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Génese e Princípios de Liberdade como Lealdade Democrática

Estimado auditório, nos reunimos nesta tarde pelo puro gosto de partilhar pensamentos
e reflexões sobre o hoje e o amanhã da res-pública na qual, obviamente preocupados,
nos encontramos a viver e agir no nosso dia a dia.

Recebemos como provocação (alguns de nós, por ser verdade, como uma autêntica
pancada) o apelo por certos aspectos dramático e preocupante que o Sr. Presidente da
República e da FRELIMO dirigiu como um desafio aos membros mais representativos
do seu partido de governo: “a FRELIMO precisa aprofundar a formação ideológica dos
seus quadros. Com conhecimento sobre a génese e princípios da lealdade partidária”.

Acontece depois, entre nós mortais, que a uma provocação se responde com outra
provocação, as vezes até mais agressiva. Era bem possível deixar essa “quaestio” aos
directos destinatários do discurso presidencial. Mas nós, amantes da epopeia bíblica,
quando chegamos á beira da maré vermelha, nós sempre gostamos de passar a pé enxuto
até chegarmos na terra onde corre leite e mel…mesmo sabendo que não é nem será um
passeio entre amenidades, mas um desafiante deserto de duras provas.

Eis-nos portanto aqui a falar de “Génese e Princípios de Liberdade como Lealdade


Democrática”

"Democracia" é um termo antigo, grego clássico, que incute respeito e uma certa
veneração. Faz parte do nosso léxico civil e dos nossos vocabulários de moralidade e
política, mas ele vem de longe, atravessou os séculos, milénios, oceanos e grandes
terras. Normalmente, usamos este termo para designar um tipo de regime político
diferente de outros possíveis (monarquia, aristocracia, tirania, oligarquia, politia,
tecnocracia, teocracia, anarquia etc…).

Como sabemos, um regime político de natureza democrática é uma expressão que


indica muitas coisas, as vezes misturadas entre elas:

a) uma maneira particular de adquirir e exercer o poder político como poder


governante sobre uma dada comunidade, definida por fronteiras;
b) um processo particular ou um conjunto particular de procedimentos para
alcançar escolhas colectivas e vinculantes;

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c) uma estrutura particular das instituições fundamentais da sociedade, a partir dos
elementos constitucionais essenciais;
d) um mapa particular de esferas sociais e poderes sociais;
e) um conjunto particular de direitos e deveres de cidadania democrática.

Algumas características nos permitem identificar um regime político como um regime


político democrático, são características típicas e tópicas da democracia representativa
(porque esta é a actual forma que conhecemos em Moçambique).

Uma das características é a sua historicidade: em Moçambique, a democracia foi o


resultado, afinal bastante contingente, de uma gama complexa de tentativas, conflitos,
compromissos e processos. Nasceu num intervalo de tempo em que interesses internos e
externos, poderes e ideais, heróis e contrafiguras estavam e estão ainda interligados de
várias formas. Para quem toma a sério a história do surgimento da democracia em
Moçambique, a dupla FRELIMO-RENAMO é uma Scilla e Cariddi da qual não é
próprio possível prescindir.

Sei que eles, de ambos os lados, não gostam de ouvir isso, e do outro lado são bem raros
os momentos da História em que a verdade se acompanhou ao gosto de ser ouvida:
RENAMO é parte constitutiva do ADN da FRELIMO e vice-versa.

Democracia, em outras palavras, é o que conseguimos, mais ou menos brilhantemente,


construir, à medida que avançamos, dentro das circunstâncias dos conflitos (não só
armados) que caracterizaram a génese da democracia em Moçambique. Deve-se notar e
sublinhar que a ênfase na contingência não reduz a importância que a democracia tem
ou adquiriu para nós hoje em Moçambique; isso não reduz nossa lealdade ao valor da
vida democrática nesta pérola do Índico. Só nos leva a ver as coisas de um modo
situado. Examinar nossos dilemas e nossos problemas com a consciência do carácter
histórico e das circunstâncias contingentes, em que também podemos dizer que a
democracia actual é o que conseguimos fazer melhor, dadas certas circunstâncias.

Como todos vós, também eu escuto debates, leio artigos, as vezes desaguo em
apocalípticas gargalhadas porque, devemos admitir, alguns dos nossos representantes na
magna “Casa do Povo” são grandes actores protagonistas de tregendas dignas do mestre
Sófocles. A minha impressão é que todos estão a observar, com maior o menor gosto, o
filme democrático que passam hoje no cinema Moçambique. Poucos se dão

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efectivamente conta de que são participantes, actores protagonistas do filme que estão a
observar.

Além da historicidade e contingência do actual regime democrático em que vivemos,


devemos considerar mais duas peças fundamentais que compõem o mosaico do pano de
fundo democrático em nosso recente vocabulário civil. A primeira peça diz respeito à
ideia de igualdade democrática e baseia-se no axioma do individualismo normativo:
como parceiros da cidadania democrática, todas as pessoas têm direito a igual
consideração e respeito, e cada uma é pelo menos tão boa quanto qualquer outra. A
segunda peça diz respeito ao pluralismo em dois sentidos distintos: o pluralismo da
arte da separação entre esferas e poderes sociais como um pressuposto da democracia,
e o pluralismo como uma arte de livre associação como um resultado e fruto maduro
da democracia em boa saúde.

Com uma premissa fundamental, que devemos recordar constantemente: a combinação


de individualismo e pluralismo, que ocorre de forma variada no estabelecimento e
consolidação de regimes e processos democráticos, tem lugar no âmbito do estado
territorial moderno chamado de estado-nação.

Até que ponto depois, historicamente falando, esta territorialidade do moderno estado-
nação vai continuar e permanecer no futuro, isso é difícil prognosticar. Visível é o facto
que o novo mundo, aquele das gerações 1.0 e 2.0, vive de uma extraterritorialidade ou
meta-territorialidade cujos efeitos sobre os regimes e processos democráticos do velho
mundo ainda não os percebemos plenamente, faltando-nos as categorias de ciência
política para a devida hermenêutica. Conforme sugeria Michel Foucault, deveríamos
sair deste segmento da história, distanciarmo-nos dele, para podermos perceber se afinal
se trata do efeito de uma crise do mundo velho, ou se trata do fruto maduro e doce da
fecundidade do mundo que sobreviveu á catástrofe.

Num regime democrático - como o conhecemos, à medida que avançamos – o Estado


detém o monopólio da força legítima e dos objectivos colectivos de longo prazo da
comunidade política. Para simplificar as coisas, identificamos na primeira peça do
mosaico que constitui o pano de fundo democrático, a do individualismo normativo, a
parte liberal dos arranjos democráticos. Dizemos, por convenção, que a peça liberal é
propriamente constitucional: ela define a moldura do quadro, estável em duração e

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imunizada em relação à incerteza, dentro da qual deve ocorrer o processo democrático
de aquisição e exercício do poder político e o procedimento de escolha e de decisão
colectiva.

A moldura do quadro e o procedimento: este é um primeiro ponto importante da


complicada construção do regime democrático. A moldura do quadro define os direitos
fundamentais de cidadania e atribui poderes e espaços às instituições básicas da
sociedade. Deste modo, os direitos e poderes são subtraídos e tornados indisponíveis
para o cálculo social contingente de interesses e para o poder das maiorias. Se, por
exemplo, a desejada formação ideologia dos quadros da FRELIMO não se enquadra
nesta moldura do quadro democrático, não defende e enaltece a parte liberal dos
arranjos democráticos, o resultado dessa formação tanto desejada pelo Sr. Presidente
seria a deformação da moldura do quadro democrático, e a democracia se transformaria
em politia (como já ensinava Aristóteles).

Vamos agora considerar quais efeitos a moldura do quadro gera nos procedimentos de
escolha democrática. Ao adoptar a terminologia da teoria da escolha colectiva, podemos
dizer que a moldura do quadro, a nossa peça liberal, limita ou restringe o campo de
alternativas entre as quais os cidadãos podem legitimamente escolher. Chamamos essa
preciosa condição de condição do domínio restrito da escolha democrática. E nós
reconhecemos tão facilmente que, se a condição de dominação, restrita e limitada, é
violada, estamos simplesmente na presença da injustiça política, na forma exemplificada
pela tirania da maioria, que Aristóteles chamava de Politia. Substancialmente,
conhecemos duas maneiras de restringir ou limitar o campo de alternativas entre as
quais os cidadãos podem escolher e exercer amplamente a sua liberdade: a ocupação
nevrótica de todos os espaços vitais da polis ou da res-pública (mantendo porém a
fachada democrática) ou a violenta imposição do regime de um partido ou movimento a
todos os cidadãos, sem reconhecer legitimidade a nenhuma outra alternativa.

Deve-se notar que a tensão entre as duas peças, a da moldura do quadro liberal e a do
procedimento democrático, é uma tensão persistente nos regimes democráticos, sempre
que a formação ideológica da qual fala o Sr. Presidente não corresponda, no imaginário
da sua colectividade partidária, com o totalitarismo panfrelimista.

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Contra uma visão aditiva do liberalismo e da democracia, segundo a qual os regimes
que chamamos de democratas-liberais resultam da montagem harmoniosa de estrutura e
procedimento, devemos defender que há, em nossas democracias representativas, um
tipo de equilíbrio instável e tensão recorrente entre quanto é ditado pelo liberal e quanto
é ditado pelo democrata. Podemos até observar uma oscilação cíclica entre as questões
de constitucionalização e subtracção do domínio da escolha democrática e as questões
de revisão e modificação da moldura do quadro. Essa oscilação é um elemento
intrínseco da natureza dos regimes democráticos e pode naturalmente assumir uma
intensidade particular e variável, à medida que as circunstâncias de fundo, geradas pela
mudança social, mudam.

Este facto fundamental incide sobre a qualidade da nossa democracia: por mais instável
que seja, deve haver um ponto de equilíbrio entre a peça liberal (a moldura do quadro) e
a peça democrática, o procedimento. Na ausência desse equilíbrio, o mal público
consiste na tirania da maioria (politia) que, arrebatando direitos, usurpa poderes.

Essa primeira conclusão nos leva a examinar agora, com algum detalhe, a outra peça do
mosaico do pano de fundo democrático: o pluralismo como pressuposto e como
resultado.

A expressão “pluralismo como pré-requisito” refere-se a um conjunto de pré-condições


ou condições de contorno que devem surgir, se queremos que o início e a consolidação
de um regime democrático sejam bem-sucedidos ou que a qualidade de um regime
democrático maduro não sofra grave degradação. A democracia pressupõe o exercício
da arte da separação entre arenas, esferas e poderes sociais, considerando uma
variedade de esferas sociais como a crença religiosa e o carisma, a riqueza e o dinheiro,
o mercado, a força militar, a competência científica, tecnológica, académica, a mística
artística. Nessas esferas, reconhecemos facilmente poderes e recursos sociais ou bens
sociais que nos são familiares. Agora, dado que a democracia pressupõe que o exercício
do poder político é intrinsecamente limitado, deve-se também pressupor que as esferas
sociais sejam separadas. Isso significa também que em democracia não se verifica e não
se pode verificar o fenómeno da acumulação de recursos e poderes sociais no exercício
do serviço da autoridade política.

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Já Aristóteles tinha bem visto que estamos em democracia só quando o exercício da
autoridade política por parte da maioria de governo é vivido come serviço ao bem
comum. Saímos porém da democracia e entramos na politia quando a maioria de
governo interpreta o exercício da autoridade política não como serviço ao bem comum
mas como canalização de recursos e poderes sociais para o moinho do seu interesse.

Quando esse fenómeno de acumulação de recursos e poderes acontece num regime que
se pretende democrático, estamos a conhecer o mal público da tirania da maioria
(politia), na forma de uma dominação não legitimada e não representativa que mina e
erode os fundamentos de uma democracia decente, distorce seus fundamentos. Portanto,
em uma democracia decente, o exercício paradigmático da arte da separação continua
sendo o que estabelece e distingue as fronteiras entre campos e poderes: política e
religião, por exemplo, ou política e economia, ou política e informação, política e
saberes académicos, filosóficos, científicos, tecnológicos, artísticos etc....

Estávamos a falar do pluralismo como uma pressuposição dos regimes democráticos


que se pretendem decentes. Chegamos agora ao pluralismo como um resultado.

A expressão “pluralismo como resultado” designa um conjunto de processos que


foram gerados ou, em qualquer caso, estão associados ao pano de fundo das instituições
modeladas pela ideia de igualdade democrática ou individualismo normativo. É claro
que há uma conexão com o pluralismo como um pressuposto, mas não é sobre essa
questão complicada que queremos lidar agora.

Queremos antes reflectir sobre a conexão entre os direitos fundamentais iguais das
pessoas, como cidadãos, e seu direito de se associar com outros para buscar fins
comuns e colectivos. Depois da arte da separação, podemos dizer que a livre arte de se
associar de Tocqueville entra na cena democrática. Com esta livre arte de se associar
queremos indicar a génese das identidades sociais ou comunitárias (partidos,
movimentos, grupos, associações, corporações, sindicados etc…), a visão e missão que
se atribuem e que lhe é reconhecida pela apresentação social de diferentes identidades.
Ao mesmo tempo reconhecemos nisso a génese do conflito entre identidades antigas e
novas na paisagem democrática.

A consideração linear é a seguinte: o axioma do individualismo normativo caracteriza o


processo democrático como um processo que se move de escolhas individuais (ou

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preferências individuais) e atinge a escolha social. Da igualdade individual passa-se
agora à igualdade democrática no sentido agregativo: dadas certas preferências
individuais, sua agregação gera a escolha social.

Neste ponto e por este processo que anda da igualdade individual à igualdade
democrática estabelece-se e torna-se fundamental a relação directa entre indivíduos e
autoridade democrática, entre cidadãos governados e cidadãos governantes. Existe, é
claro, um conjunto de razões históricas, que revelam as circunstâncias contingentes do
início dos processos e regimes democráticos: uma reivindicação do individualismo
normativo contra um regime em vigor.

Esta é a ruptura com a organização burocratizada do antigo regime colonial ou com a


nomenclatura ideológico comunal no caso de Moçambique. Em que consiste esta
reivindicação do individualismo normativo? Podemos encontrar uma resposta na
história recente de várias democracias: é a história da vingança dos corpos
intermediários, constituídos e reconstituídos a partir da arte livre de associação e da
acção colectiva, ao longo do tempo, de actores sociais que promovem, defendem ou
apoiam interesses colectivos não contemplados pelo regime de poder até então em
vigor. Grande parte da história dos movimentos colectivos, agências sociais e agências
políticas representando os interesses das fracções da população tem suas origens nessa
história, que é a história do início dos sindicatos modernos e dos partidos políticos de
massa, com um grande assentamento social. Dado que, como ensina Cicero, Historia
magistra vitae, deveremos aprender a familiarizar com os corpos intermédios de acção
colectiva, movimentos, conflitos que resultam na inclusão universalista e na
generalização da igual dignidade de cidadania para as populações do estado-nação.

Se vejo bem, daqui a um punhado de anos, as nossas instituições vão passar por uma
redefinição capaz de estabelecer um novo contrato social como resposta à questão da
inclusão na cidadania democrática de uma parte da população moçambicana até agora
excluída e pouco nada representada mas em constante crescimento numérico.

Se a democracia é um regime político caracterizado pela compatibilidade mútua de


diferentes identidades colectivas com a lealdade civil comum ou a identidade de
cidadania, então a sociedade democrática é uma sociedade aberta, que maximiza a
oportunidade para a constituição e reconstituição de identidades colectivas alternativas

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dentro da mesma comunidade política. Esta parece ser, no final, a definição menos
controversa da diferença entre um regime democrático e regimes não democráticos: a
liberdade de identificação colectiva, religiosa, política, ética e cultural, para os parceiros
da polis. O exercício dessa liberdade requer que seja protegida a possibilidade das
pessoas e grupos buscarem a conversão de velhas devoções políticas em novas
identidades colectivas alternativas.

Sic stantibus rebus, se a ideologia da FRELIMO não é de natureza totalitarista


panfrelimista, o convite do Sr. Presidente deve ser interpretado como um apelo a
favorecer o pensamento e acção de cidadãos dentro e fora do partido para que elaborem
a constituição de identidades colectivas capazes de animar a comunidade moçambicana
dentro e fora do partido, identidades colectivas capazes de incluir no regime
democrático pessoas e grupos até hoje pouco favorecidos na redistribuição dos poderes
e das riquezas. De outro lado é mesmo assim que nasceu FRELIMO.

Se reconhecermos que esse modo de falar sobre democracia pressupõe a referência ao


Estado-nação; se aceitarmos que isso põe directamente em questão as formas de
construir a identidade de cidadania e lealdade civil comum, baseada na liberdade de
identificação colectiva, é natural e salutar o conflito e a diferença entre devoções
políticas.

Digo salutar porque a forma democrática da vida na res-pública deverá saber se adaptar
a um quadro social e económico alterado pelos vistosos processos de globalização e
interdependência que alteram o quadro de referência e a geografia de identidades,
interesses e poderes na sociedade (por exemplo, já foi visto o forte poder que tem
facebook numa campanha eleitoral, ao ponto que o andamento das coisas políticas no
mundo real vem a depender fortemente da transferência da sua imagem no mundo
chamado 2.0).

Muitas das categorias básicas que fundamentaram o caminho de Moçambique para a


democracia, coisas como valores e ideais políticos que moveram e sustentaram os heróis
da Pátria amada, mesmo permanecendo em todo seu esplendor histórico, não exercem
nas novas gerações suficiente força atractiva e catalisadora e não estimulam nas suas
mentes ou sentimentos nenhuma percepção de legitimidade para o actual regime
democrático, sobretudo por carência crónica de ética democrática.

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O núcleo da ética democrática está centrado na ideia do valor da igualdade das pessoas
como parceiros de igual dignidade da polis. Como cidadão, cada pessoa tem direito a
igual consideração e respeito, como observamos em relação ao axioma do
individualismo normativo. Isso requer a definição do sistema de liberdades
fundamentais de cidadania: o primeiro princípio da ética democrática prescreve
igual liberdade para as pessoas. Como foi observado, o primeiro princípio exemplifica
ao longo do tempo a ideia grega e clássica de “isotimia”, da igual estima ou dignidade
que pertence às pessoas dentro da comunidade política democrática.

Todo o resto deve ser coerente, ou deve ser feito coerentemente com o que é prescrito
pelo princípio da isotimia. Particular atenção deve ser dada às formas ou modalidades
de adquirir o poder do governo sobre as pessoas que sempre têm e mantem igual
dignidade e também considerar pormenorizadamente as formas de exercício desse poder
de governo.

Há pessoas em Moçambique, também entre políticos de profissão, que ainda pensam


seja suficiente a garantir a isotimia (isto é, o fundamento da ética democrática) o facto
de ter recebido por votação justa, livre e transparente o mandato temporário para
governar.

Sinto muito lhes dizer, mas isso hoje próprio já não é suficiente. Como dizemos, na
democracia, as elites dominantes se propõem e não se impõem. Quanto ao exercício do
poder do governo, observamos em primeiro lugar que a igualdade democrática funciona
como uma restrição severa aos modos de emprego da autoridade legítima, no sentido
indicado em relação às restrições constitucionais ao domínio restrito da escolha social e
da tensão entre a peça liberal e a peça democrática de estruturas e instituições
democráticas.

Em segundo lugar, devemos acrescentar que os fins colectivos ou bem comum que
devem ser perseguidos por aqueles que exercem autoridade política estão no centro da
controvérsia ou do conflito democrático por excelência. O que a política deve fazer para
honrar a promessa de igual consideração e respeito a que os cidadãos de uma boa
democracia têm direito, isso está no cerne do conflito político paradigmático também
em sociedades tradicionalmente democráticas.

A esse respeito parece uma autêntica simplificação grosseira, chamar de democracia as


escaramuças carnevalescas entre deputados na Assembleia da República de

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Moçambique. A política democrática decente è bem outra coisa e tem como um
objectivo essencial se deixar moldar pela ideia de igual dignidade de cidadania.

A partir da partilha da prioridade da igualdade de pessoas, os vários partidos podem


divergir quanto às políticas e medidas que asseguram, protegem e promovem essa
igualdade de liberdade. Mas a política que se pretende democrática não se deve limitar à
protecção e garantia da igualdade de liberdade como princípio metafísico. Deve ir além
e gerar uma igualdade de oportunidades ou capacidade de as pessoas usarem a sua
liberdade com responsabilidade no concreto do dia a dia. Infelizmente, a constante
percepção da incapacidade dos actuais actores políticos em gerar isotimia existencial
ou a constatação da ideológica e sistemática contrariedade a este concretissimum da
isotimia, leva a maioria dos cidadãos a se distanciarem, a não reconhecer legitimidade
nenhuma ao actual exercício de puder em regime democrático, a dizer sem muitos
malabarismos linguísticos: Not in my name!

O núcleo de uma ética democrática nos pede, em termos simples, de julgarmos as


instituições do governo e as políticas adoptadas, apoiando-nos na alavanca da isotimia,
da igualdade de cidadania, não somente entendida como princípio da filosofia política
democrática mas como concretização de igualdade de oportunidades ou capacidades.

Querendo sintetizar em palavras pobres: fundamental para a democracia é a liberdade,


essencial á liberdade é a igualdade e sem garantia de igualdade não pode haver
legitimidade democrática.

Grato pela atenção dispensada.

Doutor pe. Giuseppe Meloni

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