Você está na página 1de 6

A VIOLÊNCIA POLICIAL E CARCERÁRIA NO ESTADO DO

ESPÍRITO SANTO

BITTENCOURT, Matheus Boni1


Grupo de Trabalho: GT.05 - Direitos Humanos e Violência Institucional

Resumo: O objetivo é analisar a violência produzida pelo aparelho de segurança pública do


Estado do Espírito Santo. Enfocamos a participação de policiais em homicídios,
clandestinamente em “grupos de extermínio” ou em nome do “cumprimento do dever legal” e
a violência no interior do sistema prisional, seja dos agentes de segurança contra os presos ou
destes entre si. Embora faltem dados quantitativos sistematizáveis em séries históricas, há
uma forte consistência entre diversas evidências empíricas, permitindo-nos inferir um
processo de institucionalização da violência policial e carcerária como mecanismos sociais de
controle punitivo sobre as camadas inferiores da estrutura socioeconomica.

Palavras-chave: Polícia; Prisão; Violência.

1 Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar a violência policial e carcerária no Espírito
Santo como um caso da relação estrutural entre a seletividade penal e a criminalidade
violenta. A polícia, nesta perspectiva, é considerada o conjunto de “pessoas autorizadas por
um grupo para regular as relações interpessoais dentro deste grupo através da aplicação de
força física. Essa definição possui três partes: força física, uso interno e autorização coletiva”
(BAYLEY 2001, p. 20). O policiamento é o controle social coativo e legitimado pelas leis
vigentes. Esta definição ampla inclui várias agências estatais, privadas ou mistas, além das
organizações estatais, especializadas e profissionais que correspondem à moderna concepção
de polícia.
Órgãos desse tipo, no Brasil, são as Polícias Militar, Civil, Federal, Rodoviária Federal
e Ferroviária Federal. As Guardas Municipais e Agentes Penitenciários de Segurança
frequentemente carecem de profissionalizaçao. As Forças Armadas, que eventualmente
participam de operações policiais não são especializadas em policiamento, mas sim na guerra.
1
Graduado e mestre em Ciências Sociais, especialista em História Cultural pela UFES (Universidade Federal do
Espírito Santo) e servidor público efetivo da Secretaria de Cultura do Espírito Santo. E-mail:
matheusb2@openmailbox.org.
Os vigilantes patrimoniais praticam o chamado policiamento privado, com variados níveis de
especialização, profissionalização e legalidade.
Deste modo, define-se a violência policial como aquela que tem policiais entre os seus
agentes, e a violência carceraia, a ocorrida no interior das prisões. Mas o que seria violência?
Há diversas definições, que podem ser restritas à agressão física intencional ou ampliadas até
considerarmos a violência simbólica (BOURDIEU, 2005). Trabalharemos com foco nos
órgãos estaduais (Polícia Civil e Militar e Segurança Penitenciária) e nos casos extremos
(tortura e homicídios), que se encaixam na definição restrita e são muitas vezes entendidos
como “casos isolados”. No entanto, longe de serem “casos isolados” – como muitos são
tratados –, são frequentes e seletivos, recaindo sobre camadas multiplamente estigmatizadas
(pela pobreza, raça/etnia, uso de drogas, etc). De modo que é impossível separar o tipo de
violência física que enfocamos da violência simbólica que ideologicamente a autoriza.

2 Desenvolvimento
Para o nosso estudo sobre a violência policial e carcerária no Espírito Santo, não
dispomos de dados quantitativos em séries históricas, como os estudos realizados sobre o
mesmo problema em Rio de Janeiro e São Paulo (FORÇA, 2009). Os dados quantitativos
disponíveis mostram-se muito mais fragmentados (apesar de dispormos das informações
gerais sobre homicídios dolosos e encarceramento). Contudo, ao se analisar os dados há
indícios de que a letalidade policial no Espírito Santo é registrada como homicídios entre
outros – a exceção é aparece num pequeno número de mortes apontadas como “justificadas”
em “confrontos” com “suspeitos”. Por outro lado, as diversas fontes qualitativas apresentam
uma razoável consistência. Sendo assim, nos esforçaremos ao máximo para oferecer um
quadro empiricamente fundamentado dessa violência policial e carcerária a partir da evidência
encontrada, apesar das suas limitações.

3 Resultados

Entre 2003 e 2004 a Corregedoria da PM-ES registrou 736 crimes envolvendo policiais
militares, incluindo 93 homicídios dolosos consumados, 3 homicídios tentados e 391 lesões
corporais, sendo, destas últimas, 200 por armas de fogo e 191 por tortura física (Braga, 2006,
p. 51-53). Entre 2001 e 2004 a Corregedoria da PC-ES registrou 333 crimes envolvendo
policiais civis, incluindo 3 casos homicídios, 31 de tortura e 34 de lesão corporal (op.cit., 23-
24).

O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2013 , p. 126) contabiliza, entre os


anos de 2010 e 2012, houve oficialmente 54 mortes em “confrontos com a polícia” no
Espírito Santo. O número representa aqueles casos em quê a morte é considerada justificável
pelo cumprimento do dever legal ou legítima defesa, resultando em exclusão de ilicitude. Os
demais casos, tendo policiais ou civis como vítimas, são incluídos como homicídios.

A violência policial também possui uma face clandestina, pela atuação de alguns policiais e
ex-policiais como pistoleiros individualmente, ou reunidos em “grupos de extermínio”. O
mais famoso grupo paramilitar com participação policial do Espírito Santo foi a Scuderie
Detetive Le Cocq, registrada em cartório como organização privada sem fins lucrativos, que
foi dissolvida por decisão judicial em 2006. Mas em 2011 haviam mais de 80 investigações
sobre grupos de extermínio e milícias na Grande Vitória 2. Muitos desses grupos se impunham
como serviços clandestinos de segurança privada, e, em muitos casos, ocorria a prática de
“produzir insegurança para vender segurança”, o que dá um caráter extorsivo e violento ao
comércio da segurança privada clandestina, tornando-se uma verdadeira imposição de “justiça
com as próprias mãos” e de “taxas de proteção” a comerciantes e moradores do local3.

A partir de 1999 a segurança prisional externa ficou sob comando da PM-ES (Decreto 4.405
de 2 de fevereiro de 1999)4, que na prática acabou se envolvendo na segurança interna e
administração de presídios. A militarização do sistema penitenciário levou ao agravamento do
uso da tortura para controlar presos, o que ocasionou várias rebeliões e mortes de presos
(BRASIL, 2005, pp. 35-42 e 111-142). Em 2005 foram elaborados rígidos Padrões
operacionais de segurança interna e externa das unidades prisionais, prescrevendo um
controle rigoroso sobre a rotina de presos, visitantes e funcionários, incluindo revistas

2
VALIM, Patrícia. Investigação sobre grupos de extermínio e milícia já passam de 80 no Estado. A Gazeta,
Vitória, 11/01/2011, disponível em <http://www.naofo.de/oao>, acesso em 26/09/2014. GARRETO, Glacieri.
Agente de presídio é suspeito de extermínio. A Gazeta, Vitória, 22/03, 2012. Disponível em
<http://www.naofo.de/ob1>, acesso em 26/09/2014. A GAZETA. Armeiro de quadrilha de extermínio é preso. A
Gazeta, Vitória, 16/04/2009. Disponível em <http://www.naofo.de/ob9>, acesso em 26/09/2014. GIAMOMIN,
Anne. Polícia investiga milícia na Grande Vitória. A Gazeta, Vitória, 3/10/2011. Disponível em
<http://www.naofo.de/obs>, acesso em 26/09/2014.
3
Todas as expressões entre aspas deste parágrafo são resultantes de reportagens jornalísticas publicadas em: A
GAZETA. Coagidos, moradores de Vila Velha pagam por vigilância clandestina. A Gazeta 16/7/2009.
Disponível em <http://www.naofo.de/occ>, acesso em 26/09/2014. BARBOSA, Wagner. Milícias tentam se
impor em Itapoã. A Gazeta 31/10/2011. <http://www.naofo.de/ocp>, acesso em 26/09/2014. MILL, Ana
Paula. Policiais tomavam terra de agricultores. A Gazeta, Vitória, 1/12/2011. Disponível em
<http://www.naofo.de/oc9>, acesso em 26/09/2014.
4
“Art. 1o – O Instituto de Readaptação Social – IRS, Casa de Detenção da Grande Vitória – CADEV,
Penitenciária Agrícola do Espírito Santo – PAES e Casa de Custódia de Viana – CASCUVI, em caráter
excepcional, ficarão pelo período de 180 (cento e oitenta) dias, prorrogáveis, por duração que não exceda o
tempo necessário à satisfação do restabelecimento do sistema, sob a guarda externa da Polícia Militar, ficando
também sob sua responsabilidade, o atendimento médico-odontológico, transporte e escoltas dos seus
encarcerados. Parágrafo único – Os Oficiais PM empregados nas ações previstas neste artigo serão colocados
à disposição da Casa Militar da Governadoria, atribuindo-se-lhes atividades pertinentes à segurança do sistema
penal, definidos em lei sob a responsabilidade da SEJUC, e juntamente com os demais Policiais Militares
empregados serão considerados em atividade de natureza policial militar”.(Decreto 4.405 de 2 de fevereiro de
1999)
vexatorias (Portaria 514-S de 24 de outubro de 2005 da Secretaria de Justiça do Espírito
Santo).

Há vários testemunhos sobre a violência generalizada nas superlotadas prisões capixabas.


Com importante participação de agentes de segurança pública no problema, por meio do uso
sistemático da tortura. E da própria administração penitenciária estadual, por meio de
instalações inadequadas (como contêineres e carceragens, insalubres, etc), negação de
assistencia jurídica e médica e registros de mortes como se fossem fugas (SANTOS, 2010;
BRASIL 2006; 2007; 2009a; 2009b; 2009c; 2009d ). O uso sistemático da tortura permaneceu
mesmo após a construção e reforma de numerosos presídios (BRASIL, 2010).

De 2003 a 2012, foram registrados 268 mortes no sistema prisional, e no período taxa média
de óbitos é 438 por 100 mil presidiários, mas 558 entre os anos 2003 e 2009. As taxas médias
de óbitos, fugas e evasões somadas são de 7806 por 100 mil presidiários, mas no período de
2003 a 2008 a taxa média é de 9794. A correlação entre encarceramento e as mortes por
causas externas com intenção indefinida em as taxas por 100 mil habitantes é de 0,748. Neste
sentido, é possível admitir que presos mortos no sistema penitenciário e registrados como
foragidos tenham às vezes os seus corpos encontrados em outros lugares e registrados como
morte por causa externa com intenção indefinida.

Entre 2012 e 2013, os dados do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, registram quase 400
casos de tortura (muitos com mais de uma vítima e até dezenas), das quais apenas 5%
resultam em abertura de Inquérito Policial, sendo que houve apenas uma sentença judicial
entre todos os casos. A descrição sumária dos casos denunciados mostra o uso sistemático de
armas menos letais, como gás lacrimogêneo, balas de borracha, pistolas elétricas e spray “de
pimenta”. Os acusados na maioria das vezes são agentes de segurança pública: policiais civis
e militares, agentes penitenciários e às guardas municipais.

4 Considerações finais
A redemocratização formal trouxe a independência relativa dos tribunais em relação
ao Executivo, o pacto federativo e o do (parcial) comando civil em grande parte estadualizado
sobre as forças de segurança, sem que houvesse uma transformação expressiva na organização
policial formal, nem nas culturas práticas incorporadas (habitus e ethos) e transmitidas através
da socialização profissional, nem do discurso político sobre a segurança pública. A
democracia liberal herdou, incorporou e se apropriou da violência policial militarizada como
instrumento de governo, sob controle externo de uma justiça penal seletiva (Bittencourt,
2013).
A resposta repressiva à insegurança social submete cada vez mais indivíduos socialmente
excluídos à violência policial, tortura e encarceramento, produzindo reincidência criminal,
gerando mais insegurança, etc. A repressão criminal se torna instrumento de segregação e
eliminação dos indesejáveis. Separa os segmentos de média e de baixa renda das classes
trabalhadoras, bem como os trabalhadores e os delinquentes entre os pobres. Herdeiras de
uma tradição jurídico-penal militarista e punitiva, as atuais políticas “tolerância zero” de
segurança pública levam à criminalização da pobreza.

Referências

BAYLEY, David. Padrões de policiamento: uma análise internacional comparativa. São


Paulo: EDUSP, 2001.
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. Maria Luíza
Borges; rev. Karina Kuschnier. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BITTENCOURT, Matheus Boni. O paradigma penal-militar no sistema de justiça criminal.
Em Tese, Florianópolis, v. 10, n. 1, jan./jun., 2013.
______. As políticas da insegurança: da Scuderie Detetiva Le Cocq às masmorras do novo
Espírito Santo. 2014. 168f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 8. ed. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2005.
BRAGA, Raquel Willadino. Arquiteturas Organizacionais, Modelos de Gestão e
Indicadores de Eficiência das Corregedorias e Ouvidorias de Polícia. Brasília: SENASP-
MJ, 2006.
CARDYA, Nancy et al. Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, sobre atitudes,
normas culturais e valores em relação à violação de direitos humanos e violência: Um
estudo em 11 capitais de estado. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade
de São Paulo, 2012.
CHEVIGNY, Paul. Edge of the knife: police violence in the Americas. New York: New
Press, 1995.
BRASIL (1992). Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a
investigar o extermínio de crianças e adolescentes. Diário do Congresso Nacional, Brasília,
ano XLVII, supl. B ao DCN n. 69, 19 de maio.
_____ (2000). Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar o
avanço e impunidade do narcotráfico. Brasília: Congresso Nacional.
_____ (2005). Relatório sobre a tortura no Brasil. Brasília: Congresso Nacional,.
_____ (2006). Situação do sistema prisional brasileiro: síntese de videoconferência
nacional realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Brasília: Congresso
Nacional,.
_____ (2007). Depoimentos capixabas para a CPI do sistema carcerário. Brasília: Congresso
Nacional,.
_____ (2009a). Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a
investigar o Sistema Carcerário. Brasília: Congresso Nacional.
_____ (2009b). Relatório de diligências em unidades prisionais: UF: Espírito Santo.
Brasília: Congresso Nacional.
_____ (2009c). Procedimento Administrativo nº 1.00.000.003755/2009-57: pedido de
intervenção federal do Estado do Espírito Santo. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível
em: http://www.estadao.com.br/especiais/2009/11/crimesnobrasil_if_es.pdf. Acesso em 5 de
maio de 2014.
_____ (2009d) Relatório de inspeção no sistema penitenciário do Estado do Espírito
Santo. Brasília, Ministério da Justiça.
_____ (2010). Relatório do “Mutirão carcerário” do Espírito Santo. Vitória: Conselho
Nacional de Justiça.
FORÇA Letal: violência policial e segurança pública no Rio de Janeiro e em São Paulo, 2009.
FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 7o Anuário do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. São Paulo, 2013.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução
de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
HUGGINS, Martha Knisely. Violência urbana e privatização do policiamento no Brasil:
uma mistura invisível. Cad. CRH, Salvador, v. 23, n. 60, Dec. 2010 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
49792010000300007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 21 Sept. 2014.
IBOPE. Retratos da sociedade brasileira: segurança pública. Brasília: CNI, 2011.
MENDEZ, Juan; PINHEIRO, Paulo Sérgio; O'DONNEL, Guilhermo (coord.). Democracia,
violência e injustiça: o Não-Estado de Direito na América Latina. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica
sobre a categoria "bandido". Lua Nova, São Paulo, n. 79, 2010.
RIBEIRO JÚNIOR, Humberto. Encarceramento em massa e criminalização da pobreza
no Espírito Santo: as políticas penitenciárias e de segurança pública do governo de Paulo
Hartung (2003-2010). Vitória, Cousa, 2012.
SANTOS, Gilvan Vitorino Cunha dos. Segregação das vítimas de sujeição criminal: lugar
de bandido é na cadeia. 2010. 124 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2010.

Você também pode gostar