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CONTEXTO
PASTORAL n11 18
Janeiro/fevereiro
de 1994
Teologia e Economia
A IDOLATRIA DO MERCADO E OS DESAFIOS PASTORAIS
TEOLOGIA E ECONOMIA:
UMA INTRODUÇÃO
JungMoSung
DEUS E ECONOMIA:
UMA RELAÇÃO ESTRANHA?
Algum tempo atrás, tive a ale-
gria de ser convidado por estu-
dantes de teologia de uma Igreja
Luterana, no sul do País, para
colaborar na semana teológica
promovida por eles. O tema es-
colhido era "Teologia e Econo-
mia". Conversando com estu-
dantes da comissão organizado-
ra, eu lhes perguntei: "Qual ou
quais perguntas vocês gosta-
riam que fossem respondidas
nas palestras?" Uma aluna, após
uma pausa (para reflexão ou
para tomar coragem), disse: "O
que eu gostaria mesmo de saber
é o que a teologia e Deus tem a
ver com a economia?". O leitor
poderia estranhar essa pergunta
vinda da comissão organizadora
que, após consulta, escolheu
aquele tema. Mas, também em
muitos outros lugares onde sou de Deus, - "Teologia da Pros- leira. Não se importar com esses
convidado para dar palestras ou peridade" - , baseia-se numa sofrimentos seria o mesmo que
cursos sobre esse tema aparece determinada visão da relação en- dizer que Deus não se importa
esta pergunta. tre Deus/salvação e economia. com os sofrimentos dos seus fi-
O interessante é que há mui- Além do que, com a crise econô- lhos. Seria ter fé em um deus in-
tos pedidos de cursos e palestras mica e social que o País está vi- sensível, cínico. Na verdade, um
sobre o tema, "Teologia/Deus e vendo, todos (sejam pastores, ídolo; não o Deus Vivo e Verda-
Economia'', apesar dos próprios seminaristas ou leigos) acabam deiro.
solicitantes não terem muita, ou conversando sobre estes temas O problema é que não há
nenhuma, clareza sobre essa re- nas igrejas. muitos livros que trabalham
lação. Há uma intuição de que é A dificuldade em articular a mais explicitamente a relação
preciso caminhar nessa direção, teologia e economia, apesar do entre Deus/teologia e economia.
apesar da falta de uma clareza interesse no tema, vem de um (E entre os poucos que tratam,
teórica. descompasso entre a prática pas- alguns são muito difíceis para os
Essa estranheza em relação a toral e os livros de teologia que não-iniciados no assunto.) Ape-
Deus e Economia não significa, são lidos por esses agentes pas- sar de que a Teologia da Liberta-
é óbvio, que os temas econômi- torais. Na prática pastoral e na ção (TL) surgiu como uma refle-
cos e sociais não estejam presen- vida cotidiana, os que têm uma xão teológica a partir e em fun-
tes nas conversas, estudos e re- núnima sensibilidade com sofri- ção das lutas de libertação dos
flexões dos institutos de teolo- mentos dos irmãos percebem pobres e oprimidos e em função
gia ou das igrejas. Por exemplo, que não se pode anunciar o Deus delas, ela, entretanto, aos pou-
quando alguém diz que "graças da Vida sem se preocupar com a cos foi deixando meio de lado as
a Deus" está indo bem economi- fome, o desemprego e tantos ou- questões econômicas na suas re-
camente ou que o enriquecimen- tros problemas que angustiam a flexões. Os temas como o capi-
to é sinal ou prova das bênçãos grande parte da população brasi- talismo x socialismo, a depen-
4 Anéllae CONTEXTO PASTORAL
dência econômica, a crise da dí- emergência do pobre nas igrejas em conta a economia. Se isso
vida externa, a revolução tecno- e com a tomada da consciência fosse possível, o nosso Deus se-
lógica, as causas da pobreza de que a solidaried.ade com os ria um deus insensível aos sofri-
convivendo com a riqueza e ou- empobrecidos é causa das igre- mentos dos bilhões de seus fi-
. tros foram perdendo espaço den- jas, os cristãos assumiram a eco- lhos que passam fome no mundo
tro das reflexões da maioria dos nomia como um dos campos pri- todo.
teólogos da libertação. Isso ex- vilegiados de sua ação, ou, pelo Por sabermos que isto não é
plica por que os agentes pasto- menos, de sua preocupação. En- evangélico, as igrejas têm anun-
rais têm dificuldades em expli- tretanto, continua em muitos ciado o nosso Deus como o
car teologicamente a relação vi- uma teologia, assimilada desde Deus da Vida: "Eu vim para que
vida na pastoral entre Deus/sal- a infância, que apresenta como a todos tenham vida, e vida em
vação e problemas econômicos principal missão das igrejas o abundância" (Jo 10.10). Contu-
e sociais. anúncio de Deus para os ateus, do, precisamos prestar atenção
Só um pequeno grupo de teó- os não-crentes. A conversão dos para que essa caracterização en-
logos da libertação continuou ateus para a própria igreja seria riquecedora, "da Vida", não se
aprofundando a relação teologia a principal missão. Nesse tipo perca novamente em generalida-
e economia. Na caminhada des- de teologia, Deus não tem nada, des e abstrações. O anúncio do
sa reflexão o livro de Franz Hin- ou quase nada - pelo menos Deus da Vida e a luta pela vida
kelammert, As armas ideológi- teoricamente - a ver com os dos pobres e marginalizados não
cas da morte, publicado em
1977, é sem dúvida um marco
histórico. Além de Hinkelam-
mert, temos neste grupo outros
nomes importantes como Hugo
Assmann, Júlio de Santa Ana,
Enrique Dussel, Pablo Richard e
outros. (Aqui citamos somente
autores que têm os seus livros
publicados no Brasil.) Este gru-
po que compõe o qu~ podería-
mos chamar de "Escola do DEI"
(Departamento Ecumênico de
Investigações, de San José-Cos-
ta Rica, é um centro de pesquisa
e formação teológica fundado
por Hugo Assmann. Nele traba-
lham hoje F. Hinkelammert, P. problemas econômicos e so- pode tornar-se em mais um cha-
Richard, Elza Tamez e outros) ciais. A experiência de Deus é vão que repetimos como no pas-
vem influenciando enormemen- reduzida ao foro íntimo ou, no sado: "Deus é um Espírito per-
te toda a discussão do tema teo- máximo, ao plano das relações feitíssimo criador do céu e da
logia e economia na América interpessoais. Por isso, as pes- terra", sem sabermos as implica-
Latina e também em outros con- soas que assumiram a causa dos · ções dessa formulação na nossa
tinentes. pobres, mas ainda não consegui- vida concreta; ou reduzir a vida
ram superar essa visão teológica à "vida da alma".
vivem essa contradição e esse Mas o que é vida? Podemos
DEUS DA VIDA estranhamento. voltar ao famoso texto de Ma-
E A ECONOMIA Sem dúvida, a principal mis- teus (25.31ss). Nele Jesus fala
Voltando ao estranhamento sen- são da Igreja é anunciar o Deus das condições a fim de "ir para a
tido pelas próprias pessoas que de Jesus Cristo. Mas não há ne- vida eterna" e assim nos diz o
acham importante discutir o nhuma contradição entre anun- que é a Vida que nos veio trazer.
tema da economia e teologia, ciar a Deus às pessoas e ao mun- Todos nós sabemos de cor essa
. precisamos entender um pouco do e assumir a causa dos pobres, passagem: "Eu tive fome e me
melhor essa contradição. Acre- e, portanto, se enfronhar na eco- destes de comer. Eu tive sede e
dito que essa situação é um re- nomia. Muito pelo contrário, me destes de beber. Era forastei-
flexo da contradição entre duas são dois lados de uma mesma ro e me recolhestes. Estive nu e
maneiras de ver a missão da moeda: não se pode anunciar a me vestistes, doente e me visi-
Igreja e dos cristãos. Com a Deus de Jesus Cristo sem levar tastes, preso e vieste ver-me."
CONTEXTO PASTORAL Anállse 5
Comida, bebida, roupa, casa, que retribuir. Na experiência da vida e condenam os outros à
saúde, liberdade e afeto (da visi- solidariedade com os mais po- morte.
ta), isso é a vida. Os ricos que- bres, na experiência da gratuida- Lógicas econômicas basea-
rem mais dinheiro para poderem de, é que vivenciamos a graça de das na morte dos pobres produ- ·
continuar comendo do melhor, Deus. Sem a força do Espírito de zem também a sua religião ido-
viajar, ter mansões, beber bebi- Deus nós não perseveramos na látrica que dá "boa consciência"
das finas, etc. E sentirem-se solidariedade e na gratuidade. aos idólatras (cf. SI 73.12), pro-
"mais gente". Os pobres sofrem Anunciar o Deus da Vida é duzem valores morais e culturas
porque não têm o que comer, propor, em primeiro lugar, uma que as le~itimam e as operacio-
vestir, onde morar, etc. E essas economia onde os pobres e os nalizam. E por isso que muitos,
coisas, todos nós também sabe- marginalizados tenham condi- até mesmo cristãos, têm cons-
mos, não caem do céu nem dão ção de uma vida digna. É propor ciência tranqüila e são insensí-
.em árvores. Precisam ser produ- uma economia que "escute os veis diante dos sofrimentos de
zidas. Produção, distribuição e o clamores dos pobres" e coloque milhões de pobres numa socie-
consumo dos bens materiais ne- como um dos principais objeti- dade em que proliferam luxuo-
cessários para a ·reprodução da vos, senão o principal, o atendi- sos ambientes exclusivos, como
vida é o campo da economia. mento das necessidades dos os shopping centers, clubes pri-
Não se pode falar da vida sem mais fracos. É propor uma eco- vês e condomínios fechados. A
falar da economia. nomia que não atenda somente importante discussão em tomo
Alguém pode me contestar, aos desejos dos .c onsumidores da evangelização e da cultura
com razão, que a proposta de Je- (os que têm dinheiro)-como é não pode esquecer que os valo-
sus não pode ser reduzida a algo no capitalismo atual - , mas res morais, religiões e culturas
tão "material". Onde está a di- atenda prioritariamente às ne- são produzidos e vividos dentro
mensão "espiritual"? Afinal, to- cessidades de todas as pessoas. de uma totalidade social que tem
dos procuram comida, bebida, Isso é propor uma "economia es- como sua base a economia.
casa, afeto para si e os seus. Sa- piritual". É óbvio que o campo
bemos que os "poderosos" do econômico não esgota toda a
mundo sempre oprimiram os realidade humana, que a boa- A IDOLATRIA
fracos para terem mais vida, isto nova de Jesus não pode ser redu- DO MERCADO E
é, mais desses bens materiais. zida à economia; mas também é OS DESAFIOS PASTORAIS
Além, é claro, do "afeto" de to- claro que sem a produção, distri- Nos últimos anos, com a derro-
dos porque são ricos e podero- buição e consumo dos bens ma- cada do bloco socialista e os
sos. A boa-nova de Jesus não teriais não há vida, nem boa- avanços da revolução tecnológi-
pode ser somente a "luta pela co- nova. ca que está ocorrendo nos países
mida". Isso não é nenhuma novi- Se anunciamos o Deus da capitalistas ricos, estamos sendo
dade. Diante dessa constatação, Vida, isso significa que existe ou bombardeados por duas idéias:
o perigo é cair na ingenuidade pode existir um deus da morte a) a história chegou ao fim, isto
de achar que essas coisas mate- (ídolo). Um deus que propõe e é o segredo da história foi reve-
riais não são importantes na legitima uma economia que pro- lado: toda a evolução da história
boa-nova de Jesus, como se pu- duz vida só para os fortes, à cus- humana aconteceu para desem-
desse haver vida sem esses bens ta da morte dos mais fracos. É bocar no sistema de mercado ca-
materiais. Se prestarmos aten- isso que se afirma no primeiro pitalista (tese defendida por
ção ao texto de Mateus, a novi- mandamento: "Eu sou Iahweh Francis Fukuyama); b) o merca-
dade não está na luta pelo "pão", teu Deus, aquele que te fez sair do livre é a única salvação para
mas sim na luta pelo "pão dos da terra do Egito, da casa da es- as nossas economias em crise
pequeninos", dos mais fracos, cravidão. Não terás outros deu- (defendida pelos neoliberais).
:laqueies que não são um dos ses diante de mim" (Dt 5.6-7). Estas idéias são duas caras de
nossos (da minha família, do Iahweh se apresenta como liber- uma mesma moeda: a apresenta-
nosso grupo de amigos ou de tador da escravidão, d·a morte, ção do mercado capitalista como
igreja), daqueles que não vão para a vida ("para dar uma terra o grande e o verdadeiro sujeito
JOder nos retribuir. Aespirituali- onde corre leite e mel'', isso é, da história.
Jade consiste exatamente em ser onde a terra é do povo e a produ- A idéia central dessa ideolo-
:apaz de sair de si, em direção ção econômic.a é abundante para gia consiste no seguinte: a crise
10 mais pobre e fraco para lutar todos), em oposição a outros econômico-social brasileira e
Jela vida deles. Sem nada espe- deuses da morte e opressão, que dos outros países da América
·ar em troca, de uma forma gra- selecionam os que têm direito à Latina é fruto de desmandos do
uita, porque eles não têm com Estado na economia, no seu de-
6 CONTEXTO PASTORAL
sejo de resolver os problemas não são levados em conta pelas ração que os pobres estão ex-
sociais sem respeitar as leis do empresas produtoras de merca- cluídos dos benefícios desse
mercado; por isso, a salvação dorias); b) o espírito que rege as progresso técnico.
está na livre iniciativa, no siste- relações' dentro do mercado é o Como a sociedade capitalista
ma de mercado (menos .Estado, da concorrência, ou, como diz a está fundada na ilusão de que o
mais mercado: ou, como dizia a Fiesp, é•um regime de sobrevi- mercado é o único caminho para
propaganda do Governo sobre a vência dos capazes". Isso signi- o paraíso identificado como ple-
privatização das empresas esta- fica na !prática a exclusão dos nitude de consumo, o sacrifício
tais: "Menos Estado, mais Bra- "menos capazes", dos que não dos pobres é apresentado como
1 "sacrifícios necessários" para a
sil"). Para eles a falência do so- têm as fesmas condições para
cialismo "real" é a prova defini- concorrer 1.
com os mais fortes no "redenção" da sociedade. E,
tiva da superioridade natural do mercad?. com isso, se cria uma "cultura da
capitalismo; de que não se pode O capitalismo promete o pa- insensibilidade social" e se pos-
querer ter metas sociais, não se raíso df abundância de consu- sibilita aos integrados no merca-
pode querer planejar a solução mo. Para obter a satisfação de do uma consciência tranqüila
dos problemas econômicos e so- todos os desejos de consumo, diante dos sofrimentos dos po-
ciais; de que não há saída fora da eles prdmetem a superabundân- bres.
lógica do mercado. Alguns che- cia de Pirodução via a maximiza- O mercado é apresentado as-
gam a comparar essa "transição ção do progresso técnico. Quan- sim como um ser supra-humano
econômica" de uma economia to mais técnica, mais produção capaz de nos levar ao paraíso;
com inteivenção do Estado para e, port~nto, mais satisfação de exigindo para tanto "sacrifícios
economia de total liberdade de desejos de consumo. (O capita- necessários". A tradição bíblica
mercado com a "travessia do de- lismo érum sistema materialista- sempre criticou a exigência de
serto" e que o grande desafio se- consumista por excelência.) sacrifícios humanos em nome de
ria "atenuar os sacrifícios da tra- Para a ~aximização do progres- instituições humanas diviniza-
vessia." so tecnológico - o segredo des- das como idolatria. E ainda hoje
Nesse mesmo tom religioso, sa promessa- é necessário, se- a idolatria é o nosso grande de-
a importante revista econômica gundo ~les, a sobrevivência dos sa fio pastoral. Nãa estamos
The Economist diz que "o deus mais oorhpetentes e a exclu- diante de um mundo ateu ou se-
fracass3do da economia de co- são/sa+ ifício dos menos com- cularizado, mas sim diante de
mando [socialismo de modelo petent9s e dos mais pobres. Por uma idolatria do mercado.
soviético J foi finalmente depos- isso, eles dizem que os sacrifí- Defender a vida dos que estão
to" e que o moderno sistema de cios impostos à população pobre excluídos do mercado é a me-
comunicação está transmitindo são "sacrifícios necessários". lhor forma de negar a .idolatria
"a boa-nova da democracia.libe- Est~mos num dilema: para se do mercado. A solidariedade
ral rcapital ismo J para pratica- atingir [o paraíso (a abundância com os pobres é a melhor forma
mente todos os cantos do glo- de consumo) é necessário aban- de vencer o cinismo que corrói
bo". Para eles o capitalismo é o donar /o espírito de "caridade por dentro a nossa sociedade.
"deus eficiente" que anuncia ao cristã'', de solidariedade com os Precisamos da força e da luz do
mundo o Evangelho (a boa- mais f~acos. Para se atingir opa- Espírito Santo para "continuar-
nova). E depois eles dizem que a raíso oapitalista é preciso criar mos anunciando com intrepidez
economia não tem nada a ver uma cultura da insensibilidade a palavra de Deus" (Atos 4.31),
1
com religião! Mas o que é a "ló- social, ou, como diz ex-ministro para proclamarmos que o merca-
gica do mercado" apresentada Roberlf Campos, "uma 'mística do não deve ser a pedra angular
como a boa-nova e o único ca- cruel' do desempenho e do culto da nossa sociedade, mas sim que
minho de salvação - com sacri- da ~fic iência".
fícios necessários, mas redento- 1
E v~rdade que um sistema ba-
a pedra angular deve ser o Jesus
Ressuscitado (cf. Atos 4.11),
res - , para o paraíso chamado seado na "sobrevivência do mais que continua revelando-se na
"sistema de livre mercado"? capaz'l gera mais progresso téc- pessoa do nosso irmão que cla-
O sistema de mercado capita- nico. 9 que não é verdade é que ma: "Eu tenho fome!".
lista tem duas características o prog,resso técnico seja sinôni-
centrais: a) a produção é contro- mo do progresso humano ou de Jung Mo Sung é teólogo católico. Au-
láda pelas empresas privadas e um sdciedade mais humana. tor de vários livros, dentre os quais
destinada ao mercado para aten- "Idolatria do capital e a morte dos po-
Quantidade de mercadoria pro-
bres" (Edições Paulinas) e "Teologia
der os desejos dos consumidores duzida e consumida não é igual e Economia: repensando a Teologia da
(os não-consumidores, os po- a quaÚdade de vida. Principal- Libertação, utopias e sacrifícios (&ti-
bres, os excluídos do mercado, . mente /se levannos em conside- tora Vozes).
CONTEXTO PASTORAL An611se 7
prática pastoral. Em primeiro lu- Reiteradas vezes nas Escritu- pectadores de todas as partes do
gar destaca-se o fato de que a re- ras cristãs os sacrifícios são co- mundo. Consistiu numa forma
flexão teológica sobre a econo- locados em plano secundário e sutil de demonstrar a todos, qual
mia dá-se num cenário de luta até mes~o enfaticamente rejei- seria o custo da rebeldia e da re-
dos deuses. tados, co~o no caso da literatura sistência aos interesses sistêmi-
Isto significa que se encontra profética. Os sacrifícios buma- cos.
em curso um combate entre ins- nos sequer são cogitados. O Pode-se inferir desse exem-
tâncias que ilegitimamente rei- Deus bíbpco abomina os sacrifí- plo que as formas de dominação
vindicam sacralidade. Teologi- cios rituais quando estes não são passam boje muito mais pela
camente falando, diz-se que há expressão de uma comunidade simbólica, veiculada pelos mass
uma profusão de ídolos buscan- onde a ju~tiça predomina nas re- media do que pelos expedientes
do ocupar o lugar que só perten- lações sociais. Portanto, no atual mais tradicionais e conhecidos.
ce ao verdadeiro Deus. Conside- momento histórico, assistimos a Usando uma linguagem teológi-
r3ndo-se que tais ídolos exigem um embate entre o Deus de amor ca pode-se afirmar que o deus-
sacrifício de vidas humanas em . e um deus sacrificialista, este úl- mercado possui seus próprios re-
troca das benesses que prome- timo camuflado na lógica sistê- . cursos religiosos. A "teologia"
tem, estamos enfrentando uma mica. do deus-mercado é o conheci-
ofensiva demoníaca de propor- mento científico-tecnológico,
ções colossais. Toda essa idola- 1 tido por muitos como apto a so-
tria tem como substrato o deus- COMENtÁRIOS lucionar todos os problemas hu-
mercado com suas pretensões Na nova 0rdem internacional as manos. Essa teologia é pregada
.absolutistas e globalizantes. Es- modalidades de dominação tam- pelos "evangelistas" credéncia-
sas pretensões chegam ao ponto bém sofreram t.ransfonnações. O dos - os meios de comunicação
do atual sistema dispensar a legi- recurso à força das armas só é de massa. Não faltam também os
timação religiosa. Quando muito utilizado emergencialmente. "sacerdotes": executivos, econo-
tolera e/ou incentiva aquelas ex- Tanto o poder como as modali- mistas e políticos.
pressões espirituais que lhe são dades de 1dominação tornaram-se
convenientes. difusos. Recentemente o mundo
Ademais, o deus-mercado inteiro pôde ver pela televisão, INDICAÇÕES
impõe-se subrepticiamente em pela vez lprimeira, ao vivo e em Do ponto de vista pastoral faz-se
todas as formas religiosas, inclu- cores, a transmissão de um con- mister, em primeira instância, a
sive as que se dizem cristãs, nas flito ª rolado envolvendo várias distinção imprescindível entre
quais subsistem os princípios nações: a guerra do Golfo. Con- discurso teológico e discurso re-
teológicos ou doutrinários da re- tudo as batalhas foram mostra- ligioso. O primeiro recorre à me-
tribuição e da prosperidade . d, a~ con_ip 1 nu~ v1'd eogame, isto
. todologia tanto da filosofia
Nessas formas religiosas preva- e, Jamais se viam pessoas nem quanto das ciências humanas,
lecem, como tônica, a-insensibi- sangue. pelo contrário, após os porquanto deseja garantir o
lidade e o fatalismo, que, na prá- bombardeios mostravam-se ce- maior rigor possível aos seus
tica, desembocam numa adapta- nas das ruas das cidades onde enunciados; isto sem abrir mão
ção à nova ordem a qual se vai reinavam calma e tranqüilidade. de sua fonte privilegiada e única:
consolidando, mesmo quando Jamais ~ número total de mortos a revelação. Já o segundo é apre-
vociferam retoricamente revolta foi satisfatoriamente revelado. sentado por meio da simbologia
e/ou prote.sto contra o status As tr~ nsmissões eram entre- e da linguagem religiosas de am-
quo. meadas por anúncios comerciais plo doffiínio, embora sem perda
Nesse quadro a temática das que banalizavam os combates e de veracidade.
representações da divindade me- distanciavam os telespectadores Quando essa distinção não é
rece um destaque todo especial. dos dramas humanos envolvi- levada devidamente a sé rio ,
Avoluma-se um intercurso prag- dos. Cofll isso, aplicava-se um muitos equívocos podem ser co-
mático de símbolos que tenta en- dos mais conhecidos instrumen- metidos, além dos ruídos de co-
cobrir o fator comum das reli- tos de alienação: a fragmentação municação indesejáveis entre
giosidades adaptadas ou resul- · da cons~iência. Ao mesmo tem- agentes intermediários e as co-
tantes dn ajuste neoliberal. Nes- po, con ~ udo, gastava-se m.uito m unidades nas quais atuam.
te particular, até mesmo os fun- tempo na descrição detalhada do Nessa altura vale recordar a pro-
damentalismos que tendem ã sofisticadíssimo aparato bélico blemática em tomo da questão
produzir projetos políticos pecu- utilizado pelos aliados. Tal des- das elites, cujo tratamento tem
liares não fogem à regra . crição tinha apenas um objetivo: sido demasiadamemte ideologi-
intimid ~ r os milhões de teles-
CONTEXTO PASTORAL Análise 9
zado no campo da pastoral popu- gica da economia política tenha Os modelos até aqui postos em
lar ao longo das últimas décadas. livre curso entre os grupos, mo- prática estão em grande parte,
Concomitantemente retomar vimentos, e comunidades ecle- insuficientes ou esgotados. As
a dialética massas e minorias, siais comprometidas com a vida novas formas de se ser igreja na
arma eficientíssima no combate plena. América Latina ensejaram co-
às posturas que consagram o êxi- Vale ainda lembrar que o Rei- munidades a nascerem sem um
to e o sucesso como evidências no permanece como a grande re- vínculo direto com a institucio-
irretorquíveis da aprovação divi- serva utópico-escatológica que nalidade eclesiástica, sem, con-
na. Mais do que nunca é preciso inspira e compele todos os esfor- tudo, poder prescindir dela. É
atualizar a palavra do Mestre ços teológico-pastorais genuí- preciso reconhecer que o cristia-
quando afirmou " Meu Reino não nos. Nas últimas décadas não nismo histórico encontra-se
é deste Mundo". As ortodoxias poucas vezes, o Reino foi con- cada vez mais afastado, quer
têm interpretado essa expressão fundido com projetos históricos ideológica, quer geograficamen-
em termos espaciais. Na verda- contingentes, levando muitos te, dos pólos de poder.
de, Jesus falava a respeito da na- cristãos à frustração. Agora, na Assistimos, conforme preco-
tureza do Reino que anunciava. pastoral, ele deve ser
Ele jamais se imporia pela força recuperado em sua
das armas, nem pelo convenci- pujança teológica de
mento intelectual, nem pelos si- forma a continuar
nais e prodígios, nem pelo pres- sendo o grande e úni-
tígio político, e, muito menos, co horizonte de nos-
pelo poder econômico. sas ações.
Ao invés de confrontar as do- Esta é uma tarefa
minações religiosa e política que monumental e que
vitimavam seu povo, indo desse deverá contar com to-
modo ao encontro das expectati- das as forças vivas, -
vas messiânicas da época, Jesus inspiradas ou não na
preferiu transgredir pedagógica fé bíblica, para que
e publicamente os valores que venha a ser realizada.
davam suporte a essa dupla do- Nesse empenho a
minação. Com isso construiu o pastoral não poderá
paradigma evangélico da "pros- estar fora sob o risco •
crição", a nosso ver o mais com- de pecar por omissão. .J:
1
patível com os desafios pastorais No entanto, como se :e
sabe, a práxis pasto-
ral nos moldes Jatino- '---------~~
que a agenda do mundo apresen-
ta para os cristãos na atualidade.
Hoje, configura-se como ato americanos não pode nizara Richard Shaull há quase
profético afirmar a dignidade e a deixar de recorrer a um referen- trinta anos, a uma nova Diáspora
solidariedade humanas. O siste- cial teológico conexo. Neste par- do povo de Deus em meio a cul-
ma considera a ambas como sé- ticular estamos convictos de que turas que lhe são hostis. Contu-
rios empecilhos para que a "mão a crítica teológica da economia do, o mesmo teólogo reconhecia
invisível" do mercado realize política desempenha um papel nessa Diáspora um movimento
sua obra de organizar as relações estratégico. do próprio Espírito. Por tudo
econômico-sociais, dessa ma- Considerando: os grandes isso, nada melhor do que um
neira produzindo o bem de to- obstáculos a se suplantar na prá- novo pensamento teológico-pas-
dos. Com efeito, aqueles que se tica religiosa de todos os cristãos toral capaz de indicar os cami-
Jcsejam fiéis ao Evangelho de- latino-americanos comprometi- nhos que nos levarão a contri-
vem buscar, na práxis que se ofe- dos; o pioneirismo da temática buir para a implantação dos si-
rece, ética, consciente, e volun- que esse .novo pensar teológico nais do Reino.
tariamente contrária à lógica sis- apresenta; e a crise que se ins-
têmica, o paradigma pastoral taurou nas igrejas cristãs históri-
para o nosso tempo. cas; a ilação mais imediata é que José Bittencourt Filho é pastor da
o enfrentamento dos novos desa- Igreja Presbiteriana Unida do Brasil,
fios exige uma postura ecumêni- mestre em Ciências da Religião e
À GUISA DE CONCLUSÃO ca. coordenador do Programa de Assesso-
Buscamos até aqui preparar o Todavia, o próprio ecumenis- ria à Pastoral (CEDI).
terreno para que a crítica teoló- mo está a exigir uma reinvenção.
10 CONTEXTO PASTORAL
Como explicar por que Jesus, o de. A outra é que Jesus percebia DEUS x MAMON:
qual tanto falava sobre o amor, o mercado que ali se estabelece- OU UM OU OUTRO
sobre o andar a segunda milha, o ra como um concorrente do pró- Por que terá Jesus ido buscar a
ser paciente, tenha um dia agar- prio Deus: A liturgia divina se palavra Mamon (Mt 6.24 e Lc
rado um fraguelion - chicote colocava agora mais como uma 16.13) para designar as rique-
CC\m pontas de metal - e expul- oferenda aos interesses econô- zas? A palavra é de origem ara-
sado do templo os cambistas e os micos dos negociantes, erigida maica ("dinheiro") mas nunca
mercadores (Jo 2.13)? em fim último de suas preocupa- foi usada, entre os judeus, os ga-
Os evangelistas não entram ções, do que um serviço a Deus. lileus ou entre.os povos vizinhos
em detalhes. Apenas informam Em outras palavras, duas reli- como se fosse uma personalida-
que Jesus não admitia que a Casa giões mutuamente exclusivas - de, tal como Jesus a emprega. E,
de Deus, que fora construída na percepção de Jesus - esta- mais estranho, em nenhum outro
para ser casa de oração, houves- vam aparentemente convivendo exemplo dentro da pregação de
se se transfom1ado em "casa de no mesmo lugar. Jesus pode-se encontrá:.Jo 'átri-
negócios" ("covil de ladrões", Casa de negócios versus casa buindo um sentido de entidade a
na versão de Mateus, Marcos e de oração. O que se segue é uma qualquer outra realidade da vida
humana. Por que terá Jesus
como que personificado as ri-
quezas?
Na verdade, Jesus as está co-
locando no mesmo nível das
atenções e dos serviços humanos
que deveriam ser dados unica-
mente a Deus. Isto é, Jesus reco-
nhece que o ser humano tem a
tentação de prestar às riquezas
um serviço de culto.
Aqui se encontra uma denún-
cia profética: existe no dinheiro
como que uma realidade mística,
sobrenatural, que exerce verda-
deiro poder manipulador sobre
as pessoas. Como todos os de-
mais ídolos, elas são o resultado
de uma confecção. Mas escapam
do controle humano e passam a
dominar a pessoa.
É a partir daí que é preciso
ãí fki1~7 .
considerar o contexto econômi-
~
co dentro do qual está vivendo
~'---------------------------~ cada vez mais o mundo de hoje.
Lucas). Para muitos hermeneu- breve reílexão bíblico-teológica Não se pode, neste sentido, falar
tas isso se deu porque Jesus per- que busca consi_derar este tema e sobre o panorama religioso atual
cebia haverem os negociantes - introduzir, para quem ainda não sem se mencionar, especifica-
mancomunados com os sacerdo- se debruçou sobre ele, algumas mente, o sistema de mercado. É
tes - se transfomrndo em explo- questões que a presente conjun- ele, na verdade, a real "religião"
radores do povo, que vinha da tura tem a propor a quem preten- seguida pela nossa gente, na me-
zona rural para trazer suas ofer- de confessar a fé cristã hoje. dida em que: impõe uma teolo-
tas a Javé. E uma parte da verda- gia das mais completas, com
CONTEXTO PASTORAL An611M 11
uma concepção de divindade; rior - embutida misteriosamen- sição de sacrificar-se para mere-
um conceito de pecado e a exis- te no seio do próprio sistema - cer tais dádivas, e especialmente
tência de uma ação salvífica; o equilibrará de modo perfeito. de sua disposição de esperar o
exige um esquema sacrificial; Em última análise, cada qual momento da bênção que nem
define condições para a salvação conseguirá o que veio buscar em sempre vem no momento em que
compelindo a uma forma de fé; troca do que pôde trazer. O que mais se precisa! A religião do
estabelece um código de condu- ninguém fala é que isso se im- mercado funciona tal e qual.
ta; e faz uma promessa para o põe, tal como Jesus o denunciou, Como diz Julio de Santa Ana:
amanhã. Dada a natureza totali- como uma verdadeira religião. "Desenvolve-se assim uma nova
tária da religião não há como es- Por que o sistema de mercado religião, com uma nova 'Torá' -
capar à opção posta por Jesus se baseia exatamente no culto do (as leis do mercado) que corres-
Cristo: "Ninguém pode servir a deus-capital? Mais do que satis- ponde à sacralização sociológica
dois senhores; porque ou há de fazer-se com a simples troca das operada sobre o mesmo" (Julio
aborrecer-se de um, e amar ao coisas necessárias à vida, impor- de Santa Ana. "Sacralizações e
outro; ou se devotará a um e des- ta acumular sempre mais. Jesus sacrifícios nas práticas huma-
prezará ao outro. Não podeis ser- (Lc 12.16-21) já havia denuncia- nas". ln René Girard com teólo-
vir a Deus e às riquezas (Ma- do o homem insensato (isto é, o gos da Libertação, Hugo As-
mon)" (Mt 6.24). rico) por não perceber a falsida- smann, Petrópolis/Piracicaba:
de de seu culto. Para quem fica- Vozes/Unimep ).
riam os seus bens no momento A desobediência a estas leis
MERCADO OU SISTEMA de sua morte? Já Adam Smith - se estabelece como um novo
DE MERCADO? um dos primeiros teóricos da conceito de pecado. Muito em-
A palavra "mercado" é sempre economia moderna - admitia a bora isso não esteja declarado
usada em meio ao povo para se existência de uma força espiri- com todas as letras, é certo que a
referir àquele lugar onde alguns tual misteriosa, a que ele chama- condenação cai sobre qu em quer
vão para vender os seus produtos va de "mão invisível", capaz de que se levante contra o deus-
e outros para comprar o que ne- disciplinar as atividades huma- mercado, como o único capaz de
cessitam. É a feira . Ao tempo em nas no mercado, levando ao bem estabelecer os preços e, necessa-
que ainda não havia dinheiro, de todos, por cima e além dos riamente, a ordem em meio à hu-
esse intercâmbio se dava por próprios interesses individuais manidade. Negá-lo significa ser
meio de trocas. Nesse sentido, o (M. Novak. O Esplrito do Capi- contrário à racionalidade que ele
mercado é uma das mais legíti- talismo D.emocrático. Rio de Ja- pretende possuir e estabelecer.
mas criações do espírito huma- neiro: Ed. Nórdica). Por isso, an- Ademais, para se poder viver no
no, a raiz mesma da cultura. Foi tes de falar-se de um ateísmo no sistema de mercado é preciso ser
no encontro das pessoas que as mundo moderno, importa mais competitivo. Não importam tan-
idéias se intercambiaram, a arte falar da idolatria em que se cons- to as questões éticas incluídas no
encontrou a sua expressão e aso- titui o sistema econômico. Se Je- edifício do pensamento cristão.
ciedade encontrou o espaço para sus já falava em seu tempo con- Isso significa construir uma
sua organização. tra essa concorrência que as ri- nova interpretação para a cate-
A expressão "sistema de mer- quezas individuais pretendiam goria do pecado. A verdade é que
cado'', no entanto, vai além des- fazer a Deus, o século XX inau- o interesse próprio, um outro
sa idéia. Envolve uma série de gura uma era em que a organiza- nome para o egoísmo, é a mola-
propostas ligadas a um modo es- ção econômica se pretende mes- mestra para o funcionamento do
pecífico de se estabelecer essa mo universalizada e totalizante. sistema. "Descobriu-se um deus
orgánização. Pressupõe uma sé- Uma "religião católica". capaz de aproveitar-se do peca-
rie de teses vinculadas ao capita- do original para implantar o seu
lismo. Algumas dessas teses de- reino" (Jung Mo Sung. Deus
fendem a plena liberdade indivi- UMA ESTRUTURA numa economia sem coração.
dual ou corporativa para a pro- DE RELIGIÃO São Paulo: Ed. Paulinas).
dução, o controle do consumo, a No esquema geral das religiões "Toda forma de economia po-
oferta dos produtos e a fixação universais - em contraste com lítica começa necessariamente
dos preços, regido por princípios a doutrina da Livre Graça - o (ainda que de forma inconscien-
próprios, que não podem ser al- que funciona é um toma-lá-dá- te) com uma teoria do pecado.
terados. Na base de tudo, está a cá. O adorador recebe os favores Explica-se: todo sistema está fa-
pressuposição de que esse es- da divindade em troca de sua fi- dado a ser contra alguma coisa ,
quema levará à felicidade de to- delidade, de sua obediência às bem como a favor de alguma
das as pessoas. Uma força supe- instruções divinas, de sua dispo- coisa" (Novak, op.cit.).Aadmis-
12
~"'"ªª CONTEXTO PÀSTORAL
são de Michael Novak nada mais posições graças ao holocausto capital y la muerte de los po-
é do que o reconhecimento de dos marginalizados e empobre- bres. San Jose DEI) - existe
que o sistema econômico não cidos" (Julio de Santa Ana. La outra forma de se remunerar o
passa de uma forma de religião. practica económica como reli- trabalho: com os serviços públi-
Aliás, toda a sua obra vai exata- gión. San José: DEI). cos de saúde, educação, habita-
mente nessa direção. O que o au- "É a vont~de de Deus", costu- ção, etc. Para o sistema de mer-
tor não diz é que, para os defen- mam dizer os pobres quando fa- cado isso significa um peso para
sores do sistema de mercado, pe- lam das priyações por que pas- o Estado. Qualquer coisa que de-
cado é o desrespeito às leis da sam. Uma ingênua explicação termine esse ônus implica uma
competição a qualquer custo, a para uma q~estão inexplicável: redução da capacidade estatal de
substituição da busca do interes- por mais que eles trabalhem vão acumular superavits que lhe per-
se próprio por ingênuos e preju- passando cada vez mais de po~ mitam o pagamento dos juros da
diciais (ao mercado!) sentimen- bres a miseráveis. Da falta de re- dívida que possui para com o se-
tos de solidariedade humana. A cursos à rorhe, da fome à desnu- tor privado, tanto no plano na-
única coisa "pecaminosa" que o trição, da dJsnutrição à enfermi- cional como - e especialmente
sistema de mercado teme é a dade, da enfermidade à morte. É - internacional. Por isso o mer-
existência de um Estado forte ou assim que ~e dá o sacrifício das cado insiste em que é preciso
de um excessivo poder privado populações. Não há cutelos en- economizar no custo desses ser-
que intervenha nele e limite a sangüentados, nem altares visí- viços, os quais, melhor ainda,
sua liberdade. A isso Novak cha- veis em lugares públicos. É des- podem ser passados à adminis-
ma de "tirania" que deve ser te- te modo, no,entanto, que se orga- tração privada.
mida. niza o sistema sacrificial da reli- Salários em contínua redu-
Mas não há por que desani- gião econômica. ção, somados ao encarecimento
mar. Existe como que uma espé-
cie de providência no sistema
que transforma o todo das ações
egoístas em um resultado bené-
fico para todos. Esta "providên-
cia" se manifesta - conforme
Novak - na medida em que os
indivíduos se tornam industrio-
sos no tempo, desenvolvem o
mercado com plena liberdade,
confiam na lógica do sistema,
não st envergonham de reconhe-
cer que buscam re almente o
maior lucro possível, e defen-
dem uma sociedade de desigual-
dades, na qual sobrevivem os
mais aptos (Novak, op.cit.).
A pergunta que se impõe, no
entanto, é: E os menos aptos, os
que ficaram à margem do cami- Não existe, .no mundo do dos serviços de saúde e do aces-
nho, os empobrecidos? E a res- mercado, nenhum critério vincu- so à educação e à moradia, repre-
posta é lógica: Não há lugar para lado aos direitos humanos - sentam o reforço do sistema sa-
eles. Como nas mais tradicionais como, por exemplo, as necessi- crificial da religião do mercado e
religiões, para que se mante- dades básicas das pessoas - o aumento do número dos .mi-
nham os privilégios de alguns, para se determinar o salário dos lhões que cada vez mais vão es-
" ... é necessário que grandes trabalhadores. O único fator a corregando para a miséria e, ne-
contingentes de países pobres se ser considerado é o quanto aqui- cessariamente, para a morte. Um
sacrifiquem. O sistema econô- lo que eleS produzem permite ou sistema sacrificial dos mais refi-
mico internacional é um sistema não a competitividade no merca- nados.
sacrificial. Por isso mesmo é do. Se o çusto é alto, é preciso É evidente que, para se mon-
violento. René Girard demons- economizar em alguma coisa. E tar um projeto agora de dimen-
trou suficientemente que aque- esta é serhpre o nível salarial. sões mundiais, que implica se
les que dispõem de privilégios Por outro lado - como recorda poder aceitar tanto sofrimento e
na escala social sustentam suas Jung Mo fung (La idolatria dei morte com naturalidade, é preci-
CONTEXTO PASTORAL An611H 13
so, ele se auto-regula, não de- para possibilitar a vivência co- pressão tamanha que chegam a
pende de ninguém, nem de nada. munitária de pessoas que se cometer atos hediondos contra si
Ele é senhor da vida - e da mor- amam, e esse amor é vivenciado e seus familiares. O Clai e o Cedi
te. Ele é deus. A identificação do singularmente, heroicamente. O resolveram animar algumas pes-
discurso religioso do Mercado cristianismo é uma religião de soas a poderem pensar como, em
desvela seu caráter falacioso, en- minorias, minorias que estimu- suas igrejas, redescobrir o vigor
ganador. É contracultural tal lam o surgimento de novas mi- da mensagem de Jesus Cristo,
identificação, que não é própria norias, minorias, como diz d. que tem seu centro no Reino. A
de quem partilha da lógica do Hélder Câmara, abraâmicas. proposta tinha que possuir uma
Mercado. Ela é contrária a tal ló- efetivação densa e minoritária,
gica. POSSIBILIDADES não poderia pretender-se massi-
É uma lógica cruel, que faz DE UMA LEMBRANÇA... va, mas impregnativa: impreg-
inversões: prestigia as coisas ao A própria natureza dos encon- nar corações e mentes com a co-
invés das pessoas; transforma o tros não permitiria que eles fos- ragem de enfrentar o problema e
egoísmo em virtude e a solida- sem esgotados nas suas primei- de buscar soluções.
riedade em vício; faz milagres. A ras realizações. Eles cumprirão Naturalmente, encontraram-
idolatria é mão da lógica cruel seu papel se, e somente se, os se grupos pequenos, de lideran-
que conduz a conclusões tais participantes dessa primeira eta- ças de igrejas, capazes de animar
como a da naturalidade da elimi- pa desempenharem o papel, com suas instituições eclesiásticas e
nação de .,idas hui;nanas: é ne- o qual estão comprometidos, de comunidades locais - pois esse
cessário que morram os pobres estimuladores de suas comuni- é o desafio - a redescobrirem a
para haver mais vida para os so- dades. Estimuladores da dessa- importância da proclamação.
breviventes. Afinal, se morrem cralização do Mercado. Isso sig- Para tanto, procurou-se favore-
ladrões no Carandirú, meninos e nifica gerar a possibilidade de cer esses grupos a que descobris-
meninas de rua no Rio de Janei- aproximação de reflexões como sem qual é a mensagem religio-
ro, yanomamis na Amazônia, é as que foram desenvolvidas nes- so-teológica do Sistema, qual a
apenas a eliminação de um con- ses encontros, por meio de .lite- mensagem bíblicocristã, quais
tingente perturbador, que não ratura, de encontros promovidos as possibilidades pastorais que
oferece lucro algum, e até o co- nas comunidades, de instrumen- existem de proclamação do Deus
loca em risco. tos didáticos outros. cristão no mundo de hoje.
O sacrifício é regulador do Em segundo lugar, será ne- Todos os grupos viveram a
Mercado. É necessário que se- cessário aprofundar a reflexão experiência, de ficando em pé,
jam realizados ajustes econômi- deflagrada com essa iniciativa. formar um círculo, abraçar-se
cos para manter a cidade ordena- Para tanto, virão a ser providen- entrelaçado e, um por um, dei-
da. A ordem é global. O Mercado ciadas novas etapas. Isso deverá xar-se apoiar pelos outros dois
é global. Há que se respeitar as ser, também, motivado pela rea- que o margeavam. Uma expe-
imagens que autojustificam o ção das próprias igrejas-mem- riência indígena milenar da soli-
Mercado. Neoliberalismo, Mer- bros a essa iniciativa. A tendên- dariedade efetiva: na comunida-
cado, Guerra do Golfo, Transna- cia é que isso venha a ocorrer de o problema e a alegria são
cional i za çã o, Mercados Co- proximamente. partilhados. Os outros sempre
muns, Dívida E(x)tema ... Fenô- O Clai-Brasil, juntamente estão por perto para nos socor-
menos econômicos que possuem com o Cedi, resolveu propiciar rer, são amigos que não nos
uma auto-explicação sagrada: um alento às igrejas: redescobrir abandonam. Essa comunidade
Há uma teologia do Mercado, e Deus. Parece tema de uma espi- não é o mundo, está no mundo,
essa é expressa por sua Econo- ritualidade piegas, mas é profun- mas não se confunde com ele.
·mia Política. Por isso, há que se damente comprometedor. A Quem tem a missão de procla-
criticá-la teologicamente. constatação de que vivemos em mar é a comunidade, ainda que o
Pastoralmente é necessário, um mundo anti-Deus-da-Vida, mundo esteja sem coração.
antes de mais nada, reconhecer anti-Reino, úma situação de Foi isso que meus olhos vi-
que as comunidades possuem mundo descrita por muitos como ram, meus ouvidos ouviram, e
um discurso (vivência) religio- sem coração. Por isso, o tema da eu dou testemunho.
so. A tematização teológica não proclamação da Boa- Nova tor-
é equivalente a esse discurso. nou-se clamoroso. Jorge Atílio Silva lulianelll é filósofo
Na sociedade brasileira, hoje, e integra o Programa de Assessoria à
Por isso ele necessita ser media-
Pastoral do CEDI.
do. Por outro lado, é necessário as pessoas não se juntam. O iso-
resgatar a lógica de minorias. As lamento tem crescido e levado
comunidades cristãs existem não poucos a situações de de-
16 Leituras CONTEXTO PASTORAL
DICAS DE L·EITURA
Livros social dos países capitalistas
A IDOLATRIA DO MERCADO: que foi encoberto pelo colapso
ENSAIO SOBRE ECONOMIA comunista. Após uma época
E TEOLOGIA dourada, o capitalismno
Hugo Assmann & Franz encontra-se, mais uma vez, em
Hinkelammert dificuldades.
São Paulo-SP, CESEP, Vozes
1989, 456 pp. OS BLOCOS REGIONAIS
Estuda o aspecto teológico da NAS AMÉRICAS
economia, enfocando a Andrew Hurrel
idolatria e o caráter sacrificial Revista Brasileira de Ciências
do mercado. Sociais, 8(22), São Paulo-SP,
ANPOCS, jun 1993, pp.98-118
Llvreto Examina as diversas formas de
DESAFIOS E FALÁCIAS:
ENSAIOS SOBRE COMO PROCLAMAR DEUS regionalismo atualmente em
A CONJUNTURA ATUAL NUM MUNDO SEM CORAÇÃO discussão nas Américas.
Hugo Assmann Jung Mo Sung e outros
São Paulo-SP, Paulinas, 1991, São Paulo-SP, CE.JI, CLAI A RAZÃO DO SISTEMA:
94pp. 1993, 54 pp. O PRINCÍPIO DE EXCLUSÃO
Na lógica do mercado, o Subsídio dos seminários de Julio de Santa Ana
discurso sobre a solidariedade ·=I'eologia e Economia Tempo e Presença, 15(268),
esvai-se, por não ter presente o realizados pelo CEDI & CLAI Aio de Janeiro-AJ, CEDI,
ser humano com necessidades em 1993. mar/abr 1993, pp.5-8
a serem atendidas. A crueldade do sistema: no
Artigos momento cm que se dispõe de
O AMOR E AS PAIXÕES: CULTURA DE MERCADO recursos para erradicar a
CRÍTICA TEOLÓGICA E CULTURA SOLIDÁRIA- miséria, há grandes zonas em
À ECONOMIA POLÍTICA ANOTAÇÕES À MARGEM que homens e mulheres estão
Julio de Santa Ana DA "CENTESIMUS ANNUS" condenados ao sofrimento.
Aparecida-SP, Santuário, 1989, Hugo Assmann
176 pp. REB, 51 (204), Petropólis-RJ, ESTRANHAS INVERSÕES
Estuda o caráter sacrificial do Vozes, set/dez 1991, DO MERCADO
sistema capitalista, pp.847-882 JungMoSung
comparando a prática Traça uma série de Tempo e Presença, 15(268),
econômica a um<1_religião questionamentos à Aio de Janeiro-AJ, CEDI,
prática. "Centcsimus Annus", mar/abr 1993, pp.9-11
concluindo por enunciar seus Reflete o paradoxo da
A IDOLATRIA DO CAPITAL princípios. consciência tranqüila diante da
E A MORTE DOS POBRES: atual crise e intranqüilidade
UMA REFLEXÃO TEOLÓGICA A ECONOMIA E SEUS MITOS social, devido à crença
A PARTIA DADÍVIDA Pedro Ramos neoliberal de que o mercado
EXTERNA Impulso, 6(11), Piracicaba-SP, pode resolver esses problemas.
JungMoSung UNIMEP, 1992, pp.145-150
São Paulo-SP, Paulinas, 1989, Uma crítica ao mito capitalista NÃO HÁ MAIS JUSTIÇA
162 pp. da nacionalidade como Norberto Bobbio
Defende a urgência da fundamento do comportamento 30 Dias, 7(2), São Paulo-SP,
penetração da reflexão humano. Editbras, fev 1993, pp.46-49
teológica no interior dos nexos Há uma tentativa de
objetivos, que perpetuam os AQUI A COISA TAMBÉM desmantelar o Estado social e
sistemas de dominação, no ESTÁ PEGANDO tudo o que foi resultado de luta
plano econômico. Eric John Hobsbawn do movimento operário. O
Revista de Cultura Vozes, mercado tem limites de caráter
87(2), Petropólis-RJ, Vozes, ético que não podem ser
mar/abr 1993, pp.18-23 colocados pelo mercado.
Mostra o declínio econômico e
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