal, bem como a ins
peção judicial. Apesar de ser tema pacífico na doutrina, que se
fundamenta na clareza da redação do artigo legal anteriormen
te mencionado, é possível, de lege ferenda, a ampliação do
objeto da justificação, ou mesmo a criação de outra espécie de
ação probatória autônoma para a produção da prova pericial,
tema que será desenvolvido no seu devido momento.
Com relação ao depoimento pessoal, embora seja unânime,
na doutrina, o entendimento de seu descabimento no processo
de justificação, algumas ponderações devem ser feitas. O art.
861 do CPC aponta para a falta de necessidade da existência de
um processo principal em que a prova testemunhai venha a ser
utilizada; bem por isso, é dispensável a demonstração da neces
sária utilidade dessa prova colhida em um futuro processo judi
cial — e não regular, como consta do art. 861 do CPC. O de
poimento pessoal é conceituado pela melhor doutrina como a
oitiva da parte contrária, o que não poderia levar à conclusão
305
de sua não-aplicabilidade ao processo autônomo de justificação,
em decorrência de sua absoluta autonomia.
Ocorre, entretanto, que o art. 862 do CPC indica a neces
sidade de citação dos interessados, que deverão, por conseqü
ência lógica, constar do pólo passivo da demanda de justificação.
Conforme será analisado em seu devido tempo, esses interessa
dos serão os sujeitos contra quem o requerente pretender, ainda
que eventualmente, opor a prova produzida, seja em um proce
dimento administrativo, seja em um judicial. Dessa forma, é
possível antever que aquele que figura como interessado no
processo de justificação, na eventualidade de vir a ser proposta
alguma demanda judicial em que se pretenda utilizar tal prova,
figurará em seu pólo passivo. Nesse sentido, o interessado, cita
do como tal no processo de justificação, não poderia ser o su
jeito a ser ouvido em audiência nesse processo.
Já foi devidamente interpretado o art. 846 do CPC, que, ao
mencionar "o interrogatório da parte", na verdade pretende dizer
"depoimento pessoal da parte". Dessa forma, com as especiali
dades procedimentais já analisadas em capítulo específico sobre
o tema, é indiscutível a possibilidade de produzir-se um depoi
mento pessoal da parte contrária por meio do processo autôno
mo de produção antecipada de provas. O art. 863 do CPC
afirma, literalmente, que "a justificação consistirá na inquirição
de testemunhas", o que poderá levar o leitor mais apressado a
concluir não ser admitido, na justificação autônoma, o depoi
mento pessoal da parte.
Esse posicionamento, derivado de uma interpretação literal
e restritiva da forma de produção da prova testemunhai no pro
cesso de justificação, levará à conclusão de que o depoimento
pessoal só poderá ser obtido por produção antecipada de prova
e de que exige, para tanto, a existência do periculum in mora.
A tomar o conceito clássico da doutrina a respeito desse requi
sito no tocante às cautelares probatórias, a conclusão lógica e
necessária seria de que, sem perigo de não poder ser produzido
em seu momento adequado, o depoimento pessoal não seria
admitido como objeto de ação probatória autônoma. O enten
dimento, entretanto, não parece ser o mais acertado.
306
Não existe motivo plausível para afastar-se a possibilidade
de depoimento pessoal na justificação avulsa, porque, se o ob
jetivo de tal demanda é o esclarecimento de um fato, nada
melhor que ouvir em juízo justamente o sujeito que dele parti
cipou e que poderá constar do pólo passivo dessa demanda,
mesmo como mero "interessado". Não se defende aqui a possi
bilidade de confissão, o que poderá tornar a produção da prova
bastante difícil, conforme já foi explorado quando se tratou do
aspecto no capítulo referente à produção antecipada de provas,
mas não se pode, a priori, descartar a possibilidade de oitiva da
parte contrária na justificação avulsa.
Esse entendimento, inclusive, ampara-se na identidade
objetiva das duas demandas; assim, não há qualquer sentido em
admitir a prova testemunhai sem que ocorra o periculum in mora
e não fazer o mesmo com a outra espécie de prova oral, que é
o depoimento pessoal A natureza oral de ambos os meios de
prova é mais do que suficiente para permitir tal conclusão. Seria
no mínimo ilógico permitir o esclarecimento de fatos por meio
de testemunhas e impedir a oitiva da parte contrária, ainda que
não exista qualquer urgência na produção da prova.
Dessa forma, a conclusão que parece mais acertada é a de
que a justificação será o meio ideal para a produção da prova
oral, da testemunhai e do depoimento pessoal da parte contrária;
não tem utilidade, nesse tocante, o processo de produção ante
cipada de provas, mais exigente a respeito de requisitos a serem
preenchidos.
Cumpre ainda registrar que a prova oral — no mais das
vezes testemunhai — produzida no processo de justificação não
se transforma em prova documental, de modo a perder sua na
tureza oral, interpretação possível do art. 861 do CPC ao leitor
menos atento. A prova que nasce oral manterá essa natureza
para sempre, quer seja utilizada em procedimento administrati
vo, quer em processo judicial posterior. É natural, entretanto,
que, uma vez colhida a prova oral, as perguntas, reperguntas e
respostas sejam documentadas no termo de audiência. Existirá,
assim, um documento que comprovará a existência daquela
307
prova testemunhai, o que não é suficiente, entretanto, para mo
dificar a natureza primária da prova produzida352.
Trata-se da diferença entre prova documental e prova do
cumentada; no primeiro caso, a prova tem natureza e forma de
documento, enquanto, no segundo, a prova tem uma natureza
qualquer que não documental, mas será representada pela forma
documental, o que, no mais das vezes, ocorre com toda e qual
quer prova produzida judicialmente. Em razão da preferência
de nosso ordenamento processual pela escrituração dos atos
processuais, as provas de todas as naturezas — orais, periciais,
inspeção judicial — serão documentadas em atas, laudos e ter
mos, de forma a tornarem-se provas documentadas, mas jamais
provas documentais353.
Já se teve oportunidade de apontar para a natureza binária
da prova produzida antecipadamente em processo autônomo,
que mantém sua natureza original, mas, quando utilizada em
outra demanda judicial, ingressa no processo na forma de do
cumento. Afirmou-se que justamente essa peculiar característica
tornava tais provas atípicas, porque mantém seu conteúdo ori
ginário — oral ou pericial —, mas, por passarem a existir no
outro processo com a juntada de um documento — ata de au
diência ou laudo pericial —, tomam a forma de um documento.
Assim, por apresentar conteúdo de prova oral ou pericial e forma
de documento, trata-se de prova atípica, certamente. Na justifi
cação, ocorre exatamente o mesmo fenômeno, ainda que a
prova possa não vir a ser utilizada em nenhum outro processo.
O requerente terá sempre um documento a comprovar que uma
prova oral foi devidamente colhida em processo judicial.
Essa constatação tem importantes efeitos práticos, ao não
admitir que a justificação seja realizada para a prova de fatos
que somente poderão ser comprovados mediante prova docu
308
mental. Poder-se-ia imaginar que a obtenção de tal prova por
meio de justificação permitiria a obtenção de um documento,
de modo a ser suficiente para a demonstração do fato em outras
demandas judiciais, o que, evidentemente, não ocorre. Essa si
tuação, aliás, é própria de extinção da justificação sem a produ
ção da prova em decorrência de sua manifesta inutilidade, já
que a prova produzida manteria sua natureza oral, de forma a
não ser apta a provar o fato que se pretendia com tal produção.
É o que ocorre, por exemplo, no depósito voluntário, que só
poderá ser provado por prova escrita (art. 646, CC).
309
ário só deverá prestar tutela jurisdicional que tenha alguma es
pécie de utilidade. Ainda que seja correto afirmar que a utilida
de da justificação não estará ligada à utilização da prova em
processo judicial futuro, é preciso identificar alguma utilidade,
mesmo que exclusivamente prática, para o Poder Judiciário
mover toda sua estrutura no objetivo de produzir a prova.
Além disso, caso se admita um procedimento probatório
autônomo sem qualquer utilidade prática, a justificação avulsa
estaria, de forma significativa, a colaborar para o abarrotamento
de nossa já saturada Justiça, sem qualquer ganho prático às
partes envolvidas, em especial o requerente. Seria admitir o
aumento do número de processos sem uma contrapartida, que
é a efetiva entrega de prestação jurisdicional, o que, em última
e sistêmica análise, serviria tão-somente para prejudicar ainda
mais a já questionável prestação jurisdicional concedida atual
mente pelo Poder Judiciário de nosso país354.
Em aplicação da teoria eclética da ação, recepcionada
expressamente por nosso diploma processual — a par de algumas
críticas doutrinárias —, a exigência de que a prova a ser produ
zida tenha alguma espécie de serventia ao requerente poderá
ser fundada na condição da ação conhecida como "interesse de
agir", de modo que não se admite a prestação jurisdicional inú
til O grande problema a ser enfrentado é, justamente, saber a
amplitude do interesse de agir na ação de justificação, tarefa que
se torna ainda mais difícil a partir do momento em que se reco
nhece não estar o interesse do requerente condicionado à utili
zação da prova em processo judicial ou em procedimento ad
ministrativo, bastando, para que possa exigir a produção de
prova, o desejo de tomar conhecimento de fato por meio de
oitiva de testemunha.
310
É importante deixar consignado que, apesar de não ser
necessária ao requerente qualquer demonstração de vontade de
utilizar-se da prova produzida na justificação em outro processo
judicial ou mesmo em procedimento administrativo, não há
como negar que, muitas vezes, a justificação avulsa tem justa
mente esse objetivo. Uma vez demonstrado pelo requerente na
petição inicial que o objetivo perseguido com a justificação é a
produção de prova para ser utilizada posteriormente na defesa
de algum interesse, seja no campo processual, seja no adminis
trativo, não se poderá negar a utilidade de tal justificação. Tal
circunstância não é imprescindível, mas, uma vez presente no
caso concreto, demonstra, à saciedade, o interesse de agir do
requerente.
Não é por outra razão que os tradicionais exemplos lem
brados pela doutrina que enfrentou o tema da justificação avul
sa na demonstração de interesse de agir do requerente dizem
respeito à utilização futura da prova produzida em procedimen
to administrativo ou judicial. Exemplo clássico de utilização da
prova obtida em justificação em procedimento administrativo
diz respeito ao pedido de aposentadoria por tempo de serviço,
hipótese em que o requerente pretenderá provar o tempo neces
sário por meio de oitiva de outros trabalhadores ou mesmo
empregadores que possa atestá-lo. Como utilização eventual em
processo judicial, é sempre lembrada a demanda de justificação
utilizada para comprovar união estável de companheiro falecido,
o que poderá ser utilizado em pedido judicial da companheira
na sucessão do de cujus. Os exemplos, nesses casos, seriam
infindáveis; basta lembrar os mais tradicionais.
A questão cresce em importância nas hipóteses em que o
requerente não demonstra, ainda que eventualmente, interesse
na utilização da prova produzida em processo judiciai ou em
procedimento administrativo, parecendo satisfazer-se comple
tamente com o mero conhecimento do fato. A única barreira à
justificação avulsa encontra-se na inutilidade da prova a ser
produzida, como se demonstra nas oportunidades em que o
requerente pretende a produção de prova testemunhai de fato
ou relação jurídica que juridicamente não podem ser provados
por essa maneira, seja por exigir outro meio de prova, em regra
o documental, seja por exigir um instrumento público como
elemento constitutivo do ato jurídico que se pretende provar.
Será também inútil a justificação no tocante a fatos que não
dependem de prova, mais especificamente os fatos notórios e
em cujo favor milite presunção de existência ou veracidade (art.
334, CPC).
Sendo possível ao direito material incluir como elemento
constitutivo de determinado ato jurídico um instrumento públi
co específico, parece que a produção de prova meramente
testemunhai para demonstrar a ocorrência desse ato, apesar de
faticamente possível, será inútil Afirma-se ser possível a prova
porque o ato pode até mesmo ter ocorrido no plano fático, mas,
se tiver ocorrido em desrespeito à forma legal que exigia sua
documentação por meio de instrumento público, para o mundo
jurídico tal ato simplesmente inexiste. Poder-se-ia até mesmo
falar que, nesse caso, o ato existe, mas é ineficaz por descum-
primento da forma exigida em lei; por isso a possibilidade prá
tica de demonstrá-lo por meio de testemunhas, mesmo que não
possa tal ato gerar qualquer efeito jurídico355. Ainda que esse
entendimento não pareça ser o mais acertado, preferindo-se
entender pela inexistência jurídica do ato, por qualquer ângulo
de análise, a justificação será inútil, por não ser capaz de gerar
qualquer proveito prático ao requerente.
Assim, faltará ao requerente interesse de agir na justificação
sempre que a lei de direito material exigir, como próprio ele
mento constitutivo do ato jurídico, um instrumento público es
pecífico, como pretender provar um casamento com testemu
nhas, ou ainda a propriedade de um imóvel; nesse caso, poderia,
312
quando muito, provar o tempo de posse que o tornaria proprie
tário por usucapião, o que, entretanto, ainda não seria prova de
sua propriedade em decorrência da não-vinculação do futuro
juiz da ação de usucapião quanto à prova anteriormente produ
zida. Cumpre registrar, nesse tocante, previsões da Lei de Regis
tros Públicos que tutelam justificações específicas que têm como
condão justamente substituir o instrumento público considerado
da essência do ato jurídico, como ocorre com a justificação para
assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inun
dação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quan
do estiver provada a sua presença no local do desastre e não for
possível encontrar o cadáver para exame (art. 88), ou ainda no
caso de desaparecimento em campanha quando provada a im
possibilidade do registro do óbito (art. 88, parágrafo único).
Nesses casos, entretanto, trata-se de procedimento administra
tivo estranho ao objeto da presente análise, que não se confun
de com a ação de justificação ora comentada356.
Também faltará interesse de agir ao requerente de uma
justificação avulsa quando o fato a ser provado somente puder,
por expressa previsão legai, ser provado por outro meio, em
regra o documental. Assim, se a justificação tiver como objeto
a comprovação de depósito voluntário, faltará interesse de agir
ao requerente em virtude de expressa exigência legal de que
tal relação jurídica só possa ser provada por escrito (art. 646,
CPC). Alguns doutrinadores mencionam também como exem
plo o negócio jurídico com valor acima de dez salários míní-
mos, em decorrência da previsão contida no art. 227 do CC,
que exige, para sua demonstração, prova que não seja exclu
sivamente testemunhai357. Essa situação, entretanto, merece
análise mais retida.
313
O art. 402 do CPC, ao comentar o artigo antecedente (art.
401, CPC), cuja diferença em relação ao art. 227 do CC é so
mente a restrição a contrato com valor superior a dez salários
mínimos, enquanto o dispositivo de direito material refere-se a
negócio jurídico, flexibiliza a rigidez da proibição, ao permitir
que a prova meramente testemunhai seja apta a convencer o juiz
da existência do negócio jurídico de qualquer valor, quando:
314
r
315
"o requerente não está obrigado a afirmar ou demonstrar a
necessidade de produção da prova para dela extrair em seu
benefício algum efeito jurídico imediato. Mas ninguém pode
usar de um procedimento judicial para fins ilícitos ou para
molestar injustamente a outrem. Por isso, o artigo 861 exi
ge que o requerente exponha a sua intenção em petição
circunstanciada. Embora o requerente não tenha o ônus de
demonstrar desde logo se a justificação pretendida tem
alguma finalidade prática ou jurídica, o interesse de agir
corresponde à não manifesta ilicitude da prova constituen-
da e à hipotética possibilidade, ainda que remota, de que
ela possa ter alguma utilidade lícita para o requerente.
Ninguém tem o direito de imiscuir-se na vida privada alheia,
sem demonstrar interesse próprio, ainda que meramente
hipotético ou potencial, em documentar fatos da vida des
sa pessoa".
6. COMPETÊNCIA
Existe na doutrina certa divergência a respeito da compe
tência para a demanda de justificação, havendo, inclusive, uma
súmula do Superior Tribunal de Justiça a respeito da competên
cia da Justiça Federal para "processar justificações judiciais
destinadas a instruir pedidos perante entidades que nela têm
exclusividade de foro, ressalvada a aplicação do art. 15, inc. II,
da Lei 5.010/66" (Súmula 32/STJ). A questão da competência
passa, portanto, pela definição da Justiça competente para depois
ser fixado o foro competente361.
Não deixa de ser curioso o disposto na súmula transcrita,
que fixa uma competência absoluta da Justiça Federal para al
gumas situações referentes à justificação avulsa, em especial
317
para instruir pedidos perante entidades que, por força do dispos
to no art. 109, I, da CF, litigam obrigatoriamente na Justiça Fe
deral Essa obrigatoriedade — regras de competência absoluta
não podem ser modificadas pela vontade das partes — suscita
uma série de interessantes questões.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a pretensão pro
batória do autor da justificação avulsa poderá estar totalmente
dissociada de qualquer processo judicial ou administrativo fu
turo e eventual; basta que haja o interesse do autor na produção
de uma prova que lhe tenha alguma utilidade. Caso o autor não
indique, em sua petição inicial, a pretensão de que pretende
fazer valer a prova contra ente que litiga na Justiça Federal em
virtude do disposto no art. 109, I, da CF, como deverá o juiz
estadual se posicionar? Poderá simplesmente presumir essa uti
lização futura e, de ofício, declarar-se incompetente, remetendo
os autos à Justiça Federal? Deverá determinar a emenda da pe
tição inicial para que o autor indique se pretende utilizar tal
prova em processo futuro? E caso o autor apenas fundamente
sua pretensão no direito à prova, como deve o juiz estadual
proceder? As mesmas indagações poderão ser feitas ao juiz fe
deral que recebe a inicial de petição inicial sem que haja qual
quer indicação do autor da futura e eventual utilização da prova
produzida em outro processo.
É óbvio que será competente o Juízo Federal sempre que o
autor incluir entre os "interessados" que deverão ser citados no
processo qualquer dos entes federais previstos pelo art. 109, I,
da CF. O problema surge quando esses entes não participarem
do processo de justificação.
Se houver a indicação pelo autor de que utilizará a prova
em processo judicial em que figurará ente indicado pelo art. 109,
I, da CF, a tarefa do juiz que recebe a petição inicial, no caso
concreto, restaria facilitada, por amparar-se no entendimento
jurisprudência! já referido, inclusive sumulado. Caso se trate de
juiz estadual, este se declararia incompetente de ofício e reme
teria os autos à justiça federal; sendo juiz federal, julgaria nor
malmente a demanda. Sem indicação de futuro processo e não
318 '
havendo qualquer dos entes federais mencionados, o juiz fede
ral declarar-se-ia de ofício incompetente, remetendo os autos à
Justiça Estadual, enquanto o juiz estadual, ao receber a petição
inicial nessas condições, julgaria normalmente a demanda. Mas
e na hipótese de não haver ente federal nos pólos da justificação
avulsa, nem indicação de ação futura envolvendo-os, uma vez
produzida a prova no Juízo Estadual, seria possível utilizá-la em
processo na Justiça Federal?
O próprio ordenamento jurídico processual dá a resposta
a esse questionamento a partir do momento em que prevê que,
no caso de reconhecimento de incompetência absoluta, somen
te os atos decisórios serão anulados e se manterão íntegros os
demais, entre eles os atos probatórios. Ainda assim, não são
todos os atos decisórios anulados, mas tão-somente aqueles
referentes ao mérito da demanda362. Como na justificação avul
sa o juiz nada decide a respeito do mérito, será absolutamente
contrário à lei impedir-se a utilização da prova produzida em
justificação avulsa, ainda que por juízo absolutamente incom
petente. Tratando-se de espécie de prova emprestada quando
utilizada em outro processo judicial ou administrativo, a idéia
da incompetência absoluta do juiz simplesmente se torna irre
levante, considerando a ampla possibilidade da prova empres
tada entre diferentes Justiças.
Por tais razões, parece que o entendimento sumulado pelo
Superior Tribunal de Justiça não tem qualquer sentido de ser na
hipótese de não existir indicação expressa do requerente que
pretende utilizar da prova produzida em futuro e eventual pro
cesso de competência da Justiça Federal. E indo ainda mais
longe, mesmo que a justificação tramite perante juízo absoluta
362Luiz Fux, Curso de direito processual civil, cit., p. 102: "Entendem-se por
atos decisórios nulificados apenas aqueles que versam sobre o mérito, pos
to que para promover o andamento do processo e proferir decisões interlo
cutórias formais não se revela importante a competência objetiva. Esta
mostra-se influente no plano jurídico, apenas quando o juiz dispõe sobre o
litígio em si, para o qual não é especializado".
319
mente incompetente, não caberá ação rescisória contra a sen
tença homologatória, que não é sentença de mérito.
A prova, uma vez produzida, independentemente do juiz
responsável pela sua produção, terá a mesma eficácia e poderá
ser utilizada da mesma forma em qualquer outro processo judi
cial ou administrativo, não importando em que Justiça tramite o
processo judicial ou perante qual entidade transcorra o proces
so administrativo. Falar, assim, em incompetência absoluta do
juízo no tocante à eficácia da prova produzida na justificação
avulsa parece ser algo absolutamente inútil, pois a prova produ
zida por qualquer juízo terá sempre a mesma eficácia.
Relativamente à fixação da competência do foro, as pon
derações já feitas para a ação cautelar de produção de provas
aplicam-se, em sua inteireza, à justificação avulsa; assim, deve
ser determinada pelo local em que a prova será produzida, for
ma de aperfeiçoar a entrega da prestação jurisdicional. No caso
da justificação, inclusive, há uma razão a mais para deixar de
aplicar a regra exposta no art. 800 do CPC, considerando não
existir, em tal processo, qualquer natureza cautelar, de modo
que não está o direito à produção da prova testemunhai condi
cionado à propositura da chamada "ação principal"363.
7. PROCEDIM ENTO
Ao aplicar o conceito tradicionalmente defendido pela
doutrina nacional de periculum in mora para as cautelares pro
batórias, já restou determinado que o processo de justificação
não tem natureza cautelar. Ainda que seja discutível essa con
clusão diante do conceito de periculum in mora proposto no
presente trabalho, é correta a conclusão de que o procedimento
320
da justificação avulsa não segue, estritamente, as regras proce
dimentais do processo cautelar. Por ser pacífico o entendimento
de que a justificação avulsa não tem natureza cautelar e, bem
por isso, não seguirá o procedimento cautelar, é importante
precisar qual forma procedimental deverá ser observada nesse
processo, com as especialidades por vezes não muito claras
previstas nos arts. 861 a 866 do CPC.
321
ainda que se entenda pela amplitude de seus poderes instrutórios
à luz do art. 131 do CPC. A possibilidade de o juiz produzir
provas não requeridas expressamente pelas partes não pode
ensejar afastamento do princípio da inércia do juiz nos proces
sos autônomos de produção de prova, como é o caso da justifi
cação; de modo a concíuir-se pela necessidade de provocação
do interessado, o que será feito por meio de petição iniciai.
Já foi devidamente explorado o tema da não-cautelaridade
da justificação avulsa — pacífica na doutrina pátria —, apesar
de sua colocação no rol das cautelares típicas ou nominadas. O
afastamento do âmbito das cautelares da ação de justificação
enseja também, conforme já foi visto, a não aplicação do pro
cedimento cautelar a ela, a começar pela petição inicial. Dessa
maneira, parece não ser correto entendimento de que a petição
inicial da justificação avulsa deva ser elaborada nos moldes do
art. 801 do CPC, dispositivo que trata da petição inicial das
demandas genuinamente cautelares, que não seria o caso da
justificação365. Melhor, portanto, será aplicar a regra genérica de
petição inicial do art. 282 do diploma processual civil, que,
apesar de estar localizada no processo de conhecimento, melhor
estaria em um capítulo do Código destinado à teoria geral do
processo, o qual, entretanto e infelizmente, não existe366.
Essa opção de afastar a aplicação do art. 801 do CPC à
petição inicial da ação de justificação é suficiente, por exemplo,
para dispensar o cumprimento da exigência prevista no inc. III
do referido dispositivo legal — lide e seus fundamentos. Con
forme amplamente exposto, em decorrência da própria literal i
322
dade do art. 861 do CPC, a prova testemunhai produzida na
justificação não será obrigatória, nem, eventualmente, utilizada
em outro processo, de forma que a indicação do objeto da ação
principal, exigência das cautelares para que o juiz possa analisar
a aptidão instrumental de tal demanda à luz da demanda prin
cipal, é absolutamente dispensável Registre-se que essa dispen
sa aplica-se, inclusive, nas hipóteses em que o requerente já
saiba de antemão que a prova a ser produzida será por ele uti
lizada em demanda futura. A existência ou não de planos para
propor ação judicial em que o requerente aproveite a prova é
absolutamente irrelevante, de modo a justificar, em qualquer
caso, a dispensa da aplicação do art. 801, III, do CPC.
É evidente que, devido às peculiaridades do objeto da jus
tificação, a aplicação do art. 282 do CPC sofrerá alguns tempe
ramentos, em especial no tocante à exigência da narrativa da
causa de pedir (inc. III). Ainda que não se exija do requerente
uma narrativa completa dos fundamentos de fato e do funda
mento jurídico de sua pretensão, deverá elaborar uma petição
circunstanciada, na qual indique sua intenção com a justificação
pretendida, nos termos do art. 861 do diploma processual civil367.
O desafio é entender exatamente o que o diploma legal exige
do requerente quando é mencionada a expressão "petição cir
cunstanciada".
Pelo disposto no art. 861 do CPC, a prova a ser produzida
no processo autônomo de justificação poderá ser utilizada como
simples documento, sem caráter contencioso, ou ainda como
prova em outro processo. A primeira hipótese diz respeito à já
comentada prova documentada, formalmente documental, que
não estará ligada, necessariamente, a nenhum outro processo
judicial ou administrativo, enquanto, na segunda hipótese, o
dispositivo legal, ao apontar a serventia em "processo regular",
323
de maneira equivocada se deixa impregnar pelas impressões
doutrinárias já superadas de que a justificação não seria, de fato,
um processo368. Regular é o contrário de irregular, diz respeito
ao preenchimento de requisitos formais e, ao menos em tese,
todo processo deve ser regular; assim, o que o legislador preten
dia dizer era "processo judicial ou administrativo".
Apesar das impropriedades lingüísticas, o dispositivo legal
ora comentado deixa claro quais são as duas serventias da jus
tificação avulsa; parece que a necessidade de o requerente de
monstrar sua intenção com a demanda judicial em petição cir
cunstanciada orbita justamente em torno delas. Já se afirmou
exaustivamente que, apesar de não ser imprescindível a utiliza
ção da prova produzida em justificação em outra demanda ju
dicial, é plenamente possível que isso ocorra e, caso seja esse o
caso, o requerente deverá indicar quais são suas intenções pró
ximas para a utilização da prova e informar, ainda que sumaria
mente, como pretende utilizar, processual ou administrativamen
te, a prova produzida. Tal indicação, conforme se verá adiante,
será de extrema importância não só para demonstrar a utilidade
da prova, mas também para fixar a competência e os sujeitos
que deverão compor o pólo passivo, os quais o art. 862 do CPC
chama de "interessados".
Ainda que não pretenda, ao menos naquele momento,
utilizar futuramente a prova produzida em processo judicial ou
administrativo, o requerente deverá indicar qual sua intenção
ao produzir a prova, que poderá ser, singelamente, o conheci
mento de um fato para satisfação de ordem social, política,
econômica, ou outra qualquer. Apesar de o direito à produção
da prova e ao conhecimento do fato ser significativamente amplo,
as intenções concretas do requerente deverão ser.expostas na
petição inicial, porque, dessa forma, poderá o juiz que a receber
analisar a efetiva utilidade da prova que se pretende produzir, a
368A crítica à doutrina mais antiga também é feita por Sérgio Sahione Fadei,
Código de Processo Civil comentado, cit., p. 1047-1048, e Ovídio A. Bap
tista da Silva, Do processo cautelar, cit., p. 439.
324
fim de decidir, no caso concreto, se há ou nao o interesse de agir
do requerente.
É evidente que também será exigida do requerente a indi
cação precisa dos fatos sobre os quais pretende produzir a prova
oral, pois, somente dessa maneira, a análise do interesse de agir
e da possibilidade jurídica do pedido poderá ser realizada. Além
disso, a indicação do fato ou dos fatos que se pretende compro
var delimitará o objeto da prova, de modo a evitar o prolonga
mento desnecessário da audiência com perguntas que não digam
respeito ao fato ou aos fatos que se pretende provar; isso, entre
tanto, não impedirá de forma peremptória, no caso concreto, que
as perguntas da testemunha recaiam sobre fatos diversos do in
dicado na petição inicial. De qualquer forma, com tal indicação
será possível, previamente, limitar, ainda que parcialmente, o
objeto da prova a ser produzida, em evidente contribuição para
que a prestação jurisdicional seja mais rápida e eficaz.
Existe algum dissenso doutrinário a respeito da exigência
de o requerente indicar, já na petição inicial, o rol de testemunhas
que pretende ouvir no processo de justificação; para parcela da
doutrina, o correto seria a indicação imediata, nos moldes do
procedimento sumário, até mesmo em virtude da sumariedade
formal de tal procedimento369. Mas há doutrinadores que defen
dem a aplicação integral dos dispositivos atinentes à prova tes
temunhai previstos na parte do Código de Processo Civil refe
rente ao processo de conhecimento (Livro !, Título VIM, Capítulo
VI, Seção VI — arts. 400-419, CPC). Segundo esse entendimen
to, seria aplicável ao processo de justificação o art. 407 do di
ploma processual civil, a permitir que o requerente arrole as
testemunhas no prazo a ser fixado pelo juiz e, na sua omissão,
em dez dias antes da audiência de instrução370.
. 325
Pârece mais consentâneo, não só com a sumariedade formal
que deve ditar o procedimento da justificação avulsa, mas também
com o próprio objeto de referida demanda, que o requerente, já
em sua petição inicial, arrole as testemunhas que pretende ouvir,
informação que certamente já tem em seu poder, caso contrário
não ingressaria com a ação de justificação. Dessa forma, será
possível ao requerido saber, já no momento de sua citação, quais
são as testemunhas arroladas pelo requerente, o que permitirá
uma melhor preparação para a audiência ou até mesmo a extin
ção do processo sem o julgamento do mérito, no caso de teste
munhas impedidas, suspeitas ou incapazes (art. 405, CPC).
Tradicionalmente, essas questões são resolvidas em audiên
cia, por meio da contradita, mas, em processo em que o único
objetivo é a produção da prova testemunhai em audiência, pa
rece interessante, em termos de economia processual, que o juiz
tome conhecimento de algumas das causas do art. 405 do CPC
antes mesmo da ocorrência da audiência de instrução, hipótese
em que poderá, de plano, extinguir o processo sem o julgamen
to do mérito, ao apontar para a carência de ação do requerente
em razão da impossibilidade jurídica de seu pedido.
Deverá também, à luz do art. 283 do CPC, juntar com a
petição iniciai os documentos indicados pelo art. 863 do CPC,
que, conforme foi visto anteriormente, só se justificarão quando
disserem respeito ao objeto da prova testemunhai que será co
lhida. Embora seja possível defender sua juntada a qualquer
momento antes da realização da audiência, desde que seja ob
servado o contraditório e não haja má-fé do requerente, parece
ser mais adequado exigir-se a juntada de tais documentos já no
momento de inauguração da demanda judicial, em evidente
acolhimento do princípio da concentração de atos, pilar da
sumariedade formal que deve reger o procedimento da justifi
cação avulsa371.
326
Será hipótese de emenda da petição inicial no prazo de dez
dias a ausência de indicação do rol de testemunhas já na petição
inicial, o que não se pode afirmar com relação aos documentos
que desempenham papel secundário na ação de justificação;
prova maior disso é a própria redação do art. 863, que simples
mente faculta ao requerente, não o obriga, a juntar documentos.
O vício causado pela ausência de indicação das testemunhas
na petição inicial é plenamente sanável, sendo aplicável ao caso
o disposto no art. 284 do CPC, por parecer o indeferimento da
petição inicial medida extrema e despreocupada com a econo
mia — fatalmente o requerente proporá nova demanda — e com
a efetividade processuais.
Em virtude de regra já consagrada em nosso direito proces
sual pelo art. 258 do CPC, a toda demanda será atribuído um
valor; assim, exige-se do requerente, também na justificação
avulsa, a indicação de um valor da causa, cuja ausência cons
titui vício sanável e possibilita a emenda da petição inicial (art.
284, CPC), não seu indeferimento (art. 295, CPC). Não sendo
possível precisar o valor econômico do bem da vida pretendido
pelo requerente, que é a simples produção de prova oral, o valor
da causa, na justificação avulsa, será meramente estimativo e
deverá apenas respeitar eventual valor mínimo de alçada.
327
fatos a serem provados, relação jurídica ou conjunto de relações
jurídicas.
Caso se trate de relação jurídica, fica evidenciado que nela,
além do requerente, haverá a participação de pelo menos mais
um sujeito, de modo a restar claro que ao menos o sujeito ou os
sujeitos que participem da relação jurídica que se pretende jus
tificar sejam citados como interessados. São considerados como
tal porque fazem parte da relação jurídica de direito material
que se pretende ver provada por meio da produção da prova
testemunhai na justificação avulsa.
Quanto à prova de fatos, afirma-se que deverão ser citados
como interessados todos os sujeitos contra quem o requerente
pretende opor sua prova, missão de identificação que resta
sobejamente facilitada na hipótese em que o requerente, ao
indicar na petição inicial sua intenção com a justificação, indi
ca, concretamente, sua utilidade na instrução de um processo
judicial ou administrativo por vir. Nesses casos, entende-se que
os sujeitos que virão a participar do eventual processo deverão
ser citados para participar como interessados no processo de
justificação, não sendo razoável admitir-se a produção de pro
va sem a presença de tais sujeitos em razão do princípio do
contraditório.
O problema intensifica-se na hipótese de o requerente não
indicar qualquer processo judicial ou administrativo, ainda que
eventual, no qual a prova produzida será utilizada na missão de
convencer o juiz ou o administrador da veracidade de um fato
ou de um conjunto de fatos. Fala o art. 861 do CPC em formação
da prova para servir como mero documento, sem caráter con
tencioso, o que significa dizer — como já visto — produzir
prova oral documentada sem interesse imediato em sua utiliza
ção em processo judicial ou administrativo. Mesmo nesse caso,
será possível identificar, no caso concreto, sujeitos que poderão
ter interesse na formação da prova, pois o fato que se pretende
provar pode dizer respeito a eles, como na hipótese de prova do
fato de que o requerente fez-se acompanhar em viagem por
alguém que terá interesse ga prova desse fato.
328
I
329
micamente373. Caso precise de uma justificação avulsa para
formar prova testemunhai a fim de se convencer de tais fatos
não deve procurar um juiz de direito, mas um psicólogo ou um
psiquiatra, que certamente o ajudará a resolver seu conflito in
terno, As mesmas considerações aplicam-se ao segundo exemplo
dado, de "autoria de criação intelectual".
No que se refere à prova de um fato, duas situações são
possíveis: o requerente já sabe, no momento em que ingressa
com a justificação, os exatos sujeitos contra quem pretende
valer a prova, ou ainda não sabe precisar quem são tais sujeitos,
não porque não existam, mas porque são, naquele momento,
indeterminados e, até mesmo, possivelmente indetermináveis.
Essa hipótese é reconhecida pelo ordenamento processual bra
sileiro no tocante ao pólo passivo da demanda, hipótese em que
se definirá o réu — no caso, interessado — como incerto, ao
fazer sua citação por edital374. Assim, ou os interessados serão
os sujeitos contra quem o requerente pretende fazer valer a
prova, hipótese de réu certo citado, somente de forma excep
cional, de maneira ficta, ou são sujeitos indeterminados, hipó
tese em que o réu será incerto e deverá ser citado por edital (art.
231, I, CPC).
É importante notar que o interessado, uma vez citado, po
derá demonstrar interesse na produção da prova, que poderá,
373Para Leonardo Greco, Jurisdição voluntária moderna/ cit., p, 69, "a justifi
cação necessariamente deve dirigir-se a um determinado sujeito passivo,
em relação ao qual a prova produzida poderá ser ulteriormente utilizada.
Não há justificação para produzir prova de fato sem a indicação de um
sujeito passivo. Esta identificação já constitui um dado importante para que
o juiz possa avaliar o interesse de agir".
374Com esse entendimento, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Comentários ao
Código de Processo Civil/ cit., p. 318, ao comentar a impossibilidade de,
em alguns casos, identificar-se o sujeito passivo, dá como exemplo a justi
ficativa de boa conduta a boa fama e o "interesse unus ex publico/ como
nas espécies de fatos ou relações jurídicas ligadas a promessa ao público,
inclusive de prêmios". Nesses casos, acertadamente, indica a necessidade
de citação por edital dos réus incertos.
330
r
t
331
sim para integrá-lo à relação jurídica processual e, desse modo
participar da produção da prova.
A confusão advém da não-percepção de que, em regra,
junto à citação segue também uma intimação, que, segundo o
art. 234 do CPC, é justamente "o ato pelo qual se dá ciência a
alguém dos atos e termos do processo, para que faça ou deixe
de fazer alguma coisa". Dessa forma, a citação dá ciência ao
demandado ou ao interessado da existência do processo, de
modo a integrá-lo à relação jurídica processual como parte,
enquanto a intimação, que, em regra, acompanha a citação,
permite ao demandado ou interessado uma reação à petição
inicial. Na conjugação dos arts. 862 e 864 do CPC, encontra-se
a pureza do conceito de citação — que faltou ao conceito legal
do instituto —, considerando que, na justificação, o interessado
será somente integrado à relação jurídica processual como par
te, pois não serve tal ato de comunicação a qualquer reação,
embora esta seja possível à luz do princípio da ampla defesa,
conforme será visto a seu devido tempo375.
Por fim, resta ainda interpretar exatamente o que pretendeu
a norma legal ao afirmar que a citação dos interessados pode
ser afastada em casos expressos em lei. Nesse tocante, os elogios
anteriormente tecidos ao legislador darão espaço à crítica, por
que não parece correta a dispensa de citação, qualquer que seja
o processo, ainda que de jurisdição voluntária. Como não pare
ce correto o entendimento de que a justificação avulsa possa
existir sem pólo passivo — conforme exposto —, a dispensa da
citação ficará reservada para tão-somente uma situação, de in
cidência quase nula na praxe forense: dois interessados, com
pretensões contrárias — um pretende provar que o fato ocorreu
e o outro que o fato não ocorreu — , ingressam conjuntamente
com petição inicial para ouvir testemunhas sobre o fato. Nessa
332
]
333
luntária da justificação avulsa, ao exigir a participação do Mi
nistério Público nessa demanda, esta não se mostra amparada
em qualquer razoabilidade, em nítido distanciamento das tarefas
funcionais do Parquet estabelecidas pelo art. 127 da CF. Não se
pode admitir a interpretação literal do art. 1.105, porque não é
em todos os processos de jurisdição voluntária que a presença
do Ministério Público se fará necessária, desnecessidade que se
mostra de forma bastante significativa na justificação avulsa.
Segundo as corretas lições de Cândido Rangel Dinamarco376,
334
ficta deverá, ainda assim, ocorrer, de modo a ingressar no pro-
cesso, além do advogado dativo, o Ministério Público?
Pelo que já foi exposto no tocante à necessidade de exis
tir um pólo passivo na justificação avulsa, ainda que seja com
posto por sujeito incerto, a citação deverá sempre ocorrer,
mesmo de forma ficta, de modo que não tem qualquer sentido
a existência de um demandado no processo que não seja cita
do tão somente porque não é possível sua citação pessoal377.
Mesmo a interpretação do dispositivo ora comentado leva a tal
conclusão, considerando que em nenhum momento aponta
para a dispensa da citação quando não for possível realizá-la
pessoalmente; apenas exige que o Ministério Público passe a
atuar no processo como fiscal da lei, justamente em virtude de
o demandado ser defendido por advogado dativo, que, em regra,
desempenhará um trabalho de defesa de qualidade inferior ao
que seria apresentado por um advogado contratado pela parte.
A presença do Ministério Público, nesse caso, contribuirá com
a seriedade da produção da prova e fortalecerá seus resultados,
apesar de não parecer, nem mesmo nesse caso, necessária a
participação do Ministério Público. Mas, havendo disposição
clara nesse sentido, pior será afastar a participação do Ministé
rio Público e possibilitar futuras alegações de nulidade absolu
ta do processo.
335
como uma flexibilização desse conceito, de modo a limitar a
reação do interessado a determinadas matérias378. A retirada
absoluta do contraditório em tal processo, ainda que pertencen
te à jurisdição voluntária, significaria afastamento injustificado
à garantia constitucional do contraditório, o que não parece ter
sido o objetivo do legislador ao prever, no dispositivo legal antes
mencionado, a não-admissão de defesa por parte do réu — "in
teressado", na linguagem do Código — no processo de justifi
cação.
Não parece correto afirmar que o dispositivo legal seja uma
exceção ao disposto no art. 802 do CPC — que trata do proce
dimento geral da cautelar — ao estabelecer que o requerido será
citado para no prazo de cinco dias contestar — na verdade,
melhor seria dizer responder, porque é inegável o cabimento
das exceções rituais no procedimento cautelar. Já se teve a opor
tunidade de afastar a natureza cautelar da justificação avulsa,
de modo que as previsões constantes na teoria geral da cautelar
são absolutamente inaplicáveis ao processo ora analisado, não
obstante se possa afirmar que, em termos procedimentais, a
sumariedade formal deve ser preservada. De qualquer maneira,
não se pode negar a nítida incompatibilidade entre os dois arti
gos legais.
Ao afastar a interpretação literal do artigo ora tratado, é
preciso estabelecer qual a efetiva extensão da proibição da
apresentação de defesa expressada no mesmo. Ainda que não
conste, expressamente, do texto legal a possibilidade de defesa
ao requerido, não se deve admitir sua integração ao processo
para tão-somente participar da produção da prova oral, sem
qualquer oportunidade de manifestar-se sobre questões que
envolvam o direito à prova do autor e a regularidade formal do
exercício desse direito. A ausência de previsão expressa não tem
336
q condão de impedir, peremptoriamente, o réu de manifestar-se
a respeito desses temas, o que infringiria, de maneira clara e
inaceitável, os princípios da ampla defesa e do contraditório. A
defesa do réu deverá, portanto, limitar-se a apenas dois aspectos
da demanda de justificação, o que enseja um contraditório no
máximo mitigado, mas não representa, como seria interpretável
pela redação do art. 865 do CPC, o afastamento pleno dessa
garantia constitucional.
Em primeiro lugar, será inevitável proporcionar ao réu a
apresentação de defesa — que poderá, perfeitamente, ser cha
mada de contestação — para alegar a inutilidade da prova, sua
ilicitude, ou ainda ser indevida a invasão em sua esfera jurídica
pretendida pelo autor, questão intimamente ligada à utilidade
da prova a ser produzida. Ainda que o direito à prova seja bas
tante amplo e genérico, não se deve admitir que o funcionamen
to do Poder Judiciário redunde em algo absolutamente inútil e
incapaz de gerar qualquer efeito prático ao autor. A questão da
utilidade da prova, ainda que seja facilmente provada pelo autor
em razão da amplitude de seu direito de prova, inclusive disso
ciado de qualquer processo judicial ou administrativo futuro,
poderá ser contestada validamente pelo réu.
Em segundo lugar, as matérias de ordem pública, que geram
nulidades processuais, como a inépcia da petição inicial, incom
petência absoluta do juízo, falta de capacidade de estar em ju
ízo, falta de capacidade postulatória, vício na citação etc., jus
tamente por serem matérias conhecíveis de ofício pelo juiz,
serão também alegáveis pelo réu a qualquer momento do pro
cesso, em especial no momento imediatamente posterior à sua
citação379. Não se devé negar também ao réu a possibilidade de
ingressar com as exceções rituais de incompetência relativa do
juízo, de impedimento e de suspeição do juiz.
337
Há ainda que lembrar a possibilidade de o interessado
manifestar-se a respeito dos documentos que instruíram a petição
inicial, nos termos do art. 863 do CPC. Ainda que o objeto da
justificação avulsa seja exclusivamente a prova testemunhai,
facultada ao autor a juntada de documentos, que, conforme
visto, terão o condão de auxiliar a produção da prova oral, o
princípio do contraditório restaria indevidamente ferido se ao
réu não fosse dada a oportunidade de manifestar-se a respeito
desses documentos, o que deverá fazer também no seu prazo
de resposta quando tais documentos instruírem a petição inicial,
ou no prazo de cinco dias previsto pelo art. 185 do CPC, se a
juntada aos autos ocorrer após esse momento processual
Em face da absoluta ausência de norma reguladora do
exercício do direito de resposta na justificação avulsa, deve-se
aplicar o procedimento sumário previsto na parte do Código
destinada à teoria geral das cautelares, mais especificamente o
art. 802 do CPC, que concede ao réu um prazo de cinco dias
para apresentação de sua contestação (conforme foi visto, melhor
seria dizer "resposta"). Ainda que não tenha natureza jurídica
cautelar, são evidentes os benefícios de empregar-se o procedi
mento cautelar à ação de justificação, em virtude de sua suma
riedade formal. Aplicam-se, no caso, as regras de prazos dife
renciados previstos no art. 188 do CPC — prazo em quádruplo
para Fazenda Pública e Ministério Público — e no art. 191 do
CPC — prazo em dobro para litisconsortes com patronos dife
rentes380.
A possibilidade de apresentação de defesa na justificação
avulsa gera interessante questão a respeito do momento ideal
para a apreciação das matérias defensivas expostas pelo réu. E
338
certo que, em se tratando de matérias ligadas às nulidades pro
cessuais, não haverá qualquer sentido em admitir-se que o juiz
postergue sua decisão para depois de produzida a prova oral, o
que geraria trabalho absolutamente inútil do Poder Judiciário no
caso concreto. Mesmo no tocante à utilidade da prova, que
esbarrará no direito à prova do autor, não será interessante, em
termos de economia processual e de efetividade da tutela juris
dicional, que tal matéria somente seja tratada ao final do pro
cesso, depois de já produzida a prova.
Dessa forma, para evitar a prática de atos incompatíveis
logicamente com uma decisão terminativa, parece ser mais
correto exigir-se do juiz o enfrentamento das questões defensivas
expostas pelo réu imediatamente após sua apresentação, de
modo a decidir-se, antes da produção da prova, a respeito da
regularidade formal da demanda e da existência de legítimo
interesse do autor em produzir prova que tenha alguma utilida
de381. A suposta irrecorribilidade de tais decisões, prevista tam
bém no art. 865 do CPC, será tratada de forma crítica em item
próprio.
339
da a intimação das testemunhas imediatamente, a fim de aguar
dar-se a eventual defesa do réu e, diante de sua existência, a
decisão judicial a respeito da continuidade ou não do processo
Rara que temporalmente o entendimento seja aplicável, a audi
ência deverá ser designada em tempo hábil para que a defesa
do réu seja apresentada e decidida, bem como para que ocorra
eventual intimação das testemunhas.
Como não poderia ser diferente, a produção da prova tes
temunhai na justificação avulsa ocorrerá na audiência de instru
ção designada pelo juiz ao receber a petição inicial e deverá
seguir as regras referentes a esse meio de prova previstas nos
arts. 400 a 419 do CPC. Não difere de absolutamente nada do
que já foi dito a respeito da produção de prova testemunhai no
âmbito da produção antecipada de provas, de modo a valerem
as ponderações feitas sobre aquele processo cautelar para a
justificação avulsa.
Interessante questão coloca-se a respeito do responsável
pela condução da prova testemunhai a ser colhida em audiência.
Para Carlos Alberto Alvaro de Oliveira382,
340
serventuário da Justiça, ainda que tal delegação de função deva,
obrigatoriamente, estar prevista em lei deforma expressa, o que
não ocorre atualmente. Sendo possível afastar a aplicação do
princípio da identidade física do juiz ao processo de justificação,
não será algo absurdo ou despropositado que a prova seja co
lhida por auxiliar do juízo, serventuário, ainda que a proposta
seja meramente de lege ferenda.
Essa possibilidade de a instrução ser conduzida por pessoa
diversa do juiz togado, mas sempre sob sua supervisão, não
seria novidade no sistema processual brasileiro, considerando o
disposto no art. 37 da Lei n. 9.099/95, que possibilita a colheita
de prova por juiz leigo nos Juizados Especiais Cíveis. A atuação
de um juiz leigo na produção da prova testemunhai, desde que
obrigatoriamente sob supervisão do juiz togado, não parece
romper com o monopólio da função jurisdicional do juiz togado;
serve, pelo contrário, como interessante meio de auxílio e con
seqüente liberação do juiz togado para o enfrentamento de
questões jurídicas mais complexas existentes nos demais pro
cessos judiciais sob sua direção.
Justamente por estar sempre sob supervisão do juiz togado,
qualquer questão que surja no decorrer da audiência de instru
ção, como o indeferimento de perguntas, do pedido de acarea
ção, contradita etc., poderá ser imediatamente por ele resolvida.
Caso transcorra sem qualquer embate a audiência de instrução,
caberá ao juiz togado tão-somente analisar a regularidade forma!
da colheita da prova e extinguir o processo por sentença. Res
salte-se, mais uma vez, que, embora seja possível tal procedi
mento nos Juizados Especiais Cíveis, a possibilidade de aplicação
de tal regra à justificação avulsa depende, necessariamente, de
modificação legislativa, na qual seria interessante fixarem-se,
com exatidão, quais os poderes do juiz leigo e como se daria a
supervisão do juiz togado durante a colheita da prova testemu
nhai. De qualquer forma, pelo menos a priori, não parece tão
repugnante a idéia.de delegação de tal função a um juiz leigo,
desde que seja supervisionado pelo juiz togado.
341
7.6. Irrecorribilidade
Mais uma vez, o art. 865 do CPC indica restrição peremptó
ria ao exercício de um ônus processual derivado do princípio da
ampla defesa e do contraditório, de modo a proibir a interposição
de recursos às partes. Novamente, a interpretação literal do dispo
sitivo legal não é a mais adequada, por haver, quando muito, uma
limitação do direito recursal ligada ao interesse recursal, nada mais
do que isso. Haverá certas situações em que o direito recursal das
partes será inegável; basta, para tanto, que haja esse interesse.
A proibição trazida pelo dispositivo legal parece estar em-
basada no fato de que, no processo de justificação, não haverá
qualquer valoração a respeito da prova produzida; não há, por
tanto, razões para as partes recorrerem da sentença que simples
mente declara encerrado o procedimento, pondo fim ao proces
so. Nesse ponto, o legislador está parcialmente correto, consi
derando que realmente faltará ao juiz qualquer poder para va
lorar a prova produzida, já que não decide a sentença a respei
to dessa prova, limitando-se a homologar a prova produzida e
declarar extinto o processo. A irrecorribilidade dessa sentença,
entretanto, não necessita da expressa previsão constante no art.
865 do CPC, porque, na verdade, as partes não teriam qualquer
interesse recursal no recurso de apelação. Não se trata propria
mente de vedação ao recurso, mas de falta de um dos pressu
postos intrínsecos de admissibilidade.
Ao pensar exclusivamente a respeito dessa decisão que de
clara encerrado o procedimento e põe fim ao processo, o equívo
co do legislador teria sido inócuo, pois, na prática, o recurso não
seria admitido, seja por não ser cabível devido à proibição legal,
seja pela absoluta ausênda de interesse recursal O problema,
entretanto, é que existirão outras decisões no processo de justifi
cação além dessa sentença e, nesses casos, a vedação legal de
acesso aos tribunais por via recursal mostra-se inconstitucional,
em flagrante ofensa aos princípios da ampla defesa e do contradi
tório. Isso sem falar na ofensa ao princípio não constitucional do
duplo grau de jurisdição, que também restaria afetado, por exem
plo, na decisão que indefere a petição inicial ou ainda naquela
342
T
343
plinada pelo art. 522 do diploma processual civil. Segundo a
atual redação do referido dispositivo legal (Lei 11.187/2005), as
decisões proferidas em audiência de instrução serão recorríveis
obrigatoriamente por agravo retido e de forma oral, à exceção
daquelas decisões que possam gerar lesão grave ou de difícil
reparação ao recorrente, hipótese de agravo de instrumento.
Parece bastante claro que o dispositivo legal foi formulado
exclusivamente com vistas ao processo de conhecimento — e,
quando muito, ao processo cautelar; assim, é absolutamente
inaplicável à audiência de instrução realizada no processo de
justificação. Conforme foi visto, não haverá interesse recursal
das partes em impugnar a sentença que tão-somente declara
encerrado o procedimento, de modo a pôr fim ao processo, por
isso o agravo retido interposto em audiência não chegaria jamais
ao Tribunal. Somente essa circunstância já seria suficiente para
afastar a obrigatoriedade do agravo retido de decisões interlo
cutórias proferidas nessa audiência.
Caso se entenda que também à justificação é aplicável a
regra da obrigatoriedade do agravo retido, parece que a exceção
para tal obrigatoriedade mostra-se de forma bastante clara, posto
que a não-admissão do agravo em sua forma de instrumento
seria capaz de gerar grave e irreversível dano à parte recorrente.
Sem ter à sua disposição o veículo de acesso ao tribunal do agra
vo retido — apelação ou contra-razões —, a parte, simplesmen
te, faria um recurso absolutamente inútil, que geraria tão-somen-
te uma ilusão de direito ao recurso, o que não se deve admitir.
Deve-se lembrar que a interposição do agravo retido du
rante a audiência de instrução abrirá ao juiz a possibilidade de
retratar-se de sua decisão após a oitiva do agravado, que deverá
apresentar, também de forma imediata e oral, suas contra-razões
em audiência383, o que seria de interessante utilidade para o
344
T
345
7.7. Sentença
O art. 866 do CPC é o dispositivo legal que trata da senten
ça na justificação avulsa; interessa ao presente estudo, primor
dialmente, o seu parágrafo único: "O juiz não se pronunciará
sobre o mérito da prova, limitando-se a verificar se foram obser
vadas as formalidades legais". A disposição legal transcrita
descreve, com bastante clareza, o objeto dessa sentença, ao
indicar não ser tarefa do juiz, no processo autônomo de justifi
cação, qualquer vaíoração a respeito da prova oral produzida,
que se limitará a verificar a regularidade formal de sua produção,
nada mais do que isso.
Nesse aspecto, a função do juiz identifica-se com aquela
desenvolvida no processo cautelar de produção antecipada de
provas, na qual a prova é simplesmente produzida, cabendo ao
juiz de outro processo em que ela será utilizada como prova
emprestada, ou ainda ao julgador de processo administrativo
que a receber, valorá-la livremente; pode, inclusive, não a utili
zar na formação de seu convencimento. Já foi devidamente
afirmado, no capítulo referente à cautelar de produção anteci
pada de provas, que o procedimento probatório é complexo, de
modo que não cabe ao juiz — tanto naquela ação como na
justificação avulsa — analisar o mérito da prova, ou seja, a ca
pacidade dela para, efetivamente, convencer a respeito da vera
cidade do fato que o autor pretendia provar.
Além da expressa previsão legal de que não caberá ao juiz
da demanda autônoma de justificação ingressar no mérito da
prova produzida, a regra prevista no art. 4Q, II, do CPC, que
admite a declaratória de fatos tão-somente de autenticidade ou
de falsidade documental, impede qualquer vaíoração da prova384.
Apesar de ser possível uma alteração legislativa para que a de
manda declaratória possa também abranger fatos, além de rela
346
r
347
não chega sequer a constituir a prova — e a sentença pro
ferida na ação declaratória da existência da relação jurídi
ca, que, mais do que constituí-la apenas declara, com
força de coisa julgada, sua existência".
348
tença da cautelar de produção antecipada de prova em termos
da inadequação da expressão "homologação de prova"387. O
juiz não homologa coisa alguma, até porque a etimologia da
palavra "homologar" não representa o real objeto da sentença,
que não afirma verdadeiro fato probando, nem torna a prova
igual a algo. Apesar dessa constatação, encontra-se arraigada na
prática forense e mesmo em trabalhos acadêmicos a expressão
"homologação da prova", que deve, de qualquer maneira, ser
entendida como ato sentenciai do juiz que, após a produção da
prova, declarara que não há mais atos processuais a serem pra
ticados e, como conseqüência lógica, o processo terminou.
Há, entretanto, uma diferença substancial entre a sentença
da justificação avulsa e a sentença da cautelar de produção
antecipada de provas, já que nesta o juiz deverá analisar a exis
tência efetiva do direito substancial de cautelar, o que não
ocorrerá naquela, por ser impossível, no caso da demanda de
justificação, falar em sentença de procedência ou de improce-
dência após a produção da prova testemunhai. Ao ser afastada
tal possibilidade, a sentença do processo de justificação a ser
proferida após a colheita da prova oral será tão-somente decla
ratória de que o procedimento terminou e então extinguir-se-á,
em razão disso, o processo. Por nada mais haver a ser feito no
processo, por esgotamento dos atos processuais que deveriam
ser praticados, o juiz simplesmente declarará extinto o procedi
mento e, como conseqüência, o processo será extinto.
349
Essa espécie de sentença em muito se assemelha àquela
proferida no processo de execução (art. 794, CPC), na qual o
juiz simplesmente declara que, diante da satisfação do exeqüen-
te, não há mais atos processuais a serem praticados, de modo a
restar terminado o procedimento e, por conseqüência, extinto o
processo.
350
Açãoautônoma probatória no
direito brasileiro
1. SITUAÇÃO ATUAL
O enfrentamento individualizado de todos os processos
autônomos de natureza probatória existentes no ordenamento
processual pátrio servirá de base para uma análise ampla da atu
al situação desse tema no direito processual brasileiro. Rara tanto,
far-se-á a divisão entre três espécies de prova: oral, pericial e do
cumental. Acredita-se que nessa divisão estejam incluídos todos
os meios de prova previstos em nosso Código de Processo Civil.
O objetivo desta análise, baseada exclusivamente no que
já existe no direito nacional a respeito de ações autônomas
probatórias, sem qualquer espécie de proposta de lege ferenda
e mesmo a adotar o conceito tradicionalmente defendido pela
doutrina nacional de periculum in mora nessa espécie de de
manda — entendido como o perigo de a prova não poder ser
produzida no momento adequado para tanto, que seria a fase
de instrução do processo de conhecimento — , tem como obje
tivo demonstrar que o direito nacional é bastante amplo no to
cante à receptividade dessa espécie de demanda.
351
uníssona pela doutrina nacional, seria imprescindível a existên
cia do perigo de que a prova deva ser produzida imediatamen
te sob pena de seu perecimento em virtude do lapso temporal
necessário à chegada da fase adequada para tanto, que seria a
fase instrutória do processo de conhecimento.
Conforme analisado anteriormente no capítulo específico
sobre esse tema, apesar da dicção legal do art. 847 do CPC, que
tenta tipificar as hipóteses de urgência para a produção da pro
va, resta pacificado que qualquer circunstância de perigo à
produção posterior da prova, além daquelas legalmente previs
tas, será suficiente para a admissão de sua produção antecipada.
De qualquer forma, para o que interessa ao presente capítulo,
se não houvesse tal perigo, faltaria ao caso concreto o requisito
do periculum in mora, o que impediria a produção antecipada
da prova.
Se o ordenamento processual se limitasse à existência do
processo de produção antecipada de prova para permitir a oiti
va de testemunhas em processo autônomo, seria possível defen
der — ao menos diante do conceito tradicional de periculum in
mora nessas demandas — que somente quando sofresse algum
perigo de não mais poder ser produzida posteriormente a prova
testemunhai poderia ser produzida de forma autônoma e ante-
cipada. O ordenamento jurídico, entretanto, não se limitou a
essa espécie de processo autônomo de produção antecipada de
prova testemunhai, por prever também o processo de justificação,
previsto nos arts. 861 a 866 do CPC.
No estudo do processo de justificação, verificou-se a ampla
admissibilidade de produção de prova testemunhai ainda que
não exista qualquer perigo de que ela não possa vir a ser pro
duzida na fase de instrução do processo de conhecimento. A
doutrina nacional entende que, nessa espécie de ação, é dispen
sável o periculum in mora voltado à produção da prova em si,
de forma que o simples direito processual ao conhecimento de
um fato por meio de produção de prova testemunhai já legiti
maria a demanda judicial de justificação.
352
í
353
a ação de justificação, o que depende, exclusivamente, dos
operadores do direito.
Mas nem só de prova testemunhai vive a prova oral, de
modo que não se pode descartar a análise do depoimento pes
soal Já foi devidamente interpretado o art. 846 do diploma
processual civil, que, ao mencionar o "interrogatório da parte",
na verdade pretende dizer seu "depoimento pessoal". Dessa
forma, com as especialidades procedimentais já analisadas em
capítulo específico sobre o tema, é indiscutível a possibilidade
de produzir-se um depoimento pessoal da parte contrária por
meio do processo autônomo de produção antecipada de provas.
Já o art. 863 do CPC afirma literalmente que "a justificação
consistirá na inquirição de testemunhas", o que poderá levar o
leitor mais apressado a concluir que, na justificação autônoma,
não será admitido o depoimento pessoal da parte.
Esse posicionamento, derivado de interpretação literal e
restritiva da forma de produção da prova testemunhai no pro
cesso de justificação, levará à conclusão de que o depoimento
pessoal só poderá ser produzido por produção antecipada de
prova, e exige, para tanto, a existência do periculum in mora.
Segundo o conceito clássico da doutrina a respeito desse requi
sito no tocante às cautelares probatórias, a conclusão lógica e
necessária seria de que, sem perigo de não poder ser produzido
em seu momento adequado, o depoimento pessoal não seria
admitido como objeto de ação probatória autônoma. O enten
dimento, entretanto, não parece ser o mais acertado.
Conforme já devidamente exposto em capítulo próprio a
respeito do tema, não existe qualquer motivo plausível para
afastar a possibilidade de depoimento pessoal na justificação
avulsa, porque, já que o objetivo de tal demanda é o esclareci
mento de um fato, por vezes nada melhor que ouvir em juízo
justamente o sujeito que dele participou e que poderá constar
do pólo passivo dessa demanda. As questões referentes à não-
admissão da confissão já foram devidamente enfrentadas; assim,
a conclusão que parece ser a mais acertada é a de que a justifi
cação será o meio ideal para a produção da prova oral, testemu-
354
phal, depoimento pessoal da parte contrária, de forma que não
tem utilidade, nesse aspecto, o processo de produção antecipa
da de provas, mais exigente no tocante a requisitos a serem
preenchidos.
A única utilidade de tal processo autônomo de produção
de provas reside na hipótese de necessidade de concessão de
liminar para produção imediata da produção da prova, antes
mesmo da oitiva da parte contrária, o que, naturalmente, só diz
respeito à prova testemunhai. Nesse caso, em que a urgência na
produção não só existe como é urgentíssima, justificar-se-ia a
opção do autor pelo processo de produção antecipada de prova,
que já tem a previsão de liminar, não obstante também ser pos
sível sustentar que, nessa hipótese, seria possível um pedido de
tutela antecipada na justificação autônoma.
Seja como for, é possível concluir que, com relação à pro
dução autônoma de prova oral, o direito brasileiro encontra-se
aparelhado de maneira completa a albergar a proposta ampla
de ações probatórias autônomos, principal objetivo do presente
trabalho. Nesse tocante, portanto, nada há a ser acrescentado
de lege ferenda.
355
Diante de tal realidade legislativa, a possibilidade de um
processo autônomo em que se produza uma prova pericial sem
nem ao menos ser necessário o debate a respeito do conceito a
empregar ao periculum in mora passa por uma proposta de /ege
ferenda/ com a previsão de um processo autônomo que faça
pela prova pericial aquilo que a justificação faz pela prova oral,
como já ocorre no ordenamento processual italiano, com o
objetivo declarado de otimizar as chances de acordo entre as
partes (art. 696 bis/ CPC). Esse tema será tratado ainda neste
capítulo, mas em tópico próprio.
Não obstante a realidade legislativa atual, não se pode
deixar de apontar que a produção autônoma de prova pericial,
ainda que sob o manto da ação cautelar de produção antecipa
da de prova, vem sendo muito mais ampla que uma interpreta
ção literal do disposto no art. 849 do diploma processual civil
poderia sugerir. É possível até mesmo afirmar que, na praxe fo
rense, o requisito do periculum in mora seja significativamente
flexibilizado, passando nossos tribunais a admitir a produção
antecipada de prova pericial em hipóteses bem mais amplas que
as previstas no dispositivo legal mencionado.
Já se mencionou a posição doutrinária, amplamente aceita
em sede jurisprudencial, da admissibilidade de ação cautelar de
produção antecipada de prova na hipótese de o autor ter neces
sidade de perícia em imóvel para conhecer os dados necessários
à propositura da ação reivindicatória. Ou seja, a ação cautelar
está sendo admitida nessa hipótese para fornecer ao autor dados
necessários à propositura da ação principal, não em razão do
perigo de que esta corra em virtude do tempo. Já se trata, natu
ralmente, de uma flexibilização da rigidez imposta pelo art. 849
do CPC, a ampliar o espectro da ação probatória autônoma
pericial.
Esse entendimento permite, inclusive, que se passe a admi
tir a prova pericial autônoma e antecipada sempre que o autor
necessite de dados úteis à propositura de sua ação principal
Naturalmente, não teria sentido lógico-limitar-se ta! hipótese à
preparação de ações reivindicatórias; assim, deve-se permitir tal
356
espécie de ação autônoma probatória como forma de preparação
para qualquer demanda principal sempre que os dados neces
sários ou úteis à propositura correta de tal demanda exigirem a
produção de uma prova pericial.
Além disso, a jurisprudência encarrega-se de flexibilizar o
requisito do periculum in mora, ao criar uma regra de que, na
dúvida da existência ou não de tal requisito, a prova deverá ser
produzida. In dubio pro autore, o que não deixa de ser curioso
à luz das regras do ônus da prova previstas pelo art. 333 do
CPC. Ao aplicar tais regras ao caso concreto, se o autor não
conseguir provar o periculum in mora, deixará de provar um
fato constitutivo de seu direito, de forma que não terá sua pre
tensão acolhida pelo Poder Judiciário. No tocante à prova an
tecipada pericial, ocorre exatamente o contrário; ainda que não
consiga provar na plenitude os fatos que ensejam o periculum
in mora, deixando no ar questões não respondidas, será ampa
rado em sua pretensão.
Ainda que seja inegável a tendência doutrinária e jurispru-
dencial de alargar as hipóteses de admissibilidade de produção
autônoma e antecipada da prova pericial por meio do processo
cautelar previsto no art. 849 do CPC, o ideal seria uma modifi
cação legislativa que preveja, de maneira expressa e irrefutável,
a possibilidade de produção de prova antecipada de natureza
pericial cujo único fundamento seja o interesse útil da parte em
conhecer fatos que demandam tal espécie de prova. Conforme
já afirmado, o tema será tratado, de lege ferenda, em capítulo
próprio.
357
teriam natureza satisfativa, enquanto a terceira teria natureza
cautelar.
Não é este o momento para retornar aos aspectos dessas
diferentes espécies de exibição autônoma, o que já foi realizado
no capítulo específico sobre o tema. O próprio reconhecimento
da doutrina de que existem espécies de exibição que não se
referem ao perigo do tempo sobre a prova já é o suficiente para
concluir pela existência dessa espécie de ação probatória autô
noma independentemente do periculum in mora, como é tradi
cionalmente conceituado pela doutrina nacional para as caute
lares probatórias.
Ainda assim, por estarem intimamente ligadas ao direito
material que parte tem sobre a coisa ou documento, faz-se ne
cessária, para as hipóteses em que isso não se verifique, a pre
visão de uma ação autônoma que permita a exibição de coisa
ou de documento fundada, exclusivamente, no direito proces
sual de produção da prova independentemente do perigo de a
prova não poder ser produzida durante a fase instrutória do
processo de conhecimento. Por tratar-se de proposta de legç
ferenda, remete-se o leitor ao capítulo próprio ao tema.
De qualquer forma, ainda que seja limitada às hipóteses em
que se demonstre algum direito material da parte sobre a coisa
ou sobre o documento, já se pode afirmar que a ação autônoma
exibitória não se limita à hipótese em que haja fundado perigo
de a prova perder-se em virtude do tempo. Já é uma ampliação
útil aos fins do presente trabalho, porque permite a produção de
uma prova documental, ainda que fundada em direito material,
afastando-se da idéia de que a prova documental produzida de
forma autônoma e antecipada deveria sempre estar acompanha
da do perigo de não poder ser produzida posteriormente.
358
1. IN TRO D UÇÃO
Como já se teve oportunidade de afirmar no capítulo ante
rior, apesar de certa abrangência tanto da lei como do posicio
namento de nossos tribunais diante da ação cautelar probatória,
seria interessante que o direito brasileiro contivesse previsão de
uma ação probatória autônoma sem qualquer necessidade de o
autor demonstrar perigo de que, se a prova não fosse produzida
imediatamente, provavelmente não poderia sê-lo durante a fase
instrutória do processo de conhecimento. Essa é a proposta de
lege ferenda sugerida no capítulo anterior.
Cumpre neste capítulo discriminar qual seria a utilidade de
referida demanda judicial, quais os benefícios que poderão
advir de uma aceitação ampla da ação probatória autônoma,
em que o direito do autor limita-se a seu interesse útil de conhe
cer determinados fatos por meio da produção da prova. Nesse
sentido, algumas serventias colocam-se como principais refe
rentes a tal demanda, que, aparentemente, trariam benefícios
aos jurisdicionados.
Registre-se que os tópicos que serão neste momento discri
minados não são exaustivos; representam tão-somente aqueles
em que, de forma mais evidente, mostram-se os benefícios de
correntes da adoção de uma ação probatória autônoma genéri
ca, fundada exclusivamente no direito à prova.
359
tal sumário e documental. Isso significa dizer que o procedimen
to do mandado de segurança é simplificado, de modo a desen-
volver-se de maneira rápida e ágil, com poucos atos processuais
a serem praticados. Trata-se, à evidência, de uma sumariedade
formai, ainda mais significativa do que aquela presente no pro
cedimento cautelar, sumário ou sumaríssimo. Ao afirmar que o
procedimento é documental, aponta-se para a impossibilidade
— em regra — de produção de prova durante o desenvolvimen
to do mandado de segurança, o que, inclusive, desvirtuaria a
sumariedade de seu procedimento. Dessa forma, exige-se do
impetrante a juntada de toda prova que possuir já na petição
inicial, sem que lhe seja dada nova oportunidade de produzir
qualquer outra prova durante o trâmite procedimental.
Para parcela da doutrina, a exigência de que a prova do
direito líquido e certo do impetrante seja feita já com os docu
mentos que instruirão a petição inicial decorre da interpretação
do art. 6Q, caput, da Lei n. 1.533/51 (Lei do Mandado de Segu
rança — LMS), assim redigido: "A petição iniciai, que deverá
preencher os requisitos dos arts. 158 e 159 do Código de Pro
cesso Civil, será apresentada em duas vias e os documentos, que
instruírem a primeira, deverão ser reproduzidos, por cópia, na
segunda". Ao fazer as devidas adaptações ao Código de Proces
so Civil de 1973, com a substituição dos arts. 158 e 159 do CPC
de 1939 pelos arts. 282 e 283 do CPC atual, especialmente este
último dispositivo, chega-se à conclusão da necessidade da
produção probatória documental já com a apresentação da
petição inicial.
Segundo o art. 283 do CPC, a "petição inicial será instruída
com os documentos indispensáveis à propositura da ação". Há,
na doutrina nacional, certa divergência a respeito do exato al
cance do dispositivo legal mencionado anteriormente, surgindo
dúvidas a respeito de que documentos seriam efetivamente es
senciais à instrução da demanda.
Uma corrente mais ampliativa do texto legal, a valer-se do
disposto no art» 396 do CPC, defende o entendimento de que os
documentos que devem instruir a petição inicial são todos os
360
1
361
que, por sua função imprescindível de justificar no caso concre
to, ainda que sumariamente, as alegações do autor, se faz ne
cessária sua juntada ao processo desde o início da demanda (e
g., o contrato em ação de revisão, anulação, rescisão; o contra
to do qual conste a convenção de arbitragem na ação condena-
tória de instituição de arbitragem)389.
Somente se exige a juntada dos documentos substanciais
ou fundamentais; qualquer outro documento útil poderá ser
juntado em momento posterior ao ingresso do processo. Dá-se,
assim, interpretação extensiva ao disposto no art. 363 do CPC,
ao permitir-se a produção de prova documental depois de apre
sentada a petição iniciai, mesmo fora das exceções do art. 367
do diploma processual civil, desde que estejam presentes dois
requisitos: (i) não sirva a juntada posterior como forma de sur
preender a parte contrária, em ato rejeitado pelo princípio da
boa-fé e lealdade processual; e (ii) que o procedimento ainda
permita a produção da prova documental390.
Diante desse posicionamento, surge interessante questio
namento: é possível aplicar a interpretação referida do disposto
no art. 283 do CPC ao mandado de segurança, admitir-se que o
impetrante junte aos autos documentos após o ingresso da peti
ção inicial, fora das exceções já previstas expressamente no art.
6Q, parágrafo único, da LMS? Apesar de a discussão ser tangen-
cial aos objetivos propostos pelo presente trabalho, porque,
mesmo ao admitir-se a juntada extemporânea de documento
362
não essencial à propositura da ação continuar-se-á a exigir que
seja de natureza documental, parece não haver qualquer empe
cilho à permissão da juntada extemporânea de prova documen
tada — ou documental, como prefere a lei, pelo contrário.
A juntada de documento não essencial à propositura da
demanda após o ingresso de petição inicial servirá para otimizar
a utilidade do mandado de segurança, em claro proveito à pro
teção efetiva do direito do impetrante. Vale lembrar que, uma
vez extinto liminarmente o mandado de segurança por ausência
de prova, o impetrante certamente reingressará com a ação ju
dicial, agora com instrução mais completa, o que já poderia ter
ocorrido na primeira demanda com a complementação da pro
va documental que instruiu a petição inicial, sempre a respeitar-
se o estágio de desenvolvimento do rito. Trata-se da aplicação
do princípio da economia processual, norteador de todo o sis
tema processual e, obviamente, também aplicável ao mandado
de segurança391.
A doutrina e, principalmente, a jurisprudência, entretanto,
não comungam de tal entendimento, por exigirem do impetran
te o esgotamento da produção probatória documental já na
própria petição inicial392. O máximo que se encontra nas lições
de alguns doutrinadores é a possibilidade de adequação do
pedido diante dos documentos juntados aos autos em virtude
363
da informação prestada pela autoridade coatora393. Com relação
à juntada posterior de documentos pelo próprio impetrante, há
forte resistência.
Como única exceção a que se concentre a produção de
prova documental pelo impetrante no momento inicial da de
manda judicial, encontra-se a hipótese prevista pelo art. 6a
parágrafo único, da LMS, dispositivo legal que será comentado
em momento oportuno:
364
f to, jamais retirará essas características do direito do impetrante
1 quando os fatos estejam devidamente comprovados. Nas palavras
de Pontes de Miranda394,
394 Cf. Comentários à Constituição de 1946. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,
1960, v. IV, p. 370. A doutrina pátria é uníssona a esse respeito; vale con
sultar a resenha de diversos doutrinadores em José Cretella Jr., Comentários
à lei do mandado de segurança. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.
86-96.
365
Essa observação foi corretamente feita por Lúcia Valle Fi
gueiredo, para quem o direito líquido e certo aparece em dois
momentos diferentes do procedimento. Inicialmente, aparece
no primeiro contato do órgão judicial com a petição inicial
mesmo porque sua ausência nesse momento já será causa dá
extinção do processo por carência de ação. Ocorre, entretanto
por tratar-se de momento liminar do procedimento, a cognição
sumária, única possível nesse momento processual, levará o
órgão judicial a fazer um juízo de aparência; nesse momento, é
suficiente que exista uma plausibilidade da existência de direito
líquido e certo. O segundo momento, em que se analisará a
efetiva existência de direito líquido e certo, é o da decisão final,
quando, de posse das informações prestadas pela autoridade
coatora e da manifestação do Ministério Público, o juiz, em
cognição exauriente, decidirá baseado em um juízo de certeza,
por poder confirmar ou não a plausibilidade de existência do
direito líquido e certo395.
Ao determinar a razão pela qual se exige do impetrante a
produção da prova já com a petição inicial, de modo a não
admitir qualquer dilação probatória na tentativa de comprovação
de seu direito líquido e certo, é absolutamente natural imaginar
que a prova a ser produzida no processo do mandado de segu
rança tem natureza documental. O próprio art. 6a, caput, da LMS
corrobora tal entendimento ao exigir do impetrante a instrução
da petição inicial com documentos. Não parece correto, entre
tanto, o entendimento literal do disposto na norma legal men
cionada, tampouco que entenda ser somente a prova documen
tal admitida no processo de mandado de segurança.
A impossibilidade de dilação probatória durante o proce
dimento do mandado de segurança, circunstância absolutamen
366
te pacificada tanto na doutrina como na jurisprudência, não
passa, automaticamente, a exigir do impetrante a produção de
uma prova documental, mas sim de uma prova pré-constituída,
ou seja/ de uma prova já formada fora e anteriormente ao pro
cesso. Prova pré-constituída é o gênero e não significa prova
documental, apesar de ser essa a sua mais tradicional espécie396.
A disposição legal do procedimento do mandado de segurança
tão-somente exige que o impetrante convença o juiz dos fatos
que embasam suas alegações com uma prova pronta, a qual não
demanda qualquer atividade probatória durante o processo; essa
função não é exclusiva da prova documental, mas aplica-se a
qualquer prova pré-constitufda robusta o suficiente para conven
cer o órgão judicial dos fatos alegados.
Mais uma vez, torna-se imperiosa a diferenciação entre
prova documental e prova documentada. Por prova documental
entende-se a prova que tenha o conteúdo e forma de documen
to conforme as exigências legais, enquanto por prova documen
tada se entende qualquer prova, de qualquer natureza, que seja
materializada por meio de um documento. Uma perícia judicial
é materializada em um laudo pericial, que, certamente, é um
documento, se não em seu conteúdo, inegavelmente em sua
forma. O mesmo ocorre com a colheita de prova oral, materia
lizada na ata de audiência, que também será um documento,
não em seu conteúdo, mas em sua forma.
O que se pretende demonstrar é que, a par de tradicional
mente se pensar na prova documental quando se fala em prova
pré-constituída, esta não passa de sua principal espécie. Qual
quer prova que tenha sido produzida judicialmente e materiali
zada em um documento, embora seja entendida como prova
367
causai no processo em que foi produzida, será documental_ao
menos em sua forma — no processo que a receber como prova
emprestada, tema já explorado em capítulo específico sobre as
características da prova emprestada.
No mandado de segurança, a exigência da produção de
prova já na petição inicial, como foi visto, tem como causa a
necessidade de comprovação prima fade de, ao menos, uma
plausibilidade do direito líquido e certo, e em nenhum momen
to é possível concluir que esse convencimento no espírito do
juiz a respeito dos fatos só possa ser obtido por meio da prova
documental. Qualquer meio de prova é apto a convencer o juiz
da ocorrência ou da veracidade de fatos; somente não se admi
te, no mandado de segurança, a dilação probatória. Caso a
"dilação probatória" tenha sido realizada antes do processo e
seu resultado apresentado sob a forma de prova documentada,
o único requisito que efetivamente se exige na comprovação do
direito líquido e certo estará preenchido.
O que se pretende afirmar é que qualquer prova documen
tada, de natureza documental ou não, poderá ser apta, no caso
concreto, a convencer, sumariamente, em um primeiro momen
to, e definitivamente, em um segundo momento, o órgão judicial
da existência do direito líquido e certo. Como o impetrante não
terá oportunidade de produzir as chamadas provas causais du
rante o procedimento, a ação autônoma probatória será extre
mamente útil para que, antes do mandado de segurança, obtenha,
pela realização de perícia ou prova oral, a prova documentada
que lhe será exigida para a impetração do mandamus. Será de
extrema valia ao impetrante essa ação probatória autônoma
quando não possuir prova de natureza documental suficiente
para provar seu direito líquido e certo.
É nesse sentido o correto e preciso entendimento de Rodri
go Reis Mazzei397, que, ao tratar do procedimento do mandado
397Cf. Mandado dè injunção. In: Fredie Didier jr. (Coord.). Ações constitucionais.
Salvador: jus Podivm, 2005, p. 149.
368
1
369
entendimento não pode ser aceito, a menos que se esteja dis
posto a abandonar o sistema atual de valoração da prova ado
tado pelo direito brasileiro, que é o do livre convencimento
motivado do juiz, no qual as provas não têm valor prefixado
dependendo sempre de uma análise no caso concreto. Ao ad
mitir que a prova documental é a única apta a configurar o di
reito líquido e certo, pela "maior clareza" que sua força proba
tória imprime, volta-se ao já abandonado sistema da prova tari
fada, em que a força probatória dos meios de prova já vem de
finida a priori, independentemente de sua análise no caso
concreto.
Ao aplicar o princípio do livre convencimento motivado do
juiz, será impossível concluir que a prova documental é mais
robusta e carrega em si uma força probatória maior do que
qualquer outro meio de prova. A carga de convencimento de
cada meio de prova deve ser anal isadae fixada pelo juiz no caso
concreto, de maneira fundamentada, para que se evitem abusos.
É plenamente admissível que uma prova teoricamente de maior
força probatória, como a perícia, seja superada, em termos de
convencimento do juiz, por outra prova, em tese, de menor
força probatória, como a testemunhai Há, inclusive, disposição
expressa nesse sentido no art. 436 do CPC.
Diante do sistema de valoração probatória admitido no
processo civil brasileiro, não é possível afirmar, a priorie abstra
tamente, que o documento seja a única prova apta a demonstrar
a existência do direito líquido e certo. Admitindo que todas as
provas têm, em abstrato, a mesma carga probatória, dependen
do da análise do juiz no caso concreto para descobrir qual terá
maior força de convencimento é, no mínimo, prematuro afirmar
que somente a prova documental poderá instruir o pedido do
370
impetrante do mandamus. Dessa forma, qualquer prova pré-
constituída, documental ou simplesmente documentada, será,
em tese, apta a demonstrar o direito líquido e certo no caso
concreto.
Existe ainda uma outra crítica à admissão de prova docu
mentada no mandado de segurança. Segundo Luiz Guilherme
Marinoni400,
371
retirar-se um direito do impetrante tão-somente porque o réu não
se preparou tão adequadamente como ele para a demanda ju
dicial.
Além disso, será permitido ao réu sempre apresentar prova
documental, que, aliás, poderá desbancar a prova documentada
de natureza testemunhai ou pericial apresentada pelo impetran
te, como também poderá, o que já foi afirmado, valer-se de ação
probatória autônoma a fim de preparar-se para o eventual man
dado de segurança, hipótese em que apresentará a prova docu
mentada, da mesma forma que foi possível ao impetrante.
Dessa forma, não parece correto o entendimento de que seja
impossível ao réu fazer a contraprova a essa espécie de prova,
porquanto poderá fazê-lo por meio tanto de prova documental
como de prova documentada obtida em processo autônomo
probatório prévio ao mandado de segurança.
As questões referentes à força de convencimento de uma
prova documentada testemunhai ou pericial, ou ainda do exíguo
prazo decadencial do mandado de segurança, fogem ao tema
do presente debate e devem ser analisadas no caso concreto401.
O que não se pode admitir como correto é a não-admissão, a
priori, dessa espécie de prova como apta a demonstrar, no caso
concreto, o direito líquido e certo do impetrante. Essa admissão,
inclusive, otimizará a utilização do mandado de segurança, com
nítido benefício do impetrante em primeiro plano, mas também
como nítida forma de proteção mais eficaz e completa dos di
reitos.
401Como bem notado por Rodrigo Reis Mazzei (Mandado de injunção, cit., p.
149), "há o risco da prova documentada não ser hígida ou incontroversa o
suficiente, fazendo com que seja necessário reclamar a complementação
probatória e, via de talante, causando embaraço. No entanto, esse é um
risco do impetrante, que também pode ocorrer com a prova documental,
ainda que em menor escala (p. ex.: a parte passiva afirma que o documen
to foi falsificado)".
372
I
3. CO ISA JU LG A D A SECUNDUM EVENTUM PROBA-
TIO NIS NAS AÇÕES COLETIVAS
A coisa julgada no direito coletivo é um dos temas mais ricos
e complexos do processo civil, assunto que, isoladamente, já
rnereceria a atenção de uma tese inteira. É evidente que, dentro
dos estreitos limites do presente trabalho, o tratamento que será
dado ao tema ficará limitado ao que for essencial para demonstrar
mais uma utilidade da aceitação de ação probatória autônoma
geral. Portanto, entre os variados aspectos da coisa julgada no
processo coletivo, interessará a análise da chamada coisa julgada
secundum eventum probationis ou secundum probationem.
No tocante a direitos coletivos e difusos, a coisa julgada,
na hipótese de julgamento de Improcedência do pedido, tem
uma especialidade que a diferencia da coisa julgada tradicional,
prevista pelo Código de Processo Civil. Enquanto, no instituto
tradicional, a imutabilidade e a indiscutibilidade geradas pela
coisa julgada não dependem do fundamento da decisão, nos
direitos difusos e coletivos, caso tenha a sentença como funda
mento a ausência ou a insuficiência de provas, não se impedirá
a propositura de novo processo com os mesmos elementos da
ação — partes, causa de pedir e pedido —, de modo a possibi
litar uma nova decisão, o que, naturalmente, afastará, ainda que
de forma condicional, os efeitos de imutabilidade e indiscutibi
lidade da primeira decisão transitada em julgado. Excluem-se
da análise os direitos individuais homogêneos, porque, nestes,
a coisa julgada opera-se secundum eventum litis; assim, qualquer
fundamento que leve à Improcedência não afetará os interesses
dos indivíduos titulares do direito (art. 103, III, CDC).
I Os dispositivos legais a respeito do tema, no tocante ao
direito coletivo402, encontram-se: no art. 18 da Lei n. 4.717/65
(Lei da Ação Popular): "A sentença terá eficácia de coisa julgada
oponível erga omnes, exceto no caso de haver sido a ação jul-
373
gada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer
cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento
valendo-se de nova prova"; no art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei dá
Ação Civil Pública): "A sentença civil fará coisa julgada erga
omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator
exceto se o pedido for julgado improcedente por deficiência de
provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar
outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova"-
e no art. 103, I, da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Con
sumidor): "erga omnes, exceto se o pedido for julgado improce
dente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer
legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamen
to, valendo-se de nova prova, na hipótese do inc. I do parágrafo
único do art. 81".
Como se nota dos dispositivos legais transcritos, não se pode
afirmar que a coisa julgada secundum eventum probationis seja
uma novidade no sistema processual pátrio, já que existe desde
1965, não obstante se ter generalizado com o advento do Códi
go de Defesa do Consumidor. Ainda que não seja instituto re
cente, mantém-se em torno dele uma série de questionamentos
que devem ser — ainda que não de forma exaustiva — enfren
tados como forma de sustentar a utilidade de adoção da ação
probatória autônoma genérica.
A primeira questão a respeito dessa espécie atípica de coisa
julgada diz respeito à sua constitucionalidade. Corrente minori
tária vê uma quebra da isonomia em referido sistema e aponta
para uma proteção exacerbada dos autores das ações coletivas
stricto sensu em desfavor dos réus. Apesar de mais sentida nas
ações que tenham como objeto os direitos individuais homogê
neos, também nas que tratam de direitos difusos e coletivos ha
veria uma disparidade de tratamento absolutamente desigual, o
que feriria o princípio constitucional da isonomia403.
374
Majoritariamente, entretanto, a doutrina entende pela cons-
titucionalidade da coisa julgada secundum eventum probationis
_como também da coisa julgada secundum eventum litis —,
afirmando que os sujeitos titulares do direito, ao não participarem
efetivamente do processo, não poderão ser prejudicados por uma
má condução procedimental do autor da demanda. Não seria
justo ou legítimo impingir a toda uma coletividade, em decorrên
cia de falha na condução do processo, a perda definitiva de seu
direito material. A ausência da efetiva participação dos titulares
do direito em um processo contraditório é fundamento suficiente
para defender essa espécie de coisa julgada material404.
Ademais, a coisa julgada secundum eventum probationis
serve como medida de segurança dos titulares do direito que
não participam como partes no processo contra qualquer espé
cie de desvio de conduta do autor. A insuficiência ou a inexis
tência de provas poderá decorrer, logicamente, de uma inaptidão
técnica dos que propuseram a demanda judiciai, mas também
não se poderá afastar, de antemão, algum ajuste entre as partes
para que a prova necessária não seja produzida e com isso a
sentença seja de improcedência405. É bem verdade que os pode
ria Tucci, Devido processo legal e tutela jurisdicional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1993, p. 120-121; Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Ações
coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 263-264.
404Ana Cândida Menezes Marcato, O princípio do contraditório como ele
mento essencial para a formação da coisa julgada material na defesa dos
interesses transindividuais. In: Rodrigo Mazzei e Rita Dias Nolasco (Coords.),
Processo civil coletivo. São Pãulo: Quartier Latin, 2005, p. 317; Luiz Gui
lherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, Manual do processo de conheci
mento/ cit., p. 781.
405A exibir essa preocupação, José Marcelo Menezes Vigliar, Ação civil públi
ca. 5. ed. São Raulo: Atlas, 2001, p. 117; Nelson Nery Jr. e Rosa Maria
Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, cit., p. 1348; Rodolfo
de Camargo Mancuso, Ação popular. 4. ed. São Paulo: Revista dosTribunais,
2001, p. 276; Pedro Lenza, Teoria geral da ação civil pública. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003, p. 227; J. M. Othon Sidou, "Habeas corpus",
mandado de segurança, mandado de injunção, "habeas data ", ação popular,
cit., p. 372.
375
res instrutórios do juiz, aguçados nas ações coletivas em razão
da natureza dos direitos envolvidos, poderiam também funcionar
como forma de controle para que isso não ocorra, mas é inegá
vel que a maneira mais eficaz de afastar, definitivamente, qual
quer ajuste fraudulento nesse sentido é a adoção da coisa julga
da secundum eventum probationis.
Outra questão que parece ter sido pacificada pela doutrina
e pela jurisprudência diz respeito aos legitimados à propositura
de um novo processo com a mesma causa de pedir e o mesmo
pedido do primeiro: estaria legitimado o mesmo sujeito que
propôs a primeira demanda, resolvida de forma negativa por
ausência ou insuficiência de provas? A ausência de qualquer
indicativo proibitivo para a repetição do pólo ativo nas duas
demandas parece afastar de forma definitiva a proibição. Todos
os legitimados poderão, com base na prova nova, propor a "se
gunda" demanda, mesmo aquele que já havia participado no
pólo ativo da "primeira"406.
A próxima questão a ser enfrentada diz respeito mais dire
tamente ao tema central do presente estudo, por referir-se à
formação ou não de coisa julgada nas ações coletivas — direitos
difusos e coletivos — julgadas improcedentes por ausência ou
insuficiência de provas. Fala-se em coisa julgada secundum
eventum probationis, mas há divergência jurisprudencial a respei
to de ser essa uma espécie atípica de coisa julgada ou se, nesse
caso, a coisa julgada material estaria afastada, de modo a operar-
se, no caso concreto, tão-somente a coisa julgada formal.
Há parcela significativa da doutrina que entende não se
operar, nesse caso, a coisa julgada material, por afirmar que,
sendo possível a propositura de um novo processo com os mes
mos elementos da ação — partes, causa de pedir e pedido —,
406Nesse sentido, José Carlos Barbosa Moreira, Ação popular no direito brasi
leiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados "interesses
difusos". In:______. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977,
p. 123; Sérgio Cruz Arenhart, Perfis da tutela inibitória coletiva. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003, p. 412.
376
a imutabilidade e indiscutibilidade próprias da coisa julgada
material não se fariam presentes. A possibilidade de existência
de um segundo processo, que, naturalmente, proporcionará uma
segunda decisão, afetaria de forma irremediável a segurança
jurídica advinda da coisa julgada material tradicional, de forma
a estar afastado esse fenômeno processual quando os fundamen
tos que levaram à Improcedência do pedido forem a insuficiên
cia ou a inexistência de prova.
Nesse sentido, as lições de Ricardo de Barros Leonel407, ao
afirmar que, nessa hipótese,
407Cf. Manual do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.
273-274. No mesmo sentido, o entendimento de Hugo Nigro Mazzilli, A
defesa dos interesses difusos em juízo. 15. ed. São Pàulo: Saraiva, 2002, p.
427; Pedro Lenza, Teoria geral da ação civil pública/ cit., p. 227; Luiz Gui
lherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, Manual do processo de conheci
mento/ cit., p. 781; Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery, Código de
Processo Civil comentado, cit., p. 1.347-1.348; Sérgio Cruz Arenhart, Perfis
da tutela inibitória coletiva/ cit., p. 412.
seria incompatível com o fenômeno da coisa julgada material
que exige a imutabilidade e a indiscutibilidade do julgado.
O grande processualista uruguaio Eduardo J. Couture408
afirmou ser possível dizer "com relativa precisão que, quando
uma sentença já não pode ser objeto de recurso algum, mas
admite a possibilidade de modificação em processo posterior
está-se em presença de uma situação de coisa julgada formal"
Como se percebe da doutrina do mestre, a circunstância de ser
possível ou não falar em coisa julgada dependerá, exclusiva
mente, da estabilidade que esta adquire, de modo a desprezar
outros elementos que devem ser levados em conta na fixação
do conceito. Pàrece incidir no mesmo equívoco a doutrina que
defende a inexistência de coisa julgada material na hipótese
objeto do presente tópico.
A melhor doutrina a tratar do tema da coisa julgada das
sentenças determinativas chega à conclusão de que também
nestas, se houver a coisa julgada formal, operar-se-á a coisa
julgada material sempre que a sentença for de mérito, ainda que
possa ter sua eficácia limitada no tempo em razão de fatos su
pervenientes capazes de modificar o estado de fato ou de direi
to409. Dessa forma, apesar de os efeitos da decisão poderem ser
modificados por meio de outro processo, não restará dúvida de
que a sentença determinativa, como qualquer outra sentença de
mérito, produzirá a coisa julgada material
É evidente que a coisa julgada material gerada nas senten
ças determinativas não é a mesma coisa julgada secundum
eventum probationis gerada no processo coletivo. No primeiro,
a verificação de fato superveniente será apta a gerar modificação
378
1
! nas circunstâncias de fato ou de direito, o que significa dizer que
! afetará a causa de pedir, um dos elementos da ação. Dessa for-
rna, a sentença determinativa já transitada em julgado somente
{ poderá ser modificada por outra sentença porque, nesse novo
processo, haverá uma causa de pedir diferente da do primeiro;
não haverá, por isso, a identidade plena entre os dois processos.
Tal fenômeno não se repete nas ações coletivas, porque inde
pendentemente da modificação da causa de pedir, aceitar-se-á
um novo processo idêntico ao primeiro, desde que seja fundado
em prova nova.
A identidade entre as duas situações encontra-se na exigên
cia de que um fato novo superveniente ocorra a fim de que se
possa afastar a segurança jurídica gerada pela primeira decisão
transitada em julgado. Nas sentenças determinativas, esse fato
novo é amplo e gera a modificação da causa de pedir, enquan
to, nas ações coletivas, o fato novo é o surgimento de uma nova
prova, que, apesar de não modificar em nada a causa de pedir
— até porque, com nova causa de pedir, não seria necessária a
nova prova —, é condição sine qua non para que a segurança
jurídica da primeira decisão transitada em julgado seja afastada.
Nos dois casos, a coisa julgada material existe, mas será afasta
da se houver um fato superveniente.
Aos partidários do entendimento de que não existe coisa
julgada nas ações que tratam de direito difuso ou coletivo quan
do a Improcedência decorrer da insuficiência ou ausência de
provas, surge uma questão de difícil resposta: como deverá o
juiz proceder ao receber uma petição inicial de processo idên
tico a um processo anterior decidido nessas condições, em que
o autor não indica qualquer nova prova para fundamentar sua
pretensão, alegando tão-somente não ser possível suportar a
extrema injustiça da primeira decisão? Sem ao menos indícios
de que existe uma prova nova, ainda que o fundamento da pri
meira decisão tenha sido a insuficiência ou ausência de provas,
poderá o juiz dar continuidade ao processo?
É evidente, nesse caso, que o juiz deverá indeferir a petição
inicial; não há maiores dúvidas a esse respeito. Mas sob qual
379
fundamento? O fundamento de sua decisão será o art. 267 V
do CPC, o qual aponta que, nesse caso, não se poderá afastar á
segurança obtida pela coisa julgada material gerada pela primei
ra decisão. Essa é a prova maior de que existe coisa julgada
material, independentemente do fundamento da decisão de
mérito da primeira demanda que efetivamente ocorreu, embora
sua imutabilidade e sua indiscutibilidade estejam, no caso da
ausência ou insuficiência de provas, condicionadas à inexistên
cia de prova nova que possa fundamentar a nova demanda.
Apesar da defesa veemente da existência de coisa julgada
material na hipótese ora analisada e da extinção do processo
quando não houver prova nova em razão justamente do fenô
meno da coisa julgada material, ainda que seja admitida a ine
xistência de coisa julgada material quando esta se verifica se-
cundum eventum probationis, como prefere a doutrina que
tratou do tema, a conclusão a que todos chegam já é suficiente
para os fins buscados no presente trabalho: se não houver prova
nova, o processo deverá ser extinto sem julgamento do mérito.
Seja por falta de interesse de agir, como prefere a doutrina410,
seja por força da coisa julgada, o essencial é a conclusão pací
fica de que o segundo processo não deve ser admitido.
Há outro interessante questionamento a respeito do tema
que vem suscitando dúvidas na doutrina nacional Os dispositi
vos legais que tratam da coisa julgada secundum eventum pro
bationis são omissos a respeito da exigência de que, expressa ou
implicitamente, conste da sentença ter sido a improcedência
380
gerada pela ausência ou insuficiência de provas ou se tal cir
cunstância poderá ser estranha à decisão, de modo a ser de
monstrada somente na segunda demanda. A tomada de uma ou
de outra posição terá peso fundamental no próprio conceito de
prova nova, que será fixado a seguir.
A tese restritiva exige que haja na motivação ou no dispo
sitivo da decisão, expressa ou implicitamente, a circunstância
da ausência ou insuficiência de provas. Afirma-se que, por ser
uma exceção à regra da coisa julgada material prevista em nos
so ordenamento processual, deverá o juiz indicar, ou ao menos
ser possível deduzir de sua fundamentação, que sua decisão de
Improcedência decorreu da insuficiência ou inexistência de
material probatório. A ausência dessa circunstância proporcio
naria, obrigatoriamente, a geração de coisa julgada material
tradicional411.
Com entendimento contrário, existe corrente doutrinária
que não vê qualquer necessidade de constar, expressa ou impli
citamente, na sentença que a improcedência do pedido decorreu
4,1A tratar, especificamente, da ação popular, José Afonso da Silva, Ação po
pular constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 273, e Ro
dolfo de Camargo Mancuso, Ação popular, cit., p. 284. No mesmo sentido,
com tratamento genérico da coisa julgada coletiva, Arruda Alvim, Notas
sobre a coisa julgada coletiva. Revista de Processo/ São Paulo: Revista dos
Tribunais, n. 88, p. 37: "A improcedência por insuficiência de provas deve
rá constar ou, ao menos, defluir da fundamentação da sentença, e esta
circunstância é que será o parâmetro decisivo para viabilizar-se a proposi
tura da mesma ação, calcada em nova prova. Ou seja, é a insuficiência de
prova, como tal declarada, que determinará a não-ocorrência de coisa
julgada. Se tiver sido esse o fundamento da improcedência, é ele que de
termina a não-ocorrência de coisa julgada; e, pois, se houver nova prova,
pode ser reproposta a ação civil coletiva; se não vier a existir nova prova,
ainda que não haja coisa julgada, aquela circunstância não poderá vir a ser
útil na ordem prática, como poderia ter vindo a ser". Também Cregório
Assagra de Almeida, Direito processual coletivo brasileiro. São Paulo: Sarai
va, 2003, p. 377-378, e J. M. Othon Sidou, "Habeas corpus", mandado de
segurança, mandado de injunção, "habeas data", ação popular, cit., p.
371.
3§1
de ausência ou insuficiência de provas. Foi Antonio Gidi412quem
primeiro defendeu tese mais ampla, ao afirmar que não se de
veria adotar um critério meramente formal do instituto, propon
do um critério mais liberal, nomeado de critério substancial
Segundo essa visão, sempre que um legitimado propuser, com
o mesmo fundamento, uma segunda demanda coletiva na qual
fundamente sua pretensão em nova prova, estar-se-á diante da
possibilidade de obter uma segunda decisão.
A segunda corrente defende o entendimento mais acertado,
considerando que a adoção da tese restritiva limitaria indevida
mente o conceito de prova nova. Ao exigir do juiz fundamenta
ção referente à ausência ou à insuficiência de provas, será im
possível este se manifestar sobre o que não existia à época da
decisão, o que retiraria a possibilidade de propositura de uma
nova demanda fundada em meio de prova que não existia à
época da prolação da decisão. Nesses casos, haveria um inde
vido e indesejável estreitamento do conceito de nova prova, que
também, por não ser tranqüilo na doutrina, passa-se a analisar.
Todos os regramentos legais que tratam da coisa julgada
secundum eventum probationis são omissos quanto ao concei
to de "nova prova", missão legada à doutrina. Parcela majoritá
ria da doutrina entende que não se deve confundir nova prova
com prova superveniente, surgida após o término da ação cole
tiva. Por esse entendimento, seria nova a prova, mesmo que
382
preexistente ou contemporânea à ação coletiva, desde que não
tenha sido nesta considerada. Assim, o que interessa não é se a
prova existia ou não à época da demanda coletiva, mas se foi
ou não apresentada durante seu trâmite procedimental; será nova
porque, no tocante à pretensão do autor, é uma novidade, mes
mo que, em termos temporais, não seja algo recente413.
Arruda Alvim414 faz interessante observação, afirmando
que
383
Registre-se o pensamento, a respeito do tema, exposto por
Ada Pellegrini Grinover, que, nos trabalhos para a elaboração
do Anteprojeto de Código Modelo de Processos Coletivos para
a Ibero-América, verificou, junto com Kazuo Watanabe, que416
384
da ação coletiva, sua apresentação será suficiente para permitir
a propositura de um novo processo com os mesmos elementos
da ação do anterior. Nesse caso, evidentemente, não será pos
sível defender a corrente doutrinária que exige do juiz a indica
ção, expressa ou implícita, de ter o julgamento de Improcedên
cia decorrido de ausência ou insuficiência de provas. Não sa
bendo da existência da prova porque não era possível sua ob
tenção, o que só veio a ser possibilitado, por exemplo, pelo
avanço tecnológico, não haveria possibilidade lógica de o juiz
considerar tal circunstância em sua decisão.
O entendimento vem consagrado no Anteprojeto de Códi
go Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América, em seu
art. 30, § 1Q, dispositivo parcialmente repetido no art. 12, § I a,
do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos:
385
insuficiência de provas. O problema, entretanto, é que, difícil
mente, um dos legitimados para a propositura da demanda co
letiva será ingênuo a ponto de preparar uma petição inicial em
que confesse, expressamente, não ter qualquer prova nova capaz
de preencher o requisito legal. Assim, é presumível que, embo
ra não tenha, efetivamente, uma nova prova apta a produzir
resultado diferente da primeira demanda, alegará sua existência
o que criará, no mínimo, uma situação paradoxal.
Para que se admita uma segunda demanda coletiva, é ne
cessária prova nova, mas, se não for esta pré-constituída — pen
sa-se imediatamente no exemplo clássico do documento —, a
comprovação da existência ou não da tal "nova prova" ficará
relegada à fase de instrução do processo. Isso significa dizer que,
para verificar se a ação poderia ou não ser proposta, quase todo
o procedimento deverá ter transcorrido e, das quatro fases tra
dicionalmente lembradas ao processo de conhecimento, todas
terão sido percorridas: fase postulatória, fase de saneamento,
fase instrutória e fase decisória. Todo o processo desenvolve-se
para que no final o juiz entenda não existir "nova prova" e ex-
tingui-lo por falta de interesse de agir ou, como parece mais
acertado, por força de coisa julgada material.
É como se um convidado para uma festa precisasse de um
convite para nela ingressar, mas a verificação de que este se
encontra em seu poder somente ocorra quando a festa já estiver
em seu final, momentos antes de as luzes se acenderem e de
as cadeiras serem postas sobre as mesas para lavar-se o chão.
Um processo inteiro terá sido desenvolvido inutilmente para
descobrir-se ao seu final que não deveria nem ao menos ter
sido proposto, o que, evidentemente, é, no mínimo, um contra-
senso.
Marcelo Abelha Rodrigues418 já havia percebido a incon
gruência lógica ao afirmar que
4,8Cf, Ação civil pública, cit., p. 329. Também Pedro Lenza (Teoria geral da
ação civil pública, cit., p. 286), fala em análise sumária da existência da
nova prova, que é comparada com uma espécie de fumus boni iuris.
386
"não se poderia exigir do autor da demanda coletiva outra
coisa que não fosse uma demonstração razoável de que a
nova prova tenha o condão de modificar o resultado, ainda
que isso se dê pela adição das provas anteriores. Quanto
ao juiz, deve fazer um juízo provável, pois a certeza desse
aspecto só virá com a produção da prova propriamente dita,
cujo momento é preso à fase instrutória, salvo se se tratar
de prova documental (art. 284, CPC)".
387
pliativa. Na conceituação ampliativa, a eventualidade atinge
tanto o autor como o réu, a determinar um ônus das partes de
apresentar, de forma concentrada e simultaneamente no mesmo
ato, todas as suas alegações e os meios de prova que pretendem
produzir. A definição restritiva do princípio da eventualidade
limita o fenômeno ao réu, por exigir a alegação de todas as suas
matérias de defesa de forma concentrada e simultânea, ainda
que contraditórias entre si, para que, na eventualidade de não
ser acolhida uma delas, o juiz passe à análise das demais419.
Também exige somente do réu a indicação, na contestação, dos
meios de prova que pretende utilizar na demonstração de suas
alegações fáticas.
Apesar de serem fenômenos processuais diferentes, resta
evidenciado que, tanto para a corrente ampliativa como para a
corrente restritiva, o princípio da eventualidade cria um ônus
processual para a prática de atos que têm como conseqüência,
diante do descumprimento do ônus, a preclusão420. Isso signifi
ca dizer que, caso a parte não alegue as matérias que deveriam
ter sido apresentadas naquele determinado momento processual,
não será possível fazê-lo posteriormente, de modo a operar-se a
preclusão consumativa — no caso de alguma matéria, mas não
todas, ter sido alegada — ou a preclusão temporal — no caso
de o ato não ser praticado, de modo a não ser nenhuma matéria
alegada.
O direito brasileiro parece ter adotado o conceito amplia-
tivo do princípio da eventualidade, o que, inclusive, parece mais
justo em termos de isonomia processual, por atingir tanto o
388
f
autor como o réu425. Assim, prevê o art. 282, III, IV eVI, doCPC,
como exigência de regularidade formal da petição inicial, a
indicação da causa de pedir — fatos e fundamentos jurídicos —,
o pedido e suas especificações, bem como as provas com que
o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados. São,
como se percebe facilmente, exigências para que o autor con
centre, de forma simultânea, já na petição inicial, todas as ale
gações de ataque que tiver. Pâra o réu, o princípio encontra-se
materializado no art. 300 do CPC, a exigir que, na contestação,
alegue todas as matérias defensivas, com exposição das razões
de fato e de direito, bem como a especificação das provas que
pretende produzir.
Observe-se, de início, que o princípio da eventualidade
parece não ser tão drástico ao autor quanto é para o réu, por
existir no sistema certa flexibilização no tocante à concentração
da narrativa da causa de pedir e de pedido na petição inicial. O
art. 264 do CPC — que tem como objeto a estabilização da
demanda — permite que o autor, antes da citação, modifique
livremente tanto a causa de pedir como o pedido, o que também
pode ocorrer após a citação até o saneamento do processo,
desde que coni a anuência do réu. Após o saneamento do pro
cesso, entretanto, ocorrerá a estabilização objetiva definitiva da
demanda, de modo a tornar-se impossível, mesmo que com isso
o réu concorde, a modificação da causa de pedir ou do pedido.
Conclui-se, portanto, que o processo sempre ingressará na fase
probatória sem qualquer possibilidade de alteração da causa de
pedir ou do pedido. Para o réu, caso não se apresente a matéria
de defesa na contestação, esta não mais poderá ser alegada422.
389
Existem algumas justificativas para a adoção do princípio
da eventualidade no tocante à concentração dos fundamentos
de ataque e de defesa em determinado momento processual
Tradicionalmente, a doutrina que enfrentou o tema e prestigia o
princípio da eventualidade aponta-o como garantidor de impor
tantes princípios processuais: lealdade e boa-fé processuais-
economia; contraditório e ampla defesa.
A necessidade de indicação clara e precisa dos argumentos,
dos pedidos e das exceções pelas partes, já no momento inicial
do processo, impede que a parte maliciosa oculte fatos ou pre
tensões para as fases finais do procedimento, como forma de
surpreender a parte contrária. Nesses termos, o princípio da
eventualidade funciona de maneira bastante clara contra a chi
cana processual e o litigante de má-fé423. A deslealdade proces
sual do litigante que somente traz ao processo fato ou alegações
tardiamente poderá gerar duas ordens diferentes de problemas:
surpreender a parte contrária — de modo a afrontar o contradi
390
f
tório, como será visto — ou prolongar demasiadamente o pro
cesso — de modo a afrontar a economia processual
Também a eventualidade servirá para fazer valer no proces
so o princípio da economia processual, ao evitar que haja retro
cessos e conseqüente protelação da entrega da prestação juris
dicional. A ausência de qualquer limite às alegações de fato e
de direito das partes poderá ensejar um processo infinito, em
que a parte — até mesmo imbuída de má-fé — faria alegações
a todo e qualquer momento, de modo a evitar a conclusão do
processo424. Ainda que seja possível, nessa hipótese, a concessão
da tutela antecipada como forma de sanção processual à parte
que não permite a conclusão do processo, desde que esteja
presente a prova inequívoca da verossimilhança da alegação
(art. 273, II, CPC), a regra da eventualidade evitará a confusão
procedimental, marcada por idas e vindas e por estado perma
nente de indefinição.
Por fim, a regra da eventualidade funcionaria como instru
mento garantidor do contraditório e da ampla defesa. Ao saber
exatamente quais são as alegações do adversário, a parte tem
amplas condições de posicionar-se contrariamente a elas, o que
garantiria a utilização de todos os meios previstos no ordena
mento processual de defesa de seu direito. Além disso, evitaria
a surpresa de ser considerada alguma alegação que, por não ter
sido objeto de exposição em seu momento adequado, não tenha
sofrido a devida impugnação pela parte, o que, à obviedade,
contraria o princípio do contraditório. Ao saber, com exatidão,
quais as alegações fáticas e jurídicas da parte adversária, não
será possível alegar que foi surpreendida pela adoção desta ou
daquela tese na sentença425.
391
É preciso registrar, embora de forma mais breve do qUe
merece o assunto, que parcela da doutrina critica a rigidez do
princípio da eventualidade estabelecido pelo direito brasileiro
e aponta para um instituto que, na verdade, não atinge os prin
cípios que pretende respeitar. Para essa parcela doutrinária a
adoção de um sistema rígido como o previsto nos arts. 282 e
300 do CPC, ainda que com as atenuações dos arts. 284, 294 e
303 do mesmo diploma legal, piora a qualidade da prestação
jurisdicional, sem efetivar os ganhos propugnados pela doutrina
tradicional, defensora da aplicação da regra da eventualidade.
De maneira resumida, a crítica pode ser definida nas pala
vras de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira426, ao expor o proble
ma diante do confronto entre economia processual e justiça da
decisão. Ao tratar do tema, o processualista afirma que a regra
da eventualidade
civil, cit., p. 131; Luis Guilherme Aidar Bondioli, Fato superveniente: con
ciliação entre princípios, garantias e valores. In: Hélio Rubens Baptista Ri
beiro Costa, josé Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, Pedro da Silva Dina
marco (Coords.). Linhas mestras do processo civil. São Paulo: Atlas, 2004,
p. 430-431; José Carlos Barbosa Moreira. Correlação entre o pedido e a
sentença. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 83,1996,
p. 209.
426Cf. Do formalismo no processo civil/ cit., p. 173-174. Também de forma
crítica, com relação ao direito italiano, GiuseppeTarzia (O novo processo
civil de cognição na Itália. Revista de Processo/ São Paulo, Revista dos Tri
bunais, n. 79, 1995, p. 58): "Pàrece-me que o princípio continue a aparecer
na dúplice e contraditória veste de um fantasma a ser exorcizado e de um
mito a ser realizado".
392
— a objetividade do advogado constitui um talento especial,
nem sempre valorizado pelo cliente como virtude — muitas
vezes podem não reconhecer, apesar de todos os esforços,
o que pode parecer como o mais essencial a um terceiro
imparcial, livre em tese de preconceitos e prejuízos. Os
arrazoados da contraparte eventualmente conterão suges
tões e novas idéias; ou o ponto crucial somente será des
vendado pela inquirição do juiz, quando da ouvida das
testemunhas, ou até no momento da prolação da sentença.
Em contrapartida, a liberdade de suscitar questões, a pos
sibilidade ilimitada de alegações, a não-observância das
fases lógicas do procedimento, o enfraquecimento em suma
das normas de concentração pela lei processual, constituem
inevitáveis fatores para a demora do processo, muitas vezes
intolerável".
394
!
uma ampla liberdade no tocante às alegações das partes, o que
não ocorre mais na atual codificação. A liberdade quase abso
luta encontrada no CPC de 1865 encontrou uma limitação no
CPC de 1940, que procurou estabelecer um sistema híbrido, no
qual se estabeleceu um sistema de preclusões elásticas, a con
fortar a regra da liberdade das alegações com a da eventualida
de. Ainda assim, a experiência mostrava que a liberdade no
momento de alegações da parte continuava a vigorar, o que
gerou nova modificação levada a cabo pela Lei n. 581, de 14-
7-1950, pela qual se passou a permitir tão-somente a emendatio
libelli, não a mutatio libelli. Ainda não plenamente satisfeitos
pela alteração, os italianos modificaram novamente o sistema
com a Lei n. 353 de 26-11 -1990, que, com as alterações advin
das da Lei n. 534/95, regulam o princípio da eventualidade nos
dias atuais430.
Atualmente, a fase preparatória do processo — trattazione
della causa — está dividida em duas audiências: udienza di
prima comparizione (art. 180, CPC) e prima udienza di trattazio
ne (art. 183, CPC). É possível que, na primeira audiência, o juiz
pratique atos típicos da segunda. De qualquer forma, interessa
ao presente estudo a análise de dois dispositivos específicos
referentes à segunda audiência, mais precisamente o art. 183,
4Üe 5a comma, do CPC.
Segundo a previsão do art. 183, 4Qcomma, do CPC, é pos
sível que, na segunda audiência, ocorra a emendatio libelli, com
uma alteração da demanda originária sem que, contudo, permi
ta-se a mutatio libelli. Isso significa dizer que, substancialmente,
o pedido e a causa de pedir não poderão ser modificados nessa
audiência, apenas admite-se uma variação desses elementos431.
430Para uma análise exaustiva desse desenvolvimento histórico, com rica biblio
grafia, Guilherme Freitas de Barros Teixeira, O princípio da eventualidade no
processo civil, cit., p. 105-114. Consultar também Sérgio La China, Diritto
processuale civile: la novella del 1990. Milano: Giuffrè, 1991, p. 13-24.
431Nesse sentido, as lições de Elio Fazzalari, Lezioni di diritto processuale ci
vile. Padova: Cedam, 1995, p. 52; Crisanto Mandrioli, Diritto processuale
395
1
396
I
397
A lição transcrita a respeito de como os fatos poderão ser
alegados e, por conseqüência, fundamentar a decisão judicial
deve ser analisada à luz do art. 508° do CPC, que trata do cha
mado despacho pre-saneador, em especial em seu n. 3: "Pode
ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiên
cias ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria
de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articu
lado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido"
Do dispositivo legal depreende-se que o rigorismo do disposto
no art. 284Q, 1, do CPC realmente é afastado, ainda que não
totalmente, como se verá, de modo a permitir que, após a apre
sentação da petição inicial, o autor ainda supra eventuais insu
ficiências ou imprecisões a respeito dos fatos já narrados inicial
mente.
De maneira praticamente uníssona na doutrina portuguesa,
entende-se que os fatos que compõem a causa de pedir serão
somente os fatos principais, incluídos os fatos essenciais e com
plementares, deixando-se em aberto a possibilidade de alegação
futura dos fatos instrumentais ou concretizadores435. Registre-se
435 José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado/ cit., v. I, p, 465;
Miguel Teixeira de Souza, Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa:
Lex, 1997, p. 269. Paulo Pimenta {A fase de saneamento do processo após
a vigência do novo Código de Processo Civil. Coimbra: Al medi na, 2003, p.
156-157): "Com efeito, e quanto ao autor, é imprescindível que os seus
articulados revelem (individualizem) a causa de pedir em que se baseia a
sua pretensão. Se faltar a causa de pedir, a petição será inepta, o mesmo
sucedendo se tal causa de pedir for ininteligível...". Merece destaque o
entendimento, aparentemente contrário, de Miguel Teixeira de Souza (As
pectos no novo processo civil português, cit., p. 181): "Os factos essenciais
devem ser invocados nos articulados (cf. art. 264°, n. 1), mas importa refe
rir que a sua omissão não implica necessariamente a precíusão da sua
alegação posterior. O novo regime processual permite que o tribunal, na
fase da condensação, convide qualquer das partes a suprir as insuficiências
na exposição da matéria de facto verificada nos seus articulados (arts. 508a,
n. 1, al. B, e 3, 508Q-A, n. 1, al. C, e 787°), pelo que, se a falta de alegação
de facto essencial não implicar uma total ininteligibilidade da causa de
pedir ou do fundamento da excepção, essa omissão ainda pode ser sanada
nesse momento".
398
q U ea doutrina majoritária portuguesa entende que a possibilida
de aberta pelo despacho pre-saneador não poderá levar à modi
ficação da causa de pedir já exposta na petição inicial e afirma
que o esclarecimento ou a complementação devem ocorrer nos
limites da causa de pedir já exposta na petição inicial436.
Ainda que se possa admitir certa flexibilização ao princípio
da eventualidade para o autor, dependendo o grau de intensida
de de tal flexibilização no exato significado de complementação
e esclarecimento da matéria fática narrada na petição inicial, a
conclusão é que a causa de pedir, em regra, é fixada na petição
inicial e, somente de forma excepcional, no momento do des
pacho pre-saneador ou, no mais tardar, na audiência preliminar
ou despacho saneador. Isso significa dizer que, embora se ad
mita certa flexibilidade do princípio, a questão referente aos
limites da matéria fática deverá ser superada antes do início da
fase probatória.
Na Espanha, com o moderno regramento processual (Ley
de Enjuiciamiento Civil, de 2000), aponta-se para certa flexibili
zação do princípio da eventualidade para o réu, não obstante
ser claro que a causa de pedir deve ser narrada já na petição
inicial (art. 399, 1, LEC) e não pode sofrer modificação substan
cial posteriormente437. O registro faz-se necessário em virtude
da possibilidade aberta pelo art. 426, 1 e 2, da LEC, que permi
te aos litigantes, na audiência prévia, efetuar alegações comple
mentares em razão do que foi exposto pelo adversário, esclare
cer as alegações já formuladas e retificar, em termos secundários,
suas pretensões.
399
Essa liberdade concedida às partes na audiência prévia
entretanto, não terá o condão de alterar os fundamentos de fato
e de direito já expostos na petição inicial; serve, sempre de for
ma secundária, ao esclarecimento ou à complementação das
alegações que constituirão a causa de pedir da demanda judicial
A doutrina espanhola é ainda mais incisiva do que a portuguesa
a esse respeito, ao manifestar-se expressamente contra a possi
bilidade de mutatio libelli por meio do esclarecimento ou da
complementação previstos na audiência prévia438. Conclui-se,
portanto, que, embora se entenda por um sistema mais flexibi
lizado, isso não afetará a causa de pedir, em fenômeno muito
parecido com o verificado no direito brasileiro.
O mais importante, entretanto, é que, após a audiência
prévia, não haverá outro momento nem mesmo para a comple
mentação ou explicação da causa de pedir, em especial com
relação aos fatos que a compõem. Dessa forma, como já verifi
cado no direito italiano e no português, também no direito es
panhol a fase probatória se iniciará com os fatos sobre os quais
o juiz decidirá a demanda precisamente determinados.
O direito alemão também prevê regra similar ao art. 282
do estatuto processual pátrio, exigindo do autor a identificação
exata do objeto e do motivo da pretensão (§ 253, ZPO), signifi
cando dizer que o autor deverá, já na petição inicial, indicar o
pedido e a causa de pedir. Também existe regra que indica a
necessidade de as partes exporem seus meios de ataque e defe
400
f
' 439Othmar Jauering, Direito processual civil. 25. ed. Trad. F. Silveira Ramos.
Lisboa: Almedina, 2002, p. 230-232.
440Esses motivos levaram Hanns Prütting (La preparazione delia trattazione
orale e le conseguenza delle deduzioni tradive nel processo civile tedesco,
cit., p. 426) a afirmar que o sistema não reincorporou o princípio da even
tualidade, quando muito aplica o princípio em uma versão atenuada. A
opinião não é compartilhada por José Rogério Cruz eTucci (A causa peten-
di no processo civif, cit., p. 106-109), para quem o direito alemão adota
atualmente o princípio da eventualidade.
401
tenham sido definidos, de modo a não admitir a modificação da
causa de pedir após o início dessa fase441.
Na Argentina, também há forte influência do princípio da
eventualidade para o autor, por exigir-se a narração da causa de
pedir já na petição inicial, como ocorre no direito brasileiro. A
necessidade de tal narrativa tem a função de permitir que o réu
saiba, com exatidão, quais são os fatos jurídicos que embasam a
pretensão do autor, determinar o objeto da prova e limitar a ati
vidade judicial na prolação da sentença, já que o juiz somente
poderá decidir com fundamento nos fatos alegados pelas partes,
em regra muito similar à do art. 460 do CPC brasileiro442.
O direito argentino admite a modificação na demanda
desde que estejam presentes certos requisitos no caso concre
to. Antes da citação do demandado, é permitida a completa e
absoluta modificação da demanda, inclusive, naturalmente,
os fatos narrados na petição inicial (art. 331, CPCCN), em
norma muito similar àquela presente no direito processual
pátrio (art. 264, CPC). Após a citação, admite-se tão-somente
a juntada de novos documentos, não havendo previsão a res
peito da modificação, mesmo que haja concordância do de
mandado, como ocorre no direito brasileiro, pelo menos até
402
!.?
403
princípio da eventualidade para o autor, os fatos deverão estar
definidos sempre antes do início da fase de instrução do proces
so de conhecimento. Em todos eles, exigir-se-á a narração na
petição inicial, em alguns, de forma peremptória, em outros a
permitir complementação, esclarecimento ou retificação em
momentos de saneamento, mas dessa fase não passará a indefi
nição no tocante aos fatos, até mesmo por necessidade de fixar
o objeto da prova. Essa conclusão será lembrada na parte final
do presente tópico.
Ao voltar-se ao direito brasileiro, há a necessidade de nar
ração da causa de pedir já na petição inicial. Em decorrência da
adoção pelo direito brasileiro da teoria da substanciação, o
autor deverá indicar, nesse momento inaugural do processo, os
fatos e os fundamentos jurídicos do pedido (art. 282, III, CPC).
Há alguma dúvida a respeito da necessidade de narração do
fundamento jurídico, sobre o que existe corrente doutrinária a
entender que, em razão do princípio do iura novlt curia e do
aforismo da mihi factum, dabo tibi ius, o juiz não estará adstrito
ao fundamento jurídico narrado pelo autor em sua petição ini
cial446. Essa divergência doutrinária, entretanto, não tem grande
utilidade ao presente estudo, concentrado tão-somente nos fatos,
que, inegavelmente, compõem a causa de pedir e deverão ser
narrados pelo autor.
Com relação aos fatos, há também no direito brasileiro,
como ocorre no direito português, uma distinção entre duas
espécies de fatos, dos quais nem todos farão parte da causa de
pedir, de forma que não há obrigatoriedade de sua narrativa na
petição inicial É clássica, embora nem sempre seja tarefa simples
fazer a diferenciação, a distinção entre fatos principais — ou
404
1
447José Rogério Cruz eTucci, A causa petendi no processo civil/ cit., p. 153-
154; Alexandre Alves Lazzarini, A causa petendi nas ações de separação
judicial e de dissolução da união estável. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p. 28-30; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, cit., v. I,
p. 464-467.
448A doutrina nacional é unânime a esse respeito: por todos, José Roberto dos
Santos Bedaque, Os elementos objetivos da demanda à luz do contraditório.
In: José Rogério Cruz eTucci e josé Roberto dos Santos Bedaque (Coords.),
Causa de pedir e pedido no processo civil (questões polêmicas). São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 38. José Joaquim Calmon de Passos (Comen
tários ao Código de Processo Civil, cit., p. 161-162) estende a exigibilidade
contida no art. 282, inc. III, do CPC também aos fatos simples. Na doutrina
italiana, com exclusão dos fatos simples, EnricoTullio Liebman, Manuale di
diritto processuale civile — Principi, cit., p. 184-185; Giuseppe Chiovenda,
Instituições de direito processual civil. Trad. J. Guimarães Menegale. São
Paulo: Saraiva, 1969, v. I, p. 358-359; Giuseppe Tarzia, O novo processo
civil de cognição na Itália. Revista de Processo/ São Paulo: Revista dos Tri
bunais, n. 79, 1995, p. 56. No mesmo sentido, Enrique Vescovi, La modifi-
cación de la demanda. Revista de Processo, São Paulo: Revista dosTribunais,
n. 30, 1983, p. 211.
405
pelo autor na petição inicial e somente em situações excepcio
nais poderão ser alterados — antes da citação e depois dela até
o saneamento do processo, desde que com anuência do deman
dado.
A exigência, entretanto, de o autor expor, já na sua petição
inicial, todos os fatos jurídicos que compõem a causa de pedir
poderá demonstrar-se, no caso concreto, extremamente penosa,
para não dizer injusta. Nem sempre será possível ao autor narrar,
já na petição inicial, todos os fatos que poderiam fundamentar
sua pretensão, em especial naquelas hipóteses em que se exige
a produção de uma prova técnica complexa para descobrir, com
algum grau de segurança, tais fatos.
Tomem-se por exemplo as demandas que envolvem o erro
médico. O autor alega em sua inicial que o fato de ter esqueci
do uma tesoura dentro de seu corpo foi a causa de danos irre
versíveis que suportou. Ao ser realizada a perícia médica, cons-
tata-se que, na verdade, a tesoura não lhe causou complicação
médica nenhuma, mas que os remédios que lhe foram ministra
dos causaram o dano alegado. Por ser outro fato constitutivo do
direito do autor, seu pedido será julgado improcedente, com
desnecessário dispêndio de tempo e energia por parte do Poder
judiciário e dos litigantes. E o pior, em termos de economia
processual, é que o autor certamente voltará a demandar, agora
a fundamentar sua pretensão no fato efetivamente responsável
pelas complicações médicas suportadas. Isso, é claro, se não
tiver ocorrido a prescrição.
Tais transtornos poderiam ter sido facilmente evitados se o
autor, em dúvida a respeito do exato fato que fundamenta sua
pretensão, tivesse ingressado com uma ação probatória autôno
ma, na qual poderia conhecer, com maior exatidão, quais fatos
deveriam compor a causa de pedir de sua demanda. Em vez de
desenvolver todo um processo de conhecimento com pedido
condenatório, as partes poderiam ter participado de um proces
so manifestamente mais simples, rápido e barato, de modo a
preparar, de forma mais adequada, a causa de pedir do proces
406
so de conhecimento em que o autor, finalmente, buscaria seu
ressarcimento449.
Observe-se que não se está diante da hipótese em que o
autor não consegue, com os dados disponíveis, formular sua
causa de pedir. Nos casos ora analisados, o autor poderá até
mesmo acreditar, ainda que sem segurança, saber com exatidão
quais fatos são necessários a compor a causa de pedir, demons-
trando-se o seu equívoco somente após a realização da prova,
no mais das vezes periciais. Em razão do princípio da eventuali
dade, ainda que sejam demonstrados outros fatos jurídicos que
seriam suficientes a embasar a pretensão do autor, mas não nar
rados na causa de pedir, não restará outra saída ao juiz que não
o julgamento de Improcedência, em afronta clara aos princípios
da economia processual e efetividade da tutela jurisdicional.
Registre-se, ainda, que mesmo a doutrina que critica a ri
gidez do princípio da eventualidade adotado pelo ordenamento
processual brasileiro não despreza a necessidade de alguma
ordenação do procedimento, de modo a concordar com os be
nefícios que um sistema formado em fases preclusivas propor
ciona. A idéia é uma flexibilização e não o simples afastamento
do princípio da eventualidade, a exemplo do que ocorre na
Itália, Espanha e Portugal, ordenamentos já analisados. Buscam,
portanto, um meio-termo entre os benefícios advindos da apli
cação da eventualidade e os que podem ser obtidos com alguma
flexibilização, sem, entretanto, defender a possibilidade am
pla e plena de as partes alegarem o que quiserem e quando
quiserem450.
449 Giuseppe Tarzia, O novo processo civil de cognição na Itália, cit., p. 58:
"Em linhas gerais, creio que o problema dos legisladores modernos seja o
de construir, para o processo civil, uma fase preparatória suficientemente
ampla, e ao mesmo tempo, elástica, idônea a acolher a infinita variedade
das causas cíveis e assegurar assim, simultaneamente, eficiência e justiça.
Somente à luz destas exigências, e nos limites por estas impostas, creio que
as preclusões podem ser justificadas". A ação probatória autônoma antece
dente faria perfeitamente esse papel, ao menos com relação aos fatos.
450 Nesse sentido, as lições de José Roberto dos Santos Bedaque, Tutela caute
lar e tutela antecipada: tutelas sumarias e de urgência — tentativa de esque-
407
É interessante que, a exemplo dos países europeus em que
se percebe certa flexibilização da necessidade de concentração
de todas as alegações para as partes, também no Brasil os crí
ticos da eventualidade apontam para um momento limite, qual
seja, antes da instrução probatória. Isso significa dizer que,
após o saneamento do processo, não seria conveniente admitir
a possibilidade de as partes trazerem ao processo novas alega
ções, o que, fatalmente, causaria mais prejuízos do que bene
fícios ao andamento do procedimento e à qualidade da tutela
jurisdicional451.
Em conclusão, ainda que se admita uma visão mais flexível
ao princípio da eventualidade, a serventia da ação probatória
autônoma continua a ser evidente, considerando que o fato jurí
dico somente será descoberto em sua plenitude, nas hipóteses
analisadas, após a produção da prova, momento processual em
que mesmo a doutrina mais crítica à rigidez da eventualidade no
processo civil pátrio entende ser inviável a modificação da de
manda. Dessa forma, ainda que pareça ser saudável aos resultados
do processo certa flexibilização da eventualidade, como ocorre
em alguns países europeus já analisados, o problema exposto no
presente tópico não poderia ser contornado, o que faz necessária
a ação probatória autônoma como forma de preparar o autor para
a elaboração de uma causa de pedir mais exata referente aos fatos
jurídicos que embasarão sua pretensão.
Resta evidente, portanto, mais essa utilidade da demanda
probatória autônoma, em especial quando se faz necessária a
408
produção de uma prova técnica complexa, que, como resultado,
poderá determinar, com maior exatidão, a causa de pedir. Evitar-
se-iam, com isso, demandas infundadas — o que só se desco
brirá após a produção da prova —, em nítida economia proces
sual, sem falar na extrema injustiça com o autor, que, mesmo
tendo o direito, por não ter narrado o fato verificado na prova
em sua petição inicial, se verá derrotado e será obrigado a en
frentar novo processo judicial.
5. LITISCONSÓRCIO ALTERNATIVO
Em tema enfrentado com extrema raridade pela doutrina,
encontrando-se na doutrina nacional de forma mais aprofunda
da apenas as lições de Cândido Rangel Dinamarco452, encontra-
se o instituto do litisconsórcio alternativo. Pergunta o processua-
lista: "Será lícito comparecerem dois autores, na dúvida sobre
qual deles seja o verdadeiro credor, pedindo que o juiz emita
um provimento contra o adversário comum, em benefício de um
dos dois (cúmulo alternativo)?".
O instituto do litisconsórcio alternativo representa, portan
to, a possibilidade aberta ao autor para demandar duas ou mais
pessoas quando tenha dúvidas fundadas a respeito de qual delas,
efetivamente, deveria participar no pólo passivo da demanda.
Na realidade, a construção do instituto do litisconsórcio alter
nativo atinge também o pólo ativo, quando exista dúvida funda
da a respeito de quem seja o titular do direito a ser discutido no
processo. O que caracteriza, fundamentalmente, o litisconsórcio
alternativo é a indefinição a respeito do sujeito legitimado a li-
tigar, seja no pólo ativo, seja no pólo passivo da demanda.
Observe-se que o litisconsórcio alternativo não se confun
de com o litisconsórcio eventual ou sucessivo. Nestes, a parte
sabe, com precisão, quem são os sujeitos que devem participar
da relação jurídica processual, e o fator que caracteriza essa
espécie de litisconsórcio é a cumulação de pedidos dirigidos
409*
contra ou por sujeitos distintos, que formarão o litisconsórcio-
somente é possível o acolhimento do segundo pedido se for
acolhido o primeiro, ou, ainda, que o segundo seja acolhido não
o sendo o primeiro. Rodrigo Reis Mazzei, em artigo específico
sobre o tema, ainda não publicado e cedido gentilmente pelo
autor, dá como exemplos de litisconsórcio sucessivo as hipóteses
previstas nos arts. 1.698 e 928, parágrafo único, do CC453.
As precisas lições do mestre capixaba reforçam a idéia de
que, nas hipóteses de litisconsórcio sucessivo, não existe dúvida
quanto à legitimidade; essa diferença é essencial para conceituar
tal litisconsórcio de maneira diversa do alternativo, ora analisa
do454. A distinção, inclusive, afasta o instituto do objeto do
453"Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver
em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concor
rer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimen
tos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, inten
tada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a
lide." "Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pes
soas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispu
serem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste
artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o
incapaz ou as pessoas que dele dependem." No direito português, encontra-
se positivado, no art. 31°-B do CPC o litisconsórcio sucessivo, com o nome
"pluralidade subjectiva subsidiária". José Lebre de Freitas (Código de Pro
cesso Civil anotado, cit., v. I, p. 70) aponta a utilidade do instituto para as
hipóteses de responsabilidade subsidiária.
454Rodrigo Reis Mazzei, Litisconsórcio sucessivo: breves considerações. In:
Teresa Arruda Alvim Wambier, Glauco Gumerato Ramo e Sergio Shimura
(Coords.). Atualidades do processo civil de conhecimento. São Paulo: Re
vista dos Tribunais, 2006 (no prelo): "A seguir os caminhos que estamos
traçando no texto, como ponto de partida para a configuração do litiscon
sórcio sucessivo, na ação deverá constar — pelo menos — dois pedidos não
idênticos, sendo que o segundo pedido (secundário) somente será analisado
se ultrapassado o primeiro pleito — com decisão positiva. Contudo, essa
situação, por si só, não gerará o litisconsórcio sucessivo, sendo necessário
adequar a situação para o embate pedido e formação de pólo plúrimo. O
pormenor que gera o litisconsórcio sucessivo está no fato de que — quando
se passa para o segundo pedido — há a análise subjetiva diferenciada do
pedido antecessor, ou, com outras palavras, somente se avançará para o
410
presente estudo, apesar de sua inegável complexidade e impor
tância prática.
Alguns exemplos para justificar a construção são dados por
Dinamarco, em sua maioria retirados das lições a respeito do
tema dos italianos GiuseppeTarzia e Ludovico Mortara, com as
devidas citações. Aponta, primeiro, para a hipótese de duas ou
mais pessoas jurídicas, componentes do mesmo grupo econô
mico, realizarem diversos negócios jurídicos com terceiro de
forma que não se saiba, com exatidão, qual delas é a efetiva
mente legitimada a propor a demanda, o que somente restará
demonstrado com a análise de documentos em poder da parte
contrária. Afirma que, nesse caso, será possível uma cumulação
subjetiva eventual no pólo ativo, de modo até mesmo a evitar a
propositura de ações conexas — mesma causa de pedir — pro
postas em separado por tais pessoas jurídicas, a fundamentar o
litisconsórcio no art. 46, III, do CPC455.
Esse é um bom exemplo também para o pólo passivo da
demanda, em situações nas quais o autor não tem a exata con
cepção de quem realmente deverá figurar em tal pólo processual.
Atualmente, são tantas as empresas criadas por um mesmo gru
po econômico, por exemplo, que, muitas vezes, existe a real
dificuldade em individualizá-las no tocante a quem, efetivamen
te, participou da relação jurídica de direito material e que, por
essa razão, deverá figurar no pólo passivo da demanda. Um
mesmo conglomerado financeiro oferece atividades de banco,
financiadora, seguradora, administradora etc., exercidas por
pessoas jurídicas diferentes, o que nem sempre fica muito claro
para aqueles que com esse conglomerado fazem negócios.
411
Nesse tocante, é importante ressaltar algumas particulari
dades do direito consumerista, em que a figura do litisconsórcio
alternativo deve ser tratada de forma diferenciada. Para análise,
demanda-se o enfrentamento de duas situações distintas em
decorrência da aplicação dos arts. 7Q, parágrafo único, 12 e 13
do CDC.
O art. 7a/ parágrafo único, do CDC vem assim redigido:
"Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidaria
mente pela reparação dos danos previstos nas normas de con
sumo". Esse dispositivo constitui a regra geral de responsabili
dade solidária entre todos os fornecedores que participaram da
cadeia de fornecimento do serviço ou produto perante o consu
midor. A regra justifica-se pela responsabilidade objetiva adota
da pelo CDC, que dispensa a culpa como elemento da respon
sabilidade dos fornecedores456. Dessa maneira, independente
mente de a culpa não ser do fornecedor demandado, ou não ser
de todos os fornecedores demandados, haverá a condenação de
quem estiver no pólo passivo a indenizar o consumidor; assim,
é inviável imaginar, em situação tratada à luz do dispositivo
legal comentado, uma sentença terminativa por ilegitimidade de
parte se for comprovado que a culpa não foi daquele fornecedor
demandado.
Em razão da solidariedade entre todos os fornecedores e de
sua responsabilidade objetiva, o consumidor poderá optar con
tra quem pretende litigar. Poderá propor a demanda a buscar o
ressarcimento de seu dano somente contra um dos fornecedores,
alguns, ou todos eles. A doutrina que já enfrentou o tema apon
ta acertadamente para a hipótese de litisconsórcio facultativo,
considerando ser a vontade do consumidor que definirá a for
412
mação ou não da pluralidade de sujeitos no pólo passivo e
também, quando se formar o litisconsórcio, qual a extensão
subjetiva da pluralidade457.
Nesse caso, portanto, de responsabilidade solidária e obje
tiva dos fornecedores, não será aplicável o instituto do litiscon
sórcio alternativo, pois, ainda que exista uma dúvida fundada por
parte do consumidor sobre quem foi o causador direto de seu
dano, a legislação consumerista, expressamente, atribui a res
ponsabilidade a qualquer dos fornecedores que tenha participa
do da cadeia de produção do produto ou da prestação do servi
ço. Por ser inviável antever a ilegitimidade de qualquer deles,
ainda que nenhuma culpa tenha no evento danoso, pouco im
porta, para os fins do processo, a individualização do fornecedor
que tenha sido o responsável direto pelo dano, de modo que é
inviável, nesse caso, falar em litisconsórcio alternativo.
Essa disposição do CDC, repetida em outras normas do
diploma consumerista — como os arts. 18, caput, 19, caput, 25,
§§ 1Qe 2a, 28, § 3Q, e 34 —, é demonstração clara de proteção
ao consumidor, que não poderia ser afetado por incertezas a
respeito de qual dos fornecedores foi o responsável direto pela
ofensa a seus direitos. A idéia é que os fornecedores, solidaria
mente, respondam perante o consumidor independentemente
de sua culpa no caso concreto; assim, é lícito àquele que pagou
e que não teve culpa ingressar com ação de repetição de indé
bito contra o fornecedor causador direto do dano. A proteção
do consumidor, a criar um litisconsórcio facultativo entre os
fornecedores, afasta, por completo, a necessidade do litiscon
sórcio alternativo.
Registre-se que a melhor doutrina aponta para a possibili
dade de o fornecedor condenado a satisfazer o consumidor, caso
413
não tenha tido culpa no evento danoso, ou ainda que a culpa
não tenha sido exclusivamente sua, ingressar com outro proces
so perante o fornecedor culpado pelo dano para receber aquilo
que pagou ao consumidor458. O direito de regresso, entretanto
não poderá ser exercido no próprio processo em virtude da
proibição explícita do art. 88 do CDC, que impede a denuncia-
ção da lide nas demandas consumeristas. A disposição tem o
fim de evitar complicações procedimentais naturais da ampliação
subjetiva da relação jurídica processual, o que poderia trazer
desvantagens ao consumidor459.
Questão mais interessante vem da aplicação conjunta dos
arts. 12 e 13 do CDC; indica o primeiro a responsabilidade so
lidária do fabricante, produtor, construtor e importador pela
reparação de danos causados aos consumidores por defeito no
produto; já o segundo dispositivo prevê responsabilidade subsi
diária do comerciante desde que: "I — o fabricante, o construtor,
o produtor ou o importador não puderem ser identificados; II
— o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabri
cante, produtor, construtor ou importador; 111— não conservar
adequadamente os produtos perecíveis".
Apesar de forte corrente doutrinária entender que, nesse
caso, o comerciante também terá responsabilidade de ressarcir
o consumidor, ainda que possa, depois de satisfazê-lo, pleitear
o ressarcimento perante o fabricante, produtor, construtor e
importador460, a leitura conjunta dos dois dispositivos legais
anteriormente referidos demonstra que, ao ser verificada uma
414
I
415
tos que participaram da cadeia de produção do produto, forman
do um litisconsórcio alternativo em razão da dificuldade em
aferir, no início da demanda, a responsabilidade ou não_e
conseqüentemente sua legitimidade — do comerciante.
Outro exemplo, dado por Cândido Rangel Dinamarco463,
refere-se a pessoa que
416
1
417
Cumpre registrar que, nos países em que se adota o institu
to das diligencias preliminares/ como Espanha, Argentina, Uru
guai, Chile e Bolívia, existe uma hipótese de cabimento especí
fica concernente à fixação da legitimação do pólo ativo e pas
sivo — cada qual com suas particularidades —, como forma de
permitir ao autor o ingresso do "processo principal" somente
contra sujeitos legitimados. Realça-se, nesse caso, a função
primordial desse instituto: preparar a futura demanda judicial
de modo a evitar os percalços de ingresso de demanda judicial
contra parte ilegítima, ainda que em litisconsórcio com a parte
legitimada. Prepara, portanto, um processo formalmente regular
no tocante aos seus elementos subjetivos.
Na Espanha, a previsão se encontra no art. 256, 1ü, da LEC;
na Argentina, no art. 323, 1, do CPCCN; no Uruguai, nos arts.
306, 1, e 309, 1, do CGP; no Chile, no art. 273 do CPC, e, na
Bolívia, no art. 319,1, do CPC. Apesar da fonte comum, existem
algumas diferenças entre as disposições legais mencionadas que
fazem necessária uma análise individualizada dos diferentes
ordenamentos.
O art. 256, 1Q, da LEC da Espanha encontra-se assim redi-
gido:
418
será possível o ingresso de diligencias preliminares para verificar
a capacidade jurídica do sujeito, que se confunde com sua
capacidade de ser parte, aspecto do fenômeno que efetivamen
te importa ao processo judicial. Essa demanda dificilmente será
proposta contra pessoa física, que adquire a capacidade de ser
parte com a concepção e perde-a com a morte, sendo mais
factível imaginarem-se hipóteses envolvendo pessoas jurídi
cas465. Há também a possibilidade de ingresso de diligencia
preliminar para a verificação da capacidade de estar em juízo
do sujeito, a significar sua capacidade de praticar atos proces
suais validamente sem que para isso seja assistido ou represen
tado.
Quanto à representação, a melhor doutrina entende que a
finalidade da diligencia preliminar é descobrir se o sujeito que
participou da relação de direito material que será o objeto do
futuro processo o fez como representante de um incapaz, de
uma sociedade, ou ainda representante civil de qualquer outra
pessoa ou entidade. Essa verificação se fará necessária para que
o autor saiba, com exatidão, a quem atribuir as conseqüências
de seus atos, a ele mesmo ou ao sujeito representado; isso sig
nifica dizer que a diligencia preliminar terá, ao fim e ao cabo,
auxiliado o autor a determinar qual sujeito deverá ser a parte
legítima da ação judicial. Apesar de a lei mencionar a represen
tação, trata-se, na verdade, de hipótese em que a descoberta de
tal representação influirá na determinação do sujeito que deve
rá compor o pólo passivo da demanda466.
Finalmente, essa espécie de diligencia preliminar tem o
condão de estabelecer a legitimidade do sujeito para figurar no
pólo passivo e abrange, segundo a doutrina, as mais diversas
situações em que exista uma dúvida fundada a respeito dessa
condição da ação467. A verificar-se a dúvida fundada a respeito
419
de qual sujeito é efetivamente o legitimado a compor o pólo
passivo, condição sine qua non para que seja admitida essa di
ligencia preliminar4™, abrir-se-á à parte a oportunidade de veri
ficar perante o suposto legitimado se é efetivamente ele quem
deverá compor o pólo passivo da demanda; é também possível
que, em caso de dúvida entre dois ou mais sujeitos, chamem-se
todos a juízo para obter tal esclarecimento, em fenômeno mui
to próximo do litisconsórcio alternativo ora analisado.
O ponto peculiar do direito espanhol é que este admite a
confissão nessa diligencia preliminar, o que não se admite, con
forme já visto, nas ações probatórias autônomas do direito bra-
sileiro469. De qualquer forma, é interessante perceber que o
procedimento dessa diligencia preliminar consistirá na oitiva do
demandado — pela qual será possível a obtenção da confissão
— ou na exibição de documento que demonstre qual sujeito
deverá compor o pólo passivo da demanda. Como se percebe,
são procedimentos plenamente compatíveis — exceto a figura
da confissão — ao direito brasileiro, no qual, além da prova oral
e documental, parece ser possível também a prova pericial, in
clusive em hipótese como a já analisada, a respeito de produtos
perecíveis que causem dano ao consumidor.
O art. 323, 1, do CPCCN argentino dispõe: "Que la perso-
na contra quien se proponga dirigir la demanda preste declara-
4^0
!
ción jurada, por escrito y dentro del plazo que fije el Juez, sobre
algún hecho relativo a su personalidad, sin cuya comprobación
po pueda entrarse en juicio". A redação do dispositivo legal
segue a antiga redação da legislação espanhola ao apontar para
direitos relativos à personalidade; não resta dúvida, entretanto,
de que estão incluídos os direitos relativos à capacidade, à re
presentação e em especial à legitimação470.
A legislação argentina é mais restrita que a espanhola a
respeito do procedimento a ser adotado nessa espécie de dili
gencia preliminar, considerando que não há qualquer menção
à possibilidade de exibição de documentos que possam auxiliar
na fixação da legitimação passiva. Segundo a redação do dispo
sitivo legal ora analisado, somente haverá espaço para a mani
festação do demandado, que deverá ser feita por escrito por meio
de declaração juramentada. A restrição não é tão absoluta quan
to parece, ao menos no tocante à forma de manifestação do
demandado, já que existem províncias argentinas que permitem
a oitiva do demandado em audiência, como previsto no art. 489
da lei n. 8.465/95 (Código de Procedimientos de la Província
de Córdoba).
Há dois aspectos interessantes a serem analisados nessa
espécie de diligencia preliminar no direito argentino. Em primei
ro lugar, as conseqüências da ausência de resposta por parte do
demandado ou ainda da verificação de respostas evasivas que,
na verdade, nada esclarecem. Segundo a previsão do art. 324
do CPCCN, tal atitude do demandado fará com que se tenha os
fatos consignados como verdadeiros, em nítida aplicação da
ficta confessio, admitida pela doutrina espanhola. O dispositivo
legal, entretanto, é bastante claro ao apontar que essa confissão
421
poderá ser afastada em virtude de outras provas produzidas no
processo principal471.
Em segundo lugar, afirma a melhor doutrina que, no caso
de o demandado, maliciosamente, levar o demandante a crer
sobre sua legitimidade passiva e somente no processo principal
demonstrar que não tem a legitimidade exigida, apesar de o
processo ser extinto sem o julgamento de mérito, o demandado
será condenado a pagar as verbas de sucumbência. Leva-se em
conta a regra da causalidade, considerando que o demandado
foi o responsável pela propositura equivocada em termos sub
jetivos da demanda judicial472. Não será, entretanto, uma atitu
de muito inteligente, porque, já demandado na diligencia pre-
liminar/ poderia perfeitamente demonstrar sua ilegitimidade
passiva, o que o dispensaria de compor o pólo passivo do pro
cesso principal.
No processo uruguaio, a previsão legal geral a respeito da
diligencia preliminar ora analisada encontra-se no art. 306, 1,
do CGP: "determinar o completar la legitimación activa o pas
siva de las partes en el futuro proceso". O art. 309, 1, do CPC,
especifica essa hipótese de diligencia preliminar e indica, inclu
sive, seu procedimento. A literalidade do dispositivo legal de
monstra sua maior amplitude subjetiva se for comparada com
as previsões legais constantes do ordenamento espanhol e ar
gentino. A definição da legitimação não se limita ao pólo passi
vo da demanda, pois também é admissível quando existir dúvi
da a respeito do pólo ativo que deverá ser formado no futuro
processo judicial.
Diferentemente do direito argentino, o direito uruguaio
exige do autor uma indicação precisa de suas perguntas já na
petição inicial e prevê que a resposta ocorra por escrito; sempre
422
[
423
pode ser utilizada para descobrir o nome do demandado, o que
é mais específico que saber quem será, e também o domicílio
dos representantes do demandado.
Apesar de não se tratar de identidade plena do instituto das
diligências preliminares com a ação probatória autônoma suge
rida, fica evidente que, nos países indicados, também existe a
dificuldade, em certas circunstâncias, de determinar a legitima
ção dos sujeitos que deverão compor os pólos da relação jurí
dica do "processo principal". Nesses países, a própria legislação
resolve o problema a prever um processo prévio para que as
dúvidas sejam afastadas e proponha-se o processo regular do
ponto de vista subjetivo.
Em conclusão, apesar de a sugerida ação probatória autô
noma não afastar por completo a existência do litisconsórcio
alternativo, é bastante claro ser mais benéfico ao demandado,
que não é parte legítima, e, por conseqüência, também ao pró
prio sistema processual participar de um processo bem mais
simples, barato e rápido, que tenha como objeto exclusivo a
prova de fatos que esclareçam a dúvida a respeito da legitimi
dade. Manter-se-ia a figura do litisconsórcio alternativo na ação
probatória autônoma, mas o fenômeno se tornaria totalmente
dispensável no processo principal
424
I
50, São Raulo: Revista dos Tribunais, n. 107, 2002, p. 204) reforça a impor
tância da conciliação em razão da excessiva morosidade jurisdicional de
vida ao número elevado de processos. No direito argentino, consultar
Gladys Stella Alvarez, La mediación y el acceso a justicia. Buenos Aires:
Rubinzal-Culzoni, 2003, p. 15-19, e Juan Carlos C. Dupuis, Mediación y
conciliación. 2. ed. Buenos Aires: Abe ledo-Perrot, 2001, p. 15-19.
47fiSalvador Torres Escámez (La mediación como sistema de solución de con-
flictos: una perspectiva notarial. In: La reforma de la justicia preventiva.
Madrid: Thomson Civitas, 2004, p. 319-320), após afirmar que a mediação
está na moda, defende que, entre os meios alternativos de solução de con
flitos, "el más interesante y el que cuenta con más posibilidades de acali-
matación entre nosostros es el de la mediación../'.
477José Carlos Barbosa Moreira, Miradas sobre o processo civil contemporâneo.
In:______. Temas de direito processual. Sexta série. São Raulo: Saraiva, 1997,
p. 50-51: "Por esses caminhos poderia chegar-se mais depressa e com me
nores gastos à composição do conflito, em termos — acrescenta-se — de
melhor adequação que a sentença do juiz a não poucas hipóteses, notada-
mente àquelas em que se defrontam pessoas compelidas pelas circunstâncias
a continuar, não obstante o litígio e mesmo depois dele, convivendo em
família, no local da residência ou no ambiente profissional". A apontar os
litígios envolvendo vizinhos, Humberto Dalla Bernardina De Pinho, Meca
nismos alternativos de solução de conflitos: algumas considerações intro
dutórias. Revista Dialética de Direito Processual/ São Paulo: Dialética, n. 17,
2004, p. 10. Roberto Portugal Bacellar, A mediação no contexto dos mode
los consensuais de resolução de conflitos. Revista de Processo/ São Paulo,
Revista dos Tribunais, n. 95, 1999, p. 129: "... a mediação se afigura reco
mendável para situações de múltiplos vínculos, sejam eles familiares, de
amizade, de vizinhança, decorrentes de relações comerciais, trabalhista,
entre outras. Como a mediação-preserva as relações, os demais vínculos
não se interromperei» e continuam a se desenvolver com naturalidade".
425
1
426
í
427
É inclusive esse o espírito do Código Procesal Civil modelo
para Iberoamérica, que, em seu art. 263, exige que, previamen
te a qualquer processo, com as exceções previstas no artigo
seguinte, o futuro autor peça a designação de uma audiência
para tentar a conciliação com o futuro réu. O direito brasileiro
não fica atrás, pois já há proposta legislativa elaborada pelo
Instituto de Direito Processual Brasileiro para modificação do
Código de Processo Civil com a inclusão de uma fase prévia de
mediação, obrigatória nos processos já instaurados e facultativa
quando prévia à demanda judicial (P1C 94/2003).
A doutrina aponta algumas vantagens da adoção dos meios
alternativos de solução de conflitos — entre eles, naturalmente,
a conciliação e a mediação; é interessante, para os fins do pre
sente trabalho, comentar, ainda que brevemente, algumas das
apontadas vantagens.
O Estado brasileiro sempre ostentou a titularidade quase
exclusiva para a solução dos conflitos, sendo sempre bastante
raro que essa sol ução ocorra fora do âmbito do Poder Judiciário.
O advento dos meios alternativos de solução dos conflitos, en
tretanto, não conflita com o poder estatal; na verdade, fortale-
ce-o. O raciocínio é simples: ao retirarem-se do âmbito do Poder
Judiciário litígios com menor grau de complexidade, que, com
proveito, poderiam ser resolvidos por uma autocomposição das
partes ou arbitragem, o volume de trabalho do Poder Judiciário
proporcionará uma prestação jurisdicional de melhor qualidade,
por aliviar-se a desumana carga de trabalho enfrentada pelos
juizes e servidores públicos atualmente480.
428
A otimização no uso dos meios alternativos de solução dos
conflitos faria com que o Poder Judiciário se reservasse a solu
cionar demandas que envolvam direitos indisponíveis e outras
em que se mostrasse inviável, no caso concreto, obter solução
sem a intervenção estatal. A partir do momento em que reservas
se suas atividades a um número menor de demandas, nas quais
a intervenção do Poder Judiciário fizer-se realmente essencial,
terá condições de resolvê-las mais rapidamente, de modo a en
tregar ao jurisdicionado uma tutela de melhor qualidade481.
Outro ponto benéfico dos meios alternativos de solução dos
conflitos destacado pela doutrina diz respeito aos altos custos
que um processo judicial envolve, o que não se verificaria nas
formas de autocomposição e de heterocomposição extrajudiciais.
Apesar de ser inegável que uma mediação ou uma conciliação
sejam menos onerosas que uma demanda judicial, é preciso
observar que a questão econômica nem sempre demonstra ser
mais benéfica a adoção de certos meios de solução de conflitos,
como ocorre com a arbitragem, que pode custar muito mais caro
às partes que um processo judicial. De qualquer forma, já que
a arbitragem não é objeto de análise nesse momento (limitada
à mediação e conciliação), a questão econômica mostra-se fator
favorável à adoção dessas formas de solução de conflito482.
É interessante notar que o aspecto econômico poderá tam
bém se mostrar um fenômeno contrário à adoção desses meios
alternativos de solução de conflitos. Sabe-se que a parte mais
forte economicamente tem mais condições de esperar por tem
po prolongado a solução de um processo judicial, que, em regra,
429
mostra-se mais sacrificante à parte, que, sem condições de arcar
com os custos de um processo muito longo, pode preferir um
acordo extrajudicial muito distante de suas pretensões, o que
não se mostra consentâneo com o direito, nem com a concepção
de que os meios alternativos de solução de conflitos seriam uma
forma de obter, em sua maior plenitude, a solução da lide so
ciológica, conforme se verá a seguir483. Ainda que existam formas
de amparo ao economicamente frágil — benefícios da assistên
cia judiciária —, é evidente ser o processo mais sacrificante para
a parte que tem menos condições econômicas e, por isso, pre
cisa de uma solução mais rápida.
Também se aponta para o tempo de duração de um proces
so judicial e de um meio alternativo de solução de conflitos, bem
como para as vantagens em evitar o demorado processo judicial
Infelizmente, é uma constatação empírica que o processo judicial
pode levar um tempo inacreditavelmente extenso, seja pela vas
ta gama de instrumentos processuais à disposição das partes na
defesa de seus interesses, seja pela situação de penúria funcional
por que passa o Poder Judiciário. Além disso, em uma mediação
ou em uma conciliação, as formalidades processuais poderiam
ser afastadas, com ganhos em termos de rapidez na solução dos
conflitos. Por fim, registre-se que, nessas espécies de solução de
conflitos, não se justificariam medidas que objetivam atrasar a
solução final, o que, infelizmente, percebe-se com intensidade
maior do que o desejável nos processos judiciais.
483 Owen Fiss, Um novo processo civil — Estudos norte-americanos sobre ju
risdição, constituição e sociedade. Trad. Daniel Porto Godinho da Silva e
Melina de Medeiros Rós. São Raulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 125, ao
falar sobre o pobre: "Segundo, pode necessitar, de imediato, da indenização
que pleiteia e, desse modo, ser induzida à celebração de um acordo como
forma de acelerar o pagamento, mesmo ciente de que receberá um valor
inferior ao que conseguiria se tivesse aguardado o julgamento. Todos os
autores de ações judiciais querem suas indenizações imediatamente, mas
um autor muito pobre pode ser explorado por um réu rico, pois sua neces
sidade é tão grande que o réu pode compeli-lo a aceitar uma quantia infe
rior àquela a que tem direjto".
430
9
431
Seja como for, apesar das ressalvas feitas, a conciliação e a
mediação — entre outras formas de solução alternativa de con
flitos — mostram-se instrumentos de extrema importância no
âmbito de solução dos conflitos, de modo que é realmente uma
tendência mundial a otimização dessas diferentes técnicas de
apaziguar os ânimos das partes e, com isso, obter a tão almeja
da pacificação social. O único cuidado que se precisa tomar é
não potencializar os benefícios possíveis na adoção desses novos
instrumentos de solução de conflitos, como se fossem capazes
de resolver todos os nossos problemas. São instrumentos impor
tantes, que auxiliam tanto as partes como o próprio Poder Judi
ciário na solução dos conflitos de interesses, mas, certamente,
não serão a resposta definitiva e absoluta para todos os problemas
enfrentados atualmente pelos sujeitos envolvidos em conflitos
de interesse486.
Mas qual é a relação da mediação e da conciliação com o
tema principal do presente trabalho, qual seja, a adoção de uma
ação judicial exclusivamente probatória? Em outras palavras:
como a existência de uma ação judicial probatória poderia gerar
algum tipo de influência na mediação ou na conciliação?
A conciliação não é instituto novo no ordenamento jurídi
co brasileiro; tem-se notícia de que, já na Constituição do Im
pério de 1824, existia a previsão de uma audiência extrajudicial
obrigatória com o propósito exclusivo de tentar a conciliação
entre as partes, conduzida pelos juizes de paz (arts. 161-162).
Com a proclamação da República, afastou-se a idéia de conci
liação prévia obrigatória, embora a faculdade de uma concilia
486 A observação já foi feita por José Carlos Barbosa Moreira, Breve noticia
sobre la conciliación en el proceso civil brasileno. In :______. Temas de
direito processual. São Raulo: Saraiva, 1994, p. 101 (quinta série). No direi
to francês, tem a mesma opinião Roger Perrot (O processo civil francês na
véspera do século XXI, cit., p. 210): "Ê decerto bom que os textos ofereçam
às partes a oportunidade de conciliar-se. Mas é ilusório supor que tal orien
tação dará remédio a todas as dificuldades da justiça moderna". Ver também
Osvaldo A. Gozaíni, Formas alternativas para la resolución de conflictos,
cit., p. 55.
432
ção prévia tenha influenciado leis de organização judiciária de
determinados estados da Federação. Atualmente, os juizados
especiais — tanto na esfera estadual como na federal — e a
Justiça do Trabalho, por meio da instituição das comissões de
conciliação prévia (Lei n. 9.958/2000), demonstram a preocu
pação do legislador pátrio com a conciliação. Mesmo o Código
de Processo Civil, além de prever a tentativa de conciliação nas
audiências preliminar (art. 331, CPC) e de instrução e julgamen
to (art. 447), prevê que o juiz poderá, a qualquer momento do
processo, tentar a conciliação entre as partes (art. 125, IV,
CPC).
Há, entretanto, alguns obstáculos à obtenção da conciliação
judicial, em especial quando for comandada por juizes de di
reito — nos Juizados Especiais, as conciliações poderão ser
conduzidas por um conciliador, não necessariamente um juiz
de direito. Em primeiro lugar, aponta-se para o despreparo dos
juizes a conduzir a conciliação, pois esses profissionais estão
acostumados a decidir, não a conciliar. De fato, não se pode
supor que um bom juiz seja também um bom conciliador, por
que a atividade jurisdicional, tradicionalmente, não exige do
magistrado esse verdadeiro dom que é colocar-se como terceiro
diante de um conflito não para decidi-lo imperativamente, mas
para conduzir as partes a alguma espécie de acordo que coloque
fim ao conflito. As faculdades de direito pouco — ou nada — pre-
ocupam-se em preparar seus profissionais para a conciliação, já
que todo o ensino jurídico é voltado ao conflito, o que certa
mente afetará a conduta dos profissionais que se tornam juizes
de direito.
Além disso, há sempre o fantasma do pré-julgarnento a
acompanhar os juizes no momento da conciliação. Como de
verá o magistrado proceder para não deixar transparecer suas
posições particulares diante do conflito? Como poderá participar
ativamente desse momento processual, com efetiva indicação
às partes de prós e contras a respeito da conciliação sem ao
menos sinalizar qual decisão parece-lhe a mais adequada na-
•quele momento? O receio de que percam sua necessária e im
prescindível imparcialidade pode levar os magistrados a uma
433
distância muito grande das questões envolvidas no litígio, o que
representará, em grande medida, uma frustração em obter a
conciliação.
Outro problema é que uma conciliação bem feita demanda
trabalho e, dependendo do caso concreto, toma certo tempo até
que seja obtida a autocomposição. É evidente que o juiz, para
tentar, efetivamente, uma conciliação, deve ter pleno conheci
mento das alegações das partes e conhecer detalhadamente o
conflito que é posto à sua apreciação. Para isso, há a necessida
de de leitura prévia do processo, o que nem sempre é possível
em razão do absurdo volume de trabalho487. Ainda, a tentativa
de conciliação demanda um tempo por vezes longo, algo im
pensável diante da calamitosa situação vivida no Poder Judiciá
rio, em que audiências — que, invariavelmente, atrasam — são
designadas com intervalos de 15 a 30 minutos. Uma tentativa
efetiva de conciliação não poderia ficar atrelada a tão curto
lapso temporal488.
Há, entretanto, um ponto que não mereceu a devida aten
ção da doutrina especializada e que afetará tanto os juizes,
terceiros, como as próprias partes na tentativa de uma concilia
ção: a indefinição fática a respeito do conflito. E verdade que,
em muitas hipóteses, a parte sabe exatamente como ocorreram
os fatos, embora não esteja disposta a reconhecer isso em juízo;
mas não são desprezíveis as hipóteses em que as próprias partes
não são aptas a conhecer, com a devida precisão, os fatos en
volvidos no litígio, o que somente se tornará possível após a
produção da prova. A incerteza fática é, certamente, um obstá
culo para que se obtenha a conciliação, porque as partes difi
434
cilmente aceitarão abrir mão de algum direito que imaginam ter
sem uma definição, mínima que seja, da situação fática.
Dessa forma, uma ação probatória autônoma poderia mos
trar às partes e ao próprio juiz — ou a qualquer outro terceiro
que fique incumbido de conduzir a conciliação ou mediação
— um quadro mais próximo ao da realidade e determinar, de
maneira mais ciara, quais são, efetivamente, os direitos de cada
parte. Apesar de não haver ainda qualquer decisão a respeito do
conflito, parece ser inegável que, quanto mais subsídios fáticos
existirem no momento da conciliação, maior será a chance de
obtê-la. Uma perícia contábil poderá indicar às partes, com
relativa precisão, qual o valor efetivamente devido, o que, cer
tamente, contribuirá para a realização de uma autocomposição.
O mesmo ocorre com uma perícia médica, em que restem com
provadas não só a responsabilidade como também a extensão
dos danos. Na verdade, qualquer prova, em geral, e a perícia,
em especial, proporcionam às partes um conhecimento que
poderá otimizar a realização frutífera de conciliações e de me
diações.
Esse aspecto da prova não passou despercebido por Osval
do A. Gozaíni, que, enfrentando o tema à luz do direito argen
tino, desloca o enfoque de análise da prova do convencimento
do juiz para o das partes — em especial a parte contrária — como
função da prova489. Aponta o processualista argentino que a
produção prévia das provas coloca as partes diante de uma
identificação mais clara da situação fática, o que poderá otimi
zar a realização de um acordo, de modo a evitar o processo.
Nesse aspecto, a prova é encarada como forma de dissuadir as
partes de ingressarem com o processo judicial, ao afirmar que
435
"la tesis que propiciamos consiste en utilizar la prueba como
mecanismo suasorio de las partes, que debe ventilarse en una
etapa anterior al proceso, y en el marco de una negociación
profesional que profundice los acercamientos más que las dife
rencias de intereses"490.
É interessante também lembrar o neutral expert factfinding
do direito norte-americano, instituto elencado entre as formas
alternativas de solução do conflito. Por esse sistema, as partes,
cientes da importância da prova pericial para o destino de suas
pretensões, indicam um perito para que se defina a atuação pro
batória antes mesmo do processo, o que proporcionará a elas
uma melhor definição do plano fático. O pronunciamento pericial
poderá ou não ser vinculativo ao juiz de eventual e futura de
manda, o que depende dos termos do acordo celebrado entre as
partes, mas a prova técnica produzida poderá sempre ser utiliza
da pelo juiz durante a formação de seu convencimento no pro
cesso judicial. E um sistema interessante, porque realça, de
maneira bastante clara, a importância da prova técnica no tocan
te às pretensões das partes, de modo a possibilitar sua produção
antes mesmo do início do processo, o que certamente funciona
rá como agente otimizador da realização de acordos491.
436
Não por outra razão, em recentíssima reforma do CPC ita
liano, passou-se a prever a hipótese de uma perícia prévia com
o fito exclusivo de potencializar a possibilidade de um acordo
entre as partes. A previsão do art. 696 bis, do CPC, afasta a ne
cessidade de qualquer periculum in mora para que se realize
essa prova pericial prévia, que tem como fundo a preocupação
do legislador italiano com a economia processual, ao apontar
para uma maior probabilidade de conciliação e, conseqüente
mente, de final do litígio, quando já se definir, por meio de uma
prova pericial, a situação fática a envolver os litigantes492.
A modificação legislativa foi fruto da Comissão Vaccarella,
formada em julho de 2002, com o objetivo de propor um novo
CPC. Na exposição de motivos do dispositivo legal atualmente
positivado, os reformistas deixam claro o objetivo de permitir a
produção de uma prova pericial antes de ser iniciado o proces
so de conhecimento. Afirmam que a experiência mostra ser a
indefinição fática entre as partes responsável pelo ingresso do
processo, o que poderia ser evitado com uma melhor definição
dos fatos que as envolvem. A produção prévia de prova técnica
437
seria capaz, portanto, de evitar o processo, de modo a otimizar
a realização de transações493.
Registre-se que parcela da doutrina italiana, apesar de
aplaudir a modificação legislativa, critica-a pela timidez. Chiara
Besso, após exaustiva análise dos direitos francês e alemão, ao
apontar para a generalidade da ação autônoma probatória do
primeiro e das restrições constantes no segundo, lamenta que o
legislador italiano tenha preferido um dispositivo legal mais
restritivo, que limita à prova pericial a produção antecipada de
prova sem a necessidade de periculum in mora. Defende, com
acerto, que não há qualquer justificativa para tal limitação, de
modo a dever-se admitir a produção probatória antecipada por
qualquer meio de prova previsto na legislação processual494. Tem
razão o doutrinador italiano, porquanto a idéia de otimizar a
transação por meio da produção da prova existe em qualquer
meio de prova, ainda que, na hipótese de prova pericial, tal
circunstância mostre-se ainda mais clara.
No direito francês, no qual o art. 145 do CPC permite com
amplitude a produção antecipada de prova, a idéia de otimizar
a transação também se encontra presente495. O mesmo ocorre
43 8
no direito alemão, no qual, embora haja uma limitação no to
cante ao meio de prova que poderá ser objeto da ação probató
ria autônoma, linha seguida pelo direito italiano, também são
destacadas as melhores condições para uma transação como
justificativa para a adoção dessa espécie de demanda496.
Conclui-se que a adoção de uma ação probatória autônoma
conduzirá as partes a uma melhor definição quanto à situação
fática em que estão envolvidas, o que otimizará a ocorrência de
uma conciliação. A ação probatória autônoma, portanto, evita
ria a demanda judicial, em nítido proveito da economia proces
sual, e a levaria à obtenção mais perfeita da solução da lide
sociológica.
496Chiara Besso (ia prova prima del processo/ cit., p. 106) indica doutrina
alemã crítica ao instituto: "II selbstãndiges Beweisverfahren non è però
andato esente da critiche, che si sono in particolare appuntate sulla scarsa
efficacia deflattiva delTistituto. Si sostiene che di fatto la gran parte degli
autonomi procedi menti probatori serve — como serviva prima il procedi
mento di assicurazione delia prova — non a evitare, ma soltanto a prepa-
rarsi il processo. Ancora si afferma che in nome delia 'simplificazione' si è
in realtà aumentata la complessítà del processo: il selbstãndiges Beweisver
fahren è giuridicamente complícato e alleggerisce l'ammiistrazione delia
giustizia solo se si realizza la speranza delia conclusione di un maggior
numero di conciliazioni e questo, comunque, al prezzo di un piú intenso
lavoro dei giudici e dei consulenti tecnici".
497Humberto Theodoro Jr., Curso de direito processual civil, cit., v. I, p. 332;
Cassio Scarpinella Bueno., Código de Processo Civil interpretado/ cit., p.
883; Emane Fidélis dos Santos, Manual de direito processual civil, cit., v. I,
439
são requisitos alternativos do pedido, mas sim cumulativos, já
que o autor deverá indicar tanto o gênero de sua pretensão — cer
teza — como a quantidade da pretensão — determinação498.
O próprio art. 286, referido, abre exceção relativa às exi
gências formais do pedido, ao admitir, nas hipóteses previstas
pelos três incisos do artigo ora comentado, o pedido genérico.
Por pedido genérico deve-se entender pedido indeterminado,
ou seja, pedido que não indica a quantidade de bem da vida
que o autor pretende obter, embora não se admita que o pedido
seja incerto. Conforme afirma José Joaquim Calmon de Passos499,
a indefinição do pedido genérico deve limitar-se ao quantum
debeatur/ já que é exigência incondicional do pedido a indica
ção clara e precisa do an debeatur.
Ao presente estudo interessa o art. 286, II, do CPC, que
admite o pedido genérico "quando não for possível determinar,
de modo definitivo, as conseqüências do ato ou do fato ilícito".
Essa hipótese de pedido genérico — certamente a mais freqüen
te na praxe forense, ainda que, em alguns casos, de maneira
desvirtuada, como ocorre nos pedidos de dano moral — permi
te ao autor, nas demandas em que busque uma reparação por
danos suportados pelo ato ou pelo fato ilícito, a indefinição a
respeito do valor pretendido a título de ressarcimento quando
não for possível tal indicação já na petição inicial em decorrên
cia da impossibilidade de definir, nesse momento, as conse
qüências de tal ato ou fato.
Cumpre fazer um importante registro a respeito do âmbito
de aplicação do dispositivo. Como bem apontado por Fredie
Didier Jr.500, "não há razão para se associar o dever de indenizar
somente aos atos ilícitos. Trata-se de um vício metodológico
440
assaz freqüente, que acaba por confundir o fato jurídico com o
seu efeito. É possível que atos lícitos tenham por eficácia, tam
bém, o dever de indenizar". A conclusão acertada, portanto, é
de que o dispositivo legal aplica-se às ações de indenização
independentemente da causa de pedir estar fundamentada em
ato ou em fato ilícito.
O dispositivo legal é bastante claro ao exigir como requisi
to permissivo da elaboração do pedido genérico a impossibili
dade do autor em aferir, no momento em que propõe a ação, o
valor de sua pretensão; explicita também que essa impossibili
dade deriva do fato de não ser possível precisar, nesse momen
to processual, as conseqüências danosas do ato ou do fato
narrado na causa de pedir. A explicação, dada de forma unísso
na pela doutrina que já enfrentou o tema, é que essa impossibi
lidade decorre da circunstância de o ato ou o fato ainda gerar
efeitos danosos no momento em que a demanda é proposta, de
forma que, por não poder antever o futuro, será impossível ao
autor na petição inicia! indicar o valor total dos prejuízos supor
tados.
Já que não é legítimo ou justo exigir do autor que aguarde
o momento em que o ato ou o fato tenha exaurido seus efeitos
para somente então ingressar com a demanda judicial, o orde
namento processual permite o pedido genérico, reservando, no
mais das vezes, para uma posterior liquidação de sentença, a
indicação do quantum debeatur. Afirma-se que a necessidade
de proceder a uma liquidação de sentença ao final do processo
ocorrerá freqüentemente, porque não existe qualquer empecilho
para que o valor seja liquidado durante o próprio processo de
conhecimento501, o que, inclusive, à luz do princípio da econo
mia processual, deverá ser buscado, sempre que possível
441
Já é clássico na doutrina nacional o exemplo da demanda
judicial em que não é possível aferir o valor dos danos causados
à vítima de um acidente automobilístico porque esta ainda se
encontra no hospital convalescendo. Na petição inicial, será
impossível ao autor apontar qual o valor dos gastos hospitalares,
porque não sabe quantos dias mais ficará internado, nem se
precisará de algum tipo de assistência médica ou de enfermeira
quando sair do hospital. O mesmo ocorre com eventuais lucros
cessantes, porque, no momento da propositura da demanda, o
autor não tem como calcular quantos dias ainda ficará afastado
de suas atividades laborais502.
É evidente que, nas estritas circunstâncias descritas, o dis
positivo legal ora comentado é absolutamente perfeito e não
merece qualquer crítica. Como os fatos que determinarão o
valor do dano — ou ao menos alguns deles — somente se veri
ficarão após a propositura da demanda, não há qualquer apli
cabilidade da ação probatória autônoma prévia ao ingresso do
processo de conhecimento, por razões óbvias. O problema,
entretanto, não diz respeito à literalidade do dispositivo legal,
mas ao desvirtuamento que a praxe forense vem praticando, em
uma evidente e indevida extensão de seu âmbito de aplicação.
Vem-se percebendo, na praxe forense, que a admissão do
pedido genérico fundado no art. 286, inc. II, do CPC não se
são atos lícitos (art. 1.888 do CC — 2002), mas podem gerar o dever de
indenizar (art. 929 do CC — 2002); (c) danos causados pelas empresas
ferroviárias a quem não seja passageiro ou remetente de carga: o tráfego de
trem é ato lícito, mas se, p. ex., uma faísca que surja do contato das rodas
com os trilhos vier a provocar um incêndio em plantações marginais, esse
dano deverá ser ressarcido e não terá havido ato ilícito". Consulte-se também
Ernane Fidélis dos Santos, Manual de direito processual civil/ cit., v. I, p.
369.
502Valem-se desse exemplo Alexandre Freitas Câmara, Lições de direito proces
sual civil/ cit., v. I, p. 321; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil,
cit., v. II, p. 214; Joel Dias Figueira Jr., Comentários ao Código de Processo
Civil, cit., p. 96; Carlos Alberto Carmona. Em torno da petição inicial. Revis
ta de Processo/ São Raulo: Revista dos Tribunais, n. 119, 2005, p. 22.
442
restringe às situações em que seja impossível ao autor indicar o
valor do dano e, por conseqüência, o quantum debeatur de sua
pretensão, mas também àquelas hipóteses em que, apesar de
possível, torna-se difícil ao autor comprovar o valor do dano ab
initio. Essa dificuldade — obviamente diferente da impossibili
dade — decorre da necessidade de produção de uma prova
complexa, de natureza técnica, imprescindível para obter-se o
exato valor da pretensão. Perceba-se que, nesses casos, o ato ou
fato que compõe a causa de pedir já exauriu seus efeitos, mas,
para apontar, com precisão, os efeitos já gerados, faz-se impres
cindível a realização de uma prova técnica. É notória a compla
cência dos nossos juizes de primeiro grau em aceitar petições
iniciais nessas condições, ao remeterem à fase de instrução —
prova pericial — a apuração do quantum debeatur503.
Até se compreende a flexibilização perpetrada por nossos
tribunais. Por não ter outra forma de descobrir o valor de sua
pretensão que não por meio da produção de uma prova técnica,
o autor contrata um particular, que realiza referida prova — isso
quando tiver acesso a todos os dados necessários — e instrui sua
petição inicial com ela, indicando o valor obtido pelo técnico
como o valor de sua pretensão. Ocorre, porém, que a referida
prova não foi realizada sob o crivo do contraditório, de modo
que é praticamente certo que o réu a impugnará e exigirá que a
prova seja repetida em juízo, sob a forma pericial. Por ser pos
sível essa nova produção, agora judiciai e protegida pelas ga
rantias da ampla defesa e do contraditório, deverá o pedido do
réu ser admitido, sob pena de cerceamento de defesa e de anu
lação do processo.
Ou seja, apesar de todo o tempo despendido pelo autor
extrajudicialmente, bem como os valores gastos para a realização
443
da prova técnica, esta será repetida em juízo, o que torna prati
camente inútil todo o esforço do autor na indicação do valor do
dano que suportou. Em aplicação do princípio da economia
processual, admitir-se-á ao autor que, em vez de gastar tempo e
dinheiro com a produção da prova extrajudicial, que fatalmen
te será desprezada em juízo, simplesmente elabore pedido ge
nérico e remeta o debate a respeito do quantum debeatur para
a prova pericial a ser realizada durante a fase de instrução do
processo de conhecimento. Sob a perspectiva do autor, portan
to, nada mais justo e correto que a flexibilização do disposto no
art. 286, II, do CPC.
Ocorre, entretanto, que, para o réu, a indefinição do pedi
do dificulta seu exercício pleno de defesa, bem como em nada
o auxilia a decidir que postura adotar diante da pretensão do
autor. Caso saiba, de antemão, qual o valor da pretensão do
autor, será possível ao réu, ao menos, reconhecer juridicamente
o pedido daquele, ou, ainda melhor, preparar-se para fazer uma
proposta de acordo que coloque fim ao processo. Sem o valor
indicado na petição inicial, defender-se-á sem saber exatamen
te qual é a pretensão do autor e somente conseguirá posicionar-
se a esse respeito após a realização da prova pericial.
Por estar ciente de que o pedido genérico dificulta a ativi
dade de defesa do réu e mesmo a atividade jurisdicional, a
doutrina nacional, de forma uníssona, aponta para a excepcio-
nalidade dessa espécie de pedido, de modo a limitá-la estrita
mente aos três incisos do art. 286 do CPC. Por se tratar de forma
excepcional de elaboração de pedido, os dispositivos legais
mencionados deverão ser interpretados restritivamente, o que
cria um óbice para a admissão do pedido genérico nas hipóteses
em que a aferição do valor não é impossível ao autor já na pe
tição inicial, mas apenas dependente da produção de uma
prova técnica.
É justamente nessas circunstâncias que a ação probatória
autônoma teria grande serventia, ao exigir-se que o autor, antes
de ingressar com o processo de conhecimento, afira judicial
mente o valor do dano que entende ter suportado, de modo a
444
permitir, na petição inicial, seja elaborado pedido certo e deter
minado, como exige o art. 286, caput, do CPC. Com isso, estar-
se-ia respeitando a literalidade das excepcionais hipóteses em
que o pedido genérico é admitido, sem a necessidade de inter
pretações extensivas que tenham como objetivo a proteção do
autor que precisa de prova técnica para indicar o valor do
dano.
Além disso, a produção de uma prova pericial anteriormen
te ao processo de conhecimento, com o fito de obter o valor do
dano suportado pelo demandante, terá, como foi visto no tópico
anterior, extrema importância em um eventual acordo a ser
celebrado pelas partes, o que, em última análise, evitará até
mesmo o processo de conhecimento. A exigência de que o pe
dido seja certo e determinado, ainda que dependa de uma
prova técnica, forçaria o autor ao ingresso da ação probatória
autônoma e, dependendo do caso, posteriormente ao ingresso
de processo de conhecimento.
Nem se fale que exigir do autor o ingresso de tal demanda
probatória antes do ingresso do processo de conhecimento seja,
de alguma forma, uma afronta ao princípio da economia pro
cessual Na verdade, haverá tão-somente um adiantamento da
prova pericial que seria feita de qualquer maneira durante o
processo, de modo que não é correto apontar para qualquer
dificuldade extra na proposta feita. Dois ganhos são incontestá
veis: a possibilidade de um acordo e a elaboração da petição
inicial com um pedido certo e determinado.
No direito português, o art. 471Q, 1, b, do CPC, abrange,
no tocante ao pedido genérico, tanto a hipótese de impossibili
dade do autor em aferir o valor do dano como as hipóteses já
descritas, em que existe uma dependência da fixação desse
valor à produção de uma prova técnica. Essa segunda circuns
tância é permitida em virtude de expressa previsão legal no art.
569° do CC, que admite ao autor fazer o pedido genérico, sem
pre que exista uma dúvida sua quanto ao valor do dano já su
portado em virtude de ato ou fato que já exauriu seus efeitos
prejudiciais.
445
José Lebre de Freitas504dá exemplo elucidativo, ao apontar:
446
Ação meramente declaratória de fatos
1. IN TRO D UÇÃO
Conforme amplamente visto nos capítulos antecedentes, as
ações autônomas probatórias — de natureza cautelar ou não
— não podem ser confundidas com as ações declaratórias. Essa
conclusão é facilmente obtida a partir do momento em que se
constata que, nas demandas probatórias, não há, por parte do
juiz responsável pela produção da prova, qualquer atividade
valorativa a seu respeito, tarefa reservada, com exclusividade,
ao juiz do chamado "processo principal", que receberá a prova
de forma emprestada. Sem tal vaíoração, é inviável concluir que
o juiz que comandou a colheita da prova declare, positiva ou
negativamente, os fatos referentes às provas produzidas.
Ainda que se reconheça essa diferença básica entre as ações
probatórias autônomas e as ações declaratórias, é interessante
analisar a segunda espécie de ação, em especial quando tem como
objeto um mero fato, como ocorre na hipótese de declaração de
autenticidade ou falsidade de um documento (art. 4°, II, CPC),
única hipótese positivada em nosso ordenamento processual
447
gência de interpretação do que seja a "relação jurídica" previs
ta em lei apenas terá como objetivo a demonstração de que a
ação declaratória de fato juridicamente relevante não é algo tão
distante de nossa realidade forense.
No direito alemão, existe norma processual bastante similar
à existente no estatuto processual pátrio. O § 256 da ZPO ad
mite, expressamente, a ação meramente declaratória que tenha
como objeto a existência ou a inexistência de uma relação jurí
dica, bem como a autenticidade ou a falsidade de um documen
to. Do dispositivo legal se percebe que o legislador alemão
optou pela mesma forma de regra e de exceção adotada pelo
legislador brasileiro: a regra da ação meramente declaratória diz
respeito às relações jurídicas e, apenas excepcionalmente, com
relação aos fatos, na hipótese de autenticidade ou falsidade de
documento505. Em sentido semelhante, o § 228 do CPC da Áus
tria, a utilizar da mesma técnica para a fixação do objeto da ação
meramente declaratória de conferir como regra as relações jurí
dicas e, somente de forma excepcional, o fato de o documento
ser autêntico ou falsificado.
A legislação processual italiana não tem previsão expressa a
respeito do cabimento da ação meramente declaratória, o que,
entretanto, não impediu que a doutrina e a jurisprudência adotassem
essa espécie de ação. Percebe-se das melhores lições que o direito
italiano adotou entendimento muito similar ao previsto na legislação
brasileira, a permitir, em regra, a ação meramente declaratória que
tenha como objeto a declaração da existência ou da inexistência
de uma relação jurídica e, somente de forma excepcional, a decla
ratória de mero fato. Nesse sentido, existe previsão expressa no
direito italiano da possibilidade de mera declaração de autentici
dade ou falsidade de documento (arts. 216 e 221, CPC — verifica-
zione di scrittura privata e querela di falso)506.
505James Coldshmidt, Direito processual civil/ cit., 1.1, p. 144; Othmar Jauering,
Direito processual civil/ cit., p. 190.
506Enrico TuI lio Liebman, Manuale di diritto processuale civile — Principi, cit.,
p. 170-171; Giuseppe Chiovenda, Instituições de direito processual civil,
448-
O direito uruguaio também tem disposição muito similar à
do direito brasileiro, ao apontar o art. 11.3 do CGP, para o inte
resse do autor na mera declaração da existência ou da inexis
tência de um direito ou de uma relação jurídica e da autentici
dade ou falsidade de um documento. O mesmo artigo é repeti
do no Código Procesal Civil modelo para Iberoamerica (art.
11.3).
Na Argentina, o âmbito da ação meramente declaratória é
menor do que no direito brasileiro, considerando que a regra de
que tal espécie de ação só terá cabimento quando tiver por
objeto relações jurídicas não encontra previsão legal de exceção
com relação a fatos, nem mesmo no tocante à autenticidade ou
à falsidade de documento (art. 322, CPCCN).
O direito colombiano desconhece a ação meramente de
claratória de autenticidade ou falsidade de documento. Segundo
a melhor doutrina, existem somente três formas para declarar a
falsidade documental, das quais duas são meros incidentes no
processo civil em que o documento é apresentado. A terceira
forma é autônoma, mas exclusiva do campo penal, que poderá
ser instaurado pela parte contrária ou ainda de ofício pelo próprio
juiz cível que conduz o processo cível no qual a prova é apre
sentada507. Parece ser também essa a realidade do direito espa
nhol, ao menos no tocante à falsidade material, conquanto com
relação à falsidade ideológica não exista qualquer previsão ex
pressa no diploma processual508.
449
Não restam maiores dúvidas na doutrina pátria de que
apesar da literal idade do art. 4Q, I, do CPC, as ações meramente
declaratórias têm sido utilizadas com freqüência na praxe foren
se para que se veja declarado muito mais do que a simples
existência ou inexistência de relação jurídica. Afirma-se corre
tamente que, além da mera existência ou inexistência de uma
relação jurídica, é cabível a ação meramente declaratória de
deveres, direitos, pretensões e obrigações referentes a essa rela
ção jurídica509.
Há jurisprudência consolidada no sentido do cabimento da
ação meramente declaratória para que o autor obtenha a certe
za jurídica quanto à espécie de relação jurídica em que se en
contra envolvido. Nessas circunstâncias, não haverá qualquer
estado de incerteza a respeito da existência da relação jurídica,
reconhecida de maneira peremptória por todos os sujeitos que
dela participam, de modo a remanescer dúvida tão-somente no
tocante ao modo de ser de tal relação jurídica. A ação meramen
te declaratória, nessa hipótese, afasta-se da literalidade do dis
positivo legal que a prevê, por incluir, além da existência ou da
inexistência da relação jurídica, também o seu modo de ser510.
450
Alguns doutrinadores ponderam que, na hipótese anterior
mente aventada, não haverá, propriamente, uma expansão do
objeto da ação meramente declaratória, mas uma indevida
formulação do pedido por parte do autor. Ovídio Baptista511
afirma que
451
essa abrangência não inclui a mera declaração por via de ação
autônoma da validade ou não do contrato, ou ainda de sua
nulidade ou não513.
Questão ainda mais interessante para os fins do presente
trabalho diz respeito à possibilidade de ação meramente decla
ratória que tenha como objeto a posse do autor. É bastante an
tiga a divergência doutrinária a respeito da qualidade jurídica
da posse, entendendo parcela da doutrina tratar-se de direito,
enquanto outra parcela defende tratar-se de mero fato. Eviden
temente, não é esse o local apropriado para que se realize um
debate a respeito das duas correntes doutrinárias; entretanto, é
possível apontar que, para a maioria doutrinária pátria, a posse
deve ser considerada como um mero fato.
A partir da concepção majoritária de que a posse é mera-
mente um fato, há forte corrente doutrinária que entende não
ser admissível a ação meramente declaratória, justamente pela
excepcional idade, somente permitida com previsão legal ex
pressa, de que tal espécie de demanda tenha como objeto um
mero fato, ainda que juridicamente relevante514. Ocorre, entre
tanto, que o tema não é pacífico, conquanto exista parcela da
doutrina para a qual, apesar de a posse tratar-se de um mero
fato, será possível uma ação meramente declaratória que tenha
452
como objetivo exclusivo a declaração do fato de o autor estar
ou ter estado na posse da coisa515.
De forma derradeira, há uma nítida exceção aos limites
impostos pelo art. 4Üdo CPC, na admissão da ação declaratória
de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucio-
nalidade, que não terão como objeto uma relação jurídica es
pecífica, mas o debate a respeito da constitucionaíidade de uma
norma legal. Não há como deixar de consignar a exceção que
essas demandas trazem ao sistema da ação meramente declara
tória, tendo em conta que a doutrina, de maneira uníssona,
afasta essa espécie de demanda para simplesmente interpretar
o direito516. É exatamente isso que ocorre na Ação Declaratória
de Constitucionaíidade e na Ação Declaratória de Inconstitucio
nalidade, ainda que a interpretação limite-se à sua constitucio-
nalidade.
Neste momento, a finalidade não é exaurir o objeto da ação
declaratória no tocante à interpretação do termo "relação jurí
dica", utilizado pelo dispositivo legal, mas simplesmente se
procurou demonstrar que a doutrina e a jurisprudência apresen
tam uma interpretação extensiva do termo legal, inclusive, em
algumas hipóteses excepcionais, a relevar-se a possibilidade de
ação declaratória de fato, ainda que somente quando for juridi
camente relevante, fora da exceção legal prevista pelo art. 4Q, II,
do CPC. Esse tema, entretanto, será mais bem desenvolvido em
tópico próprio. No momento, basta a brevíssima incursão ao
assunto para demonstrar-se a amplitude prática que se pode
perceber na utilização da ação meramente declaratória em apli
cação do art. 4Q, I, do CPC.
453
3. AÇÃO MERAMENTE DECLARATÓRIA DE FATO —
AUTENTICIDADE O U FALSIDADE DE DOCUMENTO
Conforme analisado no tópico anterior, a ação meramente
declaratória poderá ter como objeto um mero fato somente na
excepcional hipótese de declarar autêntico ou falsificado um
documento. Essa situação excepcional, inclusive, não é privati
va do direito brasileiro, pois se encontra em ordenamentos
processuais europeus — como o alemão, o italiano, o austríaco
— e sul-americanos — como o uruguaio.
A doutrina nacional que enfrentou o tema do objeto da ação
meramente declaratória é praticamente uníssona na afirmação
de que, fora tal exceção legal, não se pode admitir essa espécie
de ação de mero fato, ainda que este tenha natureza de fato
jurídico. As razões para a adoção desse entendimento serão
analisadas em tópico próprio; neste momento do trabalho, rea
lizar-se-á o enfrentamento dessa hipótese sui generis de ação
declaratória de mero fato, permitido por expressa previsão legal
(art. 4Q, II, CPC).
É preciso esclarecer, ainda em caráter introdutório, que a
declaração de falsidade ou de autenticidade poderá até mesmo
atingir determinadas relações jurídicas, mas esse efeito da sen
tença nessas demandas não faz parte do objeto da ação mera
mente declaratória, o qual se encerra na simples declaração de
autenticidade do documento. Como é afirmado por Caupp-Stein,
citados por Alfredo Buzaid517,
454
"aqui o problema probatório é um fim em si do processo e
apenas pela exigência do interesse jurídico se faz com que
a declaração do fato não transcenda dos objetivos gerais do
processo civil. A relação jurídica a provar por meio do
documento é apenas mediatamente protegida. Não é obje
to da sentença".
455
fato e destinada a fixá-lo de modo permanente e idôneo, repro-
duzindo-o em juízo"519.
Parcela da doutrina, entretanto, não entende com tal am
plitude o termo "documento", utilizado no art. 4Q, II, do CPC,
por considerar que somente o documento escrito e em papel
poderá ser objeto de ação meramente declaratória que tenha
por finalidade atestar sua autenticidade ou falsidade520. Na ver
dade, essa limitação seria decorrência natural dos vícios descri
tos como aptos a permitir a ação meramente declaratória, quais
sejam, a autenticidade ou a falsidade do documento. Esse en
tendimento, entretanto, não parece ser totalmente correto e deve
ser encarado com as devidas reservas.
Caso se adote o entendimento amplamente majoritário a
respeito do exato significado de autenticidade de documento,
parece ser realmente inviável admitir a ação meramente decla
ratória de documento que não seja ao menos escrito, mas não
necessariamente em papel. Assim, é possível que se afirme au
têntico ou não um pedaço de madeira em que estejam grafadas
palavras, ou ainda uma inscrição em plástico ou vidro. Ainda
mais inadequada fica a limitação do âmbito da ação meramen
te declaratória na hipótese de aferir a falsidade do documento,
ao considerar que qualquer documento pode ser objeto de fal
sificação material. Basta imaginar uma fita de vídeo adulterada,
ou ainda uma gravação de fita montada.
Parece que não se deve, a priori, fazer qualquer limitação
à espécie de documento cuja autenticidade ou falsidade seja
objeto de ação meramente declaratória; surgem tais limitações
519Cf. Moacyr Amaral Santos, Prova judiciária no cível e comercial/ cit., v. IV,
p. 58. Nesse sentido, as lições de Cândido Rangel Dinamarco, Instituições
de direito processual civil, cit., v. III, p. 564: "Documento, como fonte de
prova, é todo ser composto de uma ou mais superfícies portadoras de sím
bolos capazes de transmitir idéias e demonstrar a ocorrência de fatos".
520Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, cit., v. I, p.
182; Ovídio A. Baptista da Silva, Comentários ao Código de Processo Civil,
cit., p. 58.
456
no caso concreto, na dependência do vício do documento que
a parte alegar. Embora seja inegável, na praxe forense, que, na
maioria dos casos, o documento previsto no art. 4Q, II, será es
crito e em papel, não se devem descartar outras hipóteses, de
modo que fica o cabimento da ação meramente declaratória
dependente do vício alegado pela parte interessada no caso
concreto521. Qualquer limitação anterior empobrece essa espécie
de demanda e não encontra justificativa defensável.
No direito brasileiro, a autenticidade nada tem que ver com
o fato de o documento ser público ou privado. Essa constatação
impõe-se em virtude da confusão instituída em alguns ordena
mentos que dispõem que o documento autêntico é o documen
to público, como ocorre no direito francês, em razão do dispos
to no art. 1.317 do CC daquele país522. No mesmo engano inci
dia a doutrina italiana mais antiga, em razão das disposições
concernentes ao assunto contidas no Código Civil, o que, atu
almente, não mais se verifica em virtude dos novos conceitos de
documento existentes na presente codificação civil, ao definir
como ato público o documento elaborado por notário ou outro
funcionário público autorizado (art. 2.699, CC)523.
521Alfredo Buzaid (Ação declaratória no direito brasileiro, cit., p. 118) não faz
restrição a respeito da espécie de documento, somente exige que este reú-
na três condições: "1 — que seja de importância para a prova de uma rela
ção jurtdtca, ou direito; 2 — que o autor, ou réu esteja interessado neles; 3
— que, com relação a ele, em vista da dúvida de sua autenticidade, ou
falsidade, tenha nascido uma incerteza jurídica e o autor tenha interesse em
obter sua eliminação por declaração judicial". Aparentemente no sentido
do texto, José Orlando Rocha de Carvalho, Ação declaratória, cit., p. 110.
522Herriando Devis Echandía, Teoria general de la prueba judicial/ cit., t. II, p.
531-532; Celso Agrícola Barbi, Ação declaratória principal e incidental, cit.,
p. 88; Alfredo Buzaid, Ação declaratória no direito brasileiro, cit., p. 116-
117.
523Mesmo à luz do antigo Código Civil, Francesco Carnelutti (A prova civil.
Trad. Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2002, p. 203-209) já definia,
de forma diversa à do direito positivo, a autenticidade do documento e
afirmava, corretamente, que "a verdade da indicação do autor e, singular
mente, da subscrição, ou seja, a correspondência entre o autor aparente e
457
A primeira conclusão é, portanto, de que a autenticidade
do documento poderá ser verificada tanto no documento públi
co como no privado, de modo que é inadequada a confusão
perpetrada pelo direito francês e pelo antigo direito italiano. Ao
afastar-se a incorreta distinção entre documento autêntico e
documento privado, resta saber qual o significado de documen
to — público ou privado — autêntico para o direito brasileiro.
É majoritária a opinião da doutrina pátria de que a auten
ticidade do documento guarda relação com a autoria do docu
mento, que é considerado autêntico quando for produzido pelo
sujeito indicado no documento como seu autor. Como bem
lembrado por Celso Agrícola Barbi524, "autenticidade do docu
mento nada tem a ver com a verdade das declarações nele
contidas. A declaração pode ser simulada, viciada por erro, dolo
ou fraude, mas nem por isto deixará o documento de ser autên
tico, desde que ele realmente provenha da pessoa nele indicada,
como seu autor".
Essa constatação é de suma importância para a fixação do
objeto da ação que busca determinar a autenticidade do docu
mento. Não será objeto da ação meramente declaratória a vera
cidade ou não das alegações contidas no documento, aspecto,
na realidade, irrelevante para os fins do pedido. O único aspec
to que efetivamente interessa é a relação entre o autor real e o
autor aparente do documento, mesmo porque este pode repre
sentar um fato inverídico ou ainda conter algum dos vícios do
consentimento e ainda assim ser autêntico, hipótese em que o
458
pedido do autor para declarar a falta de autenticidade do docu
mento deverá ser julgado improcedente525.
Ainda em relação à autenticidade, apesar da dissociação
dessa característica com o documento público, é importante
analisar a possibilidade de a ação meramente declaratória ba
sear-se nesse fundamento em relação tanto ao documento par
ticular como ao documento público. Parece ser possível impug-
nar-se a autenticidade de documento público sempre que este
não tenha sido elaborado efetivamente pelo agente público
apontado como seu elaborador; basta, para tanto, imaginar a
hipótese de provar a ausência do agente público ao trabalho no
dia em que foi confeccionado o documento, apesar de ser seu
nome indicado como o do responsável por sua produção. A
hipótese, apesar de possível, é significativamente rara na praxe
forense525.
No tocante ao documento particular, campo mais amplo
em que será possível a alegação de não ser autêntico o docu
mento, cumpre fazer o registro do art 369 do CPC: "Reputa-se
autêntico o documento, quando o tabelião reconhecer a firma
do signatário, declarando que foi aposta em sua presença". Tra
ta o dispositivo legal do tradicional reconhecimento de firma,
que significa que o tabelião considerou a assinatura aposta no
documento como sendo efetivamente da pessoa que o assinou.
É interessante que o dispositivo legal somente menciona o reco
459
nhecimento de firma realizada na presença do tabelião; nada
menciona a respeito do reconhecimento feito por comparação
forma bem mais tradicional do reconhecimento de firma.
Para parcela da doutrina, o artigo legal deve ser interpreta
do restritivamente, porque
460
seguro, o único efeito será a presunção relativa, mesmo efeito
do reconhecimento feito por semelhança.
Por isso, não parece ser relevante a distinção, considerando
que, independentemente da maneira pela qual a firma foi reco
nhecida, a autenticidade do documento somente produzirá uma
presunção relativa da veracidade, contra a qual se admite prova
em contrário. Dessa forma, será admitido, ainda que tenha re
conhecida a firma — pouco importa se realizada na presença
do tabelião ou por semelhança —, o ingresso de ação declara
tória para demonstrar a falsidade da assinatura e, com isso, de
monstrar não ser o documento autêntico528.
Também poderá a ação meramente declaratória ter como
objetivo a declaração de falsidade documental. Em sentido am
plo, o significado do termo "falsidade" abrange tudo o que não
é verdadeiro, mas, em sentido jurídico, a falsidade significa a
alteração da verdade529. Mesmo nesse sentido, haverá substancial
diferença entre a falsidade documental para fins penais e para
fins civis, porque, no primeiro caso, haverá interesse não só no
elemento objetivo — falsidade documentai — como também no
elemento subjetivo — imputabilidade ao falsificador—, enquan
to, no segundo caso, a preocupação limita-se à falsidade do
documento, de modo a desprezar-se o elemento subjetivo. Por
essa distinção, costuma-se dizer que a ação penal de falsidade
é dirigida contra o falsário, enquanto a ação civil é dirigida
contra o documento530.
Evidentemente, ao presente estudo interessará tão-somente
o elemento objetivo da falsidade documental. Nesse tocante, é
461
imprescindível apontar para a clássica distinção entre falsidade
material e falsidade intelectual, mesmo porque da distinção
restará claro que somente no primeiro caso se admitirá a ação
meramente declaratória. A distinção é feita com base nos dois
aspectos do documento: sua forma e seu conteúdo.
A falsidade material diz respeito a defeitos na forma do
documento, que tragam ofensa à verdade devido à formação de
documento falso ou a alterações introduzidas em documento
verdadeiro. Portanto, a forma pela qual foi produzido o docu
mento que traz consigo o vício alterará a verdade dos fatos.
Segundo as lições de Carnelutti531, a falsidade material pode
verificar-se de três modos. O primeiro é a contrafação, que sig
nifica a própria confecção de documento falso, formado por
pessoa, em tempo ou em lugar diversos da verdade. O segundo
modo é a alteração, que corresponde à adulteração de docu
mento já existente de modo a modificar-lhe a proveniência, a
data ou o conteúdo. O terceiro modo é a supressão, hipótese
em que haverá a destruição ou a ocultação do documento, o
que, em última análise, gerará a não-utilização do documento.
Por falsidade intelectual, também chamada ideológica,
entende-se o documento que exponha fatos ou declarações em
desconformidade com a verdade. Trata-se, portanto, de um vício
de conteúdo, porque o documento pode ser materialmente per
feito, sem qualquer vício que macule sua forma, mas seu con
teúdo não representa algo que seja efetivamente verdadeiro.
Essa distinção é tradicional na doutrina532, destacando-se a
possibilidade de que os vícios possam ocorrer de forma cumuía-
462
tiva ou isoladamente, o que já será suficiente para a declaração
de falsidade de documento. Tome-se um exemplo: o credor ela
borou um recibo de pagamento, que era condicionado a algum
fato futuro, mas apaga ou rasura a parte do documento que apon
tava a condição. Nesse caso, há falsidade material. Um recibo a
atestar um pagamento não realizado gera falsidade ideológica.
Um recibo adulterado de pagamento não realizado conseguirá
cumular tanto a falsidade material como a intelectual, embora,
insista-se, tão-somente uma dessas espécies de falsidade já seja
suficiente para afastar a veracidade do documento.
Após se fazerem as devidas distinções entre a falsidade
material e a ideológica, cumpre enfrentar o tema do cabimento
dessas falsidades no tocante à ação meramente declaratória. A
doutrina majoritária aponta para a exclusividade de a falsidade
material poder ser objeto de ação meramente declaratória, por
que, somente nesse caso, estar-se-á, de fato, buscando declarar
o fato de um documento ter sido falsificado, independentemen
te de seu conteúdo, já no caso de falsidade intelectual, um pe
dido declaratório será insuficiente, porque, nesse caso, estar-
se-á buscando a desconstituição do ato viciado ideologicamen
te. Portanto, para argüir a falsidade intelectual, necessária será
uma ação constitutiva negativa; não basta a ação meramente
declaratória533.
Celso Agrícola Barbi534diverge da doutrina majoritária, ao
afirmar, com base nas lições deTuozzi, ser possível a declaração
Luíso. Diritto processuale civile/ cit., v. II, p. 100; Crisanto Mandrioli, Dirit
to processuale civil/ cit., v. II, p. 221.
533Nesse sentido, Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, cit., p. 459;
João Batista Lopes, A prova no direito processual civil, cit., p. 112; Alfredo
Buzaid, Ação declaratória no direito brasileiro, cit., p. 120-121; Ovídio A.
Baptista da Silva, Comentários ao Código de Processo Civil, cit., p. 68; Le
onardo José Carneiro da Cunha, O objeto da ação declaratória, cit., p. 81.
534Cf. Comentários ao Código de Processo Civil, cit., p. 50. Parece concordar
com tal entendimento Ovídio A. Baptista da Silva, Comentários ao Código
de Processo Civil, cit., p. 58. Na doutrina italiana, é forte o entendimento
de que não é possível a falsidade ideológica de documento privado: Gio-
463
de falsidade intelectual. Exemplifica tal hipótese no caso de
"alguém que, ditando uma obrigação, escreva diversamente
aquilo que foi dito e, depois, obtenha firma do obrigado sem
que este, por ter ouvido a leitura, cuidasse de reler o escrito
Nesse caso, haverá um escrito particular intelectualmente falso".
O exemplo fornecido porTuozzi e utilizado por Celso Agrícola
Barbi, entretanto, não parece fazer surgir uma falsidade ideoló
gica, mas tão-somente material, a partir do pressuposto de que
haverá divergência não entre o referente e o referido, mas entre
o documento na sua materialidade e as declarações, também
em sua materialidade535.
Cumpre, nesse tocante, uma importante observação. Ainda
que se concorde com a doutrina em que, na hipótese de falsi
dade ideológica, a desconstituição do ato viciado não possa ser
objeto de ação meramente declaratória, cumpre ressaltar que
será absolutamente admissível a hipótese de o autor ingressar
com tal espécie de ação na hipótese — pouco provável — de
obter a mera declaração de que houve a falsidade ideológica,
sem que com isso pretenda desconstituir o ato viciado. Confor
me é corretamente afirmado por José Orlando Rocha de Carva
lho536, "a res in iudicium deducía trazida no pedido é que vai
determinar a carga de eficácia da sentença a ser proferida: se
constitutiva ou meramente declaratória". Lembre-se que é pací
fico o entendimento segundo o qual, mesmo se tiver condições
de fazer pedido de natureza condenatória, o autor poderá ter
interesse na mera declaração; o mesmo ocorre com o pedido de
vanni Verdi, Profili del processo civile, cit., v. H, p. 105; Crisanto Mandrioli,
Diritto processuale civile, cit., v. II, p. 222.
535Nesse sentido, Moacyr Amaral Santos (Prova judiciária no cível e comercial/
cit., v. IV, p. 580) dá um exemplo muito similar ao utilizado por Celso Agrí
cola Barbi, não obstante tratar de instrumento público, a apontar a ocorrên
cia de falsidade material: "Assim, se o oficial público, valendo-se da igno
rância do testador, inclui entre os legatários dêste quem não foi indicado
como tal; ou se, ao invés de traduzir o dito das partes, faz constar da escri
tura cláusula que não lhe fizeram, haverá falsidade material".
Cf. Ação declaratória, cit., p. 123.
464
natureza constitutiva. Dessa forma, se pretender, exclusivamen
te, declarar a falsidade ideológica sem desconstituir o ato vicia
do ideologicamente, será possível ao autor o manejo da ação
meramente declaratória.
Em caráter conclusivo, é possível afirmar ser entendimento
praticamente uníssono na doutrina nacional que a ação mera
mente declaratória de fatos limita-se, no direito nacional, ao
debate de autenticidade ou de falsidade material de documento,
por ser vedada para outras hipóteses que tenham como objeto
outros fatos que não estes. Essa limitação será objeto de tópico
específico sobre o tema.
465
Muito mais próximo do direito brasileiro encontra-se o di
reito português, que, em razão de expressa previsão legal, ad
mite a ação meramente declaratória de fatos. O art. 4Ü, 2, a, do
CPC vem assim redigido, ao descrever as espécies de ações
declarativas: "As de simples apreciação, obter unicamente a
declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um
facto". O primeiro registro digno de nota diz respeito à espécie
de fato que poderá ensejar a ação meramente declaratória, já
que nem todos os fatos poderão ser objeto de uma simples de
claração de existência ou de inexistência.
A doutrina portuguesa aponta que somente os fatos jurídicos
poderão ser objeto da ação meramente declaratória, cuja pro
positura é inviável quanto aos fatos simples. Isso significa dizer
que somente os fatos aptos, por si sós, a gerar efeitos jurídicos
serão aptos a admitir essa espécie de ação. Segundo as lições
de José lebre de Freitas538,
466
demanda de forma genérica não é admitida, a doutrina portu
guesa, corretamente, exige que o fato seja ao menos capaz de
gerar conseqüências jurídicas, de forma que, mesmo indireta
mente, a declaração atinja relações jurídicas.
A doutrina nacional não faz qualquer distinção a respeito
da espécie de fato, de modo a afastar a possibilidade de ação
meramente declaratória ainda que os fatos sejam relevantes ou
ainda que possam gerar qualidades jurídicas. É tradicional a
afirmação de que, ainda que sejam juridicamente relevantes, os
fatos não podem ser objeto de ação declaratória539. A única
exceção, prevista expressamente em lei, como foi visto, seria a
autenticidade ou a falsidade de documento. Ocorre, entretanto,
que, a depender da importância do fato para o mundo do direi
to, percebe-se que parcela da doutrina aponta para certa flexi
bilização da norma, de modo a abranger, no âmbito da ação
meramente declaratória, outros fatos além daqueles apontados
pelo art. 4Q, II, do CPC540.
Quem de maneira bastante enfática na doutrina nacional
deixou clara tal flexibilização foi Ovídio A. Baptista da Silva541,
apesar de não se ter aprofundado no tema. Ao defender a pos
sibilidade de ação meramente declaratória para a declaração de
posse e do concubinato, afirma que "em ambos os casos não
configuram apenas um fato simples, considerado em sua pura
historicidade, mas, ao contrário, caracterizam fatos complexos,
capazes de gerar importantes conseqüências no campo do di
reito". A par do debate a respeito da natureza do concubinato
— fato ou relação jurídica —, o processualista gaúcho afirma a
possibilidade de ação meramente declaratória de fato quando
este mostrar extrema relevância para o mundo do direito.
539Gabriel Rezende Filho, Curso de direito processual. São Raulo: Saraiva, 1968,
v. I, p. 274; Torquato Castro, Ação declaratória/ cit., p. 55-56; Arruda Alvim,
Manual de direito processual civil, cit., v. I, p. 455; Giuseppe Chiovenda,
Instituições de direito processual civil/ cit., v. I, p. 232.
540José Orlando Rocha de Carvalho, Ação declaratória/ cit., p. 297-303.
541Cf. Comentários ao Código de Processo Civil/ cit., p. 53.
467
Celso Agrícola Barbi542, após afirmar a impossibilidade de
que a ação meramente declaratória tenha por objeto fatos, ain
da que juridicamente relevantes, fora da exceção legal, aplaude
decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que acatou pe
dido de declaração a respeito de determinada pessoa ser a
mesma referida na escritura de reconhecimento de filiação. Na
conclusão de seu raciocínio, afirma que, "na verdade, tratava-se
de declaração de fato, mas este era de tal forma ligado à exis
tência de uma série de conseqüências jurídicas de natureza fa
miliar, hereditária e patrimonial, que negar a ação seria deixar
os autores ao desamparado de proteção jurídica de que tinham
suma necessidade".
Adolf Wach543, em festejada monografia a respeito da ação
declaratória, ao tratar da necessária resistência da parte contrá
ria, afirma que circunstâncias especiais podem motivar a neces
sidade de pedir a declaração, ainda que exista dúvida a respei
to de sua efetiva necessidade no futuro. Entre esses casos, o
doutrinador alemão inclui a circunstância em que exista perigo
de empobrecimento da situação referente à prova, o que, previ-
sivelmente, prejudicará a parte na busca de seu direito. Afirma
que, nesse caso, antecipar-se-ia o nascimento da pretensão de
claratória.
Francesco Carnelutti544também visualizou a possibilidade
de ação meramente declaratória de fato. Afirma o jurista italiano
que, como
468
do, podem constituir, por exemplo, objeto de (simples)
acertamento a idade de uma pessoa ou a falsidade de um
documento, mas nem aquela nem esta se estabelecem si e
por si, a não ser como fatos dos quais derivam determinados
efeitos jurídicos".
469
existir? E o não existir não é, apenas, um fato: o fato de não
existir?".
470
1
471
"porque o juízo sobre um fato jamais assumirá a condição de
indiscutibiIidade, posto que sobre eles não se forma coisa jul
gada (art. 469, inc. II)". E evidente que a afirmação transcrita
somente terá sentido a partir do momento em que se entender
que os fatos encontram-se na demanda como mero fundamento
de um pedido, ou seja, a compor sua causa de pedir. Mas, nes
se caso, não haverá qualquer diferença entre fato e relação ju
rídica, de modo a ser possível que ambas figurem no processo
somente como fundamentos para o acolhimento ou para a re
jeição do pedido. No caso, criar-se-ia uma questão prejudicial,
de fato ou de direito, que, inclusive, poderá ser objeto de ação
declaratória incidental, o que ampliará os limites objetivos da
coisa julgada, para também tornar indiscutível e imutável a
decisão no tocante a essa questão prejudicial
Isso já ocorre com um fato específico que é a autenticidade
ou a falsidade do documento; existe, inclusive, expressa previsão
legal no tocante a essa espécie de ação declaratória incidental
(arts. 390 a 395, CPC). A questão de saber se a decisão a respeito
de relação jurídica prejudicial ou mesmo de fato prejudicial — nos
limites da lei processual — fará coisa julgada, evidentemente,
passa pela análise de saber se tal relação jurídica ou se tal fato
atuam no processo como mero fundamento ou como pretensão
principal do autor; nesse sentido, inclusive, é bastante claro o art.
470 do CPC. Caso possam ser objeto de ação declaratória inci
dental, naturalmente também terão aptidão a ser objeto de uma
ação autônoma de natureza meramente declaratória.
Totalmente aplicável, nesse tocante, é a lição de Cândido
Rangel Dinamarco549, para quem
mites objetivos da coisa julgada. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1998, p. 94-95),
que, em entendimento isolado, afirma que a solução dos fatos jurídicos faz
parte do dispositivo da sentença e opera também, com relação a eles, a
coisa julgada.
549Cf. Instituições de direito processual civil, cit., v. III, p. 221. Consulte-se José
Carlos Barbosa Moreira, Os limites objetivos da coisa julgada no sistema do
novo Código de Processo Civil. In: Temas de direito processual. São Pauloí
Saraiva, 1977, p. 94.
472
"as afirmações ou negações postas na motivação da sen
tença constituem declarações incidentes, ou pronunciadas
incidenter tantum; aquelas contidas na parte dispositiva são
emitidas principaliter, ou seja, em caráter principal A tute
la jurisdicional é oferecida mediante estas, que têm caráter
prático ao consistirem num concreto preceito imperativo a
ser observado pelas partes em suas relações no mundo
exterior. Aquelas, ou seja, as declarações que não passam
de fundamentos, são de natureza histórica, teórica ou con
ceituai: exercem mera função instrumental e têm a finali
dade de preparar e justificar a conclusão a ser tomada na
parte dispositiva".
473
to; esse fato tornar-se-á imutável e indiscutível em virtude do
fenômeno da coisa julgada.
Além da crítica já superada, Ovídio A. Baptista da Silva550
aponta para outra circunstância que entende como um obstáculo
à admissão da ação meramente declaratória de fato. A alicerçar-se
em lições de Proto Pisani, afirma que com a admissão dessa es
pécie de ação restaria abalado o direito de defesa do demandan
do, assegurado constitucionalmente, "pois a sentença que procla
masse a existência do fato torná-lo-ia de reconhecimento obriga
tório para um número indefinido de futuras ações".
O argumento já poderia ser facilmente afastado com o se
guinte questionamento: se for a ação meramente declaratória de
fato uma afronta ao direito constitucional de ampla defesa, não
seria o art. 4Q, II, do CPC inconstitucional? Como se pode per
ceber facilmente, nada de inconstitucional há no dispositivo
legal mencionado, por ser mais do que razoável que, uma vez
declarado autêntico ou falso — ou não — determinado docu
mento, esse fato se torne incontestável para toda e qualquer
demanda judicial envolvendo as mesmas partes; tal circunstân
cia em nada afetará o constitucional direito à ampla defesa;
basta lembrar que, na ação meramente declaratória de autenti
cidade ou de falsidade documental, todas as garantias referentes
ao contraditório e à ampla defesa terão sido respeitadas.
Registre-se que, naturalmente, os limites subjetivos da coi
sa julgada farão com que a existência ou não do fato somente
possa se tomar indiscutível e imutável entre as partes que parti
ciparam do processo551. Seria possível defender a ofensa ao di
474
reito de ampla defesa no caso de essa coisa julgada também
afetar terceiros, o que, entretanto, em razão do disposto no art.
472 do diploma processual civil, somente poderá ocorrer excep
cionalmente. Dessa forma, ao ser declarado autêntico ou falso
— ou não — documento como objeto de ação meramente de
claratória, essa declaração terá eficácia vinculativa somente aos
sujeitos que participaram da produção da prova e, quando mui
to, em razão de sua semelhança com a produção antecipada de
prova, à parte que não participou do processo em que a decla
ração foi obtida, mas que se beneficia de tal declaração — as
pecto de prova emprestada, já analisado.
Nesse tocante, aliás, vale lembrar que a coisa julgada — a
qual, em regra quase absoluta, diz respeito a relações jurídicas
— também obrigará outros juizes, em outros processos, a res
peitá-la; há, nesse caso, o efeito positivo da coisa julgada552.
Dessa forma, uma mesma coisa julgada poderá condicionar um
sem-número de decisões em outros processos. Não se antevê,
em tal circunstância, qualquer ofensa aos princípios do contra
ditório e da ampla defesa. Havendo imutabilidade e indiscutibi-
lidade para questões de direito, que em tese são mais importan
tes que as questões de fato, não há por que apontar qualquer
vício de vinculação em futuros processos à declaração de um
fato que faça coisa julgada material, mostrando-se absolutamen
te equivocado o entendimento exposto por Ovídio Baptista.
Seria possível ainda objetar a ação meramente declaratória
de fato na ausência de interesse de agir do autor. O tema do
interesse de agir da ação meramente declaratória é um dos mais
tormentosos a respeito dessa espécie de ação, e uma análise
mais apurada desse fenômeno jurídico não é possível sem trans
bordar os estreitos limites deste trabalho. São necessários, entre
553José Orlando Rocha de Carvalho, Ação declaratória, cit., p. 326: "Ora, não
se pode admitir, portanto, que o cabimento (ou não) da ação declaratória
esteja centrado na circunstância de ser objeto específico da demanda uma
relação jurídica — uma situação jurídica — um fato jurídico — um fato
simples — uma relação atual, pretérita, ou futura. Tudo isto torna-se irrele
vante para o exame de admissibilidade da demanda, no tocante à admissi
bilidade da demanda, no tocante à identificação do interesse de agir. O que
interessa, em verdade, no exame específico das condições da ação, neste
tipo de demanda, não é nada disto, mas, sim, se houve ou não demonstra
ção de minha parte (autor da demanda), da existência de necessidade efe
tiva do provimento buscado. Ou quando a tanto não se evidencie, ao menos
que se demonstre, que o provimento solicitado, traz efetiva utilidade para
aquele que o invoca".
554Giuseppe Chiovenda, Instituições de direito processual civil, cit., v. I, p. 225;
Celso Agrícola Barbi, Ação declaratória principal e incidente, cit., p. 84;
Leonardo José Carneiro da Cunha, Interesse de agir na ação declaratória,
cit., p. 179-180.
476
conhecida por possibilidade jurídica do pedido, ao indicar para
o autor que o ordenamento jurídico não afasta abstratamente
sua pretensão. Basta imaginar a hipótese de, à luz do art. 4a, inc.
II, do CPC, essa ação ser proposta pleiteando a mera declaração
de fato que não seja um dos previstos no dispositivo legal Nes
se caso, a petição inicial deverá ser indeferida por carência de
ação, não por falta de interesse de agir, mas por impossibilidade
jurídica do pedido, considerando que até poderia haver a ne
cessidade da intervenção do Poder Judiciário, porém a existência
de norma proibitiva no ordenamento dessa espécie de pretensão
exige a extinção do processo555.
Apesar das muitas divergências a respeito do tema, a dou
trina majoritária entende que o interesse de agir na ação mera
mente declaratória encontra-se relacionado à existência de uma
crise de incerteza que, se não for resolvida, poderá acarretar
dano ao autor. Conforme lição de Giuseppe Chiovenda556, "o
interesse de agir decorre de uma situação de fato tal que o autor,
sem a declaração judicial da vontade concreta da lei, sofreria
um dano injusto, de modo que a declaração judicial se apresen
ta como o meio necessário de evitá-lo".
Com relação à situação de incerteza, a doutrina que adota
o entendimento exposto anteriormente é uníssona na afirmação
de que não basta mera dúvida subjetiva por parte do autor: exi
ge-se que a dúvida seja objetivamente aferível Isso significa
dizer que não basta a mera dúvida do autor a respeito da exis
477
tência ou não de uma relação jurídica ou ainda com relação à
autenticidade ou à falsidade documental; é essencial que a dú
vida refira-se a terceiros, de modo a criar uma instabilidade na
esfera de interesse do autor557.
Além da crise de certeza objetivamente considerada, essa
parcela da doutrina entende que o interesse de agir na ação me
ramente declaratória está condicionado a alguma forma de resis
tência da parte contrária, da qual surgiria a possibilidade de dano
ao autor. Considerando que as condições da ação deverão ser
analisadas em abstrato, não se exige um efetivo dano — ainda
que este já possa ter ocorrido; basta, para a configuração do in
teresse de agir, a demonstração, pelo autor, de algum ato do réu
que, ao criar a crise de incerteza, projete dano eventual e futuro
em sua esfera jurídica, econômica, social etc. de interesses558.
Como se nota da conceituação de interesse de agir majori-
tariamente admitida como correta pela doutrina, não é possível
afastar, a priori e de forma generalizada, o interesse de agir em
uma ação meramente declaratória de fato. E evidente que essa
assertiva somente se justifica na hipótese de fatos jurídicos ca
pazes de gerar conseqüências jurídicas, que seriam, por essa
razão, aptos a afastar o eventual dano na esfera de interesses do
autor em decorrência da dúvida ou da incerteza subjetiva com
relação a sua existência ou não. Na hipótese de fatos simples,
sempre faltará interesse de agir ao autor, pela ausência de con
seqüências jurídicas na declaração de tal espécie de fatos559.
478
Com isso, pretende-se afirmar que nem sempre haverá o inte
resse de agir, mas tal circunstância não é privativa dos fatos,
porque também referentemente a relações jurídicas será possível
a falta dessa condição da ação. A pretensão é demonstrar que,
em se tratando de fato jurídico, dependerá do caso concreto a
existência ou não de interesse de agir; assim, não é possível
afirmar peremptoriamente que jamais haveria, nessas circuns
tâncias, o interesse de agir.
Essa corrente doutrinária, entretanto, não reina absoluta
entre os doutrinadores que trataram do tema. Vale ressaltar a
opinião de Francesco Carnelutti560, para quem a definição de
Chiovenda, referendada pela doutrina citada, não é inexata, mas
insuficiente, em razão da dificuldade de aferir o injusto dano que
a declaração busca evitar. Ao afastar-se da possibilidade de dano,
Carnelutti condiciona o interesse na declaração ao perigo da lide
e afirma ter interesse o autor sempre que a declaração refira-se a
uma lide, mesmo que eventual, a verificar-se no futuro.
Há ainda uma terceira corrente doutrinária que entende não
se dever tratar de forma diferenciada o interesse de agir na ação
meramente declaratória. Nesse entendimento, o interesse de agir
deve ser tratado exatamente da mesma forma que nas demais
espécies de ação, pois não haveria qualquer justificativa plausí
vel para o tratamento diferenciado561. Dessa forma, deverá ana
lisar-se, também na ação meramente declaratória, o binômio
necessidade—utilidade dessa espécie de ação judicial para ve
rificar-se a configuração do interesse de agir do autor.
própria 'lógica do razoável' (de que nos falava Recaséns Siches), já estaria a
demonstrar a impossibilidade de existência de postulações dessa natureza".
560Sistema de direito processual civil, cit., v. I, p. 244. No Brasil, esse é o en
tendimento defendido por Ada Pellegrini Grinover, Ação declaratória inci
dental. Tese de Doutorado em Direito Processual Civil. São Raulo, Faculda
de de Direito da Universidade de São Raulo, p. 48. Critica tal entendimen
to Adroaldo Furtado Fabrício, A ação declaratória incidental. Rio de Janeiro:
Forense, 1976, p. 44-45.
.561Nesse sentido, as lições de José Carlos Barbosa Moreira, Direito processual
civil. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 11.
479
A justificativa principal dessa corrente doutrinária é que
poderá haver interesse de agir mesmo quando não estiver pre
sente qualquer dúvida ou incerteza a respeito da existência, da
inexistência ou do modo de ser da relação jurídica ou da auten
ticidade ou da falsidade do documento. Afirma-se que o autor
pode ter certeza absoluta a respeito desses temas, mas ainda
assim poderá ter interesse em ingressar com ação meramente
declaratória como forma de buscar a certeza jurídica gerada pela
coisa julgada, que só poderá ser obtida com a sentença de pro
cedência transitada em julgado dessa demanda judicial, desde
que essa certeza jurídica seja de alguma forma útil ao autor, ao
colocá-lo em posição concretamente mais favorável do que a
que se encontrava antes de ela existir562.
O entendimento não parece correto, porque a dúvida ou a
incerteza que é exigida para reconhecer o interesse de agir na
ação meramente declaratória não tem como conseqüência,
necessariamente, que o autor esteja em dúvida a respeito da
relação jurídica ou da autenticidade ou falsidade de documen
to. A dúvida, ou a incerteza, por assim dizer, deve ser social,
criada por terceiros, pouco importando se o autor tem ou não
certeza quanto à relação jurídica ou à autenticidade ou falsida
de documental Basta que surja uma dúvida, não na mente do
autor, mas no âmbito social em que ele vive, para que se criem,
perante terceiros, dúvidas e incertezas, ainda que o autor tenha
absoluta certeza quanto àquilo de que duvidam terceiros563.
562João Batista Lopes {Ação declaratória, cit., p. 58-59) dá dois exemplos dessa
situação: "Por exemplo: jamais tomei emprestado dinheiro de 'A' e, por isso,
não tenho dúvidas quanto à inexistência de qualquer relação jurídica; como
estou, porém, sendo molestado, vou a juízo e peço seja por sentença decla
rada a inexistência de qualquer dúvida. Outro exemplo: como diretor de
entidade assistencial, tenho convicção de que ela goza de imunidade rela
tivamente a impostos; como, entretanto, tenho notícia de que a Prefeitura
poderá acionar dita instituição, tenho interesse em propor ação declaratória
dessa imunidade tributária". No mesmo sentido, Leonardo josé Carneiro da
Cunha, Interesse de agir na ação declaratória, cit., p. 182-188.
563José Orlando Rocha de Carvalho (Ação‘declaratória/ cit., p. 91), ao criticar
o entendimento de que nãojiaverá interesse de agir no caso de o autor não
480
É verdade que o próprio autor da ação meramente decla
ratória poderá ter uma dúvida fundada, como ocorre em algumas
demandas de reconhecimento de paternidade, em que o próprio
autor tem dúvida a respeito de ser ou não o pai. Essa situação,
entretanto, não é a regra, já que geralmente o autor não tem
dúvida alguma, mesmo porque ingressa no processo para afirmar
seu direito, cuja efetiva existência será objeto de apreciação do
juiz. Invariavelmente, o autor acredita piamente naquilo que
alega na petição inicial, mas, em decorrência de oposição da
parte contrária, suficiente para criar uma situação de dúvida ou
de incerteza perante terceiros, terá interesse de agir. Conclusi
vamente, afirma-se que a dúvida do autor poderá até existir, mas
não é condição para que tenha interesse de agir na ação mera
mente declaratória564.
A corrente doutrinária criticada confunde o interesse de agir
com a finalidade — ou pretensão de direito material — da ação
meramente declaratória. Não há qualquer dúvida de que a cer
teza jurídica seja o objeto da ação meramente declaratória, mas
a incerteza jurídica, conforme já amplamente defendido, não
precisa ser necessariamente do autor. Esse ponto, entretanto, é
interessante porque, ao afirmar que a necessidade da ação me
ramente declaratória é a obtenção da certeza jurídica a respeito
da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação
jurídica ou da autenticidade ou da falsidade de um documento,
essa corrente doutrinária não destoa da realidade, porquanto a
maioria da doutrina aponta também para essa circunstância.
481
A doutrina, ao tratar da finalidade da ação meramente de
claratória, afirma que o autor dessa demanda busca a certeza
jurídica, que é o bem da vida perseguido nessa espécie de de
manda judicial. Afirma-se com acerto que o interesse do autor
na ação meramente declaratória será afastar, com força de coisa
julgada, a crise de dúvida ou de incerteza social que pairava
sobre a relação jurídica ou sobre o documento. Nesse ponto,
cresce em importância a questão da necessidade — interesse de
agir —, porque, sabidamente, a segurança jurídica concedida
por coisa julgada não poderá ser obtida por nenhuma outra
forma. Dessa maneira, a segurança jurídica que advém da sen
tença declaratória entrega ao autor um bem da vida que não
seria possível obter fora do Poder Judiciário; nesse sentido, a
busca da certeza jurídica é praticamente uma ação necessária,
por ser impossível obter o bem da vida de outra forma que não
por meio de sentença de mérito transitada em julgado.
Conforme precisamente apontado por Torquato Castro565,
as ações declaratórias visam à "certeza jurídica que emana da
cousa julgada. O reconhecimento do demandado, qualquer que
seja a forma por que se o obtenha, não pode jamais lograr esse
efeito específico da cousa julgada, e só a declaração judicial tem
esse alcance social que requer o interesse do autor". Isso signi
fica dizer que a certeza jurídica — entendida como um bem da
vida — somente poderá ser entregue ao autor por meio de sen
tença de procedência em uma ação meramente declaratória,
única forma capaz de gerar, com segurança jurídica, a certeza
a respeito da relação jurídica do documento.
Nesse tocante, é interessante analisar — ainda que, para
tanto, seja necessária mudança legislativa — o interesse de agir
565 Cf. Ação declaratória, cit., p. 68. Alfredo Buzaid, Ação declaratória no di
reito brasileiro, cit., p. 152: "A certeza jurídica é um bem. Ela tem sua fonte
na ação declaratória. Não pode ser conseguida fora do processo. Nem o
reconhecimento da parte contrária, por escrito público, ou particular, lhe
eqüivale, ou lhe empresta a autoridade de coisa julgada, que decorre da
sentença declaratória". Remete-se também a Adroaldo Furtado Fabrício, A
ação declaratória incidental, cit., p. 47-48.
482
na ação meramente declaratória de fato genérica. A questão que
deve ser enfrentada é se subsistiria o interesse de agir em ação
meramente declaratória diante de uma previsão ampla e gené
rica de ação autônoma probatória. Existindo, no ordenamento
processual, demandas específicas para a produção de uma pro
va — produção antecipada de prova, exibição, justificação —,
ainda existiria espaço para haver interesse de agir em uma ação
meramente declaratória566?
A resposta a esse questionamento deve ser positiva, porque
há uma evidente diferença entre as finalidades da ação mera
mente declaratória e as da ação probatória autônoma. Enquan
to o bem da vida perseguido na primeira é a certeza jurídica, na
segunda é a mera produção da prova.
Conforme corretamente afirmado por José Orlando Rocha
de Carvalho567, em comparação feita entre a ação meramente
declaratória e a justificação avulsa, há uma nítida diferença
entre essas duas demandas:
483
Já foi devidamente exposto ao longo deste estudo que, nas
ações probatórias autônomas, não haverá qualquer vaíoração
da prova, pois o juiz limita-se à sua produção. Dessa maneira,
os fatos que tenham sido objeto da prova não serão apreciados
pelo juiz dessas demandas, tarefa reservada, exclusivamente, ao
juiz do processo que a receber sob a forma de prova empresta
da. A ausência de qualquer vaíoração no tocante à prova pro
duzida deixa o juiz do processo principal absolutamente libera
do na vaíoração da prova, o que significa que o autor da deman
da probatória autônoma não tem qualquer segurança jurídica a
respeito dos fatos que pretendia demonstrar com a produção da
prova.
Somente sendo possível a obtenção da certeza jurídica
mediante uma sentença judicial declaratória, resta evidente que,
a partir do momento em que se crie uma situação de dúvida ou
de incerteza a respeito de determinado fato, o autor teria inte
resse jurídico em ingressar com uma ação meramente declara
tória, a fim de obter certeza jurídica que não existiria nem
mesmo se a parte contrária tivesse confessado extrajudicialmen-
te o fato. A imutabilidade e a indiscutibilidade referentes à
existência ou à inexistência do fato somente seriam obtidas por
meio da ação meramente declaratória, de modo a transparecer
o interesse de agir do autor.
Conclusivamente, volta-se a afirmar o que já foi consigna
do no início deste tópico. A limitação da ação meramente de
claratória de fato é mera opção legislativa; assim, não há qualquer
obstáculo processual para que se alargue o âmbito dessa espécie
de ação para todo e qualquer fato. A previsão expressa do art.
4o, inc. II, do CPC sustenta, por si só, tal conclusão. A questão
a respeito do acerto ou do equívoco da limitação legislativa será
tratada em tópico próprio.
484
não poderá, em processo posterior, discutir a justiça da decisão",
salvo as exceções previstas nos dois incisos do dispositivo legal,
que constituem o fenômeno do exceptio male gesti processus.
Isso significa dizer que o assistente não sofre os efeitos da coisa
julgada material, até porque não é titular do direito debatido na
demanda — ao menos o simples —, mas sua participação efe
tiva no processo traz a ele outra espécie de imutabilidade e in-
discutibilidade: a da justiça da decisão.
Mas qual a ligação do art. 55 do CPC com o tema deste
trabalho? Em que a imutabilidade e a indiscutibilidade da justi
ça da decisão para o assistente relacionam-se com a ação me
ramente declaratória de fatos? É evidente que este trabalho não
é adequado para aprofundar inúmeras e interessantes questões
que surgem da aplicação do dispositivo legal comentado; para
estabelecer a relação entre esse instituto e o tema ora em análi
se, é suficiente a definição do que se deve entender por "justiça
da decisão".
A doutrina que já se ocupou do tema afirma que por "jus
tiça da decisão" se entendem tanto as questões de fato como as
questões de direito resolvidas pelo juiz na fundamentação de
sua decisão568. Essa definição, inclusive, é o que faz o instituto
diferenciar-se da coisa julgada material; enquanto esta diz res
peito tão-somente, em seus limites objetivos, à parte dispositiva
da sentença — art. 469 do CPC —, aquele diz respeito à funda
mentação, notadamente elementos (a lei fala, indevidamente,
em requisitos no art. 458 do CPC) diferentes da sentença.
A relação entre coisa julgada e justiça da decisão é bem
apontada por Ubiratan de Couto Maurício569, ao afirmar que
485
"o efeito da intervenção assistencial, sob um prisma, é mais
amplo e, em outra perspectiva, mais restrito que o da coisa
julgada. A justiça da decisão é mais ampla que a coisa
julgada no que diz respeito à exatidão da sentença. É mais
restrita porque o assistente valendo-se das excludentes do
art. 55, em posterior demanda, pode alegar a except/o ma/e
gesti processus, diferentemente do que ocorre com a coisa
julgada, em função da impossibilidade, de em outro pro
cesso, se fazer a revisão do direito proclamado na sentença
e dos fatos que lhe serviram de substrato".
486
opção legislativa, passa a ser interessante apontar se tal opção
é adequada aos novos desígnios do direito processual, de otimi
zação de qualidade na prestação jurisdicional. Para tanto, cum
pre apontar alguns benefícios que decorreriam da adoção de
uma amplitude do âmbito das ações meramente declaratórias,
conforme já ocorre no direito português.
É evidente que todos os benefícios analisados no capítulo
anterior, referente à adoção de ação autônoma probatória, es-
tendem-se à ação meramente declaratória de fato. Na verdade,
restariam tais benefícios até mesmo potencializados em deter
minadas hipóteses, considerando que o autor, além da prova,
obteria a certeza jurídica a respeito do fato, de modo a conso
lidar ainda mais a situação fática entre as partes. Basta imaginar
a prova produzida como forma de otimizar a conciliação, no
sentido de que, se houver a certeza jurídica sobre o fato, não
somente a prova a seu respeito, a identificação definitiva da si
tuação fática proporcionaria às partes condições ideais para a
celebração do acordo.
O ganho adicional com a adoção de uma ação meramente
declaratória de fatos genérica é, justamente, a obtenção da cer
teza jurídica a respeito do fato que tenha sido objeto da deman
da, o que não é possível com a ação probatória autônoma. O
que já foi apontado por Proto Pisani e Ovídio Baptista como um
obstáculo à adoção da idéia ora defendida mostra-se, na verda
de, como um benefício não só à parte interessada em demonstrar,
definitivamente, a veracidade ou não de um fato, mas também
ao próprio sistema processual, que, com uma sentença definiti
va, não permitiria novo debate e, conseqüentemente, a possível
decisão diversa a respeito de fatos já demonstrados em deman
da prévia.
É evidente que essa declaração não teria eficácia erga om-
nes, porque isso agrediria os limites subjetivos da coisa julgada
tradicional, definidos pelo art. 472 do CPC, que condiciona os
efeitos de imutabilidade e de indiscutibilidade da decisão aos
sujeitos que participaram da relação jurídica processual — a
487
exceção são os casos de sucessão e substituição processual570.
Poderia, a exemplo do que já ocorre com a produção antecipa
da de prova lato sensu, ser utilizada em processo por sujeito que
não tenha participado do processo em que se formou a coisa
julgada, desde que a parte contrária tenha participado, o que,
evidentemente, não afrontaria a coisa julgada, considerando que
a parte que supostamente não sofreria os efeitos da imutabilida
de e da indiscutibilidade da decisão simplesmente aceita ser
colocada nessa situação, ainda que não tenha participado do
processo no qual a prova foi produzida e o fato, declarado.
A obtenção de um bem da vida diverso da mera produção
da prova, qual seja, a certeza jurídica a respeito de fato por meio
da coisa julgada material de uma sentença que o declare, traz ao
ordenamento jurídico o benefício típico desse fenômeno proces
sual: a segurança jurídica. Ao não se permitir nova discussão a
respeito do fato entre as partes que sofreram os efeitos da coisa
julgada, evita-se que, em processo futuro, decida-se, de forma
contrária à primeira decisão, a respeito da existência ou não do
fato. A segurança jurídica advinda de uma sentença declaratória
de fato transitada em julgado evitaria, assim, decisões contradi
tórias do Poder Judiciário a respeito dos mesmos fatos.
Decisões contraditórias são, notadamente, fator de despres
tígio ao Poder Judiciário — embora nem sempre evitáveis —,
por serem dificilmente compreendidas pelo jurisdicionado,
desconhecedor dos complexos sistemas processuais vigentes. É
absolutamente incompreensível ao jurisdicionado que ora seja
considerado devedor, ora seja considerada quitada a dívida; que
seja despejado por um juiz por falta de pagamento dos alugue
570A doutrina majoritária concorda com essas duas exceções. Por todos, José
Maria Tesheiner, Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 81-83. No tocante à substituição processual, entre
tanto, parcela doutrinária afirma ser inconstitucional a geração de efeitos
da coisa julgada ao substituto processual se a ele for impedido o acesso ao
processo: Egas Moniz de Aragão, Sentença e coisa julgada. Rio de janeiro:
Aide, 1*992, p. 302; Eduardo Talamini, Coisa julgada e sua revisão, cit., p.
114-116.
488
res e considerado em dia com tais pagamentos por outro juiz
etc. Apesar de a falta de harmonização de julgados ser objeto
de comentário, pela doutrina nacional, tão-somente das relações
jurídicas definidas pelas sentenças de mérito — até porque a
sentença declaratória de fato está limitada à hipótese do art. 4Q,
inc. II, do CPC —, não há como negar que também a contradição
entre decisões a respeito do mesmo fato causa desprestígio à
atividade jurisdicional e dificuldade de compreensão por parte
do jurisdicionado.
Não é por outra razão que o art. 105 do CPC determina a
reunião de processos conexos, cujo principal objetivo, segundo
a melhor doutrina, é evitar decisões contraditórias571. Lembre-se
que a conexão ocorre quando existe, entre duas ou mais deman
das, identidade da causa de pedir e do pedido, sendo óbvia a
conclusão de que, por serem os fatos jurídicos componentes da
causa de pedir, a reunião por conexão poderá ocorrer em de
corrência de sua identidade. Dessa forma, se houver um mesmo
fato jurídico em duas ou mais demandas judiciais, é de rigor sua
reunião para decisão por um só juiz, como forma de evitar que
esse fato seja considerado ora verdadeiro, ora falso, o que cer
tamente, diante da regra de que o direito surge dos fatos, acar
retará indesejáveis decisões contraditórias.
Além de evitar decisões contraditórias a respeito de um
mesmo fato em processos distintos a envolverem as mesmas
partes, a ação meramente declaratória de fato também represen
taria economia processual, porque, nesse caso, o juiz estaria
vinculado tanto à prova já produzida como à declaração cons
tante na primeira decisão, o que o impediria novo debate fático
e, com isso, nova produção da prova. A observação é importan
te porque, conforme visto exaustivamente em capítulo próprio,
na prova produzida antecipadamente não existe qualquer vin
culação do juiz que a recebe de forma emprestada, o que torna
489
possível — embora raramente recomendável — a sua completa
desconsideração, de modo que pode o juiz determinar sua re
petição, que, certamente, ocasionará a repetição de atos proces
suais em flagrante afronta à economia processual.
É evidente que o juiz, consciente do fato de que prestação
jurisdicional de boa qualidade envolve tempo razoável de du
ração do processo e menor custo às partes envolvidas, dificil
mente terá motivos para determinar a repetição de uma prova
que já tenha sido produzida em processo judicial regular. Ocor
re, porém, que essa utilização é mera opção do juiz, o qual
poderá, sob uma inadequada defesa do princípio do livre con
vencimento motivado572, determinar a repetição da prova ante
riormente produzida. Ao ocorrer o trânsito em julgado da decla
ração do fato, o efeito positivo da coisa julgada retiraria a opção
do juiz pela repetição da produção da prova, o que, certamente,
evitaria esse desnecessário processo. Exatamente como já ocor
re na atualidade com a ação declaratória de autenticidade ou
falsidade de documento.
490
do trabalho; basta indicá-las de forma individualizada para me
lhor esclarecimento a respeito do tema.
A primeira diferença refere-se ao objetivo perseguido pelo
autor. Ao ingressar com uma ação probatória autônoma, busca-
se, exclusivamente, a produção da prova, sem que o juiz faça
qualquer valoração a seu respeito, enquanto na ação meramen
te declaratória de fatos o pedido do autor não diz respeito à
produção da prova, mas à declaração definitiva a respeito de uma
situação fática. É evidente que, nesse segundo caso, haverá uma
produção probatória, condição necessária para obter a declaração
do fato, porém a produção não será o objeto do processo, mas
mero meio de lograr o bem da vida que se procura, qual seja, a
certeza jurídica a respeito de uma situação fática.
Como segunda diferença pode ser apontado o objeto das
duas demandas. Na ação probatória autônoma, não se faz qual
quer exigência no tocante à natureza do fato que se pretende
provar, somente se exige do autor a comprovação de que tem
interesse na produção da prova. Como foi bem apontado pela
melhor doutrina, na justificação, por exemplo, a prova poderá
ser produzida ainda que não tenha o autor o objetivo de utilizá-
la em outro processo judicial ou mesmo administrativo. Na ação
meramente declaratória de fato, até mesmo para evitar indese
jáveis abusos, somente os fatos que sejam relevantes para o
mundo jurídico — como ocorre, de forma positivada, em Por
tugal — poderão ser objeto da demanda. Isso significa que tão-
somente os fatos jurídicos poderão ser objeto de declaração;
assim, são excluídos os fatos simples573.
A terceira diferença diz respeito ao procedimento. A ação
probatória autônoma, independentemente do conceito de peri
culum in mora que se pretenda defender e mesmo com exclusão
de qualquer exigência nesse sentido, justamente por ter como
491
objetivo a mera produção de uma prova, terá, certamente, um
procedimento mais simples e abreviado, como se pode perceber
atualmente na ação de justificação, que nem mesmo de jurisdi
ção contenciosa se trata. Ainda que se distanciem do tradicio-
nalismo da cautelaridade, tais ações deverão seguir o rito pro
cedimental cautelar, sumário por natureza, de forma a propor
cionar à parte acesso rápido e fácil para obter sua pretensão. Na
verdade, a ação probatória autônoma, a exemplo da justificação,
teria natureza de jurisdição voluntária, o que justifica de manei
ra clara a adoção de procedimento mais simples e abreviado.
já no tocante à ação meramente declaratória de fato, o
processo será de conhecimento e deverá seguir as regras proce
dimentais atinentes a ele, o que certamente trará maiores com
plicações procedimentais. A sentença declaratória, por exemplo,
será, naturalmente, impugnável por apelação, por ser fácil per
ceber o interesse recursal do sucumbente, o que não ocorre na
ação autônoma probatória, na qual a sentença meramente ho-
mologatória da prova produzida dificilmente proporcionará
interesse recursal a qualquer das partes. Dessa forma, presume-
se que a ação meramente declaratória de fato tem duração e
complexidade diferente da ação probatória autônoma.
Como se pode perceber das diferenças apontadas, restará
ao autor a escolha por um dos dois caminhos, levando em con
ta o objetivo que persegue e as dificuldades procedimentais que
terá para obtê-lo. A opção, portanto, será do autor, que deverá,
casuisticamente, analisar, à luz da espécie de fato — simples ou
jurídico — os prós e os contras da interposição de uma ação
probatória autônoma ou de uma ação meramente declaratória
de fatos.
492
CONCLUSÕES
493
«
5. Também a existência da lide — segundo conceito clás
sico de Francesco Carnelutti, conflito de interesses qualificado
por uma pretensão resistida — não pode mais ser exigida para
que se tenha jurisdição; basta, para tanto, mencionar a existên
cia de ações preventivas de ações constitutivas necessárias, nas
quais a intervenção jurisdicional é essencial, independentemen
te da existência de um conflito de interesses entre as partes.
6. Conforme precisa lição de Ciovanni Verde, o conceito
de jurisdição deve ser traçado levando-se em conta seu aspecto
subjetivo; assim, deve ser considerado jurisdicional todo proces
so julgado de forma motivada por um juiz imparcial, desde que
sejam observadas as garantias do contraditório e da ampla de
fesa. Dessa forma, tanto a jurisdição voluntária como a conten
ciosa terão a mesma natureza jurisdicional, apesar das evidentes
diferenças existentes entre ambas.
7. Todo processo tem como característica a instrumentali
dade, considerando-se que o processo é entendido como o
instrumento necessário e apto para a obtenção e para a satisfação
do direito material em juízo. No caso do processo cautelar, há
uma especialidade, porque ele funciona como instrumento de
outro processo, não para a obtenção ou satisfação do direito
material. Em razão dessa especial característica, costuma-se
afirmar que o processo cautelar é o "instrumento do instrumen
to" ou "instrumento ao quadrado".
8. A instrumentalidade do processo cautelar é meramente
hipotética, por ser impossível determinar se o acautelamento
está, realmente, servindo a garantir a eficácia do resultado do
processo principal, mesmo porque não se sabe, nesse momento
processual, se o autor tem o direito material que alega. Também
será meramente hipotética a instrumentalidade se o direito ma
terial for satisfeito sem a necessidade de ingresso de processo
principal. Dessa forma, mesmo que exista uma transação extra
judicial depois de ser efetivada a medida cautelar, ainda será
possível apontar à instrumentalidade hipotética desse processo.
As cautelares, em especial as de natureza probatória, podem
entregar ao requerente, mesmo sem a necessidade de processo,
494
exatamente aquilo que obteria por meio de uma eventual vitória
em processo que não existirá.
9. Tradicionalmente, a produção antecipada de provas está
condicionada à existência do perigo de a prova não poder espe
rar o momento processual adequado a sua produção, qual seja,
a fase de instrução do processo de conhecimento. A idade avan
çada ou uma moléstia grave da testemunha, sua iminente viagem
para fora do país ou para local de difícil acesso, a possibilidade
de o bem a ser objeto de perícia vir a se deteriorar são hipóteses
comumente lembradas para a configuração do periculum in mora
nas ações cautelares probatórias autônomas, ligando-se o perigo
exigido de toda e qualquer cautelar de natureza probatória à
produção da prova, não à efetividade de seu resultado.
10. Na França e na Inglaterra, a ação autônoma probatória
não se prende ao periculum in mora; desse modo, é possível seu
ingresso desde que o autor demonstre um justo motivo para
tanto, entendido como a demonstração da utilidade na produção
probatória. Na Alemanha e na Itália, também é possível uma
ação probatória autônoma sem periculum in mora, mas limitada
à produção de prova pericial; no direito germânico, ainda se
admite essa espécie de ação quando houver concordância das
partes na produção da prova.
11. A doutrina, de forma uníssona, entende que o periculum
in mora das cautelares probatórias diz respeito ao perigo de a
prova não poder ser mais produzida, enquanto, para as demais
cautelares, esse fenômeno jurídico diz respeito ao perigo que o
resultado útil do processo corre em decorrência do tempo. A
proposta é redimensionar o conceito de periculum in mora para
as cautelares probatórias; entende-se também nestas que o fe
nômeno processual diz respeito ao perigo de ineficácia do re
sultado final do processo. A prova antecipada, assim, será hipo
teticamente necessária a um resultado positivo; somente esse
resultado poderá ser eficaz, de forma que, em última análise,
embora de forma hipotética, a produção antecipada de prova
também tem a função de garantir um resultado positivo no pro
cesso principal, única forma de falar em resultado eficaz e útil
495
12. Não é totalmente estranha à realidade forense a ausên
cia de perigo para a produção da prova por meio do processo
de produção antecipada de prova. Uma hipótese bastante clara
dessa situação encontra-se na ação cautelar proposta pelo futu
ro e eventual réu do processo principal, que não terá, natural
mente, condições de saber quando a ação principal será pro
posta; nesse caso, entende a doutrina que se estará diante de
hipótese de dispensa do perigo de a prova não poder ser produ
zida posteriormente. Também na ação preparatória da ação
reivindicatória não se exige o perigo de a prova não poder ser
produzida posteriormente.
13. A tomar-se por base o perigo de a prova não poder ser
produzida posteriormente, não há qualquer sentido, como faz
a doutrina nacional, de forma uníssona, em limitar sua existên
cia à anterioridade ao processo principal, porque o perigo de
não poder esperar pela fase de instrução do processo de conhe
cimento poderá verificar-se tanto antes como durante o proces
so de conhecimento, sempre antes da fase legalmente adequada
à produção da prova. O equívoco deriva da falsa premissa de
que, na produção antecipada de prova, não há produção de
prova, mas sua mera asseguração, em entendimento que con
funde, indevidamente, diferentes fases do procedimento proba
tório: produção e vaíoração. Na produção antecipada de prova,
sempre esta será produzida e não valorada, fase privativa do juiz
do processo de conhecimento ao sentenciar o feito, momento
no qual deverá fixar a situação fática a embasar sua decisão.
Haverá uma única diferença entre a prova produzida antecipa
damente antes e durante o processo, mas ela é insuficiente para
gerar uma distinção de suas naturezas. Em relação à prova pro
duzida antecipadamente de forma autônoma, antes do processo
de conhecimento, sua admissibilidade no futuro processo ocor
rerá sob a forma documental, em decorrência de sua caracterís
tica de prova emprestada, enquanto, na hipótese de prova pro
duzida durante o processo, sua admissibilidade será feita sob a
forma oral ou pericial
14. Tanto para os que defendem a existência de um direito
substancial de cautela como para aqueles que defendem a ins-
496
trumentalidade de outro processo como característica essencial
da natureza cautelar da demanda, a autonomia do processo
cautelar sempre encontrou, na doutrina, plena aceitação, de modo
a ser, aliás, entendida como apuração técnica da ciência proces
sual a distinção entre os processos de conhecimento, cautelar e
de execução. A autonomia do processo cautelar justifica-se prin
cipalmente por dois fatores: a) a diversidade de fins perseguidos
pelo processo cautelar quando comparado com os processos de
conhecimento e executivo; b) a diferença procedimental entre
esses processos, que, uma vez unificados em um só, poderá dar
lugar a indesejáveis confusões procedimentais. Nenhum desses
dois fatores verifica-se na produção antecipada de prova, de
forma a ser desnecessária a propositura de demanda’incidental
se já existir processo de conhecimento em trâmite.
15. O art. 273, § 7Q, do CPC, que admite a fungibilidade
entre a tutela cautelar e a tutela antecipada, somente deverá ser
aplicado quando estiverem presentes, além dos requisitos típicos
da cautelar — periculum in mora e fumus boni iuris —, os requi
sitos típicos da fungibilidade — ausência de erro grosseiro e
dúvida fundada a respeito da tutela adequada no caso concreto.
O dispositivo tem aplicação limitada àquelas situações chamadas
por Luiz Guilherme Marinoni de "zona cinzenta", nas quais a
dúvida a respeito da tutela adequada é fundamentada. Dessa
forma, a cautelar mantém sua autonomia, embora de forma fle
xibilizada; não se devendo admitir um típico e manifesto pedido
cautelar sem a necessária propositura do processo cautelar.
16.0 melhor conceito de "prova emprestada" é aquele que
a define como a prQya produzida em determinado processo e
trasladada a outro, em que servirá ao convencimento do juiz
que a receber de forma documentada. Em nada interessa a fun
ção desenvolvida pela prova no processo em que é originaria-
mente produzida; assim, pode ter sido produzida exclusivamen
te para gerar seus efeitos — convencer o juiz — em outro pro
cesso ou ainda gerar tais efeitos tanto nesse processo como
naquele que a recebe de forma emprestada. Dessa maneira, a
prova produzida por meio de uma ação probatória autônoma
497
ingressará no processo principal sob a forma trasladada, de modo
que é correto afirmar que essa prova é uma espécie de prova
emprestada.
17. Por tratar-se de espécie de prova emprestada, também
na prova produzida antecipadamente afasta-se o princípio da
oralidade, bem como dos princípios correlatos a ele: imediati-
dade, concentração de atos e identidade física do juiz. Registre-
se que essa realidade não é exclusiva da prova emprestada;
basta para fundamentar tal conclusão a lembrança das provas
produzidas por carta precatória e rogatória.
18. A prova emprestada serve para dois propósitos princi
pais: economia processual e obtenção da verdade possível No
tocante à economia processual, a prova emprestada evita a des
necessária duplicação da produção de prova, prestando-se a
evitar a repetição de atos processuais. Por vezes, entretanto, a
prova emprestada terá função ainda mais nobre. Sempre que a
prova não puder ser produzida novamente, a prova emprestada
proporcionará o acesso à ordem jurídica justa, materialização
do princípio constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdi
cional, previsto no art. 5Q, inc. XXXV, da CF. No caso da prova
produzida antecipadamente em razão de periculum in mora
— no conceito tradicional da doutrina —, em regra a prova não
poderá ser novamente produzida, o que enfatiza o segundo, e
mais importante, propósito da prova emprestada.
19. A admissão da prova emprestada deve, em regra, res
peitar o princípio do contraditório; desse modo, não se deve
aceitar o empréstimo de prova de processo no qual a parte não
tenha tido ampla participação na produção desta. Isso não sig
nifica, entretanto, que as partes do processo em que a prova foi
produzida originariamente devam ser exatamente as mesmas do
processo que receberá o empréstimo da prova; para que o con
traditório seja respeitado, basta que a parte contra quem vai ser
oposta a prova tenha participado de sua produção originária.
No caso específico da produção antecipada de prova, esse pro
blema é de pequena relevância, porque, em regra, as mesmas
partes que participaram da ação probatória farão parte da relação
jurídica processual do processo principal.
498
20. Não se exige a identidade do juiz no processo no qual
a prova foi produzida e naquele que a recebe sob a forma em
prestada. A impropriedade da tese que defende tal identidade,
fundada no respeito ao princípio do juiz natural, é criticável por
ao menos três principais argumentos: o aproveitamento dos atos
praticados por juízo incompetente, mesmo quando se tratar de
incompetência absoluta no que tange aos atos que não sejam
decisórios — os probatórios incluídos; a possibilidade de a pro
va ser produzida por juízo que não seja o natural nas hipóteses
de carta precatória ou rogatória; a natureza de prova documen
tal que a prova emprestada adquire.
21. A prova emprestada é espécie de prova atípica, porque
no processo em que é assim apresentada mantém a natureza
originária — oral ou pericial —, mas sua forma será de prova
documental. Trata-se, portanto, de prova documentada. Não por
outra razão a prova emprestada, necessariamente, será prova
causai, porque na prova pré-constituída — especialmente a
documental — a natureza e forma da prova será sempre a mes
ma — documental —, não se podendo falar em prova atípica.
Se for considerada formalmente uma prova documental, a prova
emprestada será produzida no processo que a recebe, desde que
se respeitem as regras procedimentais para a produção dessa
espécie de prova, em especial quanto ao momento de sua apre
sentação em juízo. Registre-se que, na exibição autônoma de
coisa ou de documento, haverá a singular figura da prova docu
mental documentada.
22. Já se afirmou que o respeito ao contraditório é uma das
condições, ao menos em regra, de aceitação do empréstimo de
uma prova. Cumpre agora verificar qual é o vício da prova quan
do esse princípio constitucional não é respeitado. Não é corre
to o entendimento de que a prova, nessas circunstâncias, seja
juridicamente inexistente, tampouco absolutamente ineficaz. Em
regra, a prova produzida sem a observância do contraditório será
ineficaz, incapaz de gerar o efeito de convencer o juiz, mas
existem situações excepcionais em que, mesmo sendo produzi
da sem contraditório, a prova poderá ser aproveitada no con
vencimento do juiz. Se for possível sua repetição — o que de
499
monstrará que sua aceitação somente ensejará economia pro
cessual —, melhor será a repetição da prova, mas, quando tal
repetição for impossível, o princípio do contraditório se verá
confrontado com o da verdade possível; assim, deverá o juiz
aplicar no caso concreto a regra da proporcionalidade, o que
poderá resultar no aproveitamento da prova.
23. A prova emprestada será livremente valorada pelo juiz
que a recebe, pouco importando seu grau de convencimento
sobre o juiz que originariamente a produziu. Entendimento em
sentido contrário, que condicionasse o segundo juiz ao conven
cimento do primeiro, transformaria a prova emprestada em
prova plena, o que não se admite diante do princípio do livre
convencimento motivado no tocante à valoração probatória. Essa
característica é ainda mais clara na prova produzida antecipa
damente, na qual o juiz que a produziu originariamente não
chega nem mesmo a valorar a prova, tarefa reservada, com ex
clusividade, ao juiz do processo principal que a receber sob a
forma emprestada.
24. A doutrina nacional, de forma uníssona, critica o nome
"produção antecipada de provas", por afirmar que, nesse pro
cesso, a prova não será efetivamente produzida, mas meramen
te assegurada, para produção posterior. Confundem-se, indevi
damente, fases do procedimento probatório; mais especifica
mente a fase da produção e da valoração. Apesar de ser correto
o entendimento de que o juiz do processo cautelar não valora
a prova, tarefa exclusiva do juiz que a recebe no processo de
conhecimento, é incorreto afirmar que a prova, somente porque
não foi valorada, não será produzida. O direito espanhol apre
senta expressa previsão de medidas de produção antecipada de
prova e de asseguração de prova, em demonstração clara e irre
futável de que o direito brasileiro positivado somente prevê a
primeira espécie. A não-valoração da prova no processo de
antecipação de provas não torna o processo meramente assecu-
ratório da prova, pois esta é efetivamente produzida, na sua
forma oral ou pericial. Ao ser juntada ao processo principal, a
prova será novamente produzida, sob a forma documenta] — a
500
prova antecipada é espécie de prova emprestada e torna-se uma
prova documentada.
25. Ao conceituar o periculum in mora nas cautelares pro
batórias como o perigo de a prova não poder ser produzida no
momento adequado, a doutrina nacional entende que, sempre
que for ausente essa situação de perigo, a ação autônoma pro
batória não terá natureza cautelar. Poderá até seguir o procedi
mento cautelar, mas não poderá ser considerada uma autêntica
demanda cautelar. Para as cautelares em geral, o princípio do
periculum in mora refere~se ao perigo de que o tempo torne o
resultado do processo ineficaz, o que, evidentemente, só pode
rá ocorrer, ainda que eventualmente, se o resultado for positivo.
Ao aplicar-se esse conceito de periculum in mora às ações pro
batórias autônomas, será possível defender sua natureza caute
lar em qualquer hipótese, mesmo quando for possível a produção
da prova posteriormente, porque uma prova favorável sempre
funcionará para a obtenção de um resultado positivo, condição
sine qua non para falar em resultado eficaz.
26. Em regra, as partes do processo cautelar repetem suas
posições jurídicas no processo principal; será autor o que fora
requerente, e réu, o sujeito que fora requerido. Na cautelar de
produção antecipada de prova, entretanto, essa regra poderá ser
afastada, porque também o futuro réu da ação principal tem
legitimidade para ingressar com a demanda probatória. Essa
legitimação permite que o requerente da produção antecipada
de provas seja réu na ação principal e que figure como autor
nessa demanda o sujeito que participou do pólo passivo do
processo cautelar. Também um sujeito que não participará do
processo principal poderá ter legitimidade ativa na produção
antecipada de prova; basta, para tanto, que demonstre ter com
alguma das partes uma relação jurídica de direito material, da
qual resultaria interesse jurídico do terceiro na produção da
prova. Por não ser essa relação jurídica a que será discutida no
processo principal, deve-se exigir que o resultado deste gere, de
alguma forma, um efeito jurídico na relação jurídica mantida
entre o autor da cautelar — que não participará, ao menos como
501
autor ou réu, do processo principal — e o réu — que deverá
figurar como parte no eventual processo principal
27. É possível a propositura de ação cautelar de produção
de provas contra réu desconhecido, devendo ocorrer nessa hi
pótese uma citação por edital Somente quando a demora ne
cessária à realização de citação dessa espécie puder acarretar a
ineficácia da tutela será permitida a produção da prova antes da
citação do réu, hipótese em que será indicado a ele, imediata
mente, advogado dativo. Propõe-se, de lege ferenda, que, se for
produzida a prova contra réu desconhecido e, no processo prin
cipal, reste comprovado que o autor sabia exatamente quem
deveria ter sido o requerido, ou tinha motivos suficientes para
saber, seja caso de não se admitir a prova, como forma de sanção
processual ao autor desleal
28. A oposição, o chamamento ao processo e a denuncia-
ção da lide são espécies de intervenção de terceiro não admiti
das no processo cautelar em geral e na produção antecipada de
provas em específico. A nomeação à autoria é admitida no pro
cesso de produção antecipada de provas, desde que sejam
preenchidos os requisitos dos arts. 62 e 63 do CPC. A possibili
dade de a prova interessar a sujeito que não poderá ser parte no
processo cautelar pela inadmissibilidade das intervenções de
terceiro, mas que poderá participar do processo principal como
denunciado à lide ou chamado ao processo, proporciona a
aceitação de uma intervenção de terceiro atípica, chamada de
"assistência provocada". O instituto, aplicável a todos os pro
cessos cautelares, ganha importância na produção antecipada
da prova, permitindo o ingresso coativo de sujeito para participar
do processo como forma de possibilitar a oposição contra ela
da prova produzida, no processo principal em que ele intervirá
— eventualmente — como terceiro interessado.
29. Apesar de a previsão do art. 800 do CPC apontar que a
competência para a ação cautelar é a do Juízo competente para
conhecer o processo principal, o princípio da eficácia da cau
telar permite que, em hipóteses de extrema urgência, nas quais
o respeito à norma legal acarreta a ineficácia da tutela cautelar,
proponha-se a ação cautelar no lugar em que a medida garan-
502
tidora deva ser efetivada, ainda que em descumprimento da
regra legal Essa exceção aplica-se tanto para a hipótese de cau
telar antecedente como de cautelar incidental. A justificativa
para a regra legal de competência é de que o juízo da ação
cautelar seria o mais preparado para conhecer o processo prin
cipal, mas não seria aplicável à produção antecipada de prova,
porque o juiz que forma a prova não a valorará, tarefa exclusiva
do juiz do processo principal.
30. A prevenção existente entre o Juízo competente para a
ação cautelar e para a ação principal não se aplica na ação
cautelar de produção de prova. Embora o princípio da imedia-
tidade seja afastado na produção antecipada de prova, entende
mos que, se for essa demanda da mesma competência territorial
da ação principal na qual a prova será utilizada sob a forma
emprestada, interessante será aplicar a regra da prevenção, por
que, dessa forma, haverá uma chance de que o mesmo juiz que
participou da produção originária da prova a utilize no proces
so principal na formação de seu convencimento.
31. Apesar de o art. 342 do CPC mencionar a possibilidade
de interrogatório como objeto da produção antecipada de prova,
o que será permitido é o depoimento pessoal da parte contrária,
com as devidas adaptações. Não se admite a confissão na pro
dução antecipada de prova na hipótese de a parte contrária não
comparecer à audiência ou responder às perguntas de forma
evasiva, porque a confissão, apesar de ser prevista como meio
de prova, na verdade não o é, pois funciona somente no mo
mento de valoração da prova, tarefa, conforme foi visto, exclu
siva do juiz do processo principal. Por se tratar o depoimento
pessoal de uma obrigação processual de fazer, é aplicável à
resistência injustificada da parte na produção antecipada de
prova a multa — astreinte — prevista pelo art. 461 do CPC, como
forma de execução indireta, pressionando a parte contrária a
comparecer à audiência. É evidente que, mesmo pressionada, a
parte poderá comparecer à audiência e não responder às per
guntas, ou fazê-lo evasivamente.
32. Existem quatro espécies de perícia: exame, vistoria,
avaliação e arbitramentp. Na avaliação e no arbitramento, bus
503
ca-se a determinação de um valor, o que leva parcela da doutri
na a entender não serem cabíveis tais formas de perícia na
produção antecipada de prova, porque o valor não corre qualquer
risco, de modo que não é possível seu perecimento. Ainda se
afirma que, sendo impossível ao juiz da cautelar valorar a prova,
o arbitramento ou a avaliação seriam inúteis no âmbito da pro
dução antecipada de prova. Não é o melhor entendimento, pois
se percebe, na doutrina que o defende, novamente a confusão
entre a produção e a valoração da prova. A avaliação ou o arbi
tramento realizado pelo perito antecipadamente pode ou não
influenciar o juiz do processo principal, no que não difere, em
absolutamente nada, das outras espécies de perícia.
33. É indevida a restrição à inspeção judicial na produção
antecipada de prova sob o argumento de que o juiz do processo
cautelar não poderá valorar a prova. A incorreção deriva da
falsa concepção do que seja a inspeção judicial, já porque, por
esse meio de prova, o juiz somente produzirá a prova de forma
direta, não a valorando, tarefa que ficará para a sentença do
processo principal. Deverá tão-somente expressar suas impres
sões em um auto de inspeção, sendo que a valoração a respeito
de tais impressões será feita somente no processo principal, como
ocorre com qualquer outro meio de prova.
34. A petição inicial da produção antecipada de prova se
gue, basicamente, os requisitos previstos pelo art. 801 do CPC
e, de forma complementar, pelo art. 282 do CPC. O requerente
deverá indicar o juízo competente, qualificar as partes, narrar a
causa de pedir e pedido, pedir a citação do requerido, indicar
as provas que pretende produzir para demonstrar seu furnus boni
iuris e periculum in mora, bem como atribuir um valor à causa,
que será meramente estímativo. Está dispensado de indicar a
ação principal que eventualmente proporá (art. 801, inc. III, do
CPC).
35» Ao tratar do mérito da ação cautelar, na inicial da pro
dução antecipada de provas o autor deverá indicar o fumus boni
iuris e o periculum in mora. No tocante ao fumus boni iuris, não
será necessário, nem mesmo sumariamente, o autor demonstrar
504
a aparência do direito material que virá a ser objeto da futura e
eventual ação principal; basta a demonstração do direito à pro
dução da prova, direito este significativamente amplo. Não ha
verá fumus boni iuris na hipótese de o fato a ser provado não ser
objeto de prova, como ocorre com o fato em cujo favor milite
presunção de existência ou veracidade, porque, nesse caso, a
produção antecipada de prova seria inútil Na hipótese especí
fica de fato notório, a vaíoração da notoriedade deve ser feita
pelo juiz da ação principal, somente se admitindo o indeferi
mento da pretensão probatória cautelar quando o fato for mani
festamente notório. Entre produzir prova de um fato pretensa-
mente notório e indeferir essa produção para depois não se
admitir o fato como notório, prefere-se a primeira solução. Por
ser amplo o direito à prova, a necessidade de o requerente de
monstrar o fumus boni iuris na cautelar de produção antecipada
de prova é tarefa extremamente facilitada.
36. Na doutrina pátria, de maneira uniforme, entende-se
que o periculum in mora na produção antecipada de prova é o
perigo de que a prova, se não for produzida imediatamente, não
poderá sê-lo no momento adequado para tanto — fase instrutó-
ria do processo de conhecimento. É inadequada a tipificação
desse perigo, como é feito pelo art. 847 do CPC no tocante à
produção antecipada de prova testemunhai, sendo que mesmo
perigos não tipificados pela lei admitirão a demanda cautelar.
Nesse ponto o art. 849 do CPC, que trata da prova pericial, ao
deixar de tipificar o perigo, é superior tecnicamente ao art. 847
do CPC. Registre-se um abrandamento jurisprudencial na prova
do periculum in mora, ao admitir-se a prova antecipada ainda
que tal requisito não tenha sido plenamente demonstrado.
37. A concessão de liminar é extremamente rara na produ
ção antecipada de prova, o que contraria a freqüência com que
tal figura se verifica nas demais demandas cautelares. A produção
da prova inaudita altera parte deve ser reservada a situações de
excepcional urgência, porque não permitirá ao requerente par
ticipar da produção da prova, por ser sua posterior atuação
processual muito limitada, em séria flexibilização do contradi
tório. De lege ferenda, como já ocorre no direito positivado da ••
' 505
Itália e Argentina, nesses casos excepcionais deveria ser possível
a indicação de advogado dativo ao requerido para que acom
panhe a produção da prova.
38. O requerido na produção antecipada de provas, que
deverá, obrigatoriamente, ser citado, poderá, no prazo de res
posta, ingressar com qualquer uma das respostas previstas pelo
art. 297 do CPC. Poderá excepcionar o juízo na hipótese de
incompetência relativa e o juiz, na hipótese de suspeição e im
pedimento. Apesar de a corrente doutrinária majoritária não
entender cabível a reconvenção como forma de resposta do
requerido na ação cautelar, na produção antecipada de prova
não se podem negar os benefícios da permissão de um pedido
contraposto na própria contestação, a possibilitar que o reque
rido amplie o objeto da prova ou ainda indique outras fontes de
prova (e. g., requeira a oitiva de novas testemunhas). Não se
mostra correto o entendimento de que o requerido seja tão-so-
mente citado para participar da produção da prova, sem poder
defender-se, pois se exigir tal conduta obrigatoriamente passiva
do requerido macula o princípio do contraditório e da ampla
defesa. Havendo mérito nesse processo — fumus boni iuris e
periculum in mora —, o requerido poderá contestar a pretensão
do requerente no mérito e buscar uma sentença de iImprocedên
cia, além, evidentemente, de alegar as defesas processuais.
39. A produção de prova que tenha como objeto a oitiva
de testemunha ou do requerido seguirá, basicamente, as regras
procedimentais concernentes à produção de prova testemunhai,
excluída a possibilidade de confissão na oitiva do requerido,
conforme já anteriormente exposto. A contradita somente deve
rá ser admitida se a causa de vício para a oitiva da testemunha
puder ser demonstrada objetivamente, porque, sendo a causa
- subjetiva, exigir-se-á uma valoração, a qual não deve ser feita
pelo juiz da ação cautelar. A acareação deve ser amplamente
admitida, pois busca purificar a prova colhida quando existem
contradições nas declarações; devendo-se considerar que, pro
vavelmente, será impossível proceder a essa confrontação no
processo principal.
506
;
40. A produção antecipada de prova pericial segue as mes
mas regras procedimentais para a produção da prova que o meio
i previsto na parte do estatuto processual destinada ao tema pro
batório. Até mesmo a oitiva do perito para prestar esclarecimen
to em audiência de instrução deve ser admitida, porque, nesse
caso, o juiz da ação cautelar somente estará admitindo uma
prova mais completa; tal ato em nada se confunde com a valo
ração da prova.
41. Apesar de não ser possível vetar que o juiz da ação
principal repita a produção de uma prova anteriormente produ
zida, de modo a desprezar qualquer valor a ela, é importante
que o juiz não proceda de forma contrária ao princípio da eco
nomia processual; assim, deve evitar a repetição de atos inúteis.
De um maior respeito ao instituto da produção antecipada de
prova, com a conseqüente aceitação da prova produzida, de
pende o interesse prático das partes em produzir a prova ante
cipadamente por meio de ação autônoma.
42. Na ação de produção antecipada de prova, antes de
produzi-la, o juiz poderá proferir sentença terminativa ou de
improcedência do pedido do requerente. Embora tais decisões
também possam ocorrer depois de produzida a prova, hipóteses
em que poderá deixar de homologá-la, o juiz não conseguirá
desfazer o que já foi feito, porque prova produzida é prova pro
duzida. O problema potencializa-se na hipótese de prova pro
duzida inaudita altera parte, porque, nesse caso, o requerido
não terá participado de sua produção. Caso venha ao processo
e demonstre em contestação que não havia necessidade da
produção de prova sem sua oitiva, porque o caso concreto não
apresentava a urgência urgentíssima afirmada pelo requerente,
ou a prova será repetida, ou o juiz extinguirá o processo com
sentença de improcedência, deixando de homologar a prova. A
única hipótese em que a prova não poderá ser aproveitada em
outro processo é se for demonstrada a má-fé do requerente em
suas alegações para produzir a prova sem a participação do
requerido.
43. A condenação do requerido ao pagamento das verbas
de sucumbência dependerá da postura que adotar diante do
507
pedido do requerente. Caso não se oponha à produção da pro
va, não poderá ser condenado, por considerar-se que não deu
causa à demanda, e poderá até mesmo concordar com a produ
ção da prova, que, aliás, poderá favorecê-lo em processo futuro.
Já no caso de impugnar a pretensão do requerente, com o obje
tivo de evitar a produção da prova, após serem superadas suas
teses defensivas e produzida a prova, deverá ser condenado às
verbas de sucumbência.
44. Exibir significa colocar em contato físico e permitir que,
visualmente, conheçam-se a forma e o conteúdo de coisa ou de
documento. Ao ser realizada a exibição em juízo, não se justi
fica a manutenção da coisa ou do documento nos autos por
tempo prolongado; assim, cabe ao juiz, no caso concreto, de
terminar lapso temporal suficiente ao conhecimento da coisa ou
do documento, e, depois de ser vencido tal prazo, devolvê-los
à pessoa que os detinha em seu poder. A característica da exi
bição é o suficiente para diferenciar esse meio de prova da
prova documental, porque, uma vez produzida a prova por esse
segundo meio, o documento não retornará, em regra, a seu
possuidor, de modo que é incorporado ao processo e permane
ce nos autos até, pelo menos, a extinção do processo.
45. A exibição de coisa e de documento poderá ocorrer
durante o processo de conhecimento, ainda que antes da fase
instrutória. Nesse caso, a doutrina, de maneira majoritária, afas
ta a cautelaridade da exibição, ao apontar a dispensa do fumus
boni iuris e do periculum in mora. O entendimento não se mos
tra correto, porque, se for necessário o adiantamento procedi
mental para a exibição de coisa ou de documento durante o
processo de conhecimento em virtude do perigo de não mais se
poder produzir a prova durante a fase instrutória, a exibição terá
nítida natureza cautelar, pois servirá para evitar o perecimento
da prova e, como conseqüência, garantirá uma situação proces
sual favorável à parte para que se sagre vitoriosa na demanda.
46. Em algumas hipóteses, a exibição de coisa ou de docu
mento presta-se a fornecer ao autor dados necessários à propo
situra da demanda judicial, como no caso de preparação para a
508
ação reivindicatória. Parcela majoritária da doutrina entende
que, nesse caso, a exibição será satisfativa, porque o objetivo do
requerente é tão-somente o conhecimento de tais dados, afas-
tando-se a natureza cautelar da exibição por ser dispensado o
requisito do periculum in mora. É preciso registrar que é ilusório
o entendimento de que os dados obtidos pela demanda proba
tória sirvam tão-somente como preparação para o ingresso do
processo, porque tais dados também serão utilizados como
prova das alegações do autor. Haverá, portanto, duas funções:
preparar a ação e provar fatos. Apesar da divergência a respeito
da natureza jurídica dessa exibição — cautelar ou satisfativa —,
é inegável tratar-se de ação probatória autônoma, que tem como
objeto a prova de um fato necessário à propositura da demanda
judicial, mas que também será utilizado no convencimento do
juiz.
47. A exibição de coisa ou de documento também pode
fundar-se no direito material do requerente sobre a coisa ou
sobre o documento, hipótese em que a doutrina majoritária a
afasta da natureza cautelar, por entender que, nesse caso, o di
reito material à exibição é satisfeito. O art. 844, inc. II, do CPC
menciona a exibição de coisa ou de documento próprio ou
comum. Mais uma vez, a par de sua natureza jurídica — caute
lar ou satisfativa —, é inegável que, uma vez exibida a coisa ou
o documento em juízo, ter-se-á produzido uma prova a respeito
da forma, do conteúdo ou do estado da coisa ou do documento,
circunstância suficiente para incluir também essa espécie de
exibição no rol das ações probatórias autônomas.
48. Para a doutrina majoritária, a exibição só terá natureza
cautelar se for proposta por meio de ação autônoma antes da
ação principal e se existir, no caso concreto, o fundado receio
de que, posteriormente, a produção da prova seja impossível ou
extremamente difícil Ao defender a cautelaridade dessa ação,
exigir-se-á do requerente a comprovação do fumus boni iuris e
do periculum in mora. As mesmas dificuldades encontradas para
configurar, no caso concreto, o fumus boni iuris na produção
antecipada de prova repetem-se na exibição cautelar. Por tratar-
se de demanda em que se busca, exclusivamente, a produção
509
de uma prova que poderia perecer em razão do tempo necessá
rio de espera pelo momento de sua produção, não se deve
exigir do requerente, nem mesmo deforma aparente, a demons
tração do direito material que virá a ser objeto da ação principal,
de modo a limitar-se à análise do juiz ao direito à prova. Dife
rente do que ocorre na produção antecipada de prova, o legis
lador não tipifica as hipóteses de periculum in mora, de forma
que qualquer perigo à produção da prova será suficiente para
preencher tal requisito no caso concreto.
49. Apesar da dificuldade em distinguir as condições da
ação e o mérito nas ações cautelares, na exibição cautelar a
possibilidade jurídica do pedido funda-se na exigência de que
a prova seja lícita e que não esteja excluída sua exibição expres
samente pelo ordenamento jurídico (art. 363, CPC). No tocante
ao interesse de agir, o requerente deverá demonstrar que não
teria outra forma de acesso ao documento ou à coisa que não
por intervenção jurisdicional, o que torna o processo de exibição
cautelar imprescindível. Quanto à legitimidade de parte, apli-
cam-se as mesmas regras da produção antecipada de provas. A
especialidade fica por conta da possibilidade de legitimação
passiva de terceiro, ou seja, de sujeito que não virá a compor o
pólo passivo ou ativo da ação judicial principal. Rara ser deman
dado na exibição, basta que o sujeito esteja em poder da coisa
ou do documento; é irrelevante sua futura participação no even
tual processo principal.
50. A exemplo da produção antecipada de prova, a regra
de competência do art. 800 do CPC não deve ser aplicada na
exibição de coisa ou de documento, pois se prefere a proposi
tura da ação no local em que se produzirá a prova, ainda que
não seja o mesmo em que deve ser proposta a futura e eventual
ação principal. Reconhece-se que, no caso de bem móvel, pode
ser difícil ao requerente indicar o local em que se encontra o
documento ou a coisa, hipótese em que deverá seguir a regra
do art. 800 do CPC. Trata-se, mais uma vez, de aplicação do
princípio da eficiência do processo cautelar.
510
51. Como na produção antecipada de prova, na exibição
cautelar o requerente poderá ser o réu na ação principal, e vice-
versa. O ingresso da exibição cautelar pelo potencial réu da ação
principal poderá, inclusive, levara não-propositura da demanda,
uma vez que o potencial autor, ciente de que o potencial réu
conhece o documento ou a coisa, poderá ser desestimulado a
propor a demanda judicial. Na legitimação passiva, basta que o
sujeito tenha em seu poder a coisa ou o documento, mesmo que
não venha a ser parte na futura e eventual ação principal.
52. Na petição inicial da exibição, é dispensável a exigên
cia contida no art. 801, inc. III, do CPC, pois não se exige do
requerente a indicação do objeto da ação principal futura e
eventual, que, no caso concreto, aliás, pode nem mesmo existir.
Uma especialidade digna de nota no tocante à inicial do pro
cesso autônomo de exibição de coisa ou de documento diz
respeito ao cumprimento do exposto no art. 356 do CPC, em
virtude do disposto no art. 845 do mesmo diploma legal.
53. Admite-se a concessão de liminar na exibição cautelar
de documento ou de coisa, desde que o requerente demonstre
que a citação do requerido poderá tornar ineficaz a medida
pretendida. Nesse caso, deverá ser indicado um advogado dati
vo ao requerente ainda não citado, bem como será possível ao
juiz exigir a prestação de caução como forma de garantir even
tuais prejuízos injustificados ao requerido.
54. Tratando-se de verdadeira ação judicial, na exibição
cautelar o requerido deve ser citado, a fim de integrar-se à rela
ção jurídica processual Apesar de o art. 802 do CPC indicar que
o requerido poderá contestar em cinco dias, existem outras es
pécies de resposta que poderão ser utilizadas pelo requerido: as
mesmas que poderá utilizar como resposta na produção anteci
pada de provas. Na contestação, poderá alegar que a coisa ou
o documento não existe, que não está em seu poder, que não
tem o dever de exibir, ou que não existem fumus boni iuris e
periculum in mora.
55. Por não haver vaíoração da prova na exibição, qualquer
que seja o requerido — eventual réu na futura ação principal ou
511
não —, não se admitirá que, diante da resistência em exibir a
coisa ou o documento, os fatos que se pretendiam provar verda
deiros sejam admitidos como tais. O juiz deverá determinar a
busca e a apreensão do documento ou da coisa e poderá cominar
a aplicação da astreinte, já que a exibição é obrigação de fazer.
56. O vocábulo "justificação" tem, no campo do direito
processual, dois significados diferentes: a) ato de tornar plausível
um fato; e b) processo autônomo que tenha como objeto a co
lheita de prova testemunhai. No primeiro caso a justificação
consubstancia-se em audiência a ser realizada para convencer
o juiz a respeito do pedido de uma tutela de urgência, como
ocorre no pedido de concessão de liminar nas cautelares e nas
ações possessórias. Ainda que não exista previsão específica,
será admissível audiência de justificação sempre que o juiz
entender necessário ouvir testemunhas para decidir a respeito
de pedido de tutela de urgência. No segundo caso, a justificação
desenvolve-se por meio de ação autônoma, chamada de "justi
ficação avulsa".
57. Apesar de prevista entre as cautelares nominadas, a
doutrina pátria é uníssona no entendimento de que a justificação
avulsa não tem natureza cautelar, a considerar a dispensa de
qualquer periculum in mora para sua admissão. A ação de jus
tificação é uma verdadeira ação autônoma probatória oral,
porque a única exigência feita ao requerente é a demonstração
da utilidade da produção da prova; em nenhum momento se
pondera estar tal produção em perigo.
58. A justificação avulsa diferencia-se da produção anteci
pada de prova oral exclusivamente em virtude do perigo de a
prova poder perecer, presente na segunda e ausente na primeira.
O efeito das duas demandas é exatamente o mesmó: produzir
uma prova oral. Por essa razão, existe uma nítida fungibilidade
entre elas; desse modo, deve o juiz, no caso concreto, converter
a produção antecipada de prova oral em justificação avulsa se
entender liminarmente que não existe o periculum in mora,
tradicionalmente exigido para essa espécie de ação cautelar. Na
verdade, a própria sobrevivência dessa ação é questionável,
512
porque a justificação leva o requerente ao mesmo resultado
exigindo menos requisitos.
59. A justificação faz parte da jurisdição voluntária. Essa
conclusão é pacífica, mas a doutrina diverge das razões para
enquadrar a justificação avulsa no quadro da jurisdição volun
tária. O melhor entendimento é aquele que defende a natureza
de jurisdição voluntária do processo de justificação como deri
vação da ausência de cognição a respeito de qualquer direito
material que venha a ser protegido pelo processo, pois simples
mente se produz a prova testemunhai, desde que ela seja útil e
possível.
60. O objeto principal da justificação avulsa é a prova tes
temunhai, sendo os documentos que o requerente, segundo o
art. 863 do CPC, poderá juntar à petição inicial limitados, jus
tamente, a corroborar a prova testemunhai a ser produzida. Não
existe justificação documental nem produção de prova docu
mental na justificação, como uma leitura mais apressada do
dispositivo legal mencionado poderia fazer crer. Apesar de a
doutrina ser uníssona ao limitar a justificação avulsa à prova
testemunhai, parece não haver qualquer inconveniente em in
terpretar expansivamente o art. 863 do CPC, de modo a permi
tir também a realização de depoimento pessoal. Não há lógica
em exigir, para o depoimento pessoal, o periculum in mora, de
modo a obrigar o requerente a propor a ação de produção an
tecipada de prova, enquanto essa situação de perigo é dispen
sada na produção de prova testemunhai por meio de justificação
avulsa. Por tratar-se de espécies do mesmo gênero — prova
oral — , devem ser tratadas igualmente.
61. A prova produzida em justificação avulsa é espécie de
prova documentada. Mantém sua natureza oral originária, mas
se materializa na ata de audiência, que é documento. Dessa
forma, ao utilizar a prova produzida em justificação avulsa em
outro processo — judicial ou administrativo —, esta será apre
sentada sob a forma documental, mas não terá essa natureza.
Essa diversidade de natureza e de forma torna a prova produzi
da na justificação, à luz do processo que a recebe, em prova
513
atípica, diferente de todas aquelas previstas expressamente como
meio de prova pelo estatuto processual. Essa constatação tem
importantes efeitos práticos, como a não-admissão de justifica
ção para a prova de fatos que somente poderão ser comprovados
mediante prova documental.
62. A justificação não tem a característica da instrumenta
lidade, própria das cautelares, a considerar que o requerente não
precisa demonstrar, ainda que sumariamente, seu interesse em
utilizar a prova produzida em uma futura e eventual demanda
judicial. Basta a demonstração de algum interesse na produção
da prova — ainda que meramente prático — para se admitir a
justificação. A utilidade da prova para algum fim é essencial,
considerando que o Poder Judiciário não pode ser obrigado a
mover toda a sua máquina para desenvolver atividade que se
mostra absolutamente inútil Não se admitirá a justificação nas
hipóteses em que o fato somente possa ser provado juridicamen
te por meio de outro meio de prova, em regra documental.
63. Se figurar como parte do processo de justificação avul
sa — como autor ou "interessado" — qualquer dos entes federais
previstos pelo art. 109, inc. I, da CF, a Justiça Federal será abso
lutamente competente para conhecer a justificação avulsa. A
mesma competência absoluta terá na hipótese de não existir
qualquer desses entes como parte no processo, mas o autor in
dicar que pretende utilizar a prova produzida em futuro proces
so que contará com algum deles no pólo passivo. Caso não es
teja presente qualquer desses entes federais nos pólos da justifi
cação avulsa e tampouco haja indicação de que a prova produ
zida será utilizada em processo futuro e eventual que os envol
va, a competência da justificação será da Justiça Estadual.
Ocorre, entretanto, que, mesmo produzida a prova por juiz es
tadual, será possível ao autor utilizá-la em processo de compe
tência da Justiça Federal, até porque a prova produzida por juí
zo absolutamente incompetente não será anulada, de modo a
manter sua integridade como prova. Esse raciocínio estende-se
inclusive para ações de justificação que tramitaram perante um
juízo absolutamente incompetente.
514
64. No tocante à competência de foro, aplicam-se as mes
mas regras destinadas a regular o tema na ação de produção
antecipada de provas. No caso da justificação, aliás, a doutrina
— sempre com o conceito clássico de periculum in mora para
as ações probatórias — indica mais uma razão para deixar de
aplicar a regra exposta no art. 800 do CPC, por considerar não
existir, em tal processo, qualquer natureza cautelar, de modo
que não está o direito à produção da prova testemunhai condi
cionado à propositura da chamada "ação principal".
65. Apesar de ser característica dos processos de jurisdição
voluntária a possibilidade de sua instauração de ofício em razão
de característica de inquisitoriedade presente nessas demandas,
a justificação avulsa exige uma provocação da parte interessada
em produzir a prova. Os poderes instrutórios do juiz, nesse to
cante, não podem superar o princípio da inércia da jurisdição.
Não haveria qualquer sentido lógico em um juiz iniciar de ofício
uma justificação avulsa para produzir prova oral de utilidade
para determinado sujeito que não tenha provocado o Poder Ju
diciário nesse sentido.
66. A petição inicial da justificação avulsa segue as regras
do art. 282 do CPC, não do art. 801 do mesmo diploma legal.
O requerente da justificação avulsa está dispensado de indicar
o objeto do futuro e eventual processo principal — art. 801, inc.
III, do CPC —, que poderá nem mesmo existir. O art. 861 do
CPC exige do autor uma petição inicial circunstanciada, a en-
tender-se que a exigência de narrativa de causa de pedir estará
satisfeita com a indicação pelo autor de seu direito e de seu
interesse na produção da prova. Ainda que não se exija a utili
zação da prova em processo judicial ou administrativo — que o
art. 861 do CPC chama, indevidamente, de "processo regular^' —,
sua indicação na petição inicial será suficiente para demonstrar
a utilidade e a necessidade da produção probatória.
67. Além de indicar a utilidade da prova, também será
exigida do requerente a indicação precisa dos fatos sobre os
quais pretende produzir a prova oral, pois, somente dessa ma
neira, a análise do interesse de agir e da possibilidade jurídica
515
do pedido poderá ser realizada. Além disso, a indicação do fato
ou dos fatos que se pretende comprovar delimitará o objeto da
prova, de modo a evitar o prolongamento desnecessário da
audiência com perguntas que não digam respeito ao fato ou aos
fatos que se pretende provar.
68. O requerente deverá, já na petição inicial, arrolar as
testemunhas que pretende ouvir em audiência; essa informação
é passada já na citação ao "interessado" — na verdade requeri
do —, o que poderá, inclusive, possibilitar um exercício de
defesa mais amplo. Deverá instruir a petição inicial com os
documentos indispensáveis à propositura da demanda, nos ter
mos do art. 283, combinado com o art. 863, ambos do CPC. O
valor a ser atribuído à causa será meramente estimativo.
69. O art. 862, caput, do CPC menciona a citação dos
"interessados". Tendo a justificação como objeto a prova de
relação jurídica, o interessado será o sujeito que participou com
o requerente na alegada relação jurídica que se pretende provar.
Quanto à prova de fatos, deverão ser citados como interessados
todos os sujeitos contra quem o requerente pretende opor sua
prova. É possível que os interessados sejam indeterminados ou
indetermináveis, mas não se admite a justificação avulsa se a
prova a ser produzida disser respeito, exclusivamente, ao reque
rente. Nesse caso, o interessado será incerto e deve ocorrer ci
tação por edital, nos termos do art. 231, inc. I, do CPC. Não é
possível a inexistência de citação na justificação avulsa, apesar
de o art. 862 do CPC apontar, indevidamente, para tal dispensa
nas hipóteses previstas em lei.
70. Apesar de o art. 1.105 do CPC exigir a intimação do
Ministério Público em todos os processos de jurisdição voluntá
ria, sua presença somente será exigida quando verificada uma
das causas previstas pelo art. 82 do CPC, que regulamenta a
participação processual do Ministério Público como fiscal da lei
nos processos cíveis. O art. 861, caput, do CPC regula a inter
venção do Ministério Público na justificação avulsa sempre que
não for possível a citação pessoalmente. Por ser sempre neces
sária a citação, a melhor interpretação do dispositivo lega! é que,
ao ser realizada a citação ficta e indicado advogado dativo ao
516
interessado, o Ministério Público intervirá na demanda como
custos legis.
71. Dispõe o art. 865 do CPC que, no processo de justifi
cação, não se admite defesa, o que, entretanto, não deve ser
encarado como afastamento absoluto do contraditório, mas tão-
somente como uma flexibilização desse conceito, de modo a
limitar a reação do interessado a determinadas matérias. Trata-se
de mitigação do princípio do contraditório, não de seu comple
to afastamento, como faz crer uma interpretação literal do dis
positivo legal anteriormente mencionado.
72. Ao receber a petição inicial, o juiz deverá determinar
a citação do interessado já com a designação da audiência de
instrução. Não intimará imediatamente as testemunhas, porque,
a depender da reação defensiva do requerido, poderá extinguir
o processo, hipótese em que eventual intimação terá sido ato
processual inutilmente praticado. Atualmente, a prova oral será,
obrigatoriamente, colhida por juiz, mas não é desprestígio algum
ao instituto sua condução por juiz leigo, supervisionado pelo
juiz de direito, o que, entretanto, só se admitirá com modificação
legislativa. Registre-se que esta já é a realidade nos Juizados
Especiais Cíveis, por conta do art. 37 da lei n. 9.009/95, que
permite que a prova oral seja colhida por juiz leigo.
73. No art. 845 do CPC, há uma indevida restrição ao di
reito de recorrer na justificação avulsa. Segundo o dispositivo
legal, não cabe recurso nessa espécie de demanda judicial, o
que contraria o princípio da ampla defesa e do duplo grau de
jurisdição; desse modo, é impossível sua interpretação literal. O
recurso naturalmente será cabível sempre que existir interesse
recursal, como na hipótese de indeferimento de uma pergunta
em audiência ou de extinção do processo por indeferimento da
petição inicial. É evidente que, sem interesse recursal, não será
permitida a interposição do recurso, o que, no mais das vezes,
ocorrerá com a sentença homologatória, mas nisso a justificação
não se distingue das demais demandas judiciais.
74. O art. 522 do CPC exige a interposição de agravo reti
do, sob a forma oral, das decjsões proferidas em audiência de
517
instrução, mas o dispositivo legal não é aplicável à justificação
avulsa; é cabível o agravo de instrumento das decisões proferidas
na audiência de instrução realizada nesse processo. Por ser,
muitas vezes, interessante resolver a questão na própria audiên
cia, parece ser adequado permitir às partes o pedido de recon
sideração de decisão que as prejudique processualmente, sem
qualquer efeito preclusivo quanto à interposição do agravo de
instrumento em dez dias no caso de o juiz não se retratar de sua
decisão.
75. Segundo o art. 866, parágrafo único, do CPC, a senten
ça da justificação avulsa não conterá qualquer valoração a res
peito da prova produzida; limitar-se-á a indicar se foram obser
vados os requisitos formais exigidos por lei para essa espécie de
demanda. Trata-se de circunstância típica de todas as ações
probatórias autônomas.
76. O procedimento do mandado de segurança é sumário
e documental, por ser concentrado em poucos atos processuais
e por ser admitida tão-somente a produção de prova documen
tal. Segundo parcela majoritária da doutrina, o impetrante de
verá, já na petição inicial, juntar todos os documentos que tenha
em seu poder e que sirvam para demonstrar seu direito líquido
e certo que foi afrontado ou que está na iminência de sê-lo. O
art. 283 do CPC exige do autor a juntada com a petição inicial
dos documentos imprescindíveis à propositura da demanda,
enquanto permitem a melhor doutrina e a jurisprudência que os
demais documentos sejam juntados posteriormente ao processo,
desde que a juntada extemporânea não seja eivada de má-fé da
parte e que o estágio procedimental admita-a. Essa conclusão é
totalmente aplicável ao mandado de segurança.
77. Não é correto o entendimento majoritário da doutrina
de que a única espécie de prova admitida no mandado de segu
rança é a documental. Apesar da redação do art. 6Q, caput, da
LMS, o que não se admite é a formação de prova no processo
durante o procedimento do mandado de segurança, sendo ple
namente admissível que uma prova documentada, não docu
mental, sirva para instruir o pedido do impetrante. Trata-se, mais
518
uma vez, de diferenciar prova documental de prova documen
tada. Por prova documental entende-se aquela que tenha o
conteúdo e forma de documento conforme as exigências legais,
enquanto por prova documentada entende-se qualquer prova,
de qualquer natureza, que seja materializada por meio de um
documento. O que não se admite é dilação probatória, mas li
mitar o convencimento do juiz da existência dos fatos que levam
ao direito líquido e certo à prova documental afronta, de manei
ra flagrante, o princípio de valoração de provas adotado pelo
sistema processual pátrio, sistema do livre convencimento mo
tivado, no qual não existem cargas de convencimento prefixadas,
depende sempre o convencimento do juiz da análise da prova
no caso concreto.
78. Nas ações que tenham como objeto direitos difusos e
coletivos, a coisa julgada material é formada secundum eventum
probatlonis, ou seja, será possível a propositura de novo proces
so com os mesmos elementos da ação na qual o pedido já foi
julgado improcedente, inclusive pelo mesmo autor do primeiro
processo já extinto, desde que o fundamento dessa decisão tenha
sido a ausência ou a insuficiência de provas e o autor baseie a
outra propositura em prova nova. Essa espécie de coisa julgada
é constitucional e equaciona a circunstância de não participar
do processo o titular do direito, que não pode perder, definiti
vamente, seu direito material por uma falha processual ou por
má-fé do autor.
79. Não parece correto o entendimento majoritário na
doutrina nacional de que sentença proferida nas ações que te
nham como objeto direitos difusos ou coletivos, com fundamen
to na ausência ou na insuficiência de provas, não faz coisa jul
gada. Na verdade, existe coisa julgada, mas, no caso de o autor
apresentar prova nova, poderá ingressar novamente com a de
manda por meio de outro processo, única hipótese em que se
admitirá o afastamento da imutabilidade e da indiscutibilidade
da decisão. Verifica-se, portanto, que existe um grau de defini-
tividade nessa decisão, condicionada a um evento futuro — pro
va nova —, em fenômeno muito próximo ao que ocorre nas
sentenças determinativas, que decidem obrigações de trato su
519
cessivo. Lá, como cá, a imutabilidade e a indiscutibilidade da
sentença de mérito transitada em julgado estão condicionadas
à não-verificação de um fato futuro, que, no caso das sentenças
determinativas, é a causa superveniente de modificação do es
tado de fato ou de direito e, nas ações coletivas ora tratadas, é
a apresentação de uma prova nova.
80. Por acreditar-se que existe coisa julgada material nas
ações coletivas, defende-se que, na hipótese de o juiz analisar
a petição inicial de ação repetida em que não se manifeste o
autor minimamente a respeito da existência de prova nova — pro
duzida ou a ser produzida no processo —, deverá indeferir a
petição inicial, de modo a extinguir o processo sem julgamento
de mérito em respeito à coisa julgada material da ação anterior
— art. 267, inc. V, do CPC. Para a doutrina que entende não
haver coisa julgada nas sentenças que tenham como fundamen
to a inexistência ou a insuficiência de provas, a extinção do
processo também deverá ocorrer, mas sob outro fundamento, o
de falta de interesse de agir — art. 267, inc. VI, do CPC. O im
portante é que, independentemente do fundamento, caso não
haja qualquer indício de que exista ou possa vir a existir prova
nova, será caso de indeferimento da petição inicial e de extinção
prematura do processo sem o julgamento de mérito.
81. Apesar de divergência doutrinária, parece mais acertado
o entendimento de que a coisa julgada secundum eventum pro
bationis não exige que conste da fundamentação — explícita ou
implicitamente — da sentença de Improcedência a ausência ou
a insuficiência de prova, bastando que o autor fundamente sua
pretensão na segunda ação com amparo de prova nova. Esse é o
único entendimento que permite a nova propositura fundada em
prova que simplesmente não era possível produzir na primeira
ação, possível na segunda em virtude de avanços tecnológicos.
É evidente que, se não existisse essa forma de provar na época
da primeira sentença, não poderia o juiz manifestar-se sobre a
ausência de tal prova, o que, entretanto, não lhe retira a carac
terística de "prova nova", que deve ser entendida como qualquer
prova que não tenha sido apreciada pelo primeiro juiz, existisse
ou não à época da prolação da primeira decisão. Nova, nesse
520
sentido, significa novidade perante o Poder Judiciário; nada im
porta se já existia à época da primeira demanda ou se passou a
existir quando da propositura da segunda.
82. A questão da prova nova proporciona um paradoxo.
Somente se ela existir será possível a segunda ação coletiva, mas,
caso se trate de prova causai, que deverá ser produzida no pro
cesso, somente se descobrirá efetivamente se ela existe após todo
o desenvolvimento procedimental da segunda ação coletiva. Em
evidente afronta ao princípio da economia processual, toda a
segunda ação coletiva tramitará — geralmente de forma custosa
e demorada — para, somente no final do procedimento, o juiz
ter condições de extinguir o processo sem julgamento de méri
to por ausência de prova nova. Ao permitir-se o ingresso prévio
de ação probatória autônoma, será possível ao legitimado à
propositura da demanda coletiva produzir a prova em juízo em
processo mais rápido e barato, ao juntar a prova documentada
à petição inicial da ação coletiva, o que permitiria ao juiz uma
análise liminar mais precisa do cabimento ou não desse segun
do processo.
83.0 direito processual brasileiro adota a teoria ampliativa
do princípio da eventualidade, ao exigir tanto do autor como do
réu a concentração em determinado momento processual de
todas as suas alegações de ataque, de defesa, e da indicação dos
meios de prova de que pretendem valer-se. No tocante ao autor,
há certa flexibilidade, porque poderá modificar livremente sua
causa de pedir antes da citação e depois dela, e até o saneamen
to, desde que o réu concorde com a alteração. De qualquer
forma, a fase probatória terá início sempre com a estabilização
objetiva definitiva da demanda, regra que vale tanto para o autor
quanto para o réu.
84. A adoção do princípio da eventualidade prestigiaria
importantes princípios processuais: lealdade e boa-fé proces
suais; economia; contraditório e ampla defesa. A exigência de
concentração de exposição dos fundamentos, pedidos e exce
ções evita que uma argumentação tardia sirva para surpreender
a parte contrária, o que afrontaria o princípio do contraditório.
521
Ao mesmo tempo, evitam-se indevidas dilações procedimentais,
o que poderia ser possível se a alegação pudesse ocorrer a
qualquer momento do processo, em nítida afronta ao princípio
da economia processual. Há doutrina crítica à adoção de tal
princípio, conforme positivado no direito pátrio, que afirma que
os princípios pretensamente garantidos pela regra da eventua
lidade são, na verdade, afrontados por ele. Ao impedir uma nova
alegação da parte, a eventualidade exige a propositura de nova
demanda, em afronta ao princípio da economia processual Por
sua vez, a questão do contraditório poderia ser resolvida ao
dar-se à parte contrária oportunidade para manifestar-se ampla
mente sobre as novas alegações, inclusive com a possibilidade
de produzir provas.
85. Existem países que, como o Brasil, adotam um sistema
rígido de preclusões na aplicação da regra da eventualidade,
caso da Argentina, do Uruguai, do Chile e da Bolívia. Alguns
países adotam um sistema mais flexível, como Alemanha, Itália,
Portugal e Espanha. O ponto comum de todos esses sistemas é
que, ao dar-se início à fase instrutória do processo de conheci
mento, a causa de pedir, em especial os fatos, que mais interes
sam a este trabalho, não poderá mais ser modificada, ou seja,
ainda que se admita certa flexibilização da eventualidade, ela
nunca será capaz de permitir a alteração dos fatos que constituem
a causa de pedir após a instauração da fase probatória.
86. Fatos jurídicos são aqueles que, por si sós, têm aptidão
para a geração de efeitos jurídicos, enquanto fatos simples são
aqueles que não têm tal aptidão, somente importam para o di
reito ao servir como prova de um fato jurídico. Os fatos que
compõem a causa de pedir são apenas os jurídicos, de forma
que a regra da eventualidade somente se aplica a essa espécie
de fato, admitindo-se alegação tardia de fatos simples, respeita
do o contraditório. De qualquer forma, os fatos jurídicos já devem
ser narrados na petição inicial, o que nem sempre se mostra uma
tarefa simples ao autor, que, em diversas oportunidades, não
tem, antes da demanda, uma clara definição da situação fática.
Nesses casos, ainda que seja demonstrado, durante a instrução
522
probatória, um fato jurídico constitutivo do direito do autor, se
tal fato não foi narrado na causa de pedir, seu pedido será jul
gado improcedente, o que o obrigará a propor novo processo
— se ainda não tiver ocorrido a prescrição — com o novo fun
damento fático. Tal circunstância é manifestamente contrária ao
princípio da economia processual, devendo-se, nessas situações
de indefinição fática, permitir ao autor o ingresso de uma ação
probatória autônoma antecedente com vistas a esclarecer os
fatos e a permitir ao autor uma correta narrativa da causa de
pedir. Eis mais um benefício na adoção de uma ação probatória
autônoma geral, em que o perigo de a prova não poder ser pro
duzida posteriormente é irrelevante.
87. O litisconsórcio alternativo verifica-se quando existir
dúvida fundada a respeito da legitimidade de determinados
sujeitos a compor os pólos ativos e passivos do processo; assim,
permite-se à parte ingressar em juízo em litisconsórcio ainda que
saiba de antemão que nem todos são legitimados a participar do
processo. O problema, entretanto, é que a definição de quais
são os sujeitos legitimados e quais não são depende da produção
de prova; desse modo, é impossível ao autor tal definição no
momento de propositura da demanda judicial.
88.0 instituto tem interessantes reflexos nas relações con-
sumeristas, nas quais nem sempre é fácil ao consumidor saber,
com precisão, no momento em que ingressa com o processo,
qual dos fornecedores que participaram da cadeia de produção
do produto ou prestação de serviço é o direto responsável por
seu prejuízo. O art. 7Qdo CDC adota a tese de responsabilidade
solidária de todos os fornecedores perante o consumidor, de
forma que, nesse caso, não se aplica o litisconsórcio alternativo,
porque, mesmo sem ter qualquer culpa no evento danoso, o
fornecedor ou os fornecedores que compõem o pólo passivo
respondem solidariamente perante o consumidor, conseqüência
natural, aliás, da responsabilidade objetiva adotada pelo CDC.
Trata-se de hipótese de litisconsórcio facultativo, cuja formação
dependerá da vontade do consumidor-autor.
89. O art. 13 do CDC aponta para a responsabilidade sub
sidiária do comerciante, que somente responderá perante o
523
consumidor nas hipóteses previstas em seus três incisos. Isso
significa dizer que, se não se verificar, no caso concreto, nenhu
ma das hipóteses de responsabilização do comerciante, uma vez
demandado, será parte ilegítima, o que ensejará a extinção do
processo sem o julgamento de mérito. O problema é que, por
vezes, com especial ênfase para o inc. III do artigo mencionado,
não será possível ao consumidor-autor saber se a hipótese legal
encontra-se presente no caso concreto, por depender da produ
ção de prova. O comerciante só responde por vícios do produ
to perecível na hipótese de má-conservação, o que, entretanto,
nem sempre se mostrará evidente ao consumidor ter ou não
ocorrido. Dessa forma, diante da indefinição fática e por não
poder ser prejudicado o consumidor, aplicar-se-á o instituto do
litisconsórcio alternativo, pelo qual o autor-consumidor deman
dará o comerciante e o fornecedor; ainda que, ao final, mostre-
se a ilegitimidade do primeiro, conseguirá a condenação do
segundo.
90. A possibilidade de ingresso de uma ação autônoma
probatória, nesse caso, não excluiria, de maneira definitiva, o
instituto do litisconsórcio alternativo, mas limitaria sua formação
a esse processo, notadamente mais simples, rápido e menos
custoso que o processo de conhecimento. Dessa forma, se hou
ver fundada dúvida a respeito da legitimidade de determinado
sujeito, seria suficiente o ingresso da ação probatória autônoma
com vistas a produzir a prova que indicasse a exata legitimação
de modo a permitir ao autor a propositura do processo principal
somente contra aquele efetivamente legitimado a participar da
relação jurídica processual. A função de determinar a legitimi
dade de parte por meio de processo prévio probatório encontra-
se positivada na Espanha, na Argentina, no Uruguai e na Bolívia
por meio da diligencia preliminar, processo preparatório do
processo principal.
91. A "falência" do Poder Judiciário e a constatação de que
o processo judicial nem sempre é a melhor forma de solucionar
conflitos de interesse vêm intensificando o interesse da doutrina
nacional no tocante aos meios alternativos de solução de confli
tos, entre eles a conciliação e a mediação. Como benefícios da
524
adoção desses meios alternativos, citam-se: descongestionamen-
to do Poder Judiciário, ao absorver uma série de conflitos que,
atualmente, são resolvidos por via judicial, o que permite que,
com a diminuição de trabalho, a qualidade da prestação jurisdi
cional melhore; redução dos custos envolvidos em processos
judiciais; menor duração do que o processo judicial; pacificação
social mais efetiva, com a solução da lide sociológica.
92. A ação meramente probatória teria importante papel na
otimização das conciliações, considerando-se que, diante de
uma definição da situação fática, os sujeitos envolvidos no con
flito teriam maiores condições de chegar a uma autocomposição.
A indefinição fática muitas vezes impede a realização de uma
conciliação porque leva uma das partes a crer que tenha direitos
que na realidade não tem.
93. Segundo a melhor interpretação do art. 286, caput,, do
CPC, o pedido deve ser certo e determinado. Exige-se do autor,
portanto, a indicação precisa da espécie de tutela jurisdicional
pretendida, bem como o gênero do bem da vida e sua quanti
dade. A certeza e a determinação do pedido permitem uma
defesa mais ampla e efetiva do réu, e deve a exceção a esse
princípio ser limitada às hipóteses legais em que se permite o
pedido genérico — pedido certo e indeterminado. Dentre as
hipóteses de pedido genérico interessa a prevista no art. 286,
inc. II, do CPC, que permite ao autor de demandas de indeniza
ção em virtude de dano suportado por ato ilícito deixar de indi
car o valor de sua pretensão quando tal aferição for impossível
no momento de apresentação em juízo da petição inicial. En
tende-se que essa impossibilidade de indicação do quantum
debeatur verifica-se sempre que, no momento de propositura da
ação, o ato ilícito ainda estiver gerando seus efeitos danosos,
que se projetarão durante o processo.
94. Há uma tendência jurisprudencial de ampliação inter-
pretativa do art. 286, inc. II, do CPC, a admitir o pedido genéri
co em hipóteses em que a quantificação do pedido não é im
possível, mas.extremamente difícil, por depender da produção
de .uma prova técnica. Nesse caso, não faria sentido exigir do
525
autor a produção unilateral da prova técnica para determinar o
quantum debeatur de sua pretensão, porque, fatalmente, o réu
em contestação impugnaria a prova produzida fora do contra
ditório, o que exigiria a produção de prova pericial, de modo a
inutilizar a prova técnica apresentada. Até mesmo em virtude
do princípio da economia processual, admite-se que a prova seja
produzida somente uma vez, em juízo, sob o crivo do Poder
Judiciário. Essa flexibilização, entretanto, poderia ser substituída
com a adoção da ação probatória autônoma, de forma que a
prova produzida anteriormente para a fixação do quantum seria
feita em juízo e com participação da parte contrária, o que evi
taria eventuais alegações de cerceamento de defesa. Com tal
entendimento, o dispositivo legal indicado voltaria a ser inter
pretado literalmente, o que parece mais correto, já que é nota-
damente restrito de direito, por dificultar o exercício de defesa
do réu.
95. O objeto da ação meramente declaratória vem previsto
pelo art. 4Qdo CPC, indicando como regra a declaração da
existência ou de inexistência de relação jurídica e, como exce
ção, a declaração de um mero fato, qual seja, a autenticidade
ou a falsidade de documento. A jurisprudência é pacífica no
entendimento de que, além da existência e inexistência da re
lação jurídica, também será admissível a ação meramente de
claratória com o objetivo de declarar seu modo de ser.
96. O conceito de documento admitido pelo direito brasi
leiro é bastante amplo, não se limita a coisa escrita em papel
Será documento qualquer coisa que represente um fato; não há
qualquer justificativa plausível para limitar-se a ação meramen
te declaratória de autenticidade ou falsidade documental ao
documento escrito em papel.
97. Documento não autêntico é aquele que não foi elabo
rado pelo sujeito que figura como responsável por sua formação,
seja ele público — mais raro — ou privado —, hipótese mais
freqüente. Nesse caso, o conteúdo do documento é irrelevante,
por fixar-se o vício na disparidade entre seu real autor e aquele
indicado como autor.
526
98. Em um sentido amplo, o termo "falsidade" abrange tudo
o que não é verdadeiro, mas, em sentido jurídico, falsidade
significa a alteração da verdade. Corrente majoritária da doutri
na entende que somente a falsidade material pode ser objeto de
ação meramente declaratória, porque, no caso de falsidade
ideológica, deve-se buscar a desconstituição do ato viciado
ideologicamente. Esse entendimento é parcialmente correto,
porque, se é certo afirmar que o autor não pode buscar descons
tituição por meio de ação meramente declaratória, também será
correto entender que, se pretender a mera declaração da falsi
dade ideológica, sem a desconstituição do ato viciado, será
permitido o ingresso de ação declaratória. Tudo dependerá do
interesse do autor e do pedido formulado na petição inicial.
99. Os obstáculos imaginados por parcela da doutrina que
defende a admissibilidade da ação meramente declaratória de
fatos exclusivamente aos casos do art. 4Q, inc. II, do CPC não se
sustentam diante de uma análise mais aprofundada. É equivo
cado afirmar que a declaração de fatos é inadmissível porque a
coisa julgada não os atinge, pois, se os fatos constituírem o fun
damento do pedido, é certo que não estarão dentro dos limites
objetivos da coisa julgada, mas, se for a declaração o próprio
pedido, naturalmente fará coisa julgada material. É isso, aliás, o
que ocorre atualmente com a autenticidade ou falsidade de
documento, cuja decisão faz coisa julgada material, mas não se
estende aos fatos que embasaram a decisão de autenticidade ou
de falsidade.
1 0 0 . É absolutamente descabida a alegação de que a ação
meramente declaratória de fatos afrontaria o princípio da ampla
defesa, porque a sentença que proclamasse a existência do fato
torná-lo-ia de reconhecimento obrigatório para um número in
definido de futuras ações. Se tiverem sido respeitados os princí
pios da ampla defesa e do contraditório na ação meramente
declaratória, não haverá qualquer problema em vincularem-se
juizes de processos futuros ao fato declarado por sentença tran
sitada em julgado. Aliás, atualmente, esse efeito positivo da
coisa julgada já ocorre com as sentenças de mérito transitadas
em julgado, não havendo qualquer razão para^alegar ofensa à
527
ampla defesa em razão disso. Ademais, a adoção desse pensa
mento tornaria imediatamente inconstitucional a ação meramen
te declaratória de autenticidade ou de falsidade de documento,
o que, certamente, não ocorre.
101. O interesse de agir na ação meramente declaratória
deve levar em conta a existência de uma crise de incerteza ob
jetiva, que seja apta a trazer algum dano ao autor. Essa condição
da ação deve ser analisada no caso concreto; não se pode ad
mitir a teoria de que um pedido de declaração de mero fato fora
da exceção legal — art. 4a, inc. II, do CPC — deva ser rejeitado
de plano pelo juiz sob o fundamento de falta de interesse de
agir. Ao provar-se que a demanda busca afastar a crise de incer
teza objetivamente considerada, não faltará ao autor interesse
de agir no caso concreto, mas, em razão do disposto no art 4a
do CPC, o pedido será juridicamente impossível, em virtude de
expressa vedação legal a essa espécie de pedido.
102. Ao serem afastados os obstáculos criados por parcela
da doutrina, arraigada em lições antigas a respeito da ação
meramente declaratória, percebe-se que a possibilidade de uma
previsão genérica sobre essa espécie de ação para declararem-
se fatos juridicamente relevantes é tão-somente uma opção
legislativa. Em Portugal, existe norma expressa a respeito da
possibilidade da ação meramente declaratória que tenha como
objeto um fato jurídico; se o mesmo não ocorre no Brasil, não
é em razão de impossibilidade jurídica de adoção desse enten
dimento, mas por mera opção do legislador. A ação meramen
te declaratória de autenticidade ou falsidade de documento é
a demonstração mais evidente de que não há qualquer proble
ma jurídico na adoção de uma ação meramente declaratória de
fatos, de forma a ser absolutamente admissível uma proposta,
de lege ferenda para a modificação do art. 4Qdo CPC, que pas
saria a permitir, expressamente, a ação meramente declaratória
de fatos jurídicos.
103. O art. 55 do CPC trata dos fenômenos da imutabilida
de e da indiscutibilidade da justiça da decisão para o assistente.
Se não ocorrer, no caso concreto, nenhuma das hipóteses pre
vistas pelos dois incisos do artigo mencionado — exceptio male
528
gesti processus —, o assistente não poderá em processo futuro
voltar a discutir os fundamentos de fato e de direito que emba-
saram a sentença transitada em julgado. O instituto ora analisa
do apresenta interesse ao objeto deste trabalho pela imutabili
dade e pela indiscutibilidade que o assistente suporta com rela
ção aos fatos decididos pelo juiz. Isso demonstra, de maneira
bem clara, que o ordenamento brasileiro já conta com dois fe
nômenos processuais — o outro é a declaração de falsidade ou
de autenticidade de documento —, em que a declaração de um
fato torna-se, para determinados sujeitos, imutável e indiscutível
Embora não se deva confundir a justiça da decisão com a coisa
julgada, não resta dúvida de que a declaração incidental a res
peito de um fato vinculará outros juizes em outros processos que
envolvam o assistente e uma das partes do processo no qual a
prova foi produzida e o fato, declarado.
104. Além de todos os benefícios já apontados com a ado
ção de uma ação probatória autônoma, a adoção de ação me
ramente declaratória de fato, ao permitir a obtenção da certeza
jurídica a respeito dos fatos, vincularia juizes em outros proces
sos a adotar a conclusão da sentença, em aplicação do efeito
positivo da coisa julgada. Essa circunstância tem, pelo menos,
dois benefícios claros ao ordenamento processual: evitar decisões
contraditórias em razão de diferentes valorações a respeito do
mesmo fato, em nítida garantia de harmonização dos julgados;
e prestigiar a economia processual, ao impedir a nova produção
de prova.
105. Há espaço, no ordenamento processual, para a exis
tência concomitante da ação probatória autônoma e da ação
meramente declaratória de fatos, entre as quais é possível apon
tar três diferenças básicas que justificam sua positivação conjun
ta: (i) na ação probatória autônoma busca-se a produção de uma
prova, enquanto na ação meramente declaratória a produção de
prova é apenas o instrumento para a obtenção da certeza jurí
dica a respeito do fato, que é o bem da vida pretendido; (ii) a
ação probatória autônoma poderá ter como objeto tanto fatos
simples como jurídicos, enquanto na ação meramente declara
tória somente se admitirão os fatos jurídicos; (iii) a ação proba
529
tória autônoma será de jurisdição voluntária, com procedimen
to nitidamente simples e abreviado, enquanto a ação meramen
te declaratória de fatos pertence à jurisdição contenciosa, de
modo a desenvolver-se por processo de conhecimento, com as
dificuldades e complexidades procedimentais próprias dessa
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