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Cretinices gramscianas (II)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de junho de 2015

A teoria embutida no espaço entre o fato e a generalização que Gramsci dela extrai é a
própria teoria gramsciana da hegemonia, segundo a qual a cultura reinante em qualquer
época ou lugar é o instrumento pelo qual a classe dominante impõe sua ditadura mental a
toda a população.
Interpor uma teoria entre os fatos e a conclusão, em vez de esperar que a própria
acumulação de fatos sugira a conclusão, já é trapaça suficiente para desmoralizar qualquer
teorizador.
Mas a teoria da hegemonia ultrapassa os últimos limites da vigarice razoável e tenta nos
fazer engolir como realidade universal e constante algo que é uma impossibilidade material
pura e simples.
Essa impossibilidade já estava presente na teoria marxista da “ideologia de classe”, da qual a
“hegemonia” gramsciana é um prolongamento.
Se cada classe tem uma ideologia que é a expressão idealizada dos seus interesses materiais,
então, das duas uma: ou cada um dos seus membros está atrelado de uma vez para sempre
à ideologia da sua classe como se fosse uma segunda natureza; ou, ao contrário, pode
abjurar dela e aderir à ideologia de outra classe, como fez, ou acreditava fazer, o próprio Karl
Marx.
Só que neste caso não há mais conexão orgânica entre classe e ideologia; tudo se torna uma
questão de livre escolha e não há mais “ideologia de classe” nenhuma, só a ideologia que
cada indivíduo, livremente, atribui à sua classe ou a uma outra qualquer, conforme a
interpretação que faça dos interesses desta ou daquela.
Gramsci agrava formidavelmente a situação ao declarar que quem produz a ideologia não são
propriamente os membros de cada classe, mas sim os “intelectuais” que a representam sem
ter de pertencer necessariamente a ela.
Esses representantes são “intelectuais orgânicos” da burguesia e do proletariado. Mas, se o
são sem precisar ser eles próprios burgueses ou proletários, a conexão entre eles e a classe
que representam não pode ser “orgânica” de maneira nenhuma e sim matéria de livre
escolha, nada impedindo que um intelectual passe, ideologicamente, da “burguesia” para o
“proletariado” (como Georg Lukács) ou vice-versa (Eric Hoffer, por exemplo).
Ademais, quem infunde nos intelectuais a “ideologia de classe”? Para que o burguês
adestrasse intelectuais na ideologia burguesa seria preciso que ele, na condição de mestre, a
dominasse melhor que os discípulos: esse burguês seria, então, um superintelectual, um
intelectual dos intelectuais, o maître à penser da intelectualidade, reduzindo-a à condição de
mera repetidora do discurso aprendido.
Mutatis mutandis, e piorando ainda mais as coisas, os “intelectuais orgânicos” do proletariado
se tornariam meninos de escola operária, tomando lições de dialética hegeliana e
materialismo histórico com professores pedreiros e ferramenteiros.
Essas situações caricaturais não existem na realidade, no mínimo porque o próprio Gramsci
nos assegura que quem cria as ideologias das classes não são as próprias classes, e sim os
intelectuais.
Nem poderia ser de outra forma. No mínimo a transposição de interesses materiais numa
linguagem de valores, ideias e teorias requer um considerável treinamento especializado nas
áreas de filosofia e ciências humanas, que nem um capitalista nem um operário poderiam
adquirir nas horas vagas. (Sob esse aspecto é interessante comparar o gramscismo com a
teoria da “violência simbólica” de Pierre Bourdieu, outro ídolo, ainda que menorzinho, da
intelectualidade esquerdista; (leia aqui e aqui).
Mas, então, nem a ideologia proletária é proletária nem a burguesa é burguesa: são ambas
puras criações de intelectuais, que as atribuem a esta ou àquela classe, sem precisar
consultá-las, conforme interpretem livremente os “interesses” de cada uma. Não é
coincidência, pois, que Karl Marx já tivesse descrito a “ideologia proletária” inteira antes de
ter visto de perto um único proletário.
Na melhor das hipóteses, o burguês e o proletário se tornam “tipos ideais” que existem
apenas na cabeça do intelectual para fins de comparação com personagens reais que só se
parecem com eles de maneira longínqua e esquemática.
Gramsci não admite explicitamente essa conclusão inevitável da sua teoria, mas, como quem
não quer nada, extrai dela uma consequência prática que, para o bom entendedor, já
denuncia a falácia da construção inteira.
Quem cria as ideologias de classe? Os intelectuais. Quem, com base nela, cria a hegemonia,
o controle geral do pensável e do impensável? Os intelectuais. Quem lidera a revolução? Os
intelectuais. Quem assume o poder por meio da revolução? Os intelectuais.
Burgueses e proletários são, no fim das contas, apenas os emblemas dos times em jogo. É de
espantar que no paraíso burguês os burgueses sejam esfolados com impostos, induzidos a
financiar filmes e shows que os demonizam e a contribuir com rios de dinheiro para
organizações esquerdistas que prometem matá-los?
É de espantar que no paraíso proletário os proletários sejam submetidos a condições de
trabalho escravo, privados do direito de greve, removidos de um lugar para outro sem poder
reclamar, policiados vinte e quatro horas por dia e obrigados a entoar cânticos de glória ao
Supremo Intelectual e Guia dos Povos?
Tudo não passa, então, de uma disputa de poder entre dois grupos de intelectuais, cada um
defendendo os interesses que atribui a uma classe à qual não tem de pertencer e que na
maior parte dos casos não foi consultada a respeito.
O que é líquido e certo, embora Gramsci não o diga, é que os intelectuais orgânicos “da
burguesia” não pretendem tomar o lugar dela; quem o pretende são os outros, os
“intelectuais proletários”.
Nunca se viu um escritor apologista do capitalismo ansioso para deixar de lado seus afazeres
intelectuais e tornar-se industrial ou especulador da bolsa. Em contrapartida, nenhum,
absolutamente nenhum “intelectual proletário” que eu conheça planeja fazer a revolução
proletária para depois continuar vivendo modestamente das suas funções de professor,
jornalista ou pesquisador científico.
Tomar o poder e exercê-lo na máxima medida das suas possibilidades é a essência e missão
da intelectualidade revolucionária. O que ela quer não é assumir o lugar da intelectualidade
direitista, mas o da burguesia.
Isso torna evidente que, na maior parte dos casos, ela disputa o poder com um grupo que
não o detém nem o deseja. Basta isso para explicar a inermidade estrutural da
intelectualidade conservadora e liberal ante o avanço esquerdista.
É algo que não tem nada a ver com superioridade ou inferioridade intelectuais, mas com
desejo ou falta de desejo de poder. Quando o sr. Lula sentenciou que seus inimigos “não
tinham perspectiva de poder”, acertou na mosca.
Para completar a fantasia com um toque de alucinação, Gramsci admite que nem todos os
intelectuais participam conscientemente da “luta de classes”. Alguns – em geral a maioria
deles – são indiferentes à política e se satisfazem com suas ocupações filosóficas, científicas
ou artísticas, sem se preocupar em saber quem isso vai favorecer nas próximas eleições.
A esse grupo Gramsci denomina “intelectuais tradicionais”, acrescentando que são neutros e
apolíticos só em imaginação, por falsa consciência; na verdade são servos inconscientes do
status quo tanto quanto os intelectuais orgânicos “burgueses”.
Ou seja: os “intelectuais proletários” estão em perpétua disputa de poder não somente com
intelectuais orgânicos burgueses que não aspiram ao poder, mas com toda uma comunidade
intelectual que não quer nem saber da existência dessa disputa.
A consequência disso, do ponto de vista cognitivo, é devastadora: o intelectual esquerdista
explica toda a sociedade como uma projeção inversa dos seus próprios valores e metas,
pouco lhe importando a auto explicação que os demais grupos e indivíduos tenham a
apresentar.
Para ele, a sociedade, a história, a existência humana inteira giram em torno do seu objetivo
grupal, da sua luta pelo poder, que no seu entender move todo o restante como o cão abana
a cauda. Ele, em suma, é o fator ativo, o criador da História, a única realidade efetiva: todo o
resto da humanidade são sombras que se mexem à sua voz de comando.
É uma visão horrivelmente autocêntrica, solipsista, psicótica mesmo, que se espalha com
facilidade entre estudantes universitários pelo simples fato de que é a mais reconfortante
compensação neurótica do seu justo sentimento de inutilidade social.
***
Não é só na esquerda militante que o pensamento de Gramsci inocula o seu veneno alienador
e estupidificante. Chego a pensar que basta admirá-lo um pouquinho, suspender o juízo
crítico por uns instantes, para que algo do besteirol gramsciano entre e permaneça para
sempre.
Por ocasião de um de seus últimos chiliques anti-olavéticos, cuja razão de ser escapa ao
entendimento humano, o sr. Marco Antônio Villa, na ânsia doida de exaltar tudo o que critico,
chegou a proclamar que a subsistência da democracia na Itália do pós-guerra foi obra do
gramscismo imperante no Partido Comunista Italiano.
É com certeza a coisa mais burra que já saiu da boca de um pretenso historiador. Raiva
descontrolada é vexame na certa. O regime democrático só sobreviveu na Itália graças à
derrota acachapante que, contra todas as previsões iluminadas, a Democracia Cristã de
Alcide De Gasperi, mobilizando o apoio de toda a população católica na primeira eleição geral
realizada após a queda do fascismo, impôs em 18 de abril de 1948 ao Front Popular
comunista, que desde então foi saindo do cenário político, por etapas sucessivas, para a lata
de lixo da História.
Se o sr. Villa quiser alguma bibliografia sobre o assunto, posso lhe fornecer, mas só se ele
pedir com jeito.

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