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Uma antropologia do outro em mim.

O impensado conhecido de
Christopher Bollas
An anthropology of the other in me. The unthought
known of Christopher Bollas
Resumo A partir da imagem concebida por Freud, da sombra do
objeto que cai sobre o Eu, Bollas descobre uma fonte inesgotá-
vel de recurso para suas próprias ideias, desdobrando uma mirí-
ade de contribuições criativas e significativas para a psicanálise
contemporânea. Seguindo uma tradição na psicanálise voltada
para o papel do ambiente na constituição do psiquismo, Bollas
faz o retorno aos principais temas do corpo teórico clássico da
Psicanálise, propondo conceitos novos ou reanimando aqueles
já bem estabelecidos. Sem cair na solução fácil de opor as con-
cepções intrapsíquicas e intersubjetivas do psiquismo, faz um
diálogo fecundo entre elas, colocando-as em diálogo permanen-
te. Neste artigo, de caráter introdutório, apresentarei algumas
de suas concepções sobre o papel do outro na constituição das André De Martini
bases silenciosas – porém evocativas – do inconsciente em sua Instituto de Psicologia da USP
dimensão estrutural. martini.de@gmail.com
Palavras-chave Psicanálise; Bollas; Christopher; ética.

Abstract Departing from Freud’s image of the shadow of the


object that fell upon the ego, Bollas discovers an inexhaustible
source for his own ideas, unfolding a myriad of meaningful and
creative contributions to contemporary psychoanalysis. Follow-
ing a tradition in psychoanalysis that emphasizes the role of the
environment in psychic constitution, Bollas turns to the main as-
pects of classical Psychoanalysis theory, either proposing new
concepts or invigorating those already well established. With-
out committing to the easy solution of opposing intrapsychic
and intersubjective conceptions about the psyche, he rather
keeps them in a permanent and fertile dialogue. This paper, an
introductory one, presents some of his major conceptions about
the role of the other in the constitution of the silent – though
evocative – roots of the unconscious in its structural dimension.
Keywords Psychoanalysis; Bollas; Christopher; ethics.
C
omo falar de ética e um determinado período uma transformação muito importan-
autor, senão naquilo que nos afeta, te em sua vida; considera a análise mais signi-
enquanto leitores? Há, certamente, ficativa que teve na vida.
muitas formas de se pensar as nuanças e Mais tarde, durante o período do douto-
implicações éticas na prática e pensamento rado, ofereceu um curso denominado “Mad-
psicanalíticos,1 mas proponho aqui um viés ness and 20th century fiction”, que obteve
específico – o do leitor de psicanálise. Para uma grande procura por parte dos alunos,
além do que cabe ou pode o próprio autor di- dentre eles alguns que lhe pareciam psiqui-
zer sobre as implicações éticas de sua teoria camente muito perturbados, no limite de
ou prática com pacientes, há esta dimensão um adoecimento esquizofrênico. Não lhe es-
do efeito de seus escritos sobre um leitor, capou o pedido de ajuda subjacente à matrí-
ele próprio amiúde possuidor de uma prática cula no curso. Procurou então por iniciativa
com analisandos. própria o centro de saúde da faculdade, com
Sendo assim, meu propósito consiste um pedido de treinamento em psicoterapia.
não apenas em apresentar alguns aspectos Viu-se mobilizado a trabalhar psicoterapeuti-
do pensamento de Christopher Bollas, mas camente com os alunos, ao invés de apenas
fazê-lo dentro do espírito que considero em falar sobre a loucura. O inusitado pedido nes-
ressonância com o estilo desse psicanalista ta instituição encontrou um diretor disposto a
– se há aqui uma ética a ser considerada em apostar na experiência com Bollas, oferecen-
seu trabalho, ela certamente se apresenta na do-lhe um caso individual para atendimento e
experiência de leitura evocada por seu texto. acompanhamento em supervisão.
A experiência de trabalho com textos Enquanto isso, com os alunos, fazia um
desempenha um peculiar e importante pa- trabalho duas vezes por semana, o dia inteiro,
pel na história do autor, reconhecido entre e que resultou na criação de um programa de
os psicanalistas por seu estilo literário de es- formação psicoterapêutica para as áreas de
crita. Nascido nos Estados Unidos e formado humanidades, atraindo pessoas dos cursos
originalmente em História em Berkeley, Ca- de antropologia e filosofia, além de literatu-
lifórnia, completa seus estudos acadêmicos ra. Tais incursões renderam-lhe passagem por
em Literatura Inglesa em Buffalo, Nova York. uma abordagem existencial de psicoterapia,
Aproximara-se da prática clínica logo após sua característica daquele meio universitário,
graduação, em uma instituição para autistas além de supervisões posteriores em Boston,
de cunho anna-freudiano vinculada à universi- numa tradição da psicologia do Ego. Contu-
dade, como resultado de um acordo para evi- do, a restrição norte-americana em relação a
tar a prisão por negar-se ao serviço militar na graduações não “psi” no meio psicanalítico
guerra do Vietnã. levou-o a buscar sua formação psicanalítica
Na graduação, teve contato com textos junto à British Society, associando-se ao Inde-
de psicanálise “aplicada”, que o ajudaram a pendent Group.
desenvolver sua pesquisa sobre o adoecimen- Bollas descreve com um apreço especial
to psíquico da primeira geração de puritanos sua relação com a escrita nos primeiros anos
na Nova Inglaterra. Além disso, já possuía ex- como analista. Sem muito tempo disponível,
periência enquanto paciente de um analista com família e trabalhando arduamente duran-
vinculado à universidade, atribuindo a este te a semana, restavam-lhe apenas as manhãs
de domingo para escrever, tempo valioso ao
1 Além, evidentemente, dos trabalhos dos colegas
qual se dedicava com afinco. Escrevia como
que acompanham esta publicação, remeto o leitor
interessado aos trabalhos de JUNQUEIRA (2006), uma forma de pensar, a partir de problemas
COELHO JUNIOR e FIGUEIREDO (2004, 2000) e da clínica ou questões que lhe surgiam na
SOUZA (2000), a partir dos quais se encontram mente, sem ter algum direcionamento prede-
maiores referências ao tema da ética em psicanálise.
finido. Procurava fazê-lo, além do mais, de um

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fôlego só, de preferência sobre o que havia inconsciente de tal tipo de encontro, entre o
se passado naquela mesma semana, e não se estilo ou estética própria ao psicanalista e o
permitindo revisões ou lapidações posterio- evocativo mundo dos objetos em que (e pelo
res ao momento primeiro de escrita. Tão logo qual) cada um vive.
terminasse o texto, o enviava para publicação Vejamos então algumas de suas noções
em alguma revista especializada. Esse ritual centrais, e nesse movimento espero poder
de escrita tinha para Bollas uma função bas- transmitir tanto a importância dada pelo au-
tante específica, pois com isso criara uma es- tor ao papel do outro na constituição do psi-
pécie de objeto transformacional responsável quismo, quanto o efeito dialógico que seu es-
por boa parte de sua criatividade enquanto tilo de escrita evoca no leitor – da presença
analista – além de ferramenta valiosa para o e autoexposição para o testemunho do leitor
trabalho com os pacientes, ajudava-o a man- que é convocado em suas próprias experiên-
ter boa distância das tendências dogmatizan- cias. Procurarei ao máximo trazer o texto do
tes dos grupos tradicionais de formação. autor, o que necessariamente passará por um
Vemos então um clínico em formação recorte específico de minha própria leitura.
cujo percurso está longe de ser dogmático, Àqueles que ainda não tiveram oportunidade
sendo ele próprio uma espécie de estrangeiro de fazê-lo, remeto ao texto original do autor –
inusitado que busca e transita por diferentes em inglês, preferencialmente – de modo que
áreas e tradições. Como espero ressaltar ao cada um poderá avaliar por si os aspectos do
longo deste texto, Bollas coloca-se ele pró- estilo e da escrita aqui apontados.
prio como objeto a ser pensado pelo outro,
na mesma medida em que a teoria psicana- O impensado conhecido3 – forma,
lítica e prática clínica expostos a cada texto. idioma
Com isso, quero dizer que o autor não se furta O Eu, o ego, é a figura que, para Bollas,
a certa autoexposição (com os prós e os con- contém em sua dimensão mais estrutural as
tras que podem decorrer disso) para fazer fa- marcas ou vestígios da relação primitiva com
lar a teoria psicanalítica, tal como esta o afeta, o Outro. Atribui à dimensão inconsciente do
mobiliza e faz trabalhar. Trata-se de uma apos- ego um primitivo e originário papel, a partir
ta, poderíamos dizer, na presença do analista do qual se estabelece a condição idiossincrá-
enquanto personagem, um character de seu tica – um “idioma” – de cada um na vida. Há
próprio texto. Este tipo de estratégia não é in- aqui a ideia de uma “deep structure” presente
gênuo, mas algo cuidadosamente ponderado desde o início da vida na organização da men-
com vistas a um fim bastante específico. Nas te. O estatuto dessas marcas (sem dúvida tri-
palavras do autor, butárias das relações com o objeto primário)
não é da ordem do recalque, mas possuem
... em certos momentos, precisei um papel originário: congregam os aspectos
conjurar as experiências de meu
próprio self para poder escrever so- 3
Os termos e trechos reproduzidos aqui foram
bre um determinado tópico – para traduzidos livremente por mim do original em inglês,
ser informado de dentro, por assim uma vez que discordo de algumas das opções feitas
pelos tradutores das edições brasileiras. A opção por
dizer, ao invés de pensar um estado “conhecido-não-pensado”, p. ex., além de enfatizar a
específico do self através da discus- primeira parte do termo (-conhecido-), pode sugerir
são de um paciente.2 algo como um conteúdo inconsciente ‘ainda não’
pensado, o que atrapalha a compreensão do sentido
trabalhado pelo autor. Trata-se, ao contrário, de uma
Em todo caso, há seguramente uma di- dimensão inconsciente que não é a do recalque. A
mensão criativa que se beneficia do trabalho ênfase está em sua natureza estrutural, impensada,
esse “itness” em nós que, não obstante, é conhecido

2
BOLLAS ([1992]2003), p. 6. pela fecundidade de seus efeitos.

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constitucionais ou biológicos, e o resultado que se constitui a partir da relação entre es-
desse encontro é o idioma do sujeito, seu esti- sas duas coisas. O impensado conhecido diz
lo próprio de relação com as realidades inter- respeito às manifestações ou possibilidades
na e externa. de experiências que apontam para esta cons-
As formas e estruturas dos diferentes tituição, para este idioma, ainda que seja, ele
tipos de objeto criam no ego diversas moda- próprio, um idioma silencioso:
lidades ou formas de pensamento inconscien-
te, que depois ganham autonomia enquanto O impensado conhecido é uma for-
traços inconscientes no sujeito. Daí em dian- ma de conhecimento que conte-
te, as possibilidades criativas que resultam mos, baseado em nossas primeiras
dessa constituição, por sua vez, remodelam experiências do mundo de objetos.
os objetos na realidade externa, imprimindo Os primeiros sentidos na vida hu-
a marca daquele sujeito, ampliando a terceira mana, sejam traumáticos ou gene-
área entre ele e o mundo. rativos, não podem ser pensados.5
Assim, o impensado conhecido não é
constituído por representações abstratas; Bollas considera seu termo “idioma”
trata-se de “um tipo de memória constitutiva uma substituição do “true self” winnicottia-
profunda” de uma relação originária que no. Contudo, ao fazer esta tradução, trans-
pouco tem a ver, inclusive, com a mãe forma profundamente o conceito originário:
enquanto a pessoa que o paciente conhece. o ambiente, além de seu papel de suporte
Vejamos como o autor condensa essas ideias: necessário ao desenvolvimento, passa a ter
De fato, nos primórdios do self, proces- uma função constitutiva daquilo mesmo que
sos e conteúdos inconscientes são uma coisa é mais autêntico no sujeito, sendo o Outro
só. Nossa vida inconsciente se origina in ute- agora não apenas ambiente facilitador, mas
ro, derivada de nossas disposições herdadas, coautor da forma que as disposições inatas
e continua a se desenvolver através dos anos tomarão para o sujeito.
de formação ao longo da infância. A forma A ideia de autenticidade e expressão é
como somos manejados por nossos primeiros mantida, mas agora a idiossincrasia do sujei-
outros – os objetos transformacionais de nos- to está na apropriação das marcas constitu-
sa primeira infância e meninice – são codifica- tivas. Junto a isso, é fundamental ressaltar
dos em nós e se tornam parte da gramática de que Bollas não perde de vista, igualmente,
nosso ego, ou as regras para ser e se relacio- as possibilidades traumáticas e alienantes
nar que empregamos no modo como vivemos presentes neste mesmo processo. O
nossas vidas. Neste sentido, processo (ou for- impensado conhecido constitui-se numa trama
ma) é indistinguível de conteúdo.4 de complexos inconscientes que podem tanto
Nesta perspectiva, podemos considerar propiciar quanto impedir o enriquecimento
a análise enquanto ferramenta privilegiada da vida psíquica por meio de experiências
para que o sujeito possa se reconhecer em seu generativas do self com o mundo de objetos.
idioma impensado. Ela se faz então enquanto Poderíamos dizer que Bollas faz um laço
possibilidade narrativa do sujeito para com o entre id e mundo externo, enquanto co-cons-
analista (em suas transferências) e para consi- tituintes recíprocos. O impensado conhecido,
go mesmo (tomar-se enquanto objeto). Mas dada sua origem, instaura um movimento in-
aquilo que seria o “mais autêntico” do sujeito finito para o sujeito de busca por objetos no
não está nem nas marcas advindas de fora, do mundo que possam prover experiências gene-
outro, nem nas disposições inatas (seja qual rativas para o self. E o entrelaçamento que re-
for o papel biológico do corpo), mas em algo sulta deste movimento não é apenas expres-
4
(BOLLAS, 2008a, pg. xii). 5
(Idem, Ibidem, p. 148).

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são de algo já dado no interior do ego, mas O self como um palco – o sonho, os
acima de tudo busca pela transformação de si: humores e o complexo de Édipo
Determinados elementos do que se cha-
Se o idioma é, então, o isso com o ma a personalidade de alguém (p. ex., a forma
que nós nascemos, e se seu prazer de caminhar, a maneira de sentar, os ritmos
é poder se elaborar através da es- no contato com as coisas e as pessoas – rela-
colha de objetos (que é mais uma ções que envolvem espaço e tempo) podem
inteligência da forma do que uma ser formas de como o sujeito toma o próprio
expressão de conteúdos internos), self, reflexos ou reproduções do “sistema de
seu trabalho dá de cara com a es- cuidado materno”, internalizados sob forma
trutura dos objetos que o transfor- de um “idioma espaço-temporal” (BOLLAS,
mam, através do que ele ganha pre- 1987, p. 46). O self, para o autor, longe de ser
cisamente seus conteúdos internos. uma figura unitária e coesa, reflete uma es-
Este embate dialético entre a forma trutura multifacetada, o que permitirá a cada
humana e a estrutura do objeto é, sujeito estados diferenciados da experiência
no mais das vezes, uma alegria de de si. Assim, no que diz respeito à constitui-
viver, conforme somos alimentados ção do self, a ênfase recai nos mecanismos de
pelo encontro.6 cisão – o que não deve ser tomado necessaria-
mente como patológico.
Retornaremos mais adiante aos aspec- Utiliza o termo “complexo” para defi-
tos “generativos” do impensado conhecido, nir o aspecto plural do self – em oposição ao
assim como ao “mundo dos objetos” que nos “simple self”, que corresponderia de certa
evoca, para que possamos aprofundar a com- forma ao “Eu coerente” freudiano. Em um es-
preensão do impensado conhecido. Por ora, tilo de pensar muito próximo ao de Fairbairn,
antes de passarmos ao tema seguinte, vale retoma a experiência onírica como meio pri-
a pena uma observação sobre a questão da vilegiado de observação das relações do self
linguagem, e sua relação com o idioma, como consigo mesmo. No sonho, somos atores
concebido pelo autor. para um outro, um otherself que, não obstan-
Bollas considera a existência de um idio- te, faz parte de nossa “estrutura profunda”:
ma materno que sucede a relação primária, Quando adentro o mundo onírico eu
cujo estilo reflete uma estética de cuidado es- sou desconstruído, e daquele que contém o
pecífica daquela mãe. Se o manejo (handling) mundo interno em minha mente sou transfor-
do objeto primário permite ao bebê a consti- mado naquele que se experimenta dentro da
tuição de um idioma próprio, isso só é possí- dramaturgia do outro. [...] Estar num sonho
vel porque ele próprio possui um idioma. As- é, portanto, uma contínua reminiscência de
sim, antes da linguagem e das possibilidades ter estado dentro do mundo materno quando
de simbolização, propriamente, há uma espé- éramos, em parte, uma figura receptiva envol-
cie de “gramática” fundante, a partir dessa vida por um ambiente abrangente. De fato, a
estética de cuidado mencionada, um tipo de produtiva intencionalidade que determina o
sinfonia sensorial que marca e oferta os rit- sonho em que nos encontramos e que nunca
mos necessários para a constituição da uma revela a si mesma (ou seja, ‘onde está o so-
linguagem, para que as vocalizações cifradas nhador que sonha o sonho?’) estranhamente
do bebê possam ser transformadas e adquirir recria, em minha opinião, a relação do infante
sentido compartilhado. Até que o bebê seja com o inconsciente materno [...]7
capaz de adentrar o universo da palavra, ele A estrutura do ego, seu idioma, ressurge
habitará o psicossoma materno. no sonho como base para diversos elementos

6
(Idem, [1992]2003, p. 59). 7
(Idem, ibidem, p. 14).

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outros, como as representações pulsionais. algum aspecto do ambiente parental primiti-
Ao longo da vida continuaríamos a reencenar, vo. Trata-se de uma parte do self cindida que
seja no sonho, seja nas relações com o “mun- passa a ter valor de objeto.
do dos objetos”, aspectos da relação primiti- Em contraste com o papel castrador ou
va do self com o outro e com o ambiente. Tais assediador da instância superegoica, Bollas
momentos são considerados por Bollas de ex- retoma situações de holding que o sujeito
trema valia para o sujeito, na medida em que provê para si próprio, quando tem condições
representam uma tentativa de recriar na atu- para isso: dá o exemplo do pensar ou do di-
alidade – ou, às vezes, de buscar pela primeira álogo interno que realizamos em situações
vez – núcleos de experiências do self funda- cotidianas, com objetivos de nos acalmar-
mentais para o desenvolvimento emocional. mos, nos organizarmos, de lidar com desejos
Além do sonho, o autor dá como exemplo ou ansiedades. Nessas situações, tomamos o
os moods, ou humores (o que em português próprio self como algo a ser cuidado, numa
também chamaríamos de estados de espírito), tarefa de self management – fazemos uma
como evocação de estados primitivos do self. espécie de monólogo interno com frases do
Alguns humores seriam representantes tipo: ‘ah, está tudo bem’, ‘não foi você quem
de uma quebra no desenvolvimento do sujei- errou’, ‘que bom que as coisas terminaram
to, e seu ‘retorno’ representaria um tipo de bem’, ‘da próxima vez acerto’ etc.
protesto ou preservação desse ponto. Consi- Gostaria então de finalizar este ponto
dera que os humores podem ser de dois tipos. apresentando um aspecto das considerações
Os “generativos” têm a função de elabora- do autor sobre o complexo de Édipo, na me-
ção, criam uma espécie de ambiente emocio- dida em que, tal como os sonhos e os humo-
nal que serve de palco para uma experiência res, nos coloca diante da tarefa de elaboração
profunda e silenciosa do self; não há, neces- intrapsíquica daquilo que a excede por exce-
sariamente, qualquer tipo de ideia ou pensa- lência. O aspecto complexo da estrutura do
mento vinculado aí, e a ênfase está na própria ego, este self complexo encontra na resolução
experiência vivida pelo self. Na clínica, tais da questão edípica um de seus pilares funda-
momentos devem ser contidos pelo analista mentais, pois é o momento em que a criança é
sem que ele procure interpretá-los com fins a confrontada com aquilo que, além de remeter
‘tirar’ o paciente desse estado; o humor deve à internalização da lei e à castração, aponta
ser atravessado pelo paciente. Curiosamente, para esta dimensão fundamental em que o su-
há certa intuição no conhecimento popular de jeito é descentrado em seu próprio self:
que um sujeito, quando está ‘naquele humor’,
não deve ser importunado. Assim, a criança edípica aprende
Já os humores “malignos” ou “perni- que é seu destino ter nascido numa
ciosos” têm por objetivo forçar no outro família específica e, principalmente,
alguma tarefa psíquica, numa atividade sub- ser um sujeito que possui ou con-
jugadora. Aqui o mecanismo em questão é o tém em sua própria mente um mun-
de identificação projetiva, e a intenção é me- do de objetos, um grupo de percep-
ramente evacuativa. tos, introjetos, e identificações que
Em ambos os casos, o que está em jogo aprofundam a percepção de sua
é o retorno de um “objeto conservativo”, que própria complexidade e problema-
é um estado peculiar do self, congelado no tizam radicalmente a autoridade de
tempo, e que aponta para uma relação passa- sua voz narrativa. Mas se a desco-
da com o objeto que não pôde ser plenamen- berta infantil da complexidade do
te compreendida, simbolizada, mas que fora ser humano radicaliza a perspecti-
marcante e definidora do ego – representa va, e em si mesma usurpa a estru-
uma contínua negociação do self infantil com tura patriarcal, ela a remete a um

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novo lugar, inaugurando uma nova bom pôde ocorrer. Na aquisição da lingua-
ordem que deriva deste descentra- gem, essa herança e ligação com o objeto
mento da estrutura psíquica.8 transformacional pode não acontecer de for-
ma adequada, tornando a linguagem inerte,
O apreço de Bollas pela tragédia de Só- morta enquanto expressão do mundo interno
focles está, acima de tudo, em apontar a ne- da criança. Trata-se, então, de um processo
cessidade do ser humano ter que dolorosa- de dissociação com a linguagem, o que pode
mente reconhecer sua impotência diante do se manifestar, por exemplo, no estabeleci-
‘destino’ – ser sentenciado a viver num mun- mento de personalidades esquizoides.
do complexo que o precede na existência. Para Bollas, o valor e importância do ob-
jeto transformacional transcendem inclusive
O objeto transformacional a própria existência da mãe enquanto obje-
As atividades concretas de maternagem to de amor, ainda que, paradoxalmente, seja
têm um caráter organizador das experiências dela que se trate. Isto não exclui ou se confun-
interna e externa, e disso se beneficia o ego de com as experiências de satisfação libidinal
em constituição do bebê. A importância da com a mãe, quer se trate da mãe fragmentada
figura materna, aqui, está muito mais em sua enquanto objeto das pulsões parciais, quer se
função de processo do que em seu valor de trate da mãe objeto total de Eros. O objeto
objeto. Este tipo de experiência vivida pelo materno, antes de se constituir como tal na
self do bebê, neste momento, poderá refletir- vida psíquica do bebê (ou seja, quando então
-se na vida adulta enquanto busca por algo (re- algum grau de discriminação já é possível), é
ligião, ideologia, um parceiro(a), um lugar, um experimentado enquanto objeto transforma-
evento etc.) que transforme o self: um “obje- cional. O próprio pensamento e linguagem
to transformacional”. Desse ponto de vista, a são marcados por esta experiência, e junta-
gratificação libidinal do objeto não é o aspecto mente com as possibilidades de relação com
mais importante. Em todo caso, nessa busca o mundo dos objetos, constituem os veícu-
espera-se mais do que o encontro com um los de reedição permanente da experiência
objeto idealizado: em um nível, há o reconhe- transformacional, na busca por realização de
cimento de uma deficiência na experiência do aspectos do self.
ego. Bollas relaciona este último aspecto com
o tema da falha básica, cf. BALINT (1968). A confiança no trabalho de escuta
A mãe suficientemente boa é aquela que, O impensado conhecido, o idioma e
enquanto um objeto transformacional, ma- a experiência do self são de certa forma
nipula o ambiente para que ele corresponda ‘agenciados’ através do trabalho dos sonhos,
às necessidades humanas, ainda que isso não dos humores e das relações com o outro e
impeça que experiências de frustração sejam com o mundo de objetos que é extensão sua.
internalizadas pela estrutura do ego. Sendo Sendo assim, Bollas concebe o trabalho clíni-
assim, a busca por objetos transformacionais co, como poderíamos logo imaginar, necessa-
na vida adulta é uma tentativa de restabelecer riamente movido pela atuação permanente
alguma simetria entre self e ambiente, ou en- de tais elementos, e isso não apenas do lado
tão recriar as falhas vividas nessa simetria. do analisando. Não há neutralidade possível
A linguagem ocupará um importante pa- quando falamos de escuta, que é sempre mo-
pel, nesse sentido. Pôr algo em palavras signi- vida em alguma medida pelos desejos e pro-
fica – quando isso é bem-sucedido – que um cessos inconscientes do analista:
processo transformacional suficientemente
Não importa o ângulo pelo qual
abordemos o assunto, o analista
8
(Idem, ibidem, p. 238). nunca é neutro quando escuta um

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sonho, e seja qual for a quantida- experiências potencialmente transformado-
de de associações que o sonhador ras do self, o que necessariamente exigirá pe-
faça, cada analista é prolífico, com ríodos de ignorância quanto ao que está acon-
suas próprias associações internas tecendo na análise. Haverá certa “intuição”
movendo-se numa complexa sin- operando por determinados períodos, sem
fonia psíquica de sentimentos, fi- que saibamos com clareza o que se passa em
xações de imagens, decifrações de termos dos movimentos transferenciais; trata-
palavras, recordações, avaliações -se de um valioso recurso para o surgimento
interpessoais, escuta de estórias, e de elementos significativos para o trabalho
intervalos meditativos.9 analítico: “O que é essa habilidade que se de-
riva da coesão progressiva de uma estrutura
Bollas retoma o termo meshwork, mental que se configura para pensar uma ideia
cunhado por Freud, em que o inconsciente é ainda não articulada?”10, ao que responde,
descrito como uma infinita rede de onde sur-
girão os desejos e os pensamentos. Tal como Talvez o sentido de intuição seja nos-
aprendemos a confiar na atenção igualmente sa experiência pré-consciente de um
flutuante acompanhando as livre associações trabalho intencional do ego, levan-
do analisando, nesse contexto clássico, é pre- do-nos a conscientemente autorizar
ciso, além disso, prestar contas ao encontro certas formas de investigação pelo
de idiomas que se dá necessariamente na si- pensamento que não são conscien-
tuação transferencial-contratransferencial, temente lógicas, mas que podem ser
ainda que grande parte dele permaneça in- inconscientemente produtivas.11
consciente. Bollas aproxima suas concepções
da reverie de Bion, com a diferença de que Em todo caso, somos obrigados no tra-
para ele o que está em jogo é menos uma fun- balho clínico a lidar com a limitação de nossa
ção específica do que uma dimensão sempre capacidade de apreensão e interpretação do
presente de ligação entre objetos externos e material inconsciente, assim como de aspec-
impensado conhecido. tos fundamentais da experiência transferen-
Há esta interessante ideia de distintos cial à qual nos expomos. Neste sentido, há
usos da livre associação do paciente – estru- uma dimensão fundamental da vida psíquica
tural, com a transferência, com as relações que coloca limites intransponíveis à tradução,
de objeto, com a narrativa e o trabalho de no âmbito intersubjetivo, do que se passa en-
representação; estes são descritos por Bollas tre analista e analisando.
como diferentes “vetores de objetificação” Feita a ressalva de que parte significativa
(BOLLAS, [1992]2003, p. 105) (normalmente do idioma de cada sujeito é “a-hermenêutica”12
associados com as distintas “escolas” de psi- (no sentido de que não se trata de um conte-
canálise) que estão potencialmente disponí- údo sobre o qual tivéssemos que decidir se
veis ao trabalho clínico. é ou não simbolizável), e que é preciso abrir
E ainda que a maior parte do trabalho mão de quaisquer pretensões de substituição
conjunto dos idiomas subjetivos da dupla das arestas intrapsíquicas por um discurso in-
analítica permaneça impensada, aquilo que tersubjetivo que lhe substituísse eficazmente,
efetivamente puder ser pensado será absolu- Bollas faz uma peculiar retomada da teoria
tamente vital para o prosseguimento do pro- das relações de objeto, para fazer falar e pro-
cesso analítico. O que é evocado aqui é o valor liferar a dimensão do impensado conhecido.
generativo das malhas que constituem o im-
pensado conhecido, sua capacidade de gerar 10
(idem, ibidem, p. 89).
11
(idem, ibidem, p. 90).
9
(Idem, ibidem, p. 109). 12
(idem, ibidem, p. 58).

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O Outro, portanto, seja no papel do ana- cos às coisas? Pois isto não se dá por uma in-
lista, seja no papel das pessoas e objetos sig- tenção consciente, mas uma profunda instan-
nificativos para cada sujeito, é essa figura in- ciação do self no mundo dos objetos”.13
dispensável pela qual o idioma subjetivo pode Esta “subjetivação projetiva da
ganhar vida mental e gerar experiências ne- realidade”14 acontece não apenas por um
cessárias ao self – experiências que, por sua movimento projetivo do ego, mas também
vez, operam e modificam o mundo dos obje- por certo “acaso” de encontro, quando en-
tos, imprimindo-lhe o estilo ou marca idiossin- tão o objeto nos evoca algo, por sua própria
crática daquele sujeito. Vejamos como Bollas, característica e estrutura:
através de seu conceito de “objeto evocati-
vo”, põe em evidência o trabalho psíquico que Num certo sentido, somos interme-
se realiza e é incitado pela relação presente diários, envolvidos na mútua afeta-
com o mundo de objetos. ção entre nosso idioma e seus obje-
tos subjetivos. Algumas experiências
O objeto evocativo do self resultam tanto da ação das
Vimos que o “self complexo”, por sua coisas sobre o sujeito quanto do uso
própria estrutura, engendra inúmeras situa- que o sujeito faz do objeto, porque
ções em que o “self simples” (perspectiva ou conforme nos movemos através do
eixo narrativo do ego), é submetido a experi- espaço e tempo muitas coisas sur-
ências que percebemos como envolventes da gem por acaso (como objetos alea-
totalidade do eu. Também vimos que o impen- tórios) e propiciam uma unidade de
sado conhecido comporta os vestígios da rela- experiência em nós que estava, por
ção com o outro, aspectos da estética de cui- assim dizer, contida no real.15
dados que são internalizados e transformados
continuamente – são mantidos vivos, portan- Enquanto um conceito, o objeto evoca-
to –, a partir do trabalho e da ação do id. Con- tivo traz para a teoria das relações de objeto
tudo, é preciso ter em mente que a importân- uma perspectiva diferenciada quanto ao papel
cia atribuída por Bollas ao outro não deve ser do outro, uma vez que este passa a contar não
restringida aos primórdios do desenvolvimen- apenas em seu papel mítico ou fundante na
to emocional, nem tampouco aos vestígios história ou no desenvolvimento do sujeito, mas
das relações de objeto no sujeito – é preciso principalmente em sua dimensão presente no
atentar para as transformações e evocações trabalho psíquico – seja ela concreta, seja na
que se dão no contato do impensado conhe- fantasia, na memória etc. O Édipo de Sófocles,
cido com o mundo dos objetos e das relações por exemplo, possui para Bollas uma potência
transferenciais na experiência presente. evocativa rara, conseguindo atingir aspectos
O self é transformado e tomado como viscerais da experiência humana:
objeto não apenas no sonho, mas na relação
Sófocles constrói um drama que
cotidiana com os objetos, lugares, pessoas
evocará de dentro da audiência
etc. com os quais o sujeito se relaciona. O au-
uma densa trama de associações
tor fala das situações de ‘cair no sono’ (to fall
internas tão sutis e complexas que,
asleep) ou ‘cair nos encantos amorosos’ (to
conforme elas atuam sobre a men-
fall in love) em que o self é submetido (‘objeti-
te, convidam o agudo trabalho do
ficado’) num ambiente composto pelo objeto
ego a processá-las.16
e pelo “self complexo”. Self e objetos encon-
tram-se numa relação permanente de subje-
tivação/objetificação, em que partes do self
13
(idem, ibidem, p. 13).
14
(idem, ibidem, p. 52).
são postas em diálogo, através dos objetos: 15
(idem, ibidem, p. 21).
“Como nós atribuímos nossos estados psíqui- 16
(idem, ibidem, p. 232).

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Tais considerações, contudo, tornam casual, nem tampouco consciente, o que evi-
necessário o aviso sobre a natureza incons- dencia um tipo de ligação com os complexos
ciente e não tradutível, em última análise, das inconscientes que não é pela via do recalque.
relações entre o idioma pessoal e o mundo A separação destes conteúdos da cons-
evocativo dos objetos: ciência, portanto, não tem a ver com as neces-
sidades da censura, mas sim com as necessi-
Posso retraçar algumas de minhas dades de elaboração do mundo interno, suas
pegadas psíquicas, e uma novela conjugações generativas e trabalho de elabo-
favorita me permite detectar uma ração das marcas, fantasias, afetos e traços
parte de seu sentido inconscien- herdados: enfim, o “desenvolvimento” do
te. Por mais interessante que seja, idioma pessoal. Grande parte dos desenvol-
trata-se da exceção: o mais do que vimentos propostos por Bollas apoia-se nes-
escolhemos para processar o self é te conceito de um inconsciente “receptivo”,
a-hermenêutico.17 por meio do qual aspectos silenciosos do self
poderão encontrar meios de transformação e
Portanto, no que diz respeito ao traba- experiência no mundo externo.
lho clínico, esta é uma dimensão que tem mais
a ver com o manejo do que com a interpreta- O inconsciente receptivo e a
ção, propriamente falando. Há aqui uma con- generatividade
cepção bastante específica de inconsciente, Bollas relaciona o inconsciente em suas
e muito do que descreve o autor não poderia dimensões de repressão e recepção com, res-
ser explicado a contento em termos do recal- pectivamente, o nome do pai (ou a cultura,
que ou da cisão. o superego) e a relação primária mãe-bebê.
Bollas sugere então um mecanismo Assim, além do inconsciente do conteúdo
que seria contraparte da repressão, um tipo reprimido (descritivo) e de seus mecanismos
de caminho para o inconsciente que não tem e instâncias (dinâmico), é preciso considerar
a ver com a lei e o recalque, mas antes com a percepção, as organizações e as comuni-
um mecanismo regido por um princípio femi- cações em seus aspectos inconscientes. São
nino, de gestação, incubação, impregnação, elementos absolutamente fundamentais na
etc., pelo qual os conteúdos são “recebidos” clínica, sem os quais o método psicanalítico
pelo inconsciente. fica reduzido a certo cacoete em torno das
Núcleos de experiência do self, enquan- questões mais ortodoxas voltadas para a se-
to aspectos do impensado conhecido, gera- xualidade, os mecanismos de defesa, a agres-
riam no sujeito a ‘busca’ por objetos e expe- sividade etc.
riências no mundo externo ou interno que Nesse nível da recepção inconsciente, é
atendessem a suas necessidades de elabo- possível pensar em categorias e ordenações
ração. Por exemplo, podemos considerar os nos níveis do corpo, afetos, discurso, som,
sonhos, dentro dessa perspectiva, como uma olhar – estruturas psíquicas diversas que se-
forma de pensar, como algo que intriga e faz riam reconhecidas pelo inconsciente do analis-
trabalhar a consciência, o que seria paradoxal ta (BOLLAS, 2008a, p. 29), num tipo de comu-
com a função da elaboração onírica de escon- nicação de “articulações inconscientes”. Esta
der, ocultar. E, de fato, há na teoria freudiana dimensão não se encontra à parte da dimen-
dos sonhos um intrigante aspecto retomado são do trauma, mas Bollas a descreve como
por Bollas – a escolha dos resíduos mnêmicos um tipo que se caracterizaria pela consonân-
que servirão ao trabalho onírico como corre- cia – apesar de traumática – com o idioma do
latos de aspectos do desejo. Tal escolha não é Eu. Podemos deduzir, portanto, que mesmo
os traumas podem ser tanto ‘egodistônicos’
(idem, ibidem, p. 58).
17
quanto ‘egosintônicos’, por assim dizer. Em-

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bora, neste caso, a ressonância seja com a di- com vistas a nutrir tais constelações
mensão inconsciente e estrutural do Eu. inconscientes. Os conteúdos do
Para o trauma “generativo”, ele usa o ter- recebido constituem então o núcleo
mo em latim “genera”, plural de genus, gêne- dos genera que, assim como o re-
ro. “Em essência, os genera são, num primeiro calcado, retornará à consciência,
momento, as protonucleações herdadas no mas no caso dos genera enquanto
idioma de qualquer criança [...]”18; o termo, atos de enriquecimento do self, ao
aqui, serve à descrição do princípio feminino invés de partes temporariamente
de gestação, incubação ou força geratriz que libertas do calabouço.20
caracteriza o inconsciente em sua dimensão
de recepção e criação. Assim, abre a perspecti- Vemos, assim, que as dinâmicas que se
va para diferentes destinos a partir da relação estabelecem entre o idioma, o impensado
com o outro, que é sempre traumática: conhecido, o Outro, e o mundo cultural com-
partilhado, constituem uma força geratriz de
Se o trauma, na sequência, é simbo- diferenciação e criação de compromissos e
licamente elaborado (no discurso, embates cuja perspectiva é um movimento in-
na pintura, na ficção, etc.), o objeti- cessante de subjetivação/objetivação do self
vo pode ser o de evacuar seu efeito no mundo.
perturbador através do trabalho da
repetição e deslocamento, ao pas- Considerações finais
so que os genera simbolicamente Com os complexos generativos, encerro
elaborados criam novas visões da a exposição daqueles conceitos que consi-
realidade que, embora angustian- dero mais significativos na exposição para o
tes, constituem o prazer das cria- leitor que está pela primeira vez entrando em
ções do ego.19 contato com Bollas. Procurei ressaltar o papel
atribuído ao Outro e as implicações – éticas,
Há aqui uma importante correlação en- sempre – que tal contato evoca. A partir, prin-
tre forma e criatividade, que remete às des- cipalmente, da tradição da teoria das relações
crições winnicottianas da alegria que o sujeito de objeto e de Freud, mas por vezes também
experimenta ao sair de um estado de não in- da psicologia do Ego e de Lacan, Bollas dese-
tegração para chegar a uma forma organiza- nha um percurso criativo de retomada e apro-
da. Outra maneira de distinguir os genera dos priação da teoria psicanalítica, conforme seu
traumas que não se elaboram é a caracteriza- próprio idioma. Além dos conceitos apresen-
ção destes últimos pela repetição, enquanto tados, vai criando uma linguagem e uma infi-
os genera se caracterizam pela capacidade de nidade de noções que dialogam e provocam
transformação e criação de diferenças: aquelas já mais bem estabelecidas no discur-
so psicanalítico.
Assim como a ideia recalcada, es-
Enquanto leitor, encontrei-me por vezes
tas ideias, palavras, imagens, ex-
questionando a utilidade de se criar novos ter-
periências, afetos, etc., são cons-
mos para fenômenos clínicos que não pare-
teladas em áreas mentais e então
ciam diferir muito de outros já bem descritos
começam a perscrutar o mundo da
por outras teorias, mas invariavelmente aca-
experiência em busca de fenômenos
bava convencendo-me da fecundidade das
relacionados a tal trabalho interno.
descrições feitas por Bollas. Seja por meio de
De fato, elas possivelmente podem
seus exemplos clínicos, das anedotas de sua
procurar experiências específicas
(idem, ibidem, p. 70).
18

(idem, ibidem, p. 69).


19 20
(idem, ibidem, p. 74).

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própria experiência cotidiana, ou das interlo- que se diferencia da identificação projetiva), e
cuções com a literatura ou a estética, vi-me con- que pode envolver desde conteúdos mentais,
vencido da utilidade de tal estratégia: não por passando por processos afetivos e estruturas
uma argumentação lógica ou epistemológica mentais, até o próprio self; e ainda a figura
que nos convencesse “à força”, mas pelo tes- do trissexual, do ódio-apaixonado, do adoeci-
temunho de um fazer psicanálise em gestação. mento normótico etc. etc. São descrições que
Poderia ainda falar sobre a figura da evocam em nós, leitores, a necessidade de de-
“violência inocente”, dos ataques ao nível in- bater e questionar, dialogando e procurando
tersubjetivo, em que a “[...] negação da reali- nossas próprias experiências, seja para nos
dade entrou agora o campo das inter-relações contrapormos, seja para nos identificamos e
num nível dinâmico, conforme o sujeito insis- nos alegramos com a descoberta de um pen-
te que o outro suporte uma percepção inde- samento ainda não formulado por nós mes-
sejada”21, ou ainda sobre os “estados fascistas mos. Em todo caso, paro por aqui deixando
da mente”, o “vácuo moral” na dimensão psí- ao leitor o convite de trilhar, ele próprio, seu
quica daqueles que perpetraram genocídios, posicionamento diante do texto e idioma de
ou ainda da “introjeção extrativa” (processo Christopher Bollas.

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(idem, ibidem, p. 168).


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Dados do autor:

André De Martini
(Instituto de Psicologia da USP)
Psicanalista, Doutorando do Instituto de Psicologia da USP

Recebido: 06/09/2011
Aprovado: 24/09/2012

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