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Suplemento

do Jornal
CONTEXTO
PASTORAL n11 18
Janeiro/fevereiro
de 1994

Teologia e Economia
A IDOLATRIA DO MERCADO E OS DESAFIOS PASTORAIS

POR UM". "ECONOMIA popul•çio mala


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2 CONTEXTO PASTORAL

LADOS DE UMA MESMA MOEDA


Fim da guerra fria. Derrocada do bloco Este quadro desafia os cristãos a uma
socialista. Globalização. Ajustes estruturais. conversão de caminhos, na direção de uma
Deslocamento do .centro da economia solidariedade e um compromisso mais
mundial. Privatização. Neoliberalismo. efetivos com os excluídos da sociedade. Isso
Sacralização do mercado. Empobrecimento e significa uma postura profética: de denúncia
exclusão de imensas parcelas da populaçãb. do deus-mercado que escraviza e marginaliza
Todos estes fa~ores estão necessariamente muitos, privilegia uma diminuta parcela da
presentes quando se faz uma análise da população e faz a todos objeto de
conjuntura sociopolítico-econômica em manipulação do capital; e de anúncio do Deus
âmbito nacional e internacional. da Vida, solidário, companheiro e guia, que
Vivemos hoje um momento bastante deseja que todos se encontrem como seres
preocupante no que diz respeito ao futuro da humanos, com os mesmos direitos e
população empobrecida dos países do oportunidades.
Terceiro Mundo. Por trás das inúmeras Já há algum tempo um pequeno grupo de
transformações econômicas por que pass:i- o teólogos tem procurado refletir sobre essa
mundo, existe uma perversa constatação: o ser relação da economia e teologia. Ainda em
humano é o que menos peso tem nas decisões processo de compreensão por parte dos
e o mais atingido por elas. Dele são exigipos cristãos em geral, tal relação se justifica
enormes sacrifícios para que tais principalmente pelo fato de que não se pode
transfonnações redundem em eliminação das anunciar o Deus da Vida sem se preocupar
desigualdades sociais. _Entretanto, estas, com a fome, o desemprego e tantos outros
diante da conjuntura, tendem a aumentar problemas que angustiam grande parcela da
ainda mais. população. Portanto, como nos sugere o
teólogo Jung Mo Sung, não há nenhuma
contradição entre anunciar a Deus às pessoas
e ao mundo e assumir a causa dos pobres, e,
portanto, se enfronhar na economia. São dois
DEBATE lados de uma mesma moeda.
Suplemento do jornal Edltores-•aslaten~es Algumas entidades ecumênicas, como o
Contexto P•stor•I nº 18 Magali do Nascimento
Janeiro/fevereiro de 1994 Cunha
Conselho Latino-Americano de Igrejas (Clai)
Carlos Cunha e o CEDI, têm-se envolvido, em um esforço
Publicação do Centro conjunto, para socializar as discussões sobre a
Evangélico Brasileiro de Conselho edltorl•I
Estudos Pastorais - José Bittencourt Filho
temática e buscar novos caminhos.
CEBEP (Rua Ro"sa de Marcos Alves da Silva O objetivo deste Debate, portanto, é
Gusmão, 543 - 13073 - Paulo Roberto Rodrigues apresentar aos leitores um pouco das
1
Campinas SP - Rafael Soares de Oliveira
lei. e fax: 0192-411459) reflexões em torno do tema de Teologia e
e do Centro Ecumênico Dlagramaçio Economia, com a contribuição de alguns
de Documentação e Anita Slade especialistas. Acima de tudo, desejamos
Informação - CEDI
(Rua Santo Amaro, 129 - Fotolito e lmpres~o
somar esforços, numa perspectiva ecumênica,
22211-230 - Rio de Tipológica Comunicação para que a missão dos cristãos seja
Janeiro RJ- Integrada compreendida de forma ampla e esteja sempre
Tel. 021-2246713 e
fax: 021 -221-3016) Tiragem voltada para a proclamação da justiça e da paz.
1O mil exemplareJ
Neste número:
Editor
Paulo Roberto Salles
Garcia (MTb.18 .481)
CONTEXTO PASTORAL 3

TEOLOGIA E ECONOMIA:
UMA INTRODUÇÃO
JungMoSung

DEUS E ECONOMIA:
UMA RELAÇÃO ESTRANHA?
Algum tempo atrás, tive a ale-
gria de ser convidado por estu-
dantes de teologia de uma Igreja
Luterana, no sul do País, para
colaborar na semana teológica
promovida por eles. O tema es-
colhido era "Teologia e Econo-
mia". Conversando com estu-
dantes da comissão organizado-
ra, eu lhes perguntei: "Qual ou
quais perguntas vocês gosta-
riam que fossem respondidas
nas palestras?" Uma aluna, após
uma pausa (para reflexão ou
para tomar coragem), disse: "O
que eu gostaria mesmo de saber
é o que a teologia e Deus tem a
ver com a economia?". O leitor
poderia estranhar essa pergunta
vinda da comissão organizadora
que, após consulta, escolheu
aquele tema. Mas, também em
muitos outros lugares onde sou de Deus, - "Teologia da Pros- leira. Não se importar com esses
convidado para dar palestras ou peridade" - , baseia-se numa sofrimentos seria o mesmo que
cursos sobre esse tema aparece determinada visão da relação en- dizer que Deus não se importa
esta pergunta. tre Deus/salvação e economia. com os sofrimentos dos seus fi-
O interessante é que há mui- Além do que, com a crise econô- lhos. Seria ter fé em um deus in-
tos pedidos de cursos e palestras mica e social que o País está vi- sensível, cínico. Na verdade, um
sobre o tema, "Teologia/Deus e vendo, todos (sejam pastores, ídolo; não o Deus Vivo e Verda-
Economia'', apesar dos próprios seminaristas ou leigos) acabam deiro.
solicitantes não terem muita, ou conversando sobre estes temas O problema é que não há
nenhuma, clareza sobre essa re- nas igrejas. muitos livros que trabalham
lação. Há uma intuição de que é A dificuldade em articular a mais explicitamente a relação
preciso caminhar nessa direção, teologia e economia, apesar do entre Deus/teologia e economia.
apesar da falta de uma clareza interesse no tema, vem de um (E entre os poucos que tratam,
teórica. descompasso entre a prática pas- alguns são muito difíceis para os
Essa estranheza em relação a toral e os livros de teologia que não-iniciados no assunto.) Ape-
Deus e Economia não significa, são lidos por esses agentes pas- sar de que a Teologia da Liberta-
é óbvio, que os temas econômi- torais. Na prática pastoral e na ção (TL) surgiu como uma refle-
cos e sociais não estejam presen- vida cotidiana, os que têm uma xão teológica a partir e em fun-
tes nas conversas, estudos e re- núnima sensibilidade com sofri- ção das lutas de libertação dos
flexões dos institutos de teolo- mentos dos irmãos percebem pobres e oprimidos e em função
gia ou das igrejas. Por exemplo, que não se pode anunciar o Deus delas, ela, entretanto, aos pou-
quando alguém diz que "graças da Vida sem se preocupar com a cos foi deixando meio de lado as
a Deus" está indo bem economi- fome, o desemprego e tantos ou- questões econômicas na suas re-
camente ou que o enriquecimen- tros problemas que angustiam a flexões. Os temas como o capi-
to é sinal ou prova das bênçãos grande parte da população brasi- talismo x socialismo, a depen-
4 Anéllae CONTEXTO PASTORAL

dência econômica, a crise da dí- emergência do pobre nas igrejas em conta a economia. Se isso
vida externa, a revolução tecno- e com a tomada da consciência fosse possível, o nosso Deus se-
lógica, as causas da pobreza de que a solidaried.ade com os ria um deus insensível aos sofri-
convivendo com a riqueza e ou- empobrecidos é causa das igre- mentos dos bilhões de seus fi-
. tros foram perdendo espaço den- jas, os cristãos assumiram a eco- lhos que passam fome no mundo
tro das reflexões da maioria dos nomia como um dos campos pri- todo.
teólogos da libertação. Isso ex- vilegiados de sua ação, ou, pelo Por sabermos que isto não é
plica por que os agentes pasto- menos, de sua preocupação. En- evangélico, as igrejas têm anun-
rais têm dificuldades em expli- tretanto, continua em muitos ciado o nosso Deus como o
car teologicamente a relação vi- uma teologia, assimilada desde Deus da Vida: "Eu vim para que
vida na pastoral entre Deus/sal- a infância, que apresenta como a todos tenham vida, e vida em
vação e problemas econômicos principal missão das igrejas o abundância" (Jo 10.10). Contu-
e sociais. anúncio de Deus para os ateus, do, precisamos prestar atenção
Só um pequeno grupo de teó- os não-crentes. A conversão dos para que essa caracterização en-
logos da libertação continuou ateus para a própria igreja seria riquecedora, "da Vida", não se
aprofundando a relação teologia a principal missão. Nesse tipo perca novamente em generalida-
e economia. Na caminhada des- de teologia, Deus não tem nada, des e abstrações. O anúncio do
sa reflexão o livro de Franz Hin- ou quase nada - pelo menos Deus da Vida e a luta pela vida
kelammert, As armas ideológi- teoricamente - a ver com os dos pobres e marginalizados não
cas da morte, publicado em
1977, é sem dúvida um marco
histórico. Além de Hinkelam-
mert, temos neste grupo outros
nomes importantes como Hugo
Assmann, Júlio de Santa Ana,
Enrique Dussel, Pablo Richard e
outros. (Aqui citamos somente
autores que têm os seus livros
publicados no Brasil.) Este gru-
po que compõe o qu~ podería-
mos chamar de "Escola do DEI"
(Departamento Ecumênico de
Investigações, de San José-Cos-
ta Rica, é um centro de pesquisa
e formação teológica fundado
por Hugo Assmann. Nele traba-
lham hoje F. Hinkelammert, P. problemas econômicos e so- pode tornar-se em mais um cha-
Richard, Elza Tamez e outros) ciais. A experiência de Deus é vão que repetimos como no pas-
vem influenciando enormemen- reduzida ao foro íntimo ou, no sado: "Deus é um Espírito per-
te toda a discussão do tema teo- máximo, ao plano das relações feitíssimo criador do céu e da
logia e economia na América interpessoais. Por isso, as pes- terra", sem sabermos as implica-
Latina e também em outros con- soas que assumiram a causa dos · ções dessa formulação na nossa
tinentes. pobres, mas ainda não consegui- vida concreta; ou reduzir a vida
ram superar essa visão teológica à "vida da alma".
vivem essa contradição e esse Mas o que é vida? Podemos
DEUS DA VIDA estranhamento. voltar ao famoso texto de Ma-
E A ECONOMIA Sem dúvida, a principal mis- teus (25.31ss). Nele Jesus fala
Voltando ao estranhamento sen- são da Igreja é anunciar o Deus das condições a fim de "ir para a
tido pelas próprias pessoas que de Jesus Cristo. Mas não há ne- vida eterna" e assim nos diz o
acham importante discutir o nhuma contradição entre anun- que é a Vida que nos veio trazer.
tema da economia e teologia, ciar a Deus às pessoas e ao mun- Todos nós sabemos de cor essa
. precisamos entender um pouco do e assumir a causa dos pobres, passagem: "Eu tive fome e me
melhor essa contradição. Acre- e, portanto, se enfronhar na eco- destes de comer. Eu tive sede e
dito que essa situação é um re- nomia. Muito pelo contrário, me destes de beber. Era forastei-
flexo da contradição entre duas são dois lados de uma mesma ro e me recolhestes. Estive nu e
maneiras de ver a missão da moeda: não se pode anunciar a me vestistes, doente e me visi-
Igreja e dos cristãos. Com a Deus de Jesus Cristo sem levar tastes, preso e vieste ver-me."
CONTEXTO PASTORAL Anállse 5

Comida, bebida, roupa, casa, que retribuir. Na experiência da vida e condenam os outros à
saúde, liberdade e afeto (da visi- solidariedade com os mais po- morte.
ta), isso é a vida. Os ricos que- bres, na experiência da gratuida- Lógicas econômicas basea-
rem mais dinheiro para poderem de, é que vivenciamos a graça de das na morte dos pobres produ- ·
continuar comendo do melhor, Deus. Sem a força do Espírito de zem também a sua religião ido-
viajar, ter mansões, beber bebi- Deus nós não perseveramos na látrica que dá "boa consciência"
das finas, etc. E sentirem-se solidariedade e na gratuidade. aos idólatras (cf. SI 73.12), pro-
"mais gente". Os pobres sofrem Anunciar o Deus da Vida é duzem valores morais e culturas
porque não têm o que comer, propor, em primeiro lugar, uma que as le~itimam e as operacio-
vestir, onde morar, etc. E essas economia onde os pobres e os nalizam. E por isso que muitos,
coisas, todos nós também sabe- marginalizados tenham condi- até mesmo cristãos, têm cons-
mos, não caem do céu nem dão ção de uma vida digna. É propor ciência tranqüila e são insensí-
.em árvores. Precisam ser produ- uma economia que "escute os veis diante dos sofrimentos de
zidas. Produção, distribuição e o clamores dos pobres" e coloque milhões de pobres numa socie-
consumo dos bens materiais ne- como um dos principais objeti- dade em que proliferam luxuo-
cessários para a ·reprodução da vos, senão o principal, o atendi- sos ambientes exclusivos, como
vida é o campo da economia. mento das necessidades dos os shopping centers, clubes pri-
Não se pode falar da vida sem mais fracos. É propor uma eco- vês e condomínios fechados. A
falar da economia. nomia que não atenda somente importante discussão em tomo
Alguém pode me contestar, aos desejos dos .c onsumidores da evangelização e da cultura
com razão, que a proposta de Je- (os que têm dinheiro)-como é não pode esquecer que os valo-
sus não pode ser reduzida a algo no capitalismo atual - , mas res morais, religiões e culturas
tão "material". Onde está a di- atenda prioritariamente às ne- são produzidos e vividos dentro
mensão "espiritual"? Afinal, to- cessidades de todas as pessoas. de uma totalidade social que tem
dos procuram comida, bebida, Isso é propor uma "economia es- como sua base a economia.
casa, afeto para si e os seus. Sa- piritual". É óbvio que o campo
bemos que os "poderosos" do econômico não esgota toda a
mundo sempre oprimiram os realidade humana, que a boa- A IDOLATRIA
fracos para terem mais vida, isto nova de Jesus não pode ser redu- DO MERCADO E
é, mais desses bens materiais. zida à economia; mas também é OS DESAFIOS PASTORAIS
Além, é claro, do "afeto" de to- claro que sem a produção, distri- Nos últimos anos, com a derro-
dos porque são ricos e podero- buição e consumo dos bens ma- cada do bloco socialista e os
sos. A boa-nova de Jesus não teriais não há vida, nem boa- avanços da revolução tecnológi-
pode ser somente a "luta pela co- nova. ca que está ocorrendo nos países
mida". Isso não é nenhuma novi- Se anunciamos o Deus da capitalistas ricos, estamos sendo
dade. Diante dessa constatação, Vida, isso significa que existe ou bombardeados por duas idéias:
o perigo é cair na ingenuidade pode existir um deus da morte a) a história chegou ao fim, isto
de achar que essas coisas mate- (ídolo). Um deus que propõe e é o segredo da história foi reve-
riais não são importantes na legitima uma economia que pro- lado: toda a evolução da história
boa-nova de Jesus, como se pu- duz vida só para os fortes, à cus- humana aconteceu para desem-
desse haver vida sem esses bens ta da morte dos mais fracos. É bocar no sistema de mercado ca-
materiais. Se prestarmos aten- isso que se afirma no primeiro pitalista (tese defendida por
ção ao texto de Mateus, a novi- mandamento: "Eu sou Iahweh Francis Fukuyama); b) o merca-
dade não está na luta pelo "pão", teu Deus, aquele que te fez sair do livre é a única salvação para
mas sim na luta pelo "pão dos da terra do Egito, da casa da es- as nossas economias em crise
pequeninos", dos mais fracos, cravidão. Não terás outros deu- (defendida pelos neoliberais).
:laqueies que não são um dos ses diante de mim" (Dt 5.6-7). Estas idéias são duas caras de
nossos (da minha família, do Iahweh se apresenta como liber- uma mesma moeda: a apresenta-
nosso grupo de amigos ou de tador da escravidão, d·a morte, ção do mercado capitalista como
igreja), daqueles que não vão para a vida ("para dar uma terra o grande e o verdadeiro sujeito
JOder nos retribuir. Aespirituali- onde corre leite e mel'', isso é, da história.
Jade consiste exatamente em ser onde a terra é do povo e a produ- A idéia central dessa ideolo-
:apaz de sair de si, em direção ção econômic.a é abundante para gia consiste no seguinte: a crise
10 mais pobre e fraco para lutar todos), em oposição a outros econômico-social brasileira e
Jela vida deles. Sem nada espe- deuses da morte e opressão, que dos outros países da América
·ar em troca, de uma forma gra- selecionam os que têm direito à Latina é fruto de desmandos do
uita, porque eles não têm com Estado na economia, no seu de-
6 CONTEXTO PASTORAL

sejo de resolver os problemas não são levados em conta pelas ração que os pobres estão ex-
sociais sem respeitar as leis do empresas produtoras de merca- cluídos dos benefícios desse
mercado; por isso, a salvação dorias); b) o espírito que rege as progresso técnico.
está na livre iniciativa, no siste- relações' dentro do mercado é o Como a sociedade capitalista
ma de mercado (menos .Estado, da concorrência, ou, como diz a está fundada na ilusão de que o
mais mercado: ou, como dizia a Fiesp, é•um regime de sobrevi- mercado é o único caminho para
propaganda do Governo sobre a vência dos capazes". Isso signi- o paraíso identificado como ple-
privatização das empresas esta- fica na !prática a exclusão dos nitude de consumo, o sacrifício
tais: "Menos Estado, mais Bra- "menos capazes", dos que não dos pobres é apresentado como
1 "sacrifícios necessários" para a
sil"). Para eles a falência do so- têm as fesmas condições para
cialismo "real" é a prova defini- concorrer 1.
com os mais fortes no "redenção" da sociedade. E,
tiva da superioridade natural do mercad?. com isso, se cria uma "cultura da
capitalismo; de que não se pode O capitalismo promete o pa- insensibilidade social" e se pos-
querer ter metas sociais, não se raíso df abundância de consu- sibilita aos integrados no merca-
pode querer planejar a solução mo. Para obter a satisfação de do uma consciência tranqüila
dos problemas econômicos e so- todos os desejos de consumo, diante dos sofrimentos dos po-
ciais; de que não há saída fora da eles prdmetem a superabundân- bres.
lógica do mercado. Alguns che- cia de Pirodução via a maximiza- O mercado é apresentado as-
gam a comparar essa "transição ção do progresso técnico. Quan- sim como um ser supra-humano
econômica" de uma economia to mais técnica, mais produção capaz de nos levar ao paraíso;
com inteivenção do Estado para e, port~nto, mais satisfação de exigindo para tanto "sacrifícios
economia de total liberdade de desejos de consumo. (O capita- necessários". A tradição bíblica
mercado com a "travessia do de- lismo érum sistema materialista- sempre criticou a exigência de
serto" e que o grande desafio se- consumista por excelência.) sacrifícios humanos em nome de
ria "atenuar os sacrifícios da tra- Para a ~aximização do progres- instituições humanas diviniza-
vessia." so tecnológico - o segredo des- das como idolatria. E ainda hoje
Nesse mesmo tom religioso, sa promessa- é necessário, se- a idolatria é o nosso grande de-
a importante revista econômica gundo ~les, a sobrevivência dos sa fio pastoral. Nãa estamos
The Economist diz que "o deus mais oorhpetentes e a exclu- diante de um mundo ateu ou se-
fracass3do da economia de co- são/sa+ ifício dos menos com- cularizado, mas sim diante de
mando [socialismo de modelo petent9s e dos mais pobres. Por uma idolatria do mercado.
soviético J foi finalmente depos- isso, eles dizem que os sacrifí- Defender a vida dos que estão
to" e que o moderno sistema de cios impostos à população pobre excluídos do mercado é a me-
comunicação está transmitindo são "sacrifícios necessários". lhor forma de negar a .idolatria
"a boa-nova da democracia.libe- Est~mos num dilema: para se do mercado. A solidariedade
ral rcapital ismo J para pratica- atingir [o paraíso (a abundância com os pobres é a melhor forma
mente todos os cantos do glo- de consumo) é necessário aban- de vencer o cinismo que corrói
bo". Para eles o capitalismo é o donar /o espírito de "caridade por dentro a nossa sociedade.
"deus eficiente" que anuncia ao cristã'', de solidariedade com os Precisamos da força e da luz do
mundo o Evangelho (a boa- mais f~acos. Para se atingir opa- Espírito Santo para "continuar-
nova). E depois eles dizem que a raíso oapitalista é preciso criar mos anunciando com intrepidez
economia não tem nada a ver uma cultura da insensibilidade a palavra de Deus" (Atos 4.31),
1
com religião! Mas o que é a "ló- social, ou, como diz ex-ministro para proclamarmos que o merca-
gica do mercado" apresentada Roberlf Campos, "uma 'mística do não deve ser a pedra angular
como a boa-nova e o único ca- cruel' do desempenho e do culto da nossa sociedade, mas sim que
minho de salvação - com sacri- da ~fic iência".
fícios necessários, mas redento- 1
E v~rdade que um sistema ba-
a pedra angular deve ser o Jesus
Ressuscitado (cf. Atos 4.11),
res - , para o paraíso chamado seado na "sobrevivência do mais que continua revelando-se na
"sistema de livre mercado"? capaz'l gera mais progresso téc- pessoa do nosso irmão que cla-
O sistema de mercado capita- nico. 9 que não é verdade é que ma: "Eu tenho fome!".
lista tem duas características o prog,resso técnico seja sinôni-
centrais: a) a produção é contro- mo do progresso humano ou de Jung Mo Sung é teólogo católico. Au-
láda pelas empresas privadas e um sdciedade mais humana. tor de vários livros, dentre os quais
destinada ao mercado para aten- "Idolatria do capital e a morte dos po-
Quantidade de mercadoria pro-
bres" (Edições Paulinas) e "Teologia
der os desejos dos consumidores duzida e consumida não é igual e Economia: repensando a Teologia da
(os não-consumidores, os po- a quaÚdade de vida. Principal- Libertação, utopias e sacrifícios (&ti-
bres, os excluídos do mercado, . mente /se levannos em conside- tora Vozes).
CONTEXTO PASTORAL An611se 7

CRÍTICA TEOLÓGICA DA ECONOMIA


POLÍTICA - NOTAS PASTORAIS
José Bittencourt Filho
Ainda durante o período ditato- posta pioneira do pensar teológi- nacional, como fruto da nova
rial, o então ministro da Educa- co latino-americano. Podemos fase do capitalismo imposta pelo
ção Jarbas Passarinho ordenou afirmar que se trata de um salto neoliberalismo.
que fosse desativado o último de qualidade num contexto de Não se pode esquecer que a fé
curso de teologia ainda em fun- necessárias e inadiáveis refor- bíblico-cristã nasceu do anúncio
cionamento numa Universidade mulações para a Teologia da Li- de Jesus, o Cristo; cuja mensa-
federal. A propósito, na ocasião, bertação; isto no quadro das mo- gem central expressou-se desde
o secretário-geral da Associação numentais transformações em sempre por um símbolo históri-
de Seminários Teológicos Evan- nível planetário, em decorrência co e econômico: o Reino de
gélicos (ASTE) escreveu um . da terceira revolução
editorial na revista Simpósio in- industrial.
titulado "A Inutilidade da Teolo- Da chamada ter-
gia". Nele, o dr. Jaci Maraschin ceira revolução indus-
demonstrava a impropriedade de trial decorre uma
se exigir qualquer tipo de aplica- maior mobilidade das
ção prática do conhecimento fronteiras, ou seja,
teológico. A teologia não perten- elas já não mais cor-
ce à ordem da utilidade ou da respondem às delimi-
inutilidade. A seu respeito não se tações geográficas es-
pode perguntar o que fazer, mas tabelecidas pelos es-
sim o que ela pode fazer conos- · tados soberanos. Do-
co. Mais que nada, trata-se da ravante, as fronteiras
hermenêutica privilegiada do serão estabelecidas
real segundo a ótica da fé bíbli- consoante a dinâmica
co-cristã. do mercado total.
Sabe-se que o substrato do Acrescente-se a isso o
chàmado protestantismo brasi- · fim da guerra fria, do
leiro consiste na mescla entre bloco soviético, o sur-
fundamentalismo e pietismo. gimento dos mega-
Em conseqüência prevalece uma conglomerados eco-
resistência, inconsciente na nômicos, assim como
maioria dos casos, contra o saber as novas associações
teológico e seus desdobramen- periódicas ou perma-
tos. Por sinal, essa tem sido a nentes entre as forças
causa mais determinante das cri- militares dos mais poderosos, Deus. Por conseguinte, teologia
ses recorrentes da educação teo- como no episódio recente da e economia jamais estiveram
lógica no âmbito protestante, guerra do Golfo. distantes, salvo nas versões espi-
posto que ainda não se decidiu, Se estamos falando numa ra- ritualizantes do cristianismo, la-
nem individual, nem coletiva- dical mudança do papel do Esta- mentavelmente, numerosas e re-
mente, qual a importância e a do nas relações econômicas, par- correntes.
contribuição da teologia para a ticularmente no Terceiro Mun-
prática religiosa. do; de mudanças geopolíticas
Assim sendo, quando se fala em conseqüência de uma novís- ADVERTÊNCIAS
em crítica teológica da economia sima divisão internacional do Após as considerações introdu-
política, faz-se necessário um le- trabalho; no ressurgimento de tórias, mas antes do assunto
vantamento de questões e adver- conflitos étnicos, culturais e reli- principal, é oportuno rememorar
tências de natureza pastoral, giosos em função de uma inte- algumas advertências bastante
caso as comunidades e os movi- gração compulsória no plano freqüentes no âmbito das ciên-
mentos eclesiais desejem assi- macro; estamos falando rigoro- cias da religião, entretanto, co-
milar positivamente essa pro- samente numa nova ordem inter- mumente olvidadas na esfera da
e Anállae CONTEXTO PASTORAL

prática pastoral. Em primeiro lu- Reiteradas vezes nas Escritu- pectadores de todas as partes do
gar destaca-se o fato de que a re- ras cristãs os sacrifícios são co- mundo. Consistiu numa forma
flexão teológica sobre a econo- locados em plano secundário e sutil de demonstrar a todos, qual
mia dá-se num cenário de luta até mes~o enfaticamente rejei- seria o custo da rebeldia e da re-
dos deuses. tados, co~o no caso da literatura sistência aos interesses sistêmi-
Isto significa que se encontra profética. Os sacrifícios buma- cos.
em curso um combate entre ins- nos sequer são cogitados. O Pode-se inferir desse exem-
tâncias que ilegitimamente rei- Deus bíbpco abomina os sacrifí- plo que as formas de dominação
vindicam sacralidade. Teologi- cios rituais quando estes não são passam boje muito mais pela
camente falando, diz-se que há expressão de uma comunidade simbólica, veiculada pelos mass
uma profusão de ídolos buscan- onde a ju~tiça predomina nas re- media do que pelos expedientes
do ocupar o lugar que só perten- lações sociais. Portanto, no atual mais tradicionais e conhecidos.
ce ao verdadeiro Deus. Conside- momento histórico, assistimos a Usando uma linguagem teológi-
r3ndo-se que tais ídolos exigem um embate entre o Deus de amor ca pode-se afirmar que o deus-
sacrifício de vidas humanas em . e um deus sacrificialista, este úl- mercado possui seus próprios re-
troca das benesses que prome- timo camuflado na lógica sistê- . cursos religiosos. A "teologia"
tem, estamos enfrentando uma mica. do deus-mercado é o conheci-
ofensiva demoníaca de propor- mento científico-tecnológico,
ções colossais. Toda essa idola- 1 tido por muitos como apto a so-
tria tem como substrato o deus- COMENtÁRIOS lucionar todos os problemas hu-
mercado com suas pretensões Na nova 0rdem internacional as manos. Essa teologia é pregada
.absolutistas e globalizantes. Es- modalidades de dominação tam- pelos "evangelistas" credéncia-
sas pretensões chegam ao ponto bém sofreram t.ransfonnações. O dos - os meios de comunicação
do atual sistema dispensar a legi- recurso à força das armas só é de massa. Não faltam também os
timação religiosa. Quando muito utilizado emergencialmente. "sacerdotes": executivos, econo-
tolera e/ou incentiva aquelas ex- Tanto o poder como as modali- mistas e políticos.
pressões espirituais que lhe são dades de 1dominação tornaram-se
convenientes. difusos. Recentemente o mundo
Ademais, o deus-mercado inteiro pôde ver pela televisão, INDICAÇÕES
impõe-se subrepticiamente em pela vez lprimeira, ao vivo e em Do ponto de vista pastoral faz-se
todas as formas religiosas, inclu- cores, a transmissão de um con- mister, em primeira instância, a
sive as que se dizem cristãs, nas flito ª rolado envolvendo várias distinção imprescindível entre
quais subsistem os princípios nações: a guerra do Golfo. Con- discurso teológico e discurso re-
teológicos ou doutrinários da re- tudo as batalhas foram mostra- ligioso. O primeiro recorre à me-
tribuição e da prosperidade . d, a~ con_ip 1 nu~ v1'd eogame, isto
. todologia tanto da filosofia
Nessas formas religiosas preva- e, Jamais se viam pessoas nem quanto das ciências humanas,
lecem, como tônica, a-insensibi- sangue. pelo contrário, após os porquanto deseja garantir o
lidade e o fatalismo, que, na prá- bombardeios mostravam-se ce- maior rigor possível aos seus
tica, desembocam numa adapta- nas das ruas das cidades onde enunciados; isto sem abrir mão
ção à nova ordem a qual se vai reinavam calma e tranqüilidade. de sua fonte privilegiada e única:
consolidando, mesmo quando Jamais ~ número total de mortos a revelação. Já o segundo é apre-
vociferam retoricamente revolta foi satisfatoriamente revelado. sentado por meio da simbologia
e/ou prote.sto contra o status As tr~ nsmissões eram entre- e da linguagem religiosas de am-
quo. meadas por anúncios comerciais plo doffiínio, embora sem perda
Nesse quadro a temática das que banalizavam os combates e de veracidade.
representações da divindade me- distanciavam os telespectadores Quando essa distinção não é
rece um destaque todo especial. dos dramas humanos envolvi- levada devidamente a sé rio ,
Avoluma-se um intercurso prag- dos. Cofll isso, aplicava-se um muitos equívocos podem ser co-
mático de símbolos que tenta en- dos mais conhecidos instrumen- metidos, além dos ruídos de co-
cobrir o fator comum das reli- tos de alienação: a fragmentação municação indesejáveis entre
giosidades adaptadas ou resul- · da cons~iência. Ao mesmo tem- agentes intermediários e as co-
tantes dn ajuste neoliberal. Nes- po, con ~ udo, gastava-se m.uito m unidades nas quais atuam.
te particular, até mesmo os fun- tempo na descrição detalhada do Nessa altura vale recordar a pro-
damentalismos que tendem ã sofisticadíssimo aparato bélico blemática em tomo da questão
produzir projetos políticos pecu- utilizado pelos aliados. Tal des- das elites, cujo tratamento tem
liares não fogem à regra . crição tinha apenas um objetivo: sido demasiadamemte ideologi-
intimid ~ r os milhões de teles-
CONTEXTO PASTORAL Análise 9

zado no campo da pastoral popu- gica da economia política tenha Os modelos até aqui postos em
lar ao longo das últimas décadas. livre curso entre os grupos, mo- prática estão em grande parte,
Concomitantemente retomar vimentos, e comunidades ecle- insuficientes ou esgotados. As
a dialética massas e minorias, siais comprometidas com a vida novas formas de se ser igreja na
arma eficientíssima no combate plena. América Latina ensejaram co-
às posturas que consagram o êxi- Vale ainda lembrar que o Rei- munidades a nascerem sem um
to e o sucesso como evidências no permanece como a grande re- vínculo direto com a institucio-
irretorquíveis da aprovação divi- serva utópico-escatológica que nalidade eclesiástica, sem, con-
na. Mais do que nunca é preciso inspira e compele todos os esfor- tudo, poder prescindir dela. É
atualizar a palavra do Mestre ços teológico-pastorais genuí- preciso reconhecer que o cristia-
quando afirmou " Meu Reino não nos. Nas últimas décadas não nismo histórico encontra-se
é deste Mundo". As ortodoxias poucas vezes, o Reino foi con- cada vez mais afastado, quer
têm interpretado essa expressão fundido com projetos históricos ideológica, quer geograficamen-
em termos espaciais. Na verda- contingentes, levando muitos te, dos pólos de poder.
de, Jesus falava a respeito da na- cristãos à frustração. Agora, na Assistimos, conforme preco-
tureza do Reino que anunciava. pastoral, ele deve ser
Ele jamais se imporia pela força recuperado em sua
das armas, nem pelo convenci- pujança teológica de
mento intelectual, nem pelos si- forma a continuar
nais e prodígios, nem pelo pres- sendo o grande e úni-
tígio político, e, muito menos, co horizonte de nos-
pelo poder econômico. sas ações.
Ao invés de confrontar as do- Esta é uma tarefa
minações religiosa e política que monumental e que
vitimavam seu povo, indo desse deverá contar com to-
modo ao encontro das expectati- das as forças vivas, -
vas messiânicas da época, Jesus inspiradas ou não na
preferiu transgredir pedagógica fé bíblica, para que
e publicamente os valores que venha a ser realizada.
davam suporte a essa dupla do- Nesse empenho a
minação. Com isso construiu o pastoral não poderá
paradigma evangélico da "pros- estar fora sob o risco •
crição", a nosso ver o mais com- de pecar por omissão. .J:
1
patível com os desafios pastorais No entanto, como se :e
sabe, a práxis pasto-
ral nos moldes Jatino- '---------~~
que a agenda do mundo apresen-
ta para os cristãos na atualidade.
Hoje, configura-se como ato americanos não pode nizara Richard Shaull há quase
profético afirmar a dignidade e a deixar de recorrer a um referen- trinta anos, a uma nova Diáspora
solidariedade humanas. O siste- cial teológico conexo. Neste par- do povo de Deus em meio a cul-
ma considera a ambas como sé- ticular estamos convictos de que turas que lhe são hostis. Contu-
rios empecilhos para que a "mão a crítica teológica da economia do, o mesmo teólogo reconhecia
invisível" do mercado realize política desempenha um papel nessa Diáspora um movimento
sua obra de organizar as relações estratégico. do próprio Espírito. Por tudo
econômico-sociais, dessa ma- Considerando: os grandes isso, nada melhor do que um
neira produzindo o bem de to- obstáculos a se suplantar na prá- novo pensamento teológico-pas-
dos. Com efeito, aqueles que se tica religiosa de todos os cristãos toral capaz de indicar os cami-
Jcsejam fiéis ao Evangelho de- latino-americanos comprometi- nhos que nos levarão a contri-
vem buscar, na práxis que se ofe- dos; o pioneirismo da temática buir para a implantação dos si-
rece, ética, consciente, e volun- que esse .novo pensar teológico nais do Reino.
tariamente contrária à lógica sis- apresenta; e a crise que se ins-
têmica, o paradigma pastoral taurou nas igrejas cristãs históri-
para o nosso tempo. cas; a ilação mais imediata é que José Bittencourt Filho é pastor da
o enfrentamento dos novos desa- Igreja Presbiteriana Unida do Brasil,
fios exige uma postura ecumêni- mestre em Ciências da Religião e
À GUISA DE CONCLUSÃO ca. coordenador do Programa de Assesso-
Buscamos até aqui preparar o Todavia, o próprio ecumenis- ria à Pastoral (CEDI).
terreno para que a crítica teoló- mo está a exigir uma reinvenção.
10 CONTEXTO PASTORAL

O DIA EM QUE JESUS FICOU


COM RAIVA ...
Sérgio Marcus Pinto Lopes

Como explicar por que Jesus, o de. A outra é que Jesus percebia DEUS x MAMON:
qual tanto falava sobre o amor, o mercado que ali se estabelece- OU UM OU OUTRO
sobre o andar a segunda milha, o ra como um concorrente do pró- Por que terá Jesus ido buscar a
ser paciente, tenha um dia agar- prio Deus: A liturgia divina se palavra Mamon (Mt 6.24 e Lc
rado um fraguelion - chicote colocava agora mais como uma 16.13) para designar as rique-
CC\m pontas de metal - e expul- oferenda aos interesses econô- zas? A palavra é de origem ara-
sado do templo os cambistas e os micos dos negociantes, erigida maica ("dinheiro") mas nunca
mercadores (Jo 2.13)? em fim último de suas preocupa- foi usada, entre os judeus, os ga-
Os evangelistas não entram ções, do que um serviço a Deus. lileus ou entre.os povos vizinhos
em detalhes. Apenas informam Em outras palavras, duas reli- como se fosse uma personalida-
que Jesus não admitia que a Casa giões mutuamente exclusivas - de, tal como Jesus a emprega. E,
de Deus, que fora construída na percepção de Jesus - esta- mais estranho, em nenhum outro
para ser casa de oração, houves- vam aparentemente convivendo exemplo dentro da pregação de
se se transfom1ado em "casa de no mesmo lugar. Jesus pode-se encontrá:.Jo 'átri-
negócios" ("covil de ladrões", Casa de negócios versus casa buindo um sentido de entidade a
na versão de Mateus, Marcos e de oração. O que se segue é uma qualquer outra realidade da vida
humana. Por que terá Jesus
como que personificado as ri-
quezas?
Na verdade, Jesus as está co-
locando no mesmo nível das
atenções e dos serviços humanos
que deveriam ser dados unica-
mente a Deus. Isto é, Jesus reco-
nhece que o ser humano tem a
tentação de prestar às riquezas
um serviço de culto.
Aqui se encontra uma denún-
cia profética: existe no dinheiro
como que uma realidade mística,
sobrenatural, que exerce verda-
deiro poder manipulador sobre
as pessoas. Como todos os de-
mais ídolos, elas são o resultado
de uma confecção. Mas escapam
do controle humano e passam a
dominar a pessoa.
É a partir daí que é preciso
ãí fki1~7 .
considerar o contexto econômi-
~
co dentro do qual está vivendo
~'---------------------------~ cada vez mais o mundo de hoje.
Lucas). Para muitos hermeneu- breve reílexão bíblico-teológica Não se pode, neste sentido, falar
tas isso se deu porque Jesus per- que busca consi_derar este tema e sobre o panorama religioso atual
cebia haverem os negociantes - introduzir, para quem ainda não sem se mencionar, especifica-
mancomunados com os sacerdo- se debruçou sobre ele, algumas mente, o sistema de mercado. É
tes - se transfomrndo em explo- questões que a presente conjun- ele, na verdade, a real "religião"
radores do povo, que vinha da tura tem a propor a quem preten- seguida pela nossa gente, na me-
zona rural para trazer suas ofer- de confessar a fé cristã hoje. dida em que: impõe uma teolo-
tas a Javé. E uma parte da verda- gia das mais completas, com
CONTEXTO PASTORAL An611M 11

uma concepção de divindade; rior - embutida misteriosamen- sição de sacrificar-se para mere-
um conceito de pecado e a exis- te no seio do próprio sistema - cer tais dádivas, e especialmente
tência de uma ação salvífica; o equilibrará de modo perfeito. de sua disposição de esperar o
exige um esquema sacrificial; Em última análise, cada qual momento da bênção que nem
define condições para a salvação conseguirá o que veio buscar em sempre vem no momento em que
compelindo a uma forma de fé; troca do que pôde trazer. O que mais se precisa! A religião do
estabelece um código de condu- ninguém fala é que isso se im- mercado funciona tal e qual.
ta; e faz uma promessa para o põe, tal como Jesus o denunciou, Como diz Julio de Santa Ana:
amanhã. Dada a natureza totali- como uma verdadeira religião. "Desenvolve-se assim uma nova
tária da religião não há como es- Por que o sistema de mercado religião, com uma nova 'Torá' -
capar à opção posta por Jesus se baseia exatamente no culto do (as leis do mercado) que corres-
Cristo: "Ninguém pode servir a deus-capital? Mais do que satis- ponde à sacralização sociológica
dois senhores; porque ou há de fazer-se com a simples troca das operada sobre o mesmo" (Julio
aborrecer-se de um, e amar ao coisas necessárias à vida, impor- de Santa Ana. "Sacralizações e
outro; ou se devotará a um e des- ta acumular sempre mais. Jesus sacrifícios nas práticas huma-
prezará ao outro. Não podeis ser- (Lc 12.16-21) já havia denuncia- nas". ln René Girard com teólo-
vir a Deus e às riquezas (Ma- do o homem insensato (isto é, o gos da Libertação, Hugo As-
mon)" (Mt 6.24). rico) por não perceber a falsida- smann, Petrópolis/Piracicaba:
de de seu culto. Para quem fica- Vozes/Unimep ).
riam os seus bens no momento A desobediência a estas leis
MERCADO OU SISTEMA de sua morte? Já Adam Smith - se estabelece como um novo
DE MERCADO? um dos primeiros teóricos da conceito de pecado. Muito em-
A palavra "mercado" é sempre economia moderna - admitia a bora isso não esteja declarado
usada em meio ao povo para se existência de uma força espiri- com todas as letras, é certo que a
referir àquele lugar onde alguns tual misteriosa, a que ele chama- condenação cai sobre qu em quer
vão para vender os seus produtos va de "mão invisível", capaz de que se levante contra o deus-
e outros para comprar o que ne- disciplinar as atividades huma- mercado, como o único capaz de
cessitam. É a feira . Ao tempo em nas no mercado, levando ao bem estabelecer os preços e, necessa-
que ainda não havia dinheiro, de todos, por cima e além dos riamente, a ordem em meio à hu-
esse intercâmbio se dava por próprios interesses individuais manidade. Negá-lo significa ser
meio de trocas. Nesse sentido, o (M. Novak. O Esplrito do Capi- contrário à racionalidade que ele
mercado é uma das mais legíti- talismo D.emocrático. Rio de Ja- pretende possuir e estabelecer.
mas criações do espírito huma- neiro: Ed. Nórdica). Por isso, an- Ademais, para se poder viver no
no, a raiz mesma da cultura. Foi tes de falar-se de um ateísmo no sistema de mercado é preciso ser
no encontro das pessoas que as mundo moderno, importa mais competitivo. Não importam tan-
idéias se intercambiaram, a arte falar da idolatria em que se cons- to as questões éticas incluídas no
encontrou a sua expressão e aso- titui o sistema econômico. Se Je- edifício do pensamento cristão.
ciedade encontrou o espaço para sus já falava em seu tempo con- Isso significa construir uma
sua organização. tra essa concorrência que as ri- nova interpretação para a cate-
A expressão "sistema de mer- quezas individuais pretendiam goria do pecado. A verdade é que
cado'', no entanto, vai além des- fazer a Deus, o século XX inau- o interesse próprio, um outro
sa idéia. Envolve uma série de gura uma era em que a organiza- nome para o egoísmo, é a mola-
propostas ligadas a um modo es- ção econômica se pretende mes- mestra para o funcionamento do
pecífico de se estabelecer essa mo universalizada e totalizante. sistema. "Descobriu-se um deus
orgánização. Pressupõe uma sé- Uma "religião católica". capaz de aproveitar-se do peca-
rie de teses vinculadas ao capita- do original para implantar o seu
lismo. Algumas dessas teses de- reino" (Jung Mo Sung. Deus
fendem a plena liberdade indivi- UMA ESTRUTURA numa economia sem coração.
dual ou corporativa para a pro- DE RELIGIÃO São Paulo: Ed. Paulinas).
dução, o controle do consumo, a No esquema geral das religiões "Toda forma de economia po-
oferta dos produtos e a fixação universais - em contraste com lítica começa necessariamente
dos preços, regido por princípios a doutrina da Livre Graça - o (ainda que de forma inconscien-
próprios, que não podem ser al- que funciona é um toma-lá-dá- te) com uma teoria do pecado.
terados. Na base de tudo, está a cá. O adorador recebe os favores Explica-se: todo sistema está fa-
pressuposição de que esse es- da divindade em troca de sua fi- dado a ser contra alguma coisa ,
quema levará à felicidade de to- delidade, de sua obediência às bem como a favor de alguma
das as pessoas. Uma força supe- instruções divinas, de sua dispo- coisa" (Novak, op.cit.).Aadmis-
12
~"'"ªª CONTEXTO PÀSTORAL

são de Michael Novak nada mais posições graças ao holocausto capital y la muerte de los po-
é do que o reconhecimento de dos marginalizados e empobre- bres. San Jose DEI) - existe
que o sistema econômico não cidos" (Julio de Santa Ana. La outra forma de se remunerar o
passa de uma forma de religião. practica económica como reli- trabalho: com os serviços públi-
Aliás, toda a sua obra vai exata- gión. San José: DEI). cos de saúde, educação, habita-
mente nessa direção. O que o au- "É a vont~de de Deus", costu- ção, etc. Para o sistema de mer-
tor não diz é que, para os defen- mam dizer os pobres quando fa- cado isso significa um peso para
sores do sistema de mercado, pe- lam das priyações por que pas- o Estado. Qualquer coisa que de-
cado é o desrespeito às leis da sam. Uma ingênua explicação termine esse ônus implica uma
competição a qualquer custo, a para uma q~estão inexplicável: redução da capacidade estatal de
substituição da busca do interes- por mais que eles trabalhem vão acumular superavits que lhe per-
se próprio por ingênuos e preju- passando cada vez mais de po~ mitam o pagamento dos juros da
diciais (ao mercado!) sentimen- bres a miseráveis. Da falta de re- dívida que possui para com o se-
tos de solidariedade humana. A cursos à rorhe, da fome à desnu- tor privado, tanto no plano na-
única coisa "pecaminosa" que o trição, da dJsnutrição à enfermi- cional como - e especialmente
sistema de mercado teme é a dade, da enfermidade à morte. É - internacional. Por isso o mer-
existência de um Estado forte ou assim que ~e dá o sacrifício das cado insiste em que é preciso
de um excessivo poder privado populações. Não há cutelos en- economizar no custo desses ser-
que intervenha nele e limite a sangüentados, nem altares visí- viços, os quais, melhor ainda,
sua liberdade. A isso Novak cha- veis em lugares públicos. É des- podem ser passados à adminis-
ma de "tirania" que deve ser te- te modo, no,entanto, que se orga- tração privada.
mida. niza o sistema sacrificial da reli- Salários em contínua redu-
Mas não há por que desani- gião econômica. ção, somados ao encarecimento
mar. Existe como que uma espé-
cie de providência no sistema
que transforma o todo das ações
egoístas em um resultado bené-
fico para todos. Esta "providên-
cia" se manifesta - conforme
Novak - na medida em que os
indivíduos se tornam industrio-
sos no tempo, desenvolvem o
mercado com plena liberdade,
confiam na lógica do sistema,
não st envergonham de reconhe-
cer que buscam re almente o
maior lucro possível, e defen-
dem uma sociedade de desigual-
dades, na qual sobrevivem os
mais aptos (Novak, op.cit.).
A pergunta que se impõe, no
entanto, é: E os menos aptos, os
que ficaram à margem do cami- Não existe, .no mundo do dos serviços de saúde e do aces-
nho, os empobrecidos? E a res- mercado, nenhum critério vincu- so à educação e à moradia, repre-
posta é lógica: Não há lugar para lado aos direitos humanos - sentam o reforço do sistema sa-
eles. Como nas mais tradicionais como, por exemplo, as necessi- crificial da religião do mercado e
religiões, para que se mante- dades básicas das pessoas - o aumento do número dos .mi-
nham os privilégios de alguns, para se determinar o salário dos lhões que cada vez mais vão es-
" ... é necessário que grandes trabalhadores. O único fator a corregando para a miséria e, ne-
contingentes de países pobres se ser considerado é o quanto aqui- cessariamente, para a morte. Um
sacrifiquem. O sistema econô- lo que eleS produzem permite ou sistema sacrificial dos mais refi-
mico internacional é um sistema não a competitividade no merca- nados.
sacrificial. Por isso mesmo é do. Se o çusto é alto, é preciso É evidente que, para se mon-
violento. René Girard demons- economizar em alguma coisa. E tar um projeto agora de dimen-
trou suficientemente que aque- esta é serhpre o nível salarial. sões mundiais, que implica se
les que dispõem de privilégios Por outro lado - como recorda poder aceitar tanto sofrimento e
na escala social sustentam suas Jung Mo fung (La idolatria dei morte com naturalidade, é preci-
CONTEXTO PASTORAL An611H 13

so haver uma adesão interior a damenta necessariamente no res- A VIDA CONTINUA


suas idéias fundamentais. Isso peito aos prinápios do amor ao Dona Cida vem subindo a rua,
nada mais é do que uma outra próximo e da justiça. Hugo As- . quase dez horas da noite, empur-
expressão de fé. Assim como é smann comenta estes pressupos- rando um pesado carrinho, cheio
necessário que as pessoas cristãs tos de forma irônica: "'Vícios pri- de caixas de papelão, desmonta-
tenham fé. em Deus, creiam que vados =virtudes públicas'. Aí es- d.as para ocupar menos espaço. É
sua vontade última será realiza- taria todo o segredo~ O interesse sua sétima viagem do dia . Ama-
da, não importam os aconteci- próprio de cada indivíduo, sem nhã irá vendê-las - pelo preço
mentos do momento presente, é propósitos benevolentes de fazer que lhe pagarem, e se quiser... - ·
preciso que os que se vinculam o bem aos demais, quando busca para comprar· o pãozinho, cada
ao sistema do mercado também afirmar-se, mesmo agressiva- dia mais caro. Seu Pedro, o ma-
creiam que este conduz a finali- mente na inter-relação competi- rido, morreu de cirrose. Enver-
dades últimas associadas à mes- tiva com os interesses dos de- gonhado por não conseguir em-
ma vontade de Deus. Nesse sen- mais, cria os mecanismos do prego para sustentar a família,
tido o mercado é visto comó um mercado; esses mecanismos se deu para beber. Durou pouco. Os
instrumento · da realização dos tornam auto-reguladores (é o dois meninos saíram de casa, a
propósitos divinos para com a que se afirma) e, desse modo se princípio para ajudar a mãe. Vi-
humanidade. Como isso . não chega-espontânea, natural, ine- ra·ram meninos de rua. Por onde
pode ser comprovado - ao con- vitavelmente-, por obra de uma andarão? Dona Cida não conse-
trário, parece que a cada dia se providencial 'mão invisível', à gue um trabalho melhor. Instru-
aprofunda e se amplia o fosso melhor realização do bem co- ção, nunca teve. · Negra - des-
que separa os poucos privilegia- mum. Encontrara-se, finalmen- cendente de um sistema de es-
dos da grande massa dos empo- te, o caminho mais seguro para o cravidão nunca redimido - tem
brecido-s, cada dia mais e mais amor ª<! próximo" (Hugo As- pouca chance nessa sociedade
excluídos da "graça" - é neces- smann. Clamor dos pobres e que rejeita a acusação de racista!
sária maciça dose de fé. "Racionalidade econômica". Já está velha. Ou melhor, enve-
Pode parecer um absurdo, São Paulo: Ed. Paulinas). Ou lhecida. Não tem ainda 50 anos.
mas isto é plenamente aceitável seja, o importante é observar as Quem a receberia em um empre-
aos olhos dos que crêem no mer- leis do sistema. As coisas se go?
ca~o. Racionalizações teológi- ajustam automaticamente! Quem é o culpado da miséria
cas sempre se haverá de achar Uma vez que o sistema boje de dona Cida? Ela mesma? Por
para justificar o que se deseje. "demonstrou" a sua onipotência não trabalhar? Mas como, se até
As investigações que se deram e que a história da busca por uma essa hora ela anda empurrando
no âmbito da rememoração dos forma de sociedade a caminho esse pesado carrinho pelas ruas
500 anos de presença branca no da perfeição chegou a seu final, escuras, sem chuya ou com ela?
Continente revelaram o que se o que cabe é esperar pelo ama- Quem terá dado a ordem de de-
afirmou no passado para tomar nhã, uma promessa escatológica missão do seu Pedro, necessária
aceitável a presença dos opres- que não tem que se preocupar pa.ra melhor lucratividade da
sores. Uma das mais chocantes com o depois da morte e, sim, empresa? A que igreja pertencia
foi a de que Deus havia enterra- com a felicidade nesta vida. Es- essa pessoa? De que religião se-
do enormes riquezas de prata e tabelecido o equilíbrio do mer- ria um fiel adepto?.Qual seria o
ouro no solo da América Latina cado em que todos terão aquilo seu Deus? .
para que estas, atraindo os des- que vieram buscar em troca da- Será que Jesus ainda continua
cobridores e conquistadores, fi- quilo que puderam trazer, a feli- com raiva?
zessem com que estes invadis- cidade se ted estabelecido. Infe-
sem o Continente e trouxessem lizmente é verdade que milhões
consigo os missionários que, as- terão morrido pelo caminho.
sim, haveriam de evangelizar os Mas o que fazer? Não tinham Sérgio Marcus Pinto Lopes é pastor
aborígines pagãos que aqui habi- mesmo os meios para subsistir, metodista, ex-secretário regional do
Conselho Latino-Americano de Igre-
tavam ... (Gustavo Gutiénez. nessa impiedosa nova teoria .da jas (CLAI) para o Brasil, e diretor do
Dios o el Oro en las lndias. evolução das sociedades huma- Centro de Filosofia e Teologia da Uni-
Lima: Instituto Bartolomé de las nas... Os que sobreviverem esta- versidade Metodista de Piracicaba
Casas). . rão salvos e livres para se ex- (Uoimep).
A conversão a este tipo de re- pressarem e viverem sempre
ligião exige, necessariamente, como bons consumidores nos
um código de conduta. A ética do shopping centers, os novos tem-
mercado, no entanto, não se fun- plos da religião econômica!
Anéllse CONTEXTO PASTORAL

TEOLOGIA E ECONOMIA: UMA OUSADIA


EM TEMPOS DE INÉRCIA
Jorge Atilio Silva /ulianelli

NARRANDO nhecimento novo. Essa equipe das terras indígenas, da prosti-


ACONTECIMENTOS... foi formada por Jung Mo Sung, tuição infantil - que ladeava o
Retorno de uma viagem para teólogo católico, leigo, que tem local onde foi realizado o encon-
gravação de um vídeo sobre o aprofundado, especialmente, a tro - , permearam as reflexões
Mercosul e a posição que o Clai crítica teológica à economia po- teológico-pastorais realizadas.
e suas igrejas membro tomaram lítica; Julio de Santa Ana, teólo- O grande transtorno era com-
diante ciele. Encontro-me com o go protestante que dispensa preender as limitações de nossa
coordenador do Programa de As- apresentações; Paulo Roberto atuação. Não somos deuses, so-
sessoria à Pastoral e o Secretário Garcia, metodista, que tem de- mos criaturas e filhos de Deus. É
da região Brasil do Clai que me senvolvido uma reflexão bíbli- na graça, com a graça e pelagra-
convidam a fazer a memória de co-teológica acerca da questão ça que atuamos.
um conjunto de encontros que econômica; José Bittencourt Fi- O terceiro encontro foi reali-
pretendiam realizar no Brasil em lho, teólogo e pastoralista, preo- zado em Brasília, também em
1993. Contaram-me como sur- cupado em descobrir caminhos setembro, na região Centro-Oes-
giu a idéia de realização dessa para um discurso religioso capaz te. Participaram desse encontro
atividade: Queremos prestar um de transmitir mensagens desmis- membros do GTME (Grupo de
serviço às igrejas membro do tificadoras; Leonildo Silveira, Trabalho Missionário Evangéli-
Clai no Brasil no marco do Pro- teólogo e sociólogo, que colabo- co), que atua com as populações
grama 500 anos, uma reflexão rou na reflexão pastoral. indígenas. Durante a realização
criativa que permita acumular Ainda na preparação deve-se desse encontro ocorreu o massa-
utopia e ensejar reações num fazer referência à preocupação cre dos índios yanomamis, no
mundo que nos esmaga e destrói logística que ficou a cargo do nórte do País. Mais uma vez o
a vida de milhões de pessoas. Clai e dos parceiros nas regiões. tema da exclusão e da lógica sa-
A possibilidade efetiva dos Além disso, a liturgia, estimula- crificial do Mercado se fizeram
encontros dependia de dois fato- da pelo Rev. José Rubens Jarde- presentes.
res internos. Por um lado, depen- lino. Houve a preparação de um O quarto e último encontro
dia dos contatos efetuados pelo material de apoio, um caderno aconteceu em São Paulo. A as-
Clai nas diferentes regiões do com textos introdutórios ao sessoria contou com Jung Mo
País. Por outro, dependia da ca- tema. Sung, Paulo Garcia, Julio de
pacidade interna das regiões se Reuniram-se representantes Santa Ana e Leonildo Silveira. A
articularem e motwarem as igre- das igrejas Luterana, Metodista, metodologia foi distinta. Houve
jas-membros a se fazerem pre- Anglicana, Presbiteriana, Batis- um painel sobre a questão pasto-
sentes. A partir desse ponto de ta, Romano-Católica. Todos os ral. O grupo estava interessado
vista, a participação representa- encontros privaram de um clima em compreender e colaborar na
tiva das igrejas-membros, lo- fraterno e comunitário. A asses- criação de um discurso teológi-
grou-se alcançar êxito nessa ini- soria dos três primeiros encon- co, que possa ser reelaborado
ciativa . Àdemais, há que se consi- tros coube a Jung Mo Sung e a pastoralmente, crítico das estru- ·
derar que a iniciativa era uma in- José Bittencourt Filho. turas econômicas que confor-
trodução ao aprofundamento de O primeiro aconteceu em ju- mam uma sociedade idólatra e
uma reflexão teológica recente. lho, para a região sul, cidade de vitimá ria.
Curitiba. Nele havia, entre os
OLHANDO OS ENCONTROS ... participantes, empresários, o IDOLATRIA, SACRIFÍCIO,
O encontro possui vários mo- que facilitou a compreensão da LÓGICA CRUEL: MERCADO,
mentos. O primeiro deles é sua lógica cruel e sacrificial do Mer- O ANTIDEUS DA VIDA
preparação . Organiza-se uma cado. A constatação mais impactante
equipe que vai facilitar aos parti- O segundo encontro foi na re- foi a do caráter religioso-teoló-
cipantes o acesso a várias infor- gião Norte-Nordeste, aconteceu gico do Mercado. Ele arvora-se,
mações e que vai com os partici- em setembro, em Fortaleza. A especialmente no neoliberalis-
pantes criar e articular um co- questão da seca, da demarcação mo, à condição de todo-podero-
CONTEXTO PASTORAL An,llse 15

so, ele se auto-regula, não de- para possibilitar a vivência co- pressão tamanha que chegam a
pende de ninguém, nem de nada. munitária de pessoas que se cometer atos hediondos contra si
Ele é senhor da vida - e da mor- amam, e esse amor é vivenciado e seus familiares. O Clai e o Cedi
te. Ele é deus. A identificação do singularmente, heroicamente. O resolveram animar algumas pes-
discurso religioso do Mercado cristianismo é uma religião de soas a poderem pensar como, em
desvela seu caráter falacioso, en- minorias, minorias que estimu- suas igrejas, redescobrir o vigor
ganador. É contracultural tal lam o surgimento de novas mi- da mensagem de Jesus Cristo,
identificação, que não é própria norias, minorias, como diz d. que tem seu centro no Reino. A
de quem partilha da lógica do Hélder Câmara, abraâmicas. proposta tinha que possuir uma
Mercado. Ela é contrária a tal ló- efetivação densa e minoritária,
gica. POSSIBILIDADES não poderia pretender-se massi-
É uma lógica cruel, que faz DE UMA LEMBRANÇA... va, mas impregnativa: impreg-
inversões: prestigia as coisas ao A própria natureza dos encon- nar corações e mentes com a co-
invés das pessoas; transforma o tros não permitiria que eles fos- ragem de enfrentar o problema e
egoísmo em virtude e a solida- sem esgotados nas suas primei- de buscar soluções.
riedade em vício; faz milagres. A ras realizações. Eles cumprirão Naturalmente, encontraram-
idolatria é mão da lógica cruel seu papel se, e somente se, os se grupos pequenos, de lideran-
que conduz a conclusões tais participantes dessa primeira eta- ças de igrejas, capazes de animar
como a da naturalidade da elimi- pa desempenharem o papel, com suas instituições eclesiásticas e
nação de .,idas hui;nanas: é ne- o qual estão comprometidos, de comunidades locais - pois esse
cessário que morram os pobres estimuladores de suas comuni- é o desafio - a redescobrirem a
para haver mais vida para os so- dades. Estimuladores da dessa- importância da proclamação.
breviventes. Afinal, se morrem cralização do Mercado. Isso sig- Para tanto, procurou-se favore-
ladrões no Carandirú, meninos e nifica gerar a possibilidade de cer esses grupos a que descobris-
meninas de rua no Rio de Janei- aproximação de reflexões como sem qual é a mensagem religio-
ro, yanomamis na Amazônia, é as que foram desenvolvidas nes- so-teológica do Sistema, qual a
apenas a eliminação de um con- ses encontros, por meio de .lite- mensagem bíblicocristã, quais
tingente perturbador, que não ratura, de encontros promovidos as possibilidades pastorais que
oferece lucro algum, e até o co- nas comunidades, de instrumen- existem de proclamação do Deus
loca em risco. tos didáticos outros. cristão no mundo de hoje.
O sacrifício é regulador do Em segundo lugar, será ne- Todos os grupos viveram a
Mercado. É necessário que se- cessário aprofundar a reflexão experiência, de ficando em pé,
jam realizados ajustes econômi- deflagrada com essa iniciativa. formar um círculo, abraçar-se
cos para manter a cidade ordena- Para tanto, virão a ser providen- entrelaçado e, um por um, dei-
da. A ordem é global. O Mercado ciadas novas etapas. Isso deverá xar-se apoiar pelos outros dois
é global. Há que se respeitar as ser, também, motivado pela rea- que o margeavam. Uma expe-
imagens que autojustificam o ção das próprias igrejas-mem- riência indígena milenar da soli-
Mercado. Neoliberalismo, Mer- bros a essa iniciativa. A tendên- dariedade efetiva: na comunida-
cado, Guerra do Golfo, Transna- cia é que isso venha a ocorrer de o problema e a alegria são
cional i za çã o, Mercados Co- proximamente. partilhados. Os outros sempre
muns, Dívida E(x)tema ... Fenô- O Clai-Brasil, juntamente estão por perto para nos socor-
menos econômicos que possuem com o Cedi, resolveu propiciar rer, são amigos que não nos
uma auto-explicação sagrada: um alento às igrejas: redescobrir abandonam. Essa comunidade
Há uma teologia do Mercado, e Deus. Parece tema de uma espi- não é o mundo, está no mundo,
essa é expressa por sua Econo- ritualidade piegas, mas é profun- mas não se confunde com ele.
·mia Política. Por isso, há que se damente comprometedor. A Quem tem a missão de procla-
criticá-la teologicamente. constatação de que vivemos em mar é a comunidade, ainda que o
Pastoralmente é necessário, um mundo anti-Deus-da-Vida, mundo esteja sem coração.
antes de mais nada, reconhecer anti-Reino, úma situação de Foi isso que meus olhos vi-
que as comunidades possuem mundo descrita por muitos como ram, meus ouvidos ouviram, e
um discurso (vivência) religio- sem coração. Por isso, o tema da eu dou testemunho.
so. A tematização teológica não proclamação da Boa- Nova tor-
é equivalente a esse discurso. nou-se clamoroso. Jorge Atílio Silva lulianelll é filósofo
Na sociedade brasileira, hoje, e integra o Programa de Assessoria à
Por isso ele necessita ser media-
Pastoral do CEDI.
do. Por outro lado, é necessário as pessoas não se juntam. O iso-
resgatar a lógica de minorias. As lamento tem crescido e levado
comunidades cristãs existem não poucos a situações de de-
16 Leituras CONTEXTO PASTORAL

DICAS DE L·EITURA
Livros social dos países capitalistas
A IDOLATRIA DO MERCADO: que foi encoberto pelo colapso
ENSAIO SOBRE ECONOMIA comunista. Após uma época
E TEOLOGIA dourada, o capitalismno
Hugo Assmann & Franz encontra-se, mais uma vez, em
Hinkelammert dificuldades.
São Paulo-SP, CESEP, Vozes
1989, 456 pp. OS BLOCOS REGIONAIS
Estuda o aspecto teológico da NAS AMÉRICAS
economia, enfocando a Andrew Hurrel
idolatria e o caráter sacrificial Revista Brasileira de Ciências
do mercado. Sociais, 8(22), São Paulo-SP,
ANPOCS, jun 1993, pp.98-118
Llvreto Examina as diversas formas de
DESAFIOS E FALÁCIAS:
ENSAIOS SOBRE COMO PROCLAMAR DEUS regionalismo atualmente em
A CONJUNTURA ATUAL NUM MUNDO SEM CORAÇÃO discussão nas Américas.
Hugo Assmann Jung Mo Sung e outros
São Paulo-SP, Paulinas, 1991, São Paulo-SP, CE.JI, CLAI A RAZÃO DO SISTEMA:
94pp. 1993, 54 pp. O PRINCÍPIO DE EXCLUSÃO
Na lógica do mercado, o Subsídio dos seminários de Julio de Santa Ana
discurso sobre a solidariedade ·=I'eologia e Economia Tempo e Presença, 15(268),
esvai-se, por não ter presente o realizados pelo CEDI & CLAI Aio de Janeiro-AJ, CEDI,
ser humano com necessidades em 1993. mar/abr 1993, pp.5-8
a serem atendidas. A crueldade do sistema: no
Artigos momento cm que se dispõe de
O AMOR E AS PAIXÕES: CULTURA DE MERCADO recursos para erradicar a
CRÍTICA TEOLÓGICA E CULTURA SOLIDÁRIA- miséria, há grandes zonas em
À ECONOMIA POLÍTICA ANOTAÇÕES À MARGEM que homens e mulheres estão
Julio de Santa Ana DA "CENTESIMUS ANNUS" condenados ao sofrimento.
Aparecida-SP, Santuário, 1989, Hugo Assmann
176 pp. REB, 51 (204), Petropólis-RJ, ESTRANHAS INVERSÕES
Estuda o caráter sacrificial do Vozes, set/dez 1991, DO MERCADO
sistema capitalista, pp.847-882 JungMoSung
comparando a prática Traça uma série de Tempo e Presença, 15(268),
econômica a um<1_religião questionamentos à Aio de Janeiro-AJ, CEDI,
prática. "Centcsimus Annus", mar/abr 1993, pp.9-11
concluindo por enunciar seus Reflete o paradoxo da
A IDOLATRIA DO CAPITAL princípios. consciência tranqüila diante da
E A MORTE DOS POBRES: atual crise e intranqüilidade
UMA REFLEXÃO TEOLÓGICA A ECONOMIA E SEUS MITOS social, devido à crença
A PARTIA DADÍVIDA Pedro Ramos neoliberal de que o mercado
EXTERNA Impulso, 6(11), Piracicaba-SP, pode resolver esses problemas.
JungMoSung UNIMEP, 1992, pp.145-150
São Paulo-SP, Paulinas, 1989, Uma crítica ao mito capitalista NÃO HÁ MAIS JUSTIÇA
162 pp. da nacionalidade como Norberto Bobbio
Defende a urgência da fundamento do comportamento 30 Dias, 7(2), São Paulo-SP,
penetração da reflexão humano. Editbras, fev 1993, pp.46-49
teológica no interior dos nexos Há uma tentativa de
objetivos, que perpetuam os AQUI A COISA TAMBÉM desmantelar o Estado social e
sistemas de dominação, no ESTÁ PEGANDO tudo o que foi resultado de luta
plano econômico. Eric John Hobsbawn do movimento operário. O
Revista de Cultura Vozes, mercado tem limites de caráter
87(2), Petropólis-RJ, Vozes, ético que não podem ser
mar/abr 1993, pp.18-23 colocados pelo mercado.
Mostra o declínio econômico e

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