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ISSN 1518-2983

Principia
Caminhos da Iniciação Científica
Universidade Federal de Juiz de Fora
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Universidade Federal de Juiz de Fora

Volume 15 - Janeiro / Dezembro 2011

Principia
Caminhos da Iniciação Científica

ISSN 1518-2983
Principia Juiz de Fora v.15 1-132 2011
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1. Pesquisa - Periódicas

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Vice-reitor: Prof. Dr. José Luiz Rezende Pereira
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Prof.º Dr. Cláudio Galuppo Diniz
Prof.º Dr. Marcelo Lobosco
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Prof.º Dr. Pablo Zimmermann Coura
Sumário

Editorial......................................................................................................................................... 9

Atividade imunomodulatória do Mycobacterium bovis-BCG em modelo


murino de alergia pulmonar / Immunomodulatory activity of Mycobacterium
bovis-BCG in a murine model of allergic asthma............................................................ 11-17
Nathália Stela Visoná de Figueiredo, Chrystian Junqueira Alves, Ana Cláudia Carvalho Gouveia, Alessa Sin Singer
Brugiolo, Caio César de Souza Alves, Jacy Gameiro, Henrique Couto Teixeira, Ana Paula Ferreira

Aspetos imunológicos e histológicos de camundongos desafiados


experimentalmente com linhagens de Bacteroides fragilis selecionadas em
concentrações subinibitórias de drogas antimicrobianas / Immunological
and histological aspects of experimental mice challenged with selected
strains of Bacteroides fragilis in subinhibitory concentrations of
antimicrobial drugs.............................................................................................................25-36
Mariana Silva Lopes Neves, Michele Cristine Ribeiro de Freitas, Ana Paula Ferreira, Jacy Gameiro, Cíntia Marques
Coelho, Vânia Lúcia da Silva, Cláudio Galuppo Diniz

Análise de Campos Permanentes pelo Acoplamento Iterativo MEF-MEC/


Permanent Fields Analysis by the Iterative FEM-BEM Coupling.................................. 37-46
Henrique de Oliveira Caiafa Duarte, Delfim Soares Júnior

Despacho de unidades termoelétricas considerando a rede de gás e a rede


elétrica / Thermoeletric units dispatch considering gas and eletrical
networks............................................................................................................................... 47-55
Lourival B. Castro, Murilo L. Rodrigues, Prof. Dr. Edimar J. de Oliveira

Zoneamentos de áreas susceptíveis a ocorrência de escorregamentos na


bacia do rio Paraibuna / Zoning of the percentage of high and very high
susceptibility to the occurrence of landslidings in towns of hydrographic
basin of Paraibuna river...................................................................................................... 57-64
Rosana Lino de Faria, Deborah Cristina Gomes de Oliveira, Ricardo Tavares Zaidan

A prática da reutilização nas sociedades ocidentais da atualidade: uma


pesquisa sobre o comércio de roupas usadas na cidade de Juiz de Fora / The
practice of reutilization in Western societies today: a research on
trade in used clothing in the city of Juiz de Fora......................................................... 65-72
Ciro de Souza Vale. Ivianny Luíza Gonçalves Crescêncio, Lorena Ribeiro Ferreira

O Mutualismo e sua Contribuição para a Expansão da Cidadania no Brasil /


The Mutualism in the Expansion of the Public Authority and Citizenship in
Brazil..................................................................................................................................... 73-78
Antonio Gasparetto Júnior, Cláudia Maria Ribeiro Viscardi

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 7-8, jan./dez. 2011


O espaço urbano de Juiz de Fora e a dinâmica regional contemporânea / The
urban space of “Juiz de Fora” an the contemporary Regional Dynamics.....................79-84
Regis Francisco Rafael Silva, Watuse Mirian de Jesus Geraldo, Maria Lucia Pires Menezes

Educação bilíngue: processos de aquisição da linguagem e capacitação de


profissionais especializados. / Bilingual Education: acquisition language
processes and preparation of specialized professionals.................................................85-92
Waldyr Imbroisi Rocha,Tatiane Abrantes da Silva,Ana Cláudia Peters Salgado

A Idade do Serrote, de Murilo Mendes: A escrita da memória como rizoma


textual / Murilo Mendes’ A Idade do Serrote: The self writing as a textual
rhizome..................................................................................................................................93-98
Angie Miranda Antunes, Fernando Fiorese

Memória-sonho: O real que se escolhe na formação da obra de murilo mendes


Political and Poetical Practices - A Study of Friendship in Murilo Mendes
as an Strategy of Survival in Diverse Worlds...............................................................99-105
Felipe Moratori Pires, Terezinha Maria Scher Pereira

A emergência da cidadania nos Metaversos / The emergence os citizenship in


Metaverses..................................................................................................................... 107-115
Maria Tereza Carneiro Umbelino, Francisco José Paoliello Pimenta

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 7-8, jan./dez. 2011


Editorial

A Revista Principia: Caminhos da Iniciação Científica, em seu quarto volume em edição online,
é importante instrumento de divulgação da pesquisa acadêmica realizada com o envolvimento de
discentes na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Seu foco de atuação é centrado na divulgação
de resultados de pesquisas nas diversas áreas do conhecimento vinculadas aos Programas de Iniciação
Científica gerenciados pela PROPESQ.
Anualmente, a UFJF realiza o Seminário de Iniciação Científica quando são feitas apresentações
orais e em painéis dos trabalhos desenvolvidos. Os trabalhos que são premiados durante o Seminário
são publicados na Revista Principia, editada pela Editora da UFJF, que tem o relevante papel de expor
à comunidade científica os avanços da pesquisa no âmbito do ensino de graduação, como produto da
integração do ensino e da pesquisa.

Marta d´Agosto
Pró-Reitora de Pesquisa
Márcio Tavares Rodrigues
Coordenador de Programas e Pesquisa

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 9, jan./dez. 2011


ATIVIDADE IMUNOMODULATÓRIA DO
MYCOBACTERIUM BOVIS-BCG EM MODELO MURINO
DE ALERGIA PULMONAR
Nathália Stela Visoná de Figueiredo*
Chrystian Junqueira Alves*
Ana Cláudia Carvalho Gouveia**
Alessa Sin Singer Brugiolo**
Caio César de Souza Alves**
Jacy Gameiro***
Henrique Couto Teixeira***
Ana Paula Ferreira****

RESUMO
A asma alérgica é uma doença pulmonar inflamatória crônica decorrente sobretudo de uma res-
posta imunológica alérgeno-específica tipo T helper 2 (Th2). Resultados de estudos em modelos
experimentais têm reforçado a hipótese de que determinadas micobactérias, incluindo o Myco-
bacterium bovis-BCG, são capazes de modular a resposta imune alérgica. No entanto, devido
à complexidade da resposta imunopatológica da asma alérgica, os mecanismos de ação do BCG
são pouco conhecidos. Desta forma, o objetivo deste trabalho foi estudar o efeito da adminis-
tração intranasal de Mycobacterium bovis-BCG sobre a modulação da resposta imunológica
em um modelo murino de alergia pulmonar experimental (APE), induzido por ovalbumina
(OVA). Os resultados obtidos demonstraram que o tratamento com BCG reduziu o infiltrado
inflamatório pulmonar, promovendo uma diminuição significativa no número total de células e
eosinófilos presentes no lavado broncoalveolar (LBA) dos animais sensibilizados/desafiados com
OVA. Estes animais também apresentaram redução nos níveis séricos de IgE específica anti-
-OVA, enquanto os níveis de IFN-g e IL-10 no LBA permaneceram inalterados. Além disto, os
linfócitos provenientes do pulmão dos animais alérgicos tratados com BCG apresentaram menor
expressão de CD28 e CTLA-4, quando comparados aos animais alérgicos não tratados. Estes
dados confirmam a capacidade do Mycobacterium bovis-BCG em reduzir a resposta imune
alérgica previamente estabelecida, sugerindo que um dos mecanismos envolvidos nesta imuno-
modulação esteja relacionado à redução da expressão de moléculas coestimulatórias, em uma via
independente da indução de uma resposta imune de perfil Th1.

* Bolsistas do Programa de Iniciação Científica PIBIC/CNPq da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.


** Doutorandos colaboradores da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.
*** Professores colaboradores da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.
**** Professora Orientadora do Instituto de Ciências Biológicas - UFJF
Endereço Profissional da Professora Orientadora:
Laboratório de Imunologia – ICB. Universidade Federal de Juiz de Fora. Campus Universitário, Martelos. CEP 36036-330
Juiz de Fora – Minas Gerais – Brasil. Telefone/Fax: (32) 2102-3214. Email: ana.paula@ufjf.edu.br

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011


Palavras-chave: asma alérgica, Mycobacterium bovis-BCG, perfil Th1/Th2, células T regulató-
rias, modulação imunológica.

Introdução

A asma é uma doença pulmonar inflamatória crônica, caracterizada principalmente


pelo desenvolvimento de uma resposta imunológica alérgeno-específica tipo T helper 2 (Th2)
(KÖNIGSHOFF et al.; BRIGHTLING et al., 2011). A prevalência da asma alérgica tem aumentado
consideravelmente nas últimas décadas, sendo que alguns autores, defensores da Hipótese da Higiene,
atribuem este fato aos hábitos de higiene da vida moderna, aliados ao uso excessivo de antibióticos e
aos amplos esquemas de vacinação (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2007). De acordo com
essa hipótese, a interação entre o sistema imunológico e o ambiente microbiano é fundamental para
o desenvolvimento adequado de mecanismos imunorregulatórios, cruciais para o equilíbrio entre as
respostas imune adaptativas mediadas por linfócitos T helper 1 (Th1) e Th2.
Com base nesse conhecimento, alguns estudos discorrem sobre o efeito de micobactérias no
desenvolvimento do processo inflamatório alérgico em humanos, especialmente crianças (EL-ZEIN.
et al; ARNOLDUSSEN et al., 2011). Mais ainda, através de modelos murinos de alergia pulmonar
experimental (APE), já foi demonstrado que o tratamento com Mycobacterium bovis-BCG pode modular
a resposta imune na alergia pulmonar induzida por ovalbumina (OVA), reduzindo significativamente
o infiltrado inflamatório pulmonar desencadeado pelo alérgeno (HOPFENSPIRGER et al, 2001,
MAJOR et al, HOPFENSPIRGER, 2002). Foi também verificado que a administração por via
intranasal (i.n.) é a mais eficaz em inibir a resposta Th2 alérgeno-específica previamente estabelecida
(ERB et al, 1998; HERZ et al, 1998). Além disso, a administração de BCG em camundongos recém-
nascidos com background Th2 é capaz de modular a resposta alérgica nesses animais quando atingem
a idade adulta (NAHORI et al, 2001).
Embora existam evidências de uma relação inversa entre infecção micobacteriana e o
desenvolvimento de asma alérgica, os mecanismos pelos quais a micobactéria inibe a resposta alérgica
ainda não estão completamente elucidados. Visto que os produtos micobacterianos são potentes indutores
de resposta imune de perfil Th1 (FENTON et al, 1997), um dos mecanismos imunoreguladores
induzidos pela micobactéria pode envolver a supressão da atividade de linfócitos Th2 através de
citocinas de perfil Th1, como o IFN-g . No entanto, alguns estudos demonstraram que a micobactéria
pode modular a resposta imune alérgica por uma via independente da produção de IFN-g (ZUANY-
AMORIM et al, 2002; LI e SHEN, 2009). Desta forma, outros fatores parecem estar envolvidos
neste processo. De fato, já foi constatado que a administração de cepas mortas de Mycobacterium
vaccae durante o período neonatal induz a produção de células Treg alérgeno-específicas que, através
da produção de IL-10 e TGF-b, reduzem significativamente a inflamação eosinofílica pulmonar em
camundongos alérgicos (ZUANY-AMORIM et al, 2002; LI e SHEN, 2009). Além disso, foi também
demonstrado que a micobactéria pode induzir uma população de células dendríticas pulmonares
com potencial imunorregulatório, produtoras de IL-10, TGF-b e IFN-a (ADAMS et al, 2004).
Considerando-se o exposto, o objetivo deste trabalho foi avaliar o efeito do tratamento intranasal com
Mycobacterium bovis-BCG na modulação da resposta imune de camundongos submetidos ao modelo
de alergia pulmonar experimental (APE), empregando a OVA como alérgeno.

12 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011


Metodologia

O estudo foi realizado em camundongos BALB/c fêmeas com 6 a 8 semanas de idade fornecidos
pelo Biotério do Centro de Biologia da Reprodução da Universidade Federal de Juiz de Fora (CBR-
UFJF), mantidos sob condições padrões no laboratório de Imunologia do ICB-UFJF. Todos os
protocolos experimentais foram aprovados pela Comissão de Ética na Experimentação Animal (CEEA)
da UFJF (027/2008). Os animais foram divididos em 4 grupos (n=6 animais/grupo): (i) Controle
(animais não manipulados); (ii) Controle Tratados (submetidos à administração i.n. de BCG); (iii) Asma
(submetidos à indução de Alergia Pulmonar Experimental - APE); (iv) Asma Tratados (submetidos à
indução de APE e à administração i.n. de BCG).
Para indução da APE, os animais foram sensibilizados com injeção i.p. de 10µg de OVA (Grade
V; Sigma-Aldrich Corp, St Louis, MO, USA) adsorvida em 200µL de hidróxido de alumínio (Sigma-
Aldrich Corp, St Louis, MO, USA) nos dias 0 e 14. Os desafios ocorreram nos dias 28, 29, 30, 34, 41 e
63 do experimento, através de nebulização com OVA 1% durante 20 minutos/dia (Inalatec Plus, NSR
Ind. Com. e Repr. Ltda, SP, Brasil). Nos dias 35 e 42 do experimento os animais foram anestesiados
(xilasina/ketamina intraperitoneal) e tratados (i.n.) com uma dose de 1x105 CFU de M. bovis BCG
(Fundação Ataupho de Paiva, Rio de Janeiro, Brasil) diluída em 0.03 mL de tampão fosfato (Fig. 1).
No 63° dia do experimento, 8 horas após o último desafio, os animais receberam dose letal
de xilasina/ketamina (i.p.). O sangue dos camundongos foi coletado através de punção venosa no
plexo retro-orbital e o soro foi obtido após centrifugação, sendo armazenado a -20oC para dosagem
posterior de imunoglobulina. A análise de IgE anti-OVA foi realizada através de ELISA, de acordo com
instruções do fabricante (PharmingenTM, Becton Dickinson, San Diego, CA, USA).
O lavado bronco-alveolar (LBA) foi coletado e o número de células presentes foi determinado
através de contagem em câmara de Neubauer. Para contagem diferencial de células no LBA foi
realizada uma centrifugação em “Cytospin” (Eppendorf 5410, Eppendorf Biochip Systems, Germany)
e coloração com hematoxilina/eosina (Kit Instant Prov - Newprov, PR, Brasil). Foram contadas 200
células por lâmina e os resultados foram expressos como número específico de célula x 106/mL de
LBA.
O LBA restante foi centrifugado e o sobrenadante foi armazenado a -20oC até análises das
citocinas IL-10 e IFN-g através de ELISA, seguindo-se recomendações do fabricante (PharmingenTM,
Becton Dickinson, San Diego, CA, USA).
As células presentes no sedimento do LBA foram submetidas à avaliação da expressão de moléculas
coestimulatórias e imunorregulatórias, através de citometria de fluxo. Seguindo-se recomendações
do fabricante, as células receberam dupla-marcação com os anticorpos anti-CD3/ anti-CD28, anti-
CD3/ anti-CD152, anti-CD3/ anti-CD25, anti-CD11/ anti-CD86 e anti-CD11/ anti-CD80
(PharmingenTM, Becton Dickinson, San Diego, CA, USA). A leitura dos dados foi realizada em
citômetro de fluxo (FACScalibur, Becton Dickinson, San Jose, CA, USA) e os dados foram analisados
através do software CellQuest® (BD CellQuestTM Pro software, Becton Dickinson, San Jose, CA,
USA).
Após a obtenção do LBA, o lobo pulmonar superior direito foi retirado e fixado em formaldeído
tamponado a 10% para avaliação histopatológica. Os cortes histológicos foram corados com
Hematoxilina-Eosina (HE), sendo avaliados os parâmetros: grau de inflamação pulmonar, presença
de hiperplasia de células caliciformes, fibrose e hipertrofia/hiperplasia do músculo liso das vias aéreas.
Os dados numéricos foram analisados pelo teste de normalidade de D’Agostino Pearson.
Posteriormente, foram utilizados os testes t não pareado, para os dados paramétricos, e Mann Whitney,

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011 13


para os dados não paramétricos. O nível de significância admitido para os testes foi de p<0,05. Os
dados são expressos como média ± erro padrão.

Resultados e Discussão

Nos últimos anos, o uso de produtos micobacterianos tem se mostrado promissor como
estratégia terapêutica no controle das doenças alérgicas (HOPFENSPIRGER, 2002; EL-ZEIN.
et al; ARNOLDUSSEN et al., 2011). No entanto, apesar das evidências indicando a função
imunomoduladora das micobactérias, os mecanismos envolvidos nesse processo são pouco conhecidos.
Diante desse fato, este trabalho avaliou o efeito da administração intranasal de Mycobacterium bovis-
BCG sobre o desenvolvimento da inflamação alérgica pulmonar, utilizando-se um modelo murino de
alergia pulmonar experimental induzida pela OVA.
A análise histopatológica dos pulmões revelou que os camundongos sensibilizados/desafiados
com OVA apresentaram uma intensa reação inflamatória pulmonar. Embora os pulmões dos animais
alérgicos tratados com o BCG também tenham apresentado infiltrado inflamatório, as imagens
sugerem que o tratamento com o M. bovis-BCG atenuou o desenvolvimento da resposta alérgica
induzida pela OVA (Fig. 2). A partir da análise do número total de células e eosinófilos presentes no
LBA, foi confirmado que o tratamento com a micobactéria inibiu efetivamente o desenvolvimento
da inflamação alérgica pulmonar induzida pelo alérgeno, visto que os animais alérgicos tratados
apresentaram uma redução significativa no número total de células e eosinófilos no LBA (Fig. 3).
Considerando-se que a IgE exerce papel fundamental no estabelecimento da inflamação alérgica
(QIAO et al, 2006), a ação supressora do BCG sobre o processo alérgico pulmonar foi também confirmada
a partir da análise sérica da IgE específica anti-OVA, cujos níveis apresentaram-se significativamente
reduzidos nos animais alérgicos tratados com a micobactéria (Fig. 4). Estes resultados foram também
encontrados por outros pesquisadores (HERZ et al, 1998). Em contrapartida, alguns autores obtiveram
redução do processo inflamatório pulmonar por uma via independente da inibição de produção de IgE
(HOPFENSPIRGER et al, 2002; ZUANY-AMORIN et al, 2002). Desta forma, acreditamos que a
divergência encontrada entre esses resultados seja decorrente dos diferentes protocolos utilizados para
o tratamento com a micobactéria, os quais podem influenciar a produção das citocinas de perfis Th1
e Th2.
Diferentes modelos experimentais comprovaram que a exposição a produtos micobacterianos é
capaz de limitar respostas imunes de perfil Th2 (HOPFENSPIRGER et al, 2001; HOPFENSPIRGER;
ZUANY-AMORIN et al, 2002), sendo que alguns autores atribuem este efeito inibitório à indução
de uma resposta imunológica Th1 (ERB et al, 1998; HERZ et al, 1998; KE et al, 2010). Entretanto,
neste modelo de estudo verificamos que o tratamento com BCG não influenciou a produção e secreção
de IFN-g pelas células do LBA dos animais alérgicos (Fig. 5), sugerindo que o mecanismo de ação da
micobactéria seja independente da indução de Th1. A partir de resultados similares, Zuany-Amorim
e outros (2002) verificaram que o tratamento com M. vaccae inibe o desenvolvimento da resposta
inflamatória alérgica através da indução de células T reguladoras. De forma similar, Li e Shen (2009)
demonstraram que o tratamento com BCG induz a ativação de células T CD4+CD25+ com forte
expressão de Foxp3, as quais suprimem a resposta Th2 exacerbada através das citocinas inibidoras IL-
10 e TGF-β.
Com relação à presença de IL-10 no LBA, embora alguns estudos tenham demonstrado sua
participação no processo inflamatório alérgico (BILENKI et al., 2010), verificamos que o tratamento

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com o BCG não alterou sua produção pelas células pulmonares dos animais alérgicos tratados, sugerindo
que, no presente estudo, outro mecanismo esteja envolvido na modulação da resposta imune alérgica.
A análise fenotípica das células presentes no LBA revelou que o tratamento com o BCG reduziu
apenas a expressão de CD28 e CTLA-4 (Fig. 6). O envolvimento destas moléculas na ativação dos
linfócitos Th2 tem sido analisado por alguns autores e já foi verificado que pacientes asmáticos
apresentam maior expressão plasmática de CD28 e CTLA-4, quando comparadas a pacientes não
asmáticos, levando à hipótese de que as formas solúveis destas moléculas estejam relacionadas à
patogênese e à gravidade da doença (WONG et al, 2005). Foi também demonstrado que o CD28
é necessário para a indução de linfócitos Th2 em resposta à OVA, visto que o desenvolvimento da
inflamação alérgica está prejudicada em camundongos deficientes em CD28 (BURR et al., 2001).
Desta forma, embora sejam necessárias análises posteriores, acreditamos que a ação imunomodulatória
do BCG, neste modelo de estudo, esteja relacionada a uma menor expressão de CD28 e de CTLA-
4 pelos linfócitos Th2, resultando na inibição do desenvolvimento da resposta inflamatória alérgica
desencadeada pela OVA.

Conclusão

O presente trabalho demonstrou que o tratamento com o M. bovis-BCG reduz a inflamação


pulmonar alérgica por um mecanismo independente da produção de IFN-g e IL-10. Embora sejam
necessários estudos futuros, pode-se sugerir que um dos mecanismos moleculares envolvidos na
modulação alérgica pelo BCG esteja relacionado a uma redução na expressão das moléculas CD28 e
CTLA-4 pelos linfócitos Th2.

Agradecimentos

Agradecemos o apoio financeiro das agências de fomento FAPEMIG (APQ-02164-09) e


CAPES/CNPq e ao apoio institucional da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.

Anexo de Figuras

Fig. 1. Representação esquemática do tempo de sensibilização/desafio com OVA e imunização com BCG.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011 15


Fig. 2. Efeito da administração i.n. de M. bovis-BCG na avaliação de histopatologia pulmonar induzida por OVA. Imagens
do epitélio brônquico obtidas em microscopia de luz. Os experimentos foram realizados 08h após o último desafio com OVA.
Grupos Controle e Controle Tratados: presença de células residentes (cabeça de seta), típicas do estroma pulmonar (aumento original
1000X, coloração HE). Grupo Asma: presença de reação inflamatória intensa (cabeça de seta), com discreto edema e infiltrados peri-
bronquiolar e perivascular, compostos predominantemente por células mononucleares. Grupo Asma Tratados: presença de infiltrado
inflamatório e edema moderados, com algumas células sugestivas de eosinófilos (cabeça de seta) (aumento original 400X, coloração
HE). x: Luz bronquiolar; * Luz vascular; Barra azul: Epitélio bronquiolar.

16 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011


Fig. 3. Efeito da administração i.n. de M. bovis-BCG no número de células totais e eosinófilos no BAL de animais com inflama-
ção alérgica pulmonar induzida por OVA. Camundongos BALB/c, sensibilizados e desafiados com OVA, receberam 1 x 105 UFC
de BCG por via i.n. 17 e 09 dias antes do último desafio com OVA. Os dados correspondem à média +/- EPM de seis animais por
grupo. # p < 0.05 e * p < 0.05 em relação ao grupo Controle e ao grupo Asma, respectivamente.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011 17


Fig. 4. Efeito da administração i.n. de M. bovis-BCG sobre os níveis séricos de IgE anti-OVA. Camundongos BALB/c, sensi-
bilizados e desafiados com OVA, receberam 1 x 105 UFC de BCG por via i.n. 17 e 09 dias antes do último desafio com OVA. Os
experimentos foram realizados 08h após o último desafio. Os dados correspondem à média da produção de IgE específica anti-OVA
no soro, detectados por ELISA, +/- EPM de seis animais por grupo. *p < 0.05 e **p < 0.05 em relação ao grupo Controle e ao grupo
Asma, respectivamente.

18 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011


Fig. 5. Quantificação das citocinas IFN-g (A) e IL-10 (B) no LBA dos animais estudados, 08h após o último desafio com OVA.
Camundongos BALB/c, sensibilizados e desafiados com OVA, receberam 1 x 105 UFC de BCG por via i.n. 17 e 09 dias antes do
último desafio com OVA. Os experimentos foram realizados 08h após o último desafio. Os dados correspondem à média +/- EPM
de seis animais por grupo.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011 19


Fig. 6. Efeito da administração i.n. de M. bovis-BCG na expressão de marcadores celulares (%) no LBA. Células provenientes
do LBA de camundongos BALB/c foram coletadas e marcadas com anticorpos anti-CD3, anti-CD28, anti-CD152, anti-CD25, anti-
-CD11, anti-CD80 e anti-CD86 e logo após analisadas por citometria de fluxo. Os experimentos foram realizados 08h após o último
desafio. Os dados correspondem à média +/- EPM de seis animais por grupo.

20 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011


Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 11-24, jan./dez. 2011 21
Immunomodulatory activity of Mycobacterium bovis-BCG in a murine
model of allergic asthma

Allergic asthma is a chronic inflammatory lung disease resulting mainly from an allergen-specific
immune response T helper type 2 (Th2). Results of experimental studies have strengthened the
hypothesis that certain mycobacteria, including Mycobacterium bovis-BCG are able to modu-
late the allergic immune response. However, due to the complexity of the immunopathologic
response in allergic asthma, mechanisms of action of BCG are still unknown. Thus, this paper
studied the effect of intranasal administration of Mycobacterium bovis-BCG on the modulation
of immune response in a murine model of experimental lung allergy (EPA) induced by ovalbu-
min (OVA). The results showed that treatment with BCG reduced the lung inflammatory in-
filtrate, promoting a significant decrease in total cells and eosinophils in bronchoalveolar lavage
(BAL) of animals sensitized / challenged with OVA. These animals also showed reduced serum
levels of IgE anti-OVA, whereas IFN-g and IL-10 in BAL remained unchanged. Furthermore,
lymphocytes from the lungs of allergic animals treated with BCG had lower expression of CD28
and CTLA-4 when compared to untreated allergic animals. These data confirm the ability of
Mycobacterium bovis-BCG in reducing the allergic immune response established in advance,
suggesting that one of the mechanisms involved in this immunomodulation is related to reduced
expression of co-stimulatory molecules in an independent pathway of a Th1 immune response.
Keywords: allergic asthma, Mycobacterium bovis-BCG, Th1/Th2 profile, regulatory T cells,
immune modulation.

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ASPETOS IMUNOLÓGICOS E HISTOLÓGICOS
DE CAMUNDONGOS DESAFIADOS
EXPERIMENTALMENTE COM LINHAGENS DE
BACTEROIDES FRAGILIS SELECIONADAS EM
CONCENTRAÇÕES SUBINIBITÓRIAS DE DROGAS
ANTIMICROBIANAS

Mariana Silva Lopes Neves *


Michele Cristine Ribeiro de Freitas **
Ana Paula Ferreira ***
Jacy Gameiro ***
Cíntia Marques Coelho ****
Vânia Lúcia da Silva **
Cláudio Galuppo Diniz ***

RESUMO

Bacteroides fragilis é um anaeróbio Gram-negativo, membro da microbiota intestinal residente.


Uma característica importante da sua biologia, não diretamente relacionada com a produção de
doenças infecciosas, mas relacionada com a sua persistência, é o aumento da resistência aos anti-
microbianos. Várias evidências mostram que os antimicrobianos podem interferir com a expres-
são de determinantes de virulência microbiana. Nosso objetivo foi investigar a interferência de
antimicrobianos na patogenicidade de B. fragilis em camundongos BALB/c, após desafio experi-
mental. Trinta animais foram desafiados intraperitonealmente com B. fragilis ATCC 25285 (pa-
rental) e quatro linhagens derivadas selecionados pela exposição a concentrações subinibitórias
de ampicilina (AMP), ampicilina/sulbactam (AMS), clindamicina (CLI) e cloranfenicol (CLO).
Os camundongos foram necropsiados, os níveis de TNF-α, IL-6 e IFN-γ foram determinados
por ELISA em seu intestino delgado e a histologia foi realizada, para avaliar o baço e fígado.
Os camundongos inoculados com a linhagem B. fragilis AMS apresentaram um maior nível

* Bolsista PROBIC/FAPEMIG/UFJF.
** Doutoranda colaboradora da Universidade Federal de Juiz de Fora.
*** Professores colaboradores da Universidade Federal de Juiz de Fora.
**** Professor orientador do Instituto de Ciências Biológicas - UFJF..
Endereço Profissional do Professor Orientador:
Prof. Cláudio Galuppo Diniz. Laboratório de Fisiologia e Genética Molecular Bacteriana. Instituto de Ciências Biológicas da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Campus Universitário, s/n – Bairro São Pedro Telefone: 2102-3213 – Fax: 2102-3213
Email: claudio.diniz@ufjf.edu.br

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de TNF-α, IL-6 e IFN-γ quando comparados com os outros sete dias pós-infecção (pi), bem
como os animais desafiados com a linhagem AMP, considerando os níveis de IL-6. No entanto,
estes níveis de citocinas mostraram-se diminuídos após quatorze dias pi. Animais desafiados
com as linhagens CLI e CLO não apresentaram níveis significativos de liberação de citocinas
no intestino delgado. Alterações histológicas foram observadas no baço e no fígado dos animais
desafiados com as diferentes linhagens bacterianas. Estes dados preliminares sugerem que, uma
vez que estas drogas têm diferentes interações com a célula bacteriana, B. fragilis pode apresentar
diferentes interações patógeno-hospedeiro, em resposta ao uso de antimicrobianos. Uma vez que
essas interações podem ser prejudiciais para os hopedeiros, como observado através do aumento
da liberação de mediadores inflamatórios, os resultados chamam a atenção para o risco de tera-
pia inadequada. Mesmo em baixas concentrações, os antimicrobianos podem interferir com a
patogenicidade de Bacteroides spp.
Palavras-chave: Bacteroides fragilis, alterações morfológicas, concentrações subinibitórias, cito-
cinas.

1.Introdução
As bactérias anaeróbias representam um grupo ecologicamente significativo da microbiota
residente de seres humanos e outros animais. No trato gastrintestinal, estes microrganismos chegam
a atingir, especialmente no cólon, a proporção de mil anaeróbios para cada aeróbio (FINEGOLD,
1995). Entre estes microrganismos, espécies do gênero Bacteroides são importantes constituintes
da microbiota residente, e podem colonizar outros locais do corpo, como a superfície de mucosas
(SALYERS,1984; WEXLER, 2007). Algumas espécies do gênero Bacteroides se comportam como
patógenos oportunistas, tais como a espécie Bacteroides fragilis (SALYERS,1984).
B. fragilis é o anaeróbio mais encontrado em isolados de infecções do trato gastrintestinal
humano, sendo capaz de colonizar outros sítios anatômicos, como a cavidade abdominal, cérebro,
fígado, pulmões ou corrente sanguínea, podendo causar a formação de abscessos (PUMBWE et. al.,
2007). Em contrapartida, o tratamento para as infecções causadas por este patógeno é dificultado
devido a crescente resistência de B. fragilis a uma grande variedade de antimicrobianos (SALYERS,1984;
ULGER et. al., 2004), tais como os β-lactâmicos, clindamicina, metronidazol e cloranfenicol, que
são amplamente utilizados para o tratamento de infecções causadas por microrganismos anaeróbios
(RASMUSSEM et. al.,1997).
Drogas antimicrobianas podem interferir na microbiota residente quando são usadas de forma
inadequada ou quando são incompletamente absorvidas. Estas substâncias podem induzir alterações
na microbiota, selecionando organismos resistentes ou provocando outros tipos de alterações que
podem interferir na relação droga-bactéria-hospedeiro. Bactérias tanto Gram-positivas quanto Gram-
negativas, quando expostas a concentrações subinibitórias de antimicrobianos, podem apresentar
alterações morfológicas, resultando em células mais alongadas e filamentosas. Além disso, outros
aspectos também podem ser observados, como mudanças ultraestruturais e alterações na capacidade
de adesão (SILVESTRO et. al., 2006).
Alterações morfológicas e fisiológicas decorrentes da exposição a baixas ou altas concentrações
de antimicrobianos tem sido observadas e descritas como indicativo de modificação nas propriedades

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celulares frente a uma pressão seletiva, acarretando alterações no padrão de virulência dos microrganimos
e sua relação com o sistema imunológico do hospedeiro (DINIZ et. al, 2000).
Assim, o objetivo do presente estudo foi investigar aspectos da relação droga-bactéria-hospedeiro,
mediante desafio experimental em camundongos infectados com linhagens de B. fragilis, selecionadas
após exposição a concentrações subinibitórias de ampicilina, ampicilina/sulbactam, clindamicina e
cloranfenicol.

2. Metodologia
2.1. Amostra bacteriana e obtenção das linhagens em concentrações subinibitórias das
drogas:

Foi utilizada a amostra de referência Bacteroides fragilis ATCC 25285, considerada como amostra
parental (BfPAR), pertencente à coleção do Laboratório de Fisiologia e Genética Molecular Bacteriana
do Departamento de Parasitologia, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas
da Universidade Federal de Juiz de Fora. A partir da exposição da amostra parental às concentrações
subinibitórias das drogas ampicilina, ampicilina/sulbactam, clindamicina e cloranfenicol, foram
obtidas as seguintes linhagens: BfAMP (linhagem selecionada em concentração subinibitória 2μg/mL),
BfAMS (linhagem selecionada em concentração subinibitória 1μl/mL), BfCLI (linhagem selecionada
em concentração subinibitória 2μl/mL) e BfCLO (linhagem selecionada em concentração subinibitória
1μl/mL), respectivamente.
As linhagens foram cultivadas em meio de cultura Brain Heart Infusion ágar (BHIa) ou caldo
(BHIc) suplementado com L-cisteina, extrato de levedura, hemina e menadiona. Para avaliação da
concentração inibitória mínima (CIM) e a concentração subinibitória mínima (CSI), foi utilizado o
método de diluição em caldo, de acordo com o CLSI (2007).
Após a determinação da CSI, a linhagem BfPAR e as demais BfAMP, BfAMS, BfCLI e BfCLO
foram submetidas a cultivos sucessivos em Caldo Brucela (BRUc), por 10 passagens na presença e na
ausência dos antimicrobianos, em intervalos de 24 horas. A cada novo cultivo, foram feitos esfregaços
para coloração pelo método de Gram e teste respiratório das culturas, para avaliação da pureza das
mesmas. O teste respiratório consistia em cultivo das linhagens em placas de BHIa em condições de
anaerobiose e aerobiose para a detecção de possíveis colônias contaminantes.
Durante todos os experimentos, as linhagens bacterianas foram cultivadas em condições de
anaerobiose mecânica, utilizando o método físico da jarra com atmosfera controlada (N2 90% e CO2
10%), a 37o C , em estufa bacteriológica.

2.2. Avaliação da morfologia bacteriana:

Durante os 10 subcultivos na presença e na ausência dos antimicrobianos, foram realizados


esfregaços para coloração pelo método de Gram, e a observação foi feita em microscópio óptico, em
aumento de 1000X, com posterior registro fotográfico de cada linhagem, inclusive da linhagem BfPAR.
Os registros fotográficos realizados após a coloração de Gram foram utilizados para o cálculo da
área média das células bacterianas, em micrômetros quadrados (μ2), utilizando o software Image Tool.
Foram medidas, em média, 30 células por campo microscópico.
A morfologia e a complexidade celular foram avaliadas também pelo método de citometria de
fluxo. Suspensões bacterianas (700 μL) das 10 passagens na presença e na ausência de antimicrobianos,

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correspondentes à 0,5 da escala McFarland em solução salina (NaCl 0,85%), após cultivo em BRUc,
foram avaliadas em citômetro de fluxo (FACSCalibur, Becton-Dickinson), utilizando-se os parâmetros
FSC (Forward Scatter) e SSC (Side Scatter), para avaliação da percentagem de células alteradas e
alteração na complexidade celular, de acordo com Andrade (2010).

2.3. Infecção experimental dos camundongos:

Camundongos BALB/c, machos, com 75 dias de idade, provenientes do biotério do Centro de


Biologia da Reprodução (CBR) da Universidade Federal de Juiz de Fora, foram distribuídos em grupos
experimentais, mantidos no Biotério do Instituto de Ciências Biológicas da UFJF, onde foram alojados
em gaiolas plásticas, em estantes ventiladas à temperatura ambiente, recebendo água filtrada e ração ad
libitum por até 14 dias. Todo o experimento foi conduzido de acordo com Andrade (2002).
Os animais foram divididos em 6 grupos, infectados com: BfPAR (n=4), BfAMP (n=6), BfAMS
(n=6), BfCLI (n=6), BfCLO (n=6) e um grupo controle, que recebeu somente o meio de cultura
utilizado para a manutenção das linhagens acima (BHIc). A infecção experimental foi realizada
intraperitonealmente com 200μL de suspensão bacteriana, relativa a uma cultura de 24 horas
(aproximadamente 108 células/mL). O grupo controle recebeu 200μL de BHIc.
Cinquenta por cento dos animais de cada grupo foram sacrificados e necropsiados no 7º e
no 14º dia pós-infecção (pi). Os animais foram sacrificados para a excisão de órgãos como fígado e
baço, posteriormente fixados em formalina (solução de formal a 10%), para análise histopatológica,
enquanto o intestino e os linfonodos mesentéricos foram coletados separadamente para análise das
citocinas pró-inflamatórias.

2.4. Avaliação histopatológica do baço e fígado dos camundongos:

Os órgãos foram desidratados em soluções alcoólicas de diferentes concentrações e foram


incluídos em blocos de parafina. Cortes de aproximadamente 4 μm foram obtidos em micrótomo
(Leica Instruments Gmbh, Nussloch, Alemanha) para montagem de lâminas de microscopia, que foram
então coradas com hematoxilina-eosina, para posterior análise microscópica. A análise das lâminas sem
identificação dos tecidos foi feita pela professora Dra. Denise Carmona Cara, do Departamento de
Morfologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG.
Foi atribuído um código para qualificar ausência de lesões, lesões discretas, moderadas e intensas
nos cortes histológicos avaliados. Os parâmetros avaliados foram: (i) no fígado - degeneração hepática,
comprometimento da arquitetura do tecido, necrose e dilatação dos sinusoides; (ii) no baço – hipertrofia
e hiperplasia das polpas branca e vermelha.

2.5. Avaliação da produção de citocinas no intestino dos camundongos:

O intestino de cada camundongo foi macerado separadamente com solução de extração (0,4 de
NaCl, 10mM de NaPO4, 0,1 mM PMSF, 0,1 mM de cloreto benzetônio, 10 mM de EDTA, 20 pM
de aprotina, 0,05% de PBS tween 20) até a completa diluição dos tecidos e, em seguida, o macerado
foi centrifugado a 10000 rpm por 15 minutos e os sobrenadantes foram separados para as dosagens de
TNF, IFN-γ, IL-6, IL-10 e IL-17.
A dosagem de citocinas foi realizada pelo método imunoenzimático (ELISA) utilizando-se kits
comerciais específicos para dosagem IL-6, IL-10, TNF-, IFN-γ (BD Opteia TM, San Diego/CA, USA)

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e para IL-17 (eBioscience, San Diego/CA, USA) de acordo com as recomendações do fabricante. A
leitura das placas de ELISA foi realizada em espectrofotômetro a 450nm. A quantidade da citocina
foi calculada a partir da curva-padrão, obtida por diferentes concentrações da citocina recombinante.

2.6. Análise estatística

A análise estatística dos dados foi baseada nos testes de análise de variância (One-way Anova),
para comparação das médias; no teste do t pareado, para comparação entre médias e no teste de Tukey,
para comparação múltipla, para os quais foram considerados valores significativos quando p<0,05.
Todos os testes foram realizados com o auxílio do software GraphPad Prism 5.

3.Resultados
3.1. Avaliação da morfologia bacteriana

Após a seleção das linhagens em concentrações subinibitórias BfAMP (linhagem selecionada em


concentração subinibitória 2μg/mL), BfAMS (linhagem selecionada em concentração subinibitória
1μl/mL), BfCLI (linhagem selecionada em concentração subinibitória 2μl/mL) e BfCLO (linhagem
selecionada em concentração subinibitória 1μl/mL) e os cultivos sucessivos por 10 passagens na
presença e na ausência de antimicrobianos das mesmas, foram observadas alterações morfológicas e na
complexidade celular.
Mediante exposição aos antimicrobianos, principalmente para a linhagem BfAMS, as células
bacterianas se mostraram filamentosas, e também observou-se a presença de bulbos centrais, alterações
na largura e citoplasma densamente corado. Para a linhagem BfAMP, a área celular média aumentou
em aproximadamente 2 vezes. Já para a linhagem BfCLO, não foi observada qualquer alteração.
Com os cultivos sucessivos na presença dos antimicrobianos, as alterações observadas na primeira
exposição regrediram, e as células passaram a se assemelhar com a amostra parental, gradativamente.
Em relação à complexidade celular, a linhagem que apresentou porcentagem mais significativa
de células com alterações na forma e complexidade foi a BfAMS, com 22%. As outras linhagens
apresentaram alterações pouco significativas: BfAMP 6%, BfCLO 4% e BfCLI 2% (valores
aproximados) (Fig.1).

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 25-36, jan./dez. 2011 29


Figura 1. Representação gráfica do tipo dot plot da avaliação por citometria de fluxo das células de Bacteroides fragilis após a 1ª e a
10ª passagem das culturas na presença das CSI dos diferentes antimicrobianos. R1 - região de concentração das células de morfologia
típica; R2 - região de concentração das células de morfologia alterada em relação ao controle Bf parental. FSC – eixo relacionado à
alteração de morfologia; SSC – eixo relacionado à complexidade celular.

3.2. Análise histopatológica

Analisando o baço e o fígado dos camundongos desafiados com as diferentes linhagens bacterianas
selecionadas em CSI dos antimicrobianos, foram observadas alterações em ambos os órgãos em todos
os grupos do 7o dia pós-infecção (pi). Foram observadas lesões moderadas relacionadas a áreas de
hiperplasia folicular linfoide, com centro germinativo, sugestivo de grande atividade imunológica, além
de hipertrofia da polpa vermelha, no baço. Para o fígado, foi observado um quadro de degeneração
hepática, com discreta desestruturação da arquitetura do órgão nos grupos controle e Bf parental,
lesões moderadas no grupo BfCLI, lesões intensas nos grupos BfAMS e BfCLO, e nenhuma alteração
aparente no grupo BfAMP.
No 14º dia pi, não foram observadas alterações significativas em relação ao observado no 7º
dia pi para os dois órgãos na maioria dos grupos, exceto para a linhagem BfCLI, cuja lesão no baço se
mostrou discreta neste momento, e para BfAMP, no qual somente no 14º dia pi foi observada lesão
discreta do fígado, e grupos controle e Bf parental, nos quais não foi observada lesão aparente no
mesmo órgão (Fig.2 e 3).

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Figura 2- Representação gráfica da análise histopatológica do baço dos camundongos desafiados com as linhagens de BfPAR, BfAMP,
BfAMS, BfCLI e BfCLO. 0 – lesão ausente, 1 – lesão discreta, 2 - lesão moderada e 3 – lesão intensa. A: avaliação de polpa branca;
B: avaliação de polpa vermelha.

Figura 3- Representação gráfica da análise de parâmetros histológicos do fígado (A a D) dos camundongos desafiados com as linha-
gens de BfPAR, BfAMP, BfAMS, BfCLI e BfCLO. 0 – lesão ausente, 1 – lesão discreta, 2 - lesão moderada e 3 – lesão intensa.

3.3. Análise de citocinas

Foi observada grande variação nos níveis das diversas citocinas quantificadas a partir do
sobrenadante de macerado de intestino dos camundongos desafiados com as diferentes linhagens
bacterianas selecionadas pela exposição a CSI dos antimicrobianos, como pode ser observado na Fig. 4.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 25-36, jan./dez. 2011 31


Figura 4 - Representação gráfica dos valores médios das dosagens de citocinas no sobrenadante dos intestinos dos camundongos
desafiados intraperitonealmente com as linhagens de BfPAR, BfAMP, BfAMS, BfCLI e BfCLO após 7 ou 14 dias de infecção ex-
perimental. A: IL-6; B: IL-10; C: IL-17; D: IFN-γ; E: TNF-α. *, a e b indicam diferenças estatisticamente significativas (p<0,05).

4. Discussão e Conclusão
Bactérias do grupo B. fragilis são anaeróbios Gram-negativos que compõem grande parte da
microbiota residente do cólon e algumas vezes do trato genital feminino, sendo também isolada de
infecções intra-abdominais, podendo produzir bacteremias. Nos últimos anos, houve um aumento
nas linhagens de B. fragilis relatadas pela literatura como resistentes a agentes antimicrobianos
frequentemente usados para o tratamento de infecções intra-abdominais, sanguíneas e pélvicas (PAULA
et. al., 2004).
Antimicrobianos podem induzir direta ou indiretamente alterações na síntese proteica, acarretando
elongação de bacilos Gram-negativos, que passam algumas vezes, a assumir morfologia fusiforme.
Além disso, a exposição a concentrações subinibibitórias de antimicrobianos desde β-lactâmicos a
estreptomicina tem sido observada, provocando alterações na morfologia, nos perfis bioquímicos,
na ultraestrutura e nas taxas de multiplicação em várias espécies bacterianas, incluindo alterações no
número e localização dos ribossomos, elongação e alargamento celular, além de modificações no aspecto
da parede celular. Todas estas alterações tem sérias consequências nos padrões de virulência, bem como
na susceptibilidade às defesas imunológicas no hospedeiro (DINIZ et. al., 2000, SILVESTRO et. al.,
2006).
Do exposto, no presente estudo a morfologia e a complexidade celular bacteriana foram
avaliadas, bem como a resposta imunológica do hospedeiro frente a uma infecção causada por B.
fragilis selecionada em concentrações subinibitórias de diferentes antimicrobianos, através da avaliação
histopatológica in vivo do baço e do fígado de camundongos, e da quantificação das citocinas.

32 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 25-36, jan./dez. 2011


A filamentação observada neste estudo para as linhagens BfAMS e BfAMP já foi observada em
outros estudos com a espécie B. fragilis exposta a outros antimicrobianos, como a cefoxitina (FANG et.
al., 2002), clindamicina (SILVESTRO et. al., 2006) e metronidazol (DINIZ et. al., 2000).
Como observado pela análise morfológica, a linhagem BfAMS aumentou muitas vezes o seu
volume celular, comparativamente à linhagem BfAMP, o que pode ter ocorrido devido ao sinergismo
existente entre a ampicilina e o sulbactam.
Alterações morfológicas em células expostas a baixas concentrações de antimicrobianos podem
levar ao diagnóstico errôneo na avaliação morfológica de materiais clínicos. As implicações clínicas da
filamentação observada em bacilos Gram-negativos ainda necessitam ser melhor estudadas. Todavia,
em laboratórios de análise microbiológica, os responsáveis devem estar atentos ao aparecimento de
espécimes clínicos com aspecto filamentoso, para evitar confusão com outros organismos naturalmente
filamentosos (WOJNICZ et. al., 2007).
Ainda no presente estudo, foi observada a capacidade de indução de alterações qualitativas e
quantitativas de diferentes intensidades no hospedeiro, para todas as linhagens selecionadas em
concentrações subinibitórias de antimicrobianos, como já observado na literatura para o metronidazol
(DINIZ et. al., 2000). A presença das citocinas IL-6, IL-10 e TNF-α, relacionadas com a resposta
inflamatória, evidencia a presença deste tipo de resposta nos órgãos analisados. Para os grupos BfAMP
e BfAMS, onde foi observada a manutenção dos níveis de IL-6 e IL-17 no 14o dia pi, ao contrário do
decréscimo observado para todos os outros grupos, sugere-se a manutenção do processo inflamatório e
estímulo mediado por IL-6 e à produção de proteína de fase aguda nos hepatócitos, o que tem estreita
relação com a lesão observada no órgão (HEINRICH, 1990).
Por sua vez, a citocina TNF-α tem importante papel na inflamação, induzindo a cascata
inflamatória que resulta na produção de outros fatores pró-inflamatórios, como citocinas e quimiocinas,
moléculas de adesão, enzimas destrutivas como a metaloproteinase e fatores angiogênicos (WILLIAMS
et. al.,2008). Neste estudo, não foram observadas diferenças significativas entre níveis TNF-α entre os
grupos, que somente se mostraram decrescentes para os grupos BfPAR e BfAMS no 14o dia pi, o que
pode estar relacionado com o estímulo à produção de citocinas pró-inflamatórias IL-10,IL-6 e IL-8 e
à produção de linfócitos, contribuindo para o processo inflamatório.
Principalmente para o grupo BfAMS, os níveis de IL-10 se mostraram elevados, sugerindo
moderação da produção de citocinas pró-inflamatórias por macrófagos ativados, visto que a IL-10 é
uma citocina anti-inflamatória e desempenha esta função para praticamente todos os tipos de doenças
infecciosas e processos inflamatórios crônicos e agudos (O´SHEA & MURRAY, 2008). Para o mesmo
grupo, os níveis de IFN-γ foram elevados no 7º dia pi, o que provavelmente está relacionado às funções
de regulação do dano tecidual associado a inflamação que esta citocina exerce, e a lesão observada no
grupo BfAMS (HU & IVASHKIV, 2009).
As lesões presentes no baço e no fígado e os níveis de citocinas observados indicam a interação
diferencial bactéria-hospedeiro, ocasionada pelo aumento da virulência para as linhagens de B. fragilis
selecionadas em concentrações subinibitórias de antimicrobianos, em comparação com o grupo BfPAR.
Dessa forma, sugere-se que esse fenômeno possa estar associado a alterações globais nos padrões de
expressão gênica bacteriana, como resposta à exposição aos agentes antimicrobianos, e que o fenômeno
da resistência bacteriana possa ter implicações na patogênese e na interação bactéria-hospedeiro.

Agradecimentos
Ao Laboratório de Fisiologia e Genética Bacteriana da Universidade Federal de Juiz de Fora,
onde o trabalho foi realizado, à Dra. Denise Carmona Cara, do Departamento de Morfologia do

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 25-36, jan./dez. 2011 33


Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, pela análise histopatológica, ao Laboratório de Imunologia
da Universidade Federal de Juiz de Fora, pelo suporte técnico, e à FAPEMIG, pelo apoio financeiro.

Immunological and histological aspects of experimental mice


challenged with selected strains of Bacteroides fragilis in subinhibitory
concentrations of antimicrobial drugs

ABSCTRACT

Bacteroides fragilis is an anaerobic Gram negative member of resident gut microbiota. An im-
portant feature of their biology not directly related to the production of infectious diseases, but
related to their persistence, is the increased resistance to antimicrobial drugs. Several evidences
show that antimicrobial may interfere with the expression of microbial virulence determinants.
Our objectives were to investigate the interference of selected antimicrobials on the B. fragilis
pathogenicity in BALB/c mice, after experimental challenge. Thirty animals were intraperitone-
ally infected with B. fragilis ATCC 25285 (parent wildtype) and four derived strains selected by
exposure to subinhibitory concentrations of ampicillin (AMP), ampicillin/sulbactam (AMS),
clindamycin (CLI) and chloramphenicol (CLO). The mice were necropsied, levels of TNF-α,
IL-6 and IFN-γ were determined by ELISA in their small intestines and histology was per-
formed to evaluate the spleen and liver of these animals. The mice challenged with the B. fragilis
AMS strain showed an increased level of TNF-α, IL-6 and IFN-γ when compared to the others
seven days post-infection (pi), as well as animals challenged with AMP strain, considering IL-6.
However, these cytokines levels showed to be decreased, after fourteen days pi. Animals chal-
lenged with CLI and CLO strains did not show any significant levels of cytokine release in the
small intestine. Histological alterations were observed at the spleen and at the liver from animals
challenged with the different bacterial strains. These preliminary data may suggest that, once
these drugs have different interactions with bacterial cell, B. fragilis may display different host-
pathogen interactions in response to the use of antimicrobials. Since these interactions might be
harmful to the hosts, as observed by increasing the release of inflammatory mediators, our results
draw attention to the risk that inappropriate therapy, even with low concentrations of drugs,
may affect the pathogenicity of Bacteroides spp.
Key words: Bacteroides fragilis, morphological changes, subinhibitory concentrations, cytokines.

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36 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 25-36, jan./dez. 2011


ANÁLISE DE CAMPOS PERMANENTES PELO
ACOPLAMENTO ITERATIVO MEF-MEC
Henrique de Oliveira Caiafa Duarte *
Delfim Soares Júnior **

RESUMO
Neste trabalho, a modelagem numérica de campos eletromagnéticos estáticos é abordada pelo
acoplamento dos métodos dos elementos finitos (MEF) e de contorno (MEC). Duas metodo-
logias iterativas são consideradas para o acoplamento, cujas técnicas permitem que cada subdo-
mínio do modelo seja analisado de forma independente, sendo a interação entre os subdomínios
estabelecida por intermédio de condições de interface. Na 1ª abordagem, condições de contorno
essenciais (Dirichlet) são prescritas nas interfaces dos subdomínios discretizados pelo MEC,
enquanto condições de contorno naturais (Neumann) são prescritas nas interfaces dos subdo-
mínios discretizados pelo MEF. Na 2ª abordagem, estas condições de interface são trocadas. Em
ambos os casos, parâmetros de relaxamento otimizados são empregados, de forma a garantir e/
ou agilizar a convergência do algoritmo iterativo.
Palavras-chave: Método dos Elementos de Contorno, Método dos Elementos Finitos, Acopla-
mento Iterativo, Eletromagnetismo Computacional.

Introdução
Com os avanços tecnológicos da computação, o Método dos Elementos Finitos (MEF) e
o Método dos Elementos de Contorno (MEC) passaram a ser usados para resolução de equações
diferenciais parciais e o acoplamento entre esses dois métodos passou a ser estudado para se desfrutar
das vantagens de cada um. Este acoplamento pode ser feito de diversas maneiras, sendo o método
iterativo abordado neste artigo.
Como características principais do MEF, têm-se: (i) boa eficiência computacional e fácil
implementação para solução de problemas complexos; (ii) flexibilidade na geração da malha; (iii)
cálculos em nível de elementos distribuídos ao longo do domínio; (iv) dificuldade em se modelar meios

* Bolsista PROBIC/FAPEMIG?UFJF.
** Professor Orientador da Faculdade de Engenharia - UFJF.
Endereço Profissional do Professor Orientador:
Faculdade de Engenharia, Universidade Federal de Juiz de Fora, Cidade Universitária, Bairro Martelos, CEP 36036-330, Juiz
de Fora, MG, Brasil. E-mail: delfim.soares@ufjf.edu.br

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011


infinitos; (v) facilidade para se modelar meios heterogêneos etc. Já o MEC é caracterizado por: (i) boa
eficiência computacional e implementação mais elaborada; (ii) grande facilidade na geração de malha
associada à flexibilidade; (iii) cálculos em nível de elementos de contorno; (iv) modelagem trivial de
meios infinitos; (v) dificuldade para se modelar meios heterogêneos etc.
Devido às distintas vantagens destes métodos, o acoplamento dos mesmos se faz de grande
importância para se obter uma ferramenta eficaz de análise, unindo-se o melhor de dois mundos.
O acoplamento iterativo abordado neste trabalho permite que diferentes subdomínios do modelo
sejam discretizados pelo MEF ou pelo MEC e analisados de forma independente, sendo condições
de interface prescritas nos contornos comuns aos subdomínios (Li, 1996; Bo et al., 2006; Soares
Jr., 2008). Estas condições de interface baseiam-se nas condições de equilíbrio e continuidade nas
fronteiras dos subdomínios.
No caso da análise de campos eletromagnéticos estáticos, é importante ressaltar que, tanto nos
subdomínios discretizados pelo MEF quanto pelo MEC, condições de contorno essenciais devem ser
prescritas, de forma a evitar singularidades nos sistemas de equações, justificando assim a implementação
de duas técnicas distintas de acoplamento iterativo, permitindo uma maior flexibilidade quando da
análise dos problemas.

Metodologia

Equações de Maxwell
Os fenômenos eletromagnéticos são regidos pelas equações de Maxwell:

→ → → → →
onde E , H , D , B , J e r representam a intensidade de campo elétrico, intensidade de campo
magnético, densidade de campo elétrico, densidade de campo magnético, densidade superficial de
corrente elétrica e densidade volumétrica de cargas, respectivamente.
→ → → → →
Entre E , H , D , B , J existem ainda as seguintes relações constitutivas:

onde m, e e s representam a permeabilidade magnética, permissividade elétrica e condutividade


elétrica do sistema, respectivamente.
→ → → →
Sabendo-se que E = - ∇ V e B = ∇ x A , onde V a A representam campos potenciais,
podemos representar problemas da eletrostática e da magnetostática (bidimensional) pela equação de
Poisson, uma vez que as equações de Maxwell sejam trabalhadas e reorganizadas, resultando em:

38 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011


Assim sendo, pode-se trabalhar com o mesmo algoritmo para os dois casos focados (eletrostática
e magnetostática), considerando-se uma nomenclatura genérica, conforme é feito a seguir.

Equações governantes
Partindo da equação de Poisson em sua forma genérica, temos:

onde u é um campo potencial genérico e representam o domínio e o


contorno do modelo, respectivamente. As equações (11) e (12) descrevem condições de contorno

essenciais e naturais, respectivamente, sendo n o vetor normal unitário externo ao contorno. k
representa a propriedade física do modelo e g a excitação de domínio.
Por intermédio de funções de interpolação (aqui representadas por N), as formas integrais da
equação de Poisson levam a sistemas matriciais, tanto se considerando discretizações pelo MEF quanto
pelo MEC. Vale ressaltar que o MEC utiliza também as soluções fundamentais do modelo, aqui
representadas por q* e u*. Nos subitens que se seguem, se descreve de forma sucinta os sistemas de
equações provenientes da discretização por elementos finitos e por elementos de contorno.

Sistema de equações do MEF


As equações relativas ao MEF são descritas pelo sistema matricial (13) a seguir. Nesta equação,
a matriz de rigidez é representada por K e o vetor de cargas nodais por F, sendo o cálculo destes dados
pelas equações (14) e (15), respectivamente. O vetor incógnita u descreve valores nodais de potencial
(Jin, 1996; Silvester and Ferrari, 1996).

Nas equações (14) e (15), N representa a matriz de interpolação do modelo, sendo esta composta
pelas funções de interpolação no elemento (assim como no MEC).

Sistema de equações do MEC


O MEC é regido pelo sistema matricial (16), formado pelos vetores u e q (valores de
potencial e fluxo, respectivamente), pela matriz geométrica diagonal ;
e pelas matrizes de influência H e G, sendo
estas calculadas de acordo com as equações (17) e (18), respectivamente (Pozrikidis, 2002).

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011 39


Nas equações (17) e (18), q* e u* representam os termos da solução fundamental de fluxo e de
potencial, respectivamente.

Algoritmo de acoplamento iterativo


Primeiramente, para o estabelecimento do acoplamento dos dois métodos numéricos, devem ser
consideradas as condições de continuidade e equilíbrio nas interfaces dos subdomínios discretizados
pelo MEF e pelo MEC:

onde representa a interface e os superescritos F e B indicam elemento finito (finite element) e


elemento de contorno (boundary element), respectivamente.
A Figura 1 abaixo exemplifica um problema genérico tendo em conta discretização numérica por
intermédio destes dois métodos.

Figura 1. Corpo modelado por subdomínios discretizados pelo MEF e pelo MEC.

A partir destas condições de continuidade e equilíbrio, foram desenvolvidas duas metodologias


de acoplamento iterativo, conforme se discute a seguir.

Primeira metodologia
Nesta primeira abordagem, condições de contorno essenciais ou de Dirichlet são prescritas nas
interfaces dos subdomínios discretizados pelo MEC, enquanto condições de contorno naturais ou de
Neumann são prescritas nas interfaces dos subdomínios discretizados pelo MEF. As etapas do algoritmo
de solução são descritas a seguir.
(i) Estando valores para os potenciais nas interfaces do MEC atribuídos, os sistemas de equações
do MEC são resolvidos, sendo os fluxos q I calculados nas interfaces;
B

(ii) Com os valores de fluxo q I calculados, estes são convertidos para valores de forças nodais f I ,
B B

cujo negativo servirá de condição de contorno para os nós do MEF na interface (eq. 20).
(iii)Os sistemas de equações do MEF são resolvidos, sendo os valores de potenciais uFI obtidos.
Os novos potenciais uBI para os nós de interface dos elementos do MEC são obtidos pela ponderação
descrita abaixo (seguindo a relação (19) e adotando um parâmetro de relaxamento a):

40 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011


(iv) Segue-se para o passo (i) do algoritmo, continuando o processo iterativo. A iteração termina
quando a diferença normalizada dos vetores de potencial u I , n+1 e u I , n torna-se menor do que uma
F F

dada tolerância ε.

Segunda metodologia
Nesta segunda abordagem, as condições de interface são trocadas em relação à primeira
metodologia. As etapas do algoritmo de solução são descritas a seguir.
(i) Estando valores para os potenciais nas interfaces do MEF atribuídos, os sistemas de equações
do MEF são resolvidos, sendo os fluxos q I calculados nas interfaces, a partir dos gradientes dos
F

potenciais;
(ii) Com os valores de fluxos qFI calculados, estes são utilizados como condição de contorno qBI
para o MEC (- kB qBI = kF qFI ), sendo as interfaces do MEC discretizadas por nós duplos (devido a
descontinuidades nos valores de gradiente provindos do MEF);
(iii) Os sistemas de equações do MEC são resolvidos, sendo os valores de potenciais uBI obtidos.
Os novos potenciais para os nós de interface dos elementos do MEF são obtidos pela ponderação
descrita abaixo:

(iv) Segue-se para o passo (i) do algoritmo, continuando o processo iterativo. A iteração termina
quando a diferença normalizada dos vetores de potencial uBI, n+1 e uBI, n torna-se menor do que uma
dada tolerância ε.
Ressalta-se que, nas primeira e segunda metodologias, o parâmetro de relaxamento α (0<α≤1)
é computado (ver eq.(22) ou eq.(25)) tendo em consideração a minimização do funcional de erro:

Resultados e Discussão
Duas análises de um modelo simples serão apresentadas a seguir: uma considerando meio
homogêneo e outra considerando meio heterogêneo, de forma a ilustrar a precisão das metodologias
discutidas. O problema em foco é esquematizado pela Figura 2 abaixo:

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011 41


Figura 2. Esquema do problema a ser analisado

Conforme se observa na Figura 2, uma interface curva é adotada entre os sub-domínios de


MEF e de MEC, de forma a evitar uma análise numérica trivial quando da consideração do caso
homogêneo (para o caso homogêneo, a resposta analítica do problema em questão é conhecida, sendo
caracterizada por um gradiente constante segundo a direção vertical e um gradiente nulo segundo a
direção horizontal).

Análise 1 (meio homogêneo)


Nesta primeira análise, a relação entre as constantes relativas a cada meio kB/kF vale 1. A Figura
3 ilustra os resultados obtidos para os campos potencial e gradiente ao longo da malha do MEF pelos
dois métodos de acoplamento MEF-MEC discutidos.

Figura 3. Meio homogêneo: campo potencial calculado pelo (a) método 1 e (b) método 2 campo gradiente calculado pelo (c) método
1 e (d) método 2 de acoplamento MEF-MEC.

Na Figura 4, os gráficos que explicitam os valores de potencial calculados ao longo do eixo y do


modelo são apresentados, estando os resultados obtidos em concordância com a resposta analítica do
modelo.

42 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011


Figura 4. Valor de potencial encontrado em função da posição y.

Os gráficos apresentados na Figuras 5 ilustram a convergência do processo iterativo. Nas análises


relativas à Figura 5(a), parâmetros de relaxamento foram fixados (isto é, as eq. (22) e (25) não foram
consideradas), sendo os números de iterações obtidos pelos dois métodos de acoplamento apresentados
na figura. Já os gráficos apresentados na Figura 5(b) ilustram os valores de α calculados a cada passo
iterativo (bem como o número máximo de iterações), tendo-se em conta a utilização das eq. (22) e
(25), considerando-se os dois métodos de acoplamento MEF-MEC.

Figura 5. (a) Número de iterações para convergência do resultado para cada valor de α fixado e (b) valor de α calculado a cada passo
iterativo (meio homogêneo).

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011 43


Conforme se pode observar na Figura 5, as expressões propostas para o cálculo otimizado de α
introduzem significativa melhora na convergência dos resultados.

Análise 2 (meio heterogêneo)


Nesta segunda análise, a relação entre as constantes relativas a cada meio kB/kF vale 10. Tendo-
se em conta esta nova configuração, os resultados obtidos para o campo potencial e para o campo
gradiente calculado ao longo da malha de MEF são apresentados na Figura 6, tendo-se em consideração
os dois métodos de acoplamento MEF-MEC discutidos.

Figura 6. Meio heterogêneo: campo potencial calculado pelo (a) método 1 e (b) método 2 campo gradiente calculado pelo (c) método
1 e (d) método 2 de acoplamento MEF-MEC.

Analogamente à Figura 5, para o caso homogêneo, a Figura 7 é apresentada a seguir, para o caso
heterogêneo:

Figura 7. (a) Número de iterações para convergência do resultado para cada valor de α fixado e (b) valor de α calculado a cada passo
iterativo (meio heterogêneo).

Mais uma vez observa-se nas Figuras 7(a) e 7(b), como as expressões propostas para o cálculo
otimizado de α introduzem significativa melhora na convergência dos resultados. Para a presente
análise de meio heterogêneo tal aprimoramento é ainda mais acentuado tendo em consideração o
método 1 de acoplamento MEF-MEC, uma vez que, conforme ilustrado na Figura 7(a), para este caso
raramente se obtém convergência para valores fixos de α.

44 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011


Conclusão
No ramo da engenharia, cada problema a ser estudado se encaixa melhor com determinada
ferramenta de resolução. O MEF é eficiente em análises de meios heterogêneos e anisotrópicos, porém
com domínio finito. Já o MEC se destaca em problemas com meios homogêneos finitos ou semi-
infinitos, com rápida resolução numérica, devido ao fato das dimensões de suas matrizes terem ordem
reduzida (discretização tão somente de contorno). Diversos outros métodos, como o método das
diferenças finitas, volumes finitos, métodos meshless etc., possuem também melhores funcionalidades
para determinados tipos de problemas.
Como o MEF e o MEC são tratados no programa relativo a análises acopladas iterativas como
subrotinas praticamente independentes, torna-se fácil a implementação e a generalização dos códigos,
podendo-se considerar com mínimo esforço uma série de diferentes métodos numéricos acoplados,
desenvolvendo-se assim uma poderosa ferramenta numérica.
Portanto, pode-se notar que, além das vantagens oferecidas pelo algoritmo proposto neste
trabalho, ele é capaz de oferecer uma enorme gama de possibilidades, visto que pode ser aprofundado
em diversos estudos da engenharia, considerando diversos procedimentos numéricos distintos.

Agradecimentos
Agradecimentos são aqui prestados ao CNPq e à FAPEMIG pelo apoio financeiro conferido à
presente pesquisa.

Permanent Fields Analysis by the Iterative FEM-BEM Coupling

ABSTRACT
In this work, the numerical modeling of static electromagnetic fields is discussed taking into
account the coupling of finite and boundary element methods (FEM and BEM, respectively).
Two iterative techniques are considered for the coupling, allowing each subdomain of the model
to be analyzed independently, being the interactions of the subdomains established through in-
terface conditions. In the 1st approach, essential (Dirichlet) boundary conditions are prescribed
at the interfaces of the sub-domains discretized by BEM, whereas natural (Neumann) boundary
conditions are prescribed at the interfaces of the sub-domains discretized by FEM. In the 2nd
approach, these interface boundary conditions are switched. In both cases, optimized relaxation
parameters are employed to ensure and/or to speed up the convergence of the iterative algorithm.
Keywords: Boundary Element Method, Finite Element Method, Iterative Coupling, Compu-
tational Electromagnetism.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011 45


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46 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 37-46, jan./dez. 2011


DESPACHO DE UNIDADES TERMOELÉTRICAS
CONSIDERANDO A REDE DE GÁS E A REDE ELÉTRICA
Lourival B. Castro *
Murilo L. Rodrigues *
Prof. Dr. Edimar J. de Oliveira **

RESUMO
Este artigo apresenta uma modelagem para o problema de Unit Commitment térmico incluindo
as restrições de fluxo na rede elétrica e a disponibilidade de gás para a geração termoelétrica. O
modelo proposto é formulado através de um problema de programação não linear onde inicial-
mente um problema de otimização linear é resolvido para determinar o sentido de fluxo de gás
na rede. A formulação proposta para o problema não linear considera as restrições de pressão nos
nós da rede bem como a priorização do gás para a indústria de base. Os resultados obtidos com
a metodologia proposta evidenciam a forte influência dos limites da rede elétrica e da disponibi-
lidade de gás no despacho das unidades termoelétricas.
Palavras-chave: Despacho termoelétrico, Disponibilidade de gás, Limite nas linhas de transmissão

Introdução
Este trabalho tem por objetivo mostrar o planejamento da operação de sistemas elétricos de
potência em estudos de curtíssimo prazo (planejamento horário), incluindo a rede de distribuição de
gás natural no planejamento.
A distribuição do gás é realizada por gasodutos em uma rede interligada de ‘nós’, que podem ser:
as próprias fontes, as usinas termelétricas ou a indústria (onde há uma demanda), entradas e saídas de
reservatórios, ou apenas lugares de passagem de gás, que são interligações entre dois ou mais gasodutos
distintos.
O foco deste problema consiste na modelagem da rede de distribuição de gás naturale como
esta rede de gás se comporta quando acoplada ao sistema de geração e transmissão de energia elétrica.
Para tanto, foi implementado um modelo computacional para encontrar o menor custo global e foram
realizados estudos em um sistema teste.

* Bolsistas PROBIC/FAPEMIG/UFJF
** Professor Orientador da Faculdade de Engenharia - UFJF
Endereço Profissional do Professor Orientador:
Faculdade de Engenharia. Universidade Federal de Juiz de Fora, Cidade Universitária, Bairro Martelos, CEP 36036-330, Juiz
de Fora, MG, Brasil. Email: edimar.oliveira@ufjf.edu.br

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 47-55, jan./dez. 2011


Formulação do Problema

O problema de despacho de unidades térmicas, considerando a rede de energia elétrica e a rede


de gás, é resolvido para uma demanda variável durante 24 horas. Este problema de otimização pode
ser formulado como:

A função objetivo deste problema, equação (1), consiste em minimizar o custo total de operação
do sistema. Este custo é formado por quatro termos: (i) o primeiro termo representa o custo de operação
das usinas térmicas; (ii) o segundo termo, o custo da retirada de gás das fontes de gás natural; (iii) o
terceiro termo está relacionado ao custo de retirada de gás dos reservatórios de gás natural; e o último
(iv) é referente ao custo do déficit pelo não atendimento à demanda. Pode-se observar que todos os

48 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 47-55, jan./dez. 2011


custos da função objetivo variam proporcionalmente com a demanda de energia elétrica, não havendo,
portanto, a ocorrência de função multiobjetivo.
A restrição (1.1) é a equação referente ao modelo de fluxo DC de balanço de potência ativa
em cada hora do período de operação. Nesta equação, a potência gerada por uma usina é igual a sua
produtibilidade multiplicada pelo volume utilizado de gás natural (∑nT(k)
i=1 nivtt i )
A restrição (1.2) é a equação do balanço de gás natural em um nó da rede. Ou seja, a soma dos
fluxos de gás que chegam ao nó pelos gasodutos ou por alguma fonte ou reservatório é igual ao volume
de gás utilizado pela usina somado ao gás que vai para armazenamento (reservatório) ou para outra
demanda.
A restrição (1.3) é a equação de balanço de volume de gás em um reservatório da rede. Ou seja,
o volume de gás do reservatório em cada hora é igual ao volume inicial do reservatório, somado ao
volume afluente, subtraído do volume fornecido para o sistema.
As inequações (1.4) representam as restrições dos tempos mínimos de parada e partida das usinas
térmicas geradoras.
O conjunto de equações (1.5) e (1.6) são as restrições de fluxos de gás. Estas expressões são
dependentes da pressão nos nós da rede de gás. Estas restrições dependem do tipo de duto que está
sendo utilizado e podem ser basicamente de dois tipos:

a) Dutos passivos

Para gasodutos sem compressores, a equação de fluxo de gás é:

Onde a função sinal (g k-m(i)) é dada por:


t

Sinal (g k-m(i)) eepresenta o sentido do fluxo de gás nos gasodutos. Se (g tk-m(i)) > 0, o fluxo vai
t

do nó k para o nó m. Se (g tk-m(i)) < 0, o fluxo - (g tk-m(i)) vai do nó m para o nó k.

b) Dutos ativos (compressores)

Para gasodutos com compressores, utiliza-se uma inequação de fluxo para permitir o acréscimo
de pressão no ponto onde é instalado o compressor.

Em trechos com compressores o quadrado do fluxo de gás pode ser maior que o módulo da
diferença dos quadrados das duas pressões multiplicado pelo quadrado da constante correspondente
ao gasoduto. Isso acontece devido ao “boost” de pressão injetada pelos compressores neste tipo de
gasoduto.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 47-55, jan./dez. 2011 49


Finalmente, são consideradas no problema as restrições de limite das variáveis, equação (1.7),
tais como volume máximo de fluxo de gás, limites de geração térmica, limites de fluxos nas linhas de
transmissão e limites de pressão nos nós da rede. Destaca-se que este limite de pressão determina a
quantidade máxima de gás que flui no duto e, portanto, o volume de gás que estará disponível para
utilização.
O problema de otimização (1) é muito complexo e não pode ser resolvido facilmente devido
as suas características de acoplamento temporal das decisões liga/desliga das unidades térmicas, bem
como a interdependência da demanda elétrica com a disponibilidade de gás. Portanto, propõe-se no
item seguinte um algoritmo passo a passo para a solução deste problema.

Metodologia de Solução

O fluxograma da fig. 1 mostra o algoritmo passo a passo proposto para solução do problema de
despacho com rede de gás. Os passos necessários para obtenção do resultado final são apresentados a
seguir.

1) Solução do problema linear simplificado.

Este problema linear simplificado é obtido através do problema completo (1) desprezando-se as
restrições (1.4), (1.5) e (1.6). Este resultado aproximado é necessário para definir o sentido do fluxo
de gás nos dutos, ou seja, a partir desta solução obtém-se a “função sinal” que será usada na etapa não
linear de solução.

2) Solução do problema não linear completo.

A partir dos sinais dos fluxos de gás obtidos no modelo linear, é realizada a simulação considerando
também as equações e inequações não lineares correspondentes ao sistema de fluxo e pressão, restrições
(1.5 e 1.6). Destaca-se que devido às restrições de pressão mínima e máxima nos nós, o resultado
obtido é mais realista que o modelo linear, podendo apresentar déficit de gás devido à falta de pressão.
Este aspecto justifica a utilização de compressores, principalmente em rede longas de abastecimento
de gás.
Nesta etapa as restrições de tempo de parada e de partida das usinas termoelétricas ainda não são
levadas em consideração.

3) Ajuste das restrições de tempo de parada e partida

Nesta fase são verificadas e corrigidas as possíveis violações das restrições dos tempos de parada e
partida das termelétricas. A partir do resultado obtido da resolução não linear do problema, identifica-
se uma matriz com elementos binários (0 - usina desligada, 1 - usina ligada) arranjados de forma que
as linhas da matriz representam o horário de operação (normalmente de 0 a 24 horas) e cada coluna da
matriz fica associada a uma unidade geradora.
O algoritmo então “corrige” essa matriz, de modo que todas as restrições de tempo mínimo do
sistema sejam satisfeitas. Com a nova matriz de geração, os limites de geração dos elementos alterados
são remodelados, de modo que todas as usinas obedeçam às restrições na próxima iteração. O problema
é então simulado novamente, desta vez, com o resultado adequado.

50 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 47-55, jan./dez. 2011


Figura 1 – Fluxograma de resolução do problema

Para considerar o custo relativo da utilização de compressores na rede de gás, além de simplificar
o problema, foi sugerida a adição de mais uma variável no sistema, chamada BTR, representativa do
Booster de pressão introduzido pelos compressores. Esta variável é inserida nas equações (1.5) e (1.6),
de forma a tornar as duas restrições como uma única equação, veja a expressão (2):

Para dutos passivos, a variável BTR do duto é sempre igual a 1, o que torna a nova equação a
própria restrição (1.5). Para dutos com compressores, a variável BTR pode ser maior ou igual a 1.
Assim sendo, foi inserido um custo, na função objetivo, associado a esta variável a fim de simular o
custo da utilização do compressor no sistema.Se o resultado da variável for 1, seu custo é nulo, já que
demonstra a não utilização do compressor em tal duto.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 47-55, jan./dez. 2011 51


Caso Estudado

Para a avaliação da metodologia proposta será apresentado um estudo de caso estruturado na


forma de um sistema de três barras, sendo uma de demanda energética e de gás e as demais de geração
térmica. A rede de gás possui cinco nós, um reservatório, uma fonte equatro gasodutos, sendo um
com compressor (nó 1/ nó 3). Foram adicionadas também uma usina termoelétrica e uma fonte de
gás necessárias para representar os déficits de energia e gás, respectivamente. O sistema integrado é
disposto conforme a fig. 2.

Figura 2 –Esquema do caso estudado

A demanda do sistema obedece a uma curva de carga típica, baseada na curva de carga da região
Sudeste do país, fig. 3, em porcentagem de um máximo de 11 MW. Nas tab. I a VI são representados
os dados do sistema.

Figura 3 – Curva de demanda do sistema

52 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 47-55, jan./dez. 2011


Tabela I – Dados das unidades termoelétricas
Produtibilidade PGmáx Tempo de Tempo de Custo
Usina
(MW/104m³) (MW) parada (h) partida (h) ($/104m³)
1 0.6 10 3 4 100
2 0.6 10 3 4 500

Tabela II – Dados das linhas de transmissão


Linha Fluxo mínimo Fluxo máximo Admitância (S) Barra de saída Barra de
(MW) (MW) chegada
1 0 6 5.0 1 2
2 0 4 2.0 1 3
3 0 6 5.0 2 3

Tabela III – Dados das fontes de gás


Fonte de gás Produção máxima (104m³) Produção mínima (104m³) Custo ($/m³)
1 50 0 0.01
2 200 0 10000

Tabela IV - Dados dos gasodutos


Fluxo mínimo Fluxo máximo Constante (m³/ Nó de Nó de
Gasoduto
(104m³) (104m³) BAR) partida chegada
1 0 40 1 1 2
2 0 18 1 1 3
3 0 18 1 1 4
4 0 15 1 2 5

Tabela V – Dados de pressão dos nós da rede


Nó Pressão Mínima (BAR) Pressão Máxima (BAR)
1 94.5 95
2 90 100
3 94.5 95
4 94.5 95
5 90 95

Tabela VI – Dados do reservatório de gás


Volume Volume Entrada
Volume Custo de
armazenado armazenado / retirada
Reservatório inicial retirada ($/
mínimo máximo máxima de
(104m³) m³)
(104m³) (104m³) gás (104m³)
1 0 50 20 15 0.05

O resultado da geração, para o caso em que o gasoduto 2 possui compressor (BTR) e para o caso
em que todos os gasodutos são passivos, é apresentado no gráfico da fig. 4.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 47-55, jan./dez. 2011 53


Figura 4 – Resultado da geração

Verifica-se que, quando não há compressor no gasoduto 2, a usina 2 é utilizada praticamente


em todas as horas do período devido à impossibilidade de chegada de maior volume de gás à usina
1, que é 5 vezes mais barata do que a outra unidade geradora. Quando é adicionado o compressor ao
gasoduto, a pressão não mais restringe o volume de gás que alimenta a usina 1, e por isso a térmica 2
passa a ser utilizada somente nas horas de maior carga, onde a térmica 1 não é capaz de suprir sozinha
toda a demanda. Destaca-se que a redução de custo obtida pela melhor utilização da usina de menor
custo foi suficiente para justificar o investimento no compressor.

Conclusão

Este artigo propôs um método de resolução do problema de fluxo de potência de modo a unir
a rede de distribuição de gás natural com a rede de transmissão elétrica. Foram consideradas todas as
equações e inequações não lineares decorrentes dos cálculos do fluxo de gás em gasodutos com ou sem
compressores acoplados. Para inclusão do custo oriundo dos compressores foi adicionada uma nova
variável ao problema. Outro ponto de destaque é a verificação de restrições dos tempos mínimos de
parada e partida de usinas termelétricas. Estas foram analisadas e resolvidas por meio de um método
algoritmo que se aproxima do já conhecido unitcommitment.
Com base nos resultados obtidos, é possível destacar alguns pontos importantes:
- A desconsideração da rede de gás em alguns casos pode levar a resultados equivocados,
principalmente devido aos limites de fluxo de gás, que dependem da pressão nas saídas do gasoduto,
quando este não possui um compressor acoplado.
- A utilização de compressores em gasodutos estratégicos nos sistemas de distribuição de gás
pode ser uma saída econômica e produtiva, principalmente em momentos que seja necessário a partida
de usinas termelétricas mais importantes.
- Reservatórios em locais de fácil distribuição para as usinas da rede podem ser essenciais em
horários de pico e momentos com a demanda acima do normal, de modo a funcionarem como uma
usina hidrelétrica em épocas de seca; no caso, em curtíssimo prazo.

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THERMOELECTRIC UNITS DISPATCH CONSIDERING GAS AND
ELECTRICAL NETWORKS

ABSTRACT
This article presents a model for the problem of Unit Commitment including power flow res-
trictions in the electrical network and the availability of natural gas for thermoelectric power
generation. The proposed model is formulated using a nonlinear programming problem where
initially a linear optimization problem is solved to determine the direction of gas flow in the
network. The proposed formulation for the nonlinear problem considers the constraints of pres-
sure in the gas network nodes as well as the prioritization of gas to the base industry. The results
obtained with the proposed methodology show the strong influence of the boundaries of the
electrical grid and the availability of gas in the dispatch of thermal units.
Key words: Thermoelectric dispatch, Gas availability, Transmission line limits

Referências Bibliográficas

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algorithm, Management Sciences, 2000.

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coordinated scheduling of interdependent hydrothermal power and natural gas systems, IET Gene-
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MORAIS, M.S.; MARANGON, J.W.L. Combined natural gas and electricity network pricing,
Science Direct, 2007.

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integrated and hydrothermal and natural gas systems, IEEE PES Power Tech Conference, 2007.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 47-55, jan./dez. 2011 55


ZONEAMENTO DE ÁREAS SUSCEPTÍVEIS A
OCORRÊNCIA DE ESCORREGAMENTOS NA BACIA DO
RIO PARAIBUNA – MG/RJ
Rosana Lino de Faria *
Deborah Cristina Gomes de Oliveira **
Ricardo Tavares Zaidan ***

RESUMO

Os escorregamentos são eventos de ordem natural, ou induzida, que fazem parte da dinâmica
externa de modelagem da superfície terrestre. Grandes esforços têm sido feitos para entender e
prever os processos envolvidos na ocorrência desse tipo de fenômeno a fim de orientar um me-
lhor planejamento das cidades e a ocupação humana minimizando assim o risco sob a população
e seus patrimônios. O desenvolvimento de metodologias visando a previsão de movimentos de
massa e seus condicionantes vem sendo destacadas na literatura geomorfológica e geotécnica.
Com esse propósito, o modelo matemático determinístico SHALSTAB foi desenvolvido a fim
de identificar e mapear as áreas em diversos níveis de instabilidade. Esse modelo é baseado na
combinação dos modelos de estabilidade da encosta e no modelo hidrológico, aplicados em am-
biente ArcView. Esta metodologia foi aplicada na Bacia Hidrográfica do Rio Paraibuna MG/RJ
objetivando a identificação de suas áreas susceptíveis a escorregamentos. Foram utilizados dados
de elevação extraídos do SRTM/EMBRAPA e posteriormente criados mapas de área de contri-
buição e declividade. Os resultados obtidos apontaram diversas áreas de alta e altíssima instabi-
lidade em toda área da bacia. Desta forma, foi possível afirmar que essa ferramenta é de grande
importância para o planejamento urbano visando, principalmente, a segurança patrimonial e
humana. É importante ressaltar que este trabalho é parte componente do Projeto Diagnóstico
Ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio Paraibuna apoiado financeiramente pela PROPESQ/
UFJF e CNPq.
Palavras-Chave: Escorregamentos, SHALSTAB, Rio Paraibuna.

* Acadêmica do Curso de Geografia / UFJF, e-mail: rosanafariaf@yahoo.com.br


** Acadêmica do Curso de Geografia / UFJF, e-mail: deborahgeo_ufjf@yahoo.com.br
*** Professor orientador do Instituto de Ciências Humanas - UFJF.
E-mail: ricardo.zaidan@ufjf.edu.br. Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF, Instituto de Ciências Humanas, Departamento
de Geociências, Campus Universitário, s/n°, CEP 36036-900, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 57-64, jan./dez. 2011


Introdução
Os movimentos de massa são fenômenos naturais responsáveis pela dinâmica e modelagem
superficial do relevo terrestre. Sob a forma de várias combinações de quedas e deslizamentos, esses
movimentos podem transportar desde pequenas parcelas de solo a toneladas de materiais como solo
e rocha. De acordo com os dados da Defesa Civil da ONU (1993), os deslizamentos causaram 2517
mortes ficando abaixo apenas dos prejuízos causados pelos terremotos e inundações. A ocorrência dos
escorregamentos está associada a fatores como o crescimento desordenado, acompanhado de ocupação
irregular das encostas, falta de manutenção nos cortes de estradas e moradias, desmatamentos, disposição
irregular do lixo e das águas servidas, que associados a fatores naturais como longos períodos chuvosos
podem aumentar ainda mais os danos sob a população. Dessa forma, a ocorrência de escorregamentos
está associada tanto a fatores naturais quanto antrópicos, que em conjunto geram novas relações para
a ocorrência destes fenômenos, dificultando ainda mais a sua predição.
No Brasil, a ocorrência de movimentos de massa está associada às condições climáticas, como
intensas chuvas de verão, e condições geomorfológicas, como extensos maciços rochosos. Além da
frequência elevada dos eventos ocorridos de forma natural, os eventos causados pela ação antrópica
vêm aumentando significativamente, devido principalmente à ocupação irregular das encostas, uma
vez que os cortes inconsequentes de taludes propiciam uma maior susceptibilidade à ocorrência de
movimentos de massa.
A previsão desses movimentos pode ser dividida em quatro grupos: análise da distribuição dos
movimentos no campo, análise baseada em mapeamentos geomorfológicos e/ou geotécnicos, aplicação
de modelos com bases estatísticas e aplicação de modelos matemáticos (FERNANDES et al, 2001). As
metodologias baseadas em modelos matemáticos, desenvolvidos em bases físicas, ou seja, baseados em
leis físicas da natureza, têm sido cada vez mais utilizados para a predição dos movimentos de massa.
Dentre esses modelos, destaca-se o modelo matemático determinístico SHALSTAB (Shallow Stability)
que foi desenvolvido na Universidade da Califórnia em Berkeley no início da década de 90, e lançado
para ambiente Windows através da extensão do software ArcView 3.x já no final da década de 90
(DIETRICH & MONTGOMERY, 1998).
Este modelo tem sido utilizado nas diversas regiões da costa oeste dos EUA, Itália, Argentina
e Nova Zelândia, apresentando resultados satisfatórios (RAFAELLI et al., 2001; CLAESSENS et al.,
2005, apud ZAIDAN & FERNANDES, 2009). No Brasil, tem sido utilizado nas proximidades do
Parque Nacional da Tijuca – RJ (GUIMARÃES, 2000; FERNANDES et al., 2001; GUIMARÃES
et al., 2002; FERNANDES et al., 2004; em Minas Gerais nas margens da BR-356 no município de
Ouro Preto (REDIVO, et al., 2004), na região do Quadrilátero Ferrífero (RAMOS et al., 2002) e em
regiões urbanas (ZAIDAN & FERNANDES, 2009).
A área escolhida para este estudo foi a Bacia do Rio Paraibuna, localizada nos estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro, por apresentar diversas áreas com registros de movimentos de massa.
Dessa forma, o objetivo deste trabalho foi criar um Zoneamento de Áreas Susceptíveis a
Ocorrência de Escorregamentos na Bacia do Rio Paraibuna – MG/RJ. Especificamente buscou-se
analisar e classificar a susceptibilidade a ocorrência de escorregamentos nas porções leste, oeste, norte e
sul da Bacia do Paraibuna e, através das imagens do Google Earth analisar uma das áreas de Altíssima
Instabilidade no município de Passa Vinte.

58 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 57-64, jan./dez. 2011


Metodologia
A escolha da Bacia do Rio Paraibuna se deu pelo fato desta bacia apresentar diversas áreas com
registros de movimentos de massa, e por fazer parte de um projeto maior de Diagnóstico Ambiental. A
escala de trabalho adotada foi de 1:250000 pois levou-se em consideração o tamanho da área de estudo,
8.593 km2, o que abrange os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, totalizando 37 municípios.
Para o Zoneamento de Áreas Susceptíveis a Ocorrência de Escorregamentos na Bacia do Rio
Paraibuna MG/RJ foram necessários os dados de elevação da bacia, os cálculos de área de contribuição
e declividade e o cálculo da susceptibilidade a escorregamentos. Para a obtenção dos dados de elevação
da bacia foram utilizadas as imagens SRTM distribuídas gratuitamente através do site da EMBRAPA.
De acordo com a EMBRAPA estes dados altimétricos são precisos para todo território brasileiro,
incluindo as áreas topograficamente inacessíveis.
Para a realização deste trabalho utilizou-se quatro imagens SRTM (SF-23-X-C, SF-23-X-D,
SF-23-Z-A e SF-23-Z-B) no sistema UTM, referenciado no DATUM SAD-1969 (South American
Datum) – Zona 23S. Em seguida as imagens passaram pelo processo de mosaicagem através do software
ERDAS IMAGINE a fim de que pudessem ser visualizadas conjuntamente. Após realizado o mosaico,
a bacia foi dividida em 10 recortes menores para que o tamanho do raster de elevação ficasse entre 1000
linhas x 1000 colunas, limite máximo suportado pelo modelo SHALSTAB na plataforma ArcView
3.3. Em seguida, todas as depressões (elevações que são menores ou iguais a zero) foram preenchidas,
uma vez que o modelo SHALSTAB está designado para trabalhar em uma bacia hidrográfica onde as
depressões (sinks) já estão removidas.
A área de contribuição, definida como a área drenada a montante por uma unidade de contorno,
é um cálculo importante para a inferência de deslizamentos (DIETRICH e MONTGOMERY,
1998). O modelo SHALSTAB calcula este parâmetro hidrológico a partir do escoamento superficial,
como descrito por O’Loughlin (1986). Para o cálculo da área de contribuição foi utilizado o modelo
SHALSTAB em ambiente ArcView 3.3. Os dados necessários para este cálculo foram obtidos através
do modelo de elevação com as depressões removidas (fill) o que permitiu então calcular a área de
drenagem para cada célula da grade (grid).
Para o cálculo da declividade foram utilizados os dados de elevação com sinks removidos extraídos
do SRTM e o modelo SHALSTAB através do ArcView 3.3. O resultado foi o cálculo (porcentagem)
da média local da encosta para cada célula da grade.
Para a obtenção do cálculo da susceptibilidade a escorregamentos foi calculada a proporção da
precipitação efetiva q (chuva menos evapotranspiração) para a transmissividade T (capacidade da superfície
do terreno em transmitir água encosta abaixo), ou a proporção q/T, para toda a paisagem utilizando o
modelo SHALSTAB. Foram utilizados para este cálculo os dados de elevação com sinks removidos, a área
de contribuição e a declividade. Os parâmetros geotécnicos adotados foram a densidade do solo (1700
kg/m3 – densidade aproximada da maior parte do solo da bacia) e ângulo de fricção do solo de 45° (valor
sugerido pelo software). Para este cálculo não foi considerado o fator coesão do solo.
O Zoneamento de Susceptibilidade da Bacia do Rio Paraibuna foi obtido utilizando o limite
da bacia extraído da junção das cartas do IBGE. Em relação às classes de instabilidade, o modelo
SHALSTAB determina 7 classes, sendo: Incondicionalmente Instável e Saturado – Altíssima
Instabilidade, Incondicionalmente Instável e Não Saturado – Alta Instabilidade, Instável e Saturado
– Média Alta Instabilidade, Instável e Não Saturado – Média Instabilidade, Estável e Não Saturado
– Média-Baixa Instabilidade, Incondicionalmente Estável e Não Saturado – Baixa Instabilidade,
Incondicionalmente Estável e Saturado – Baixíssima Instabilidade.
Neste estudo foi destacada a classe Incondicionalmente Instável e Saturado Altíssima Instabilidade
por entendermos que nestas áreas há maior probabilidade de ocorrência de escorregamentos. Por

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 57-64, jan./dez. 2011 59


corresponderam a pequenas porções ao longo da bacia, a classe Altíssima Instabilidade foi realçada
através de pontos na cor vermelha, uma vez que na escala de visualização que abrangeria a bacia na sua
totalidade, não seria possível determinar a sua localização.
A partir da calculadora raster no ArcGis, foram calculados os valores de cada área de instabilidade.
Para isso foi utilizado o campo contagem, que determina o número de células de cada classe, e o valor de
cada célula em metros (8105 m2). Em seguida foi feito um gráfico de susceptibilidade a escorregamentos
para a Bacia do Rio Paraibuna a partir da relação entre áreas (m2) e classes de instabilidade.

Resultados e Discussão
Os resultados apresentados referem-se ao Zoneamento de Áreas Susceptíveis a Ocorrência de
Escorregamentos na Bacia do Paraibuna MG/RJ (Fig. 1). A escala adotada foi de 1:250000 afim de
englobar a Bacia do Paraibuna em sua totalidade. Foi destacada a classe Altíssima Instabilidade, uma
vez que é nesse tipo de área a maior probabilidade de ocorrência de escorregamentos.
Devido à inexistência de mapeamentos de cicatrizes de escorregamentos na área de estudo
tornou-se necessário analisar as áreas de altíssima instabilidade através das imagens do Google Earth,
na medida em que outras imagens de satélites disponíveis à comunidade acadêmica não possuíam a
mesma capacidade de detalhamento dos terrenos. No entanto, apesar das imagens do Google Earth
não serem indicadas para análises com precisão métrica de terreno, foi possível identificar diversas áreas
com indícios de movimentos de massa pretéritos e que de acordo com o modelo SHALSTAB foram
apontadas como de Altíssima Instabilidade.
A análise do zoneamento da bacia foi feita em 2 etapas: a primeira foi observar a distribuição
das classes de instabilidade nas porções leste, oeste, norte e sul da bacia e a segunda etapa foi observar
através das imagens do Google Earth as características do terreno das áreas apontadas como de Altíssima
Instabilidade no município de Passa Vinte como área piloto.

Fig. 1: Representação do mapa de Susceptibilidade a Escorregamentos na Bacia do Paraibuna com destaque em vermelho as áreas
de altíssima instabilidade.

60 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 57-64, jan./dez. 2011


De acordo com o Zoneamento de Susceptibilidade a Ocorrência de Escorregamentos na Bacia
do Paraibuna foi possível afirmar que a porção leste da Bacia concentrou o maior número de áreas
classificadas como “Incondicionalmente Instável e Saturado – Altíssima Instabilidade”, o que totaliza
uma área de 794.290 m2. A porção oeste da bacia foi classificada como a segunda maior a abrigar áreas
de Altíssima Instabilidade, com 713.240 m2. Em penúltima opção, a porção norte totalizou uma área
de 656.505 m2 e em último lugar a porção sul com 657.350 m2 de áreas de Altíssima Instabilidade.
A figura 2 mostra o gráfico de susceptibilidade a ocorrência de escorregamentos gerado para a
Bacia do Paraibuna. A partir deste gráfico é possível afirmar que as sete classes geradas pelo modelo
SHALSTAB são encontradas na bacia, mas a predominante é a classe Baixíssima Instabilidade
(7.799.060.081 m2). Em relação à classe Altíssima Instabilidade, cuja área é a mais provável de
ocorrência de movimentos de massa, foi encontrado o quarto maior valor de instabilidade (2.731.348
m2). De acordo com o Zoneamento de Susceptibilidade a Ocorrência de Escorregamentos na Bacia
do Paraibuna foi possível afirmar que a porção leste da Bacia concentrou o maior número de áreas
classificadas como “Incondicionalmente Instável e Saturado – Altíssima Instabilidade”, o que totaliza
uma área de 794.290 m2. A porção oeste da bacia foi classificada como a segunda maior a abrigar áreas
de Altíssima Instabilidade, com 713.240 m2. Em penúltima opção, a porção norte totalizou uma área
de 656.505 m2 e em último lugar a porção sul com 657.350 m2 de áreas de Altíssima Instabilidade.
A figura 2 mostra o gráfico de susceptibilidade a ocorrência de escorregamentos gerado para a
Bacia do Paraibuna. A partir deste gráfico é possível afirmar que as sete classes geradas pelo modelo
SHALSTAB são encontradas na bacia, mas a predominante é a classe Baixíssima Instabilidade
(7.799.060.081 m2). Em relação à classe Altíssima Instabilidade, cuja área é a mais provável de
ocorrência de movimentos de massa, foi encontrado o quarto maior valor de instabilidade (2.731.348
m2).

Fig. 2: Gráfico demonstrativo das Classes de Instabilidade a escorregamentos e suas respectivas áreas (m2).

Na segunda etapa deste estudo foi escolhido o município de Passa Vinte para exemplificar
as áreas classificadas como de Altíssima Instabilidade (Fig.3). De acordo com o Zoneamento de
Susceptibilidade a Escorregamentos, este município apresentou cinco áreas de altíssima instabilidade,
todas com características geomorfológicas semelhantes, como encostas com alta declividade, extensos
paredões rochosos, solos expostos. Na primeira imagem do Google é possível visualizar a presença
de solo exposto e pouca cobertura vegetal, que em conjunto aumenta o risco de queda ou rolamento
de blocos rochosos. Na segunda imagem, é possível visualizar declives acentuados e várias linhas de
drenagem o que pode caracterizar deslizamentos pretéritos.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 57-64, jan./dez. 2011 61


Fig. 3: Altíssima Instabilidade no Município de Passa Vinte.

Conclusão
O uso de Sistemas de Informações Geográficos (SIG’s) e modelos matemáticos desenvolvidos
em bases físicas se mostraram uma ferramenta eficaz para a previsão de áreas susceptíveis a movimentos
de massa, uma vez que as áreas apontadas como de Altíssima Instabilidade apresentaram na realidade
porções do relevo com características de áreas instáveis.
A escolha da escala cartográfica de análise (1:250000) foi essencial para o estudo de toda a
área da Bacia do Paraibuna o que subsidiará futuros estudos de detalhe de cada uma dessas áreas de
Altíssima Instabilidade.
Dessa forma, observou-se que a porção da Bacia do Paraibuna que apresenta a maior área de
Altíssimo Risco é a porção Leste, seguida das porções Oeste, Norte e Sul respectivamente. Em relação
às características geomorfológicas das áreas analisadas foi observado que são constituídas por altas
declividades, solo exposto, vegetação esparsa e afloramentos rochosos. A partir das imagens do Google
Earth, mesmo não sendo indicadas para esse tipo de análise, foi possível observar também áreas de
possíveis escorregamentos pretéritos.
Por fim, conclui-se que este estudo será uma ferramenta importante que subsidiará estudos
de maior detalhe para a Bacia do Paraibuna, uma vez que já foram apontadas as áreas de maior
instabilidade. Assim sugere-se que estudos posteriores sejam feitos utilizando escalas como de 1:50000,
1:25000, 1:10000, pois assim as áreas urbanas poderão ser analisadas detalhadamente subsidiando um
melhor planejamento para o uso e ocupação das encostas.

62 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 57-64, jan./dez. 2011


Agradecimentos
Agradeço ao Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora, ao CNPq e
à Universidade Federal de Juiz de Fora por acreditar na importância deste projeto.

Zoning of the percentage of high and very high susceptibility to


the occurrence of landslidings in towns of hydrographic basin of
Paraibuna river.
ABSTRACT

The landslides can either occur naturally or to be induced. They compose the external dynamic
of the earth’s surface. Great efforts have been done in order to understand and to predict the
processes involved in the occurrence of these phenomena in order to guide a better planning of
cities and the human occupation, minimizing the risk for the population and their patrimony.
The development of methodologies aiming the prediction of mass movements and their relates
has been highlighted in the geomorphologic and geotechnical literature. With this purpose, the
deterministic mathematical model SHALSTAB was developed in order to identify and to map
the areas in different instability levels. This model is based on combination of models applied on
stability of hillsides and in the hydrologic model applied on environment ArcView. This metho-
dology was applied in the hydrographic basin of the River Paraibuna MG/RJ aiming the iden-
tifying of susceptible areas to landslides over all the basin. It was used elevation data obtained
from SRTM/EMBRAPA in order to develop maps of areas of contribution and declivity. The
results show several areas of high and very high instability over in this basin. Thus, it is possible
to affirm that this tool is of great importance for the urban planning, mainly for the human and
patrimonial security. This work is linked to the project Environmental Diagnostic of Hydrogra-
phic Basin of the River Paraibuna supported by PROPESQ/UFJF and CNPq.
Key words: Landslides, SHALSTAB, River Paraibuna.

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64 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 57-64, jan./dez. 2011


A PRÁTICA DA REUTILIZAÇÃO NAS SOCIEDADES
OCIDENTAIS DA ATUALIDADE: UMA PESQUISA SOBRE
O COMÉRCIO DE ROUPAS USADAS NA CIDADE DE
JUIZ DE FORA
Msc. Ciro de Sousa Vale *
Ivianny Luíza Gonçalves Crescêncio **
Lorena Ribeiro Ferreira **

RESUMO
Nosso trabalho consistiu em pesquisar sobre a prática da reutilização a partir de estudo do uni-
verso da venda de roupas usadas em estabelecimentos da cidade de Juiz de Fora (MG). O motivo
que nos levou a estudar esse assunto foi o fato de o consumismo, comportamento extremamente
presente no universo capitalista atual, ter-se revelado como orientação insustentável em uma
época em que as práticas racionais de uso do ambiente natural vêm sendo defendidas. Por isso,
a relevância do interesse de se investigar o grau de existência, nas sociedades atuais, da prática
do reaproveitamento, do não desperdício. Assim sendo, além da leitura bibliográfica relacionada
à questão do consumo nas sociedades modernas, dedicamo-nos a realizar entrevistas com pro-
prietários de bazares e brechós da cidade em questão, bem como com consumidores dos artigos
vendidos nesses espaços, visando à investigação de aspectos importantes, tais como: a procedên-
cia das mercadorias vendidas, o perfil do consumidor de tais artigos e a motivação que o leva à
compra de roupas usadas, além da aceitação desses produtos na sociedade e os tabus relacionados
ao uso dessas mercadorias.
Palavras-chave: reutilização; roupas usadas; sociedade de consumo.

Introdução
Em um mundo em que a produção cada vez mais crescente de resíduos torna-se uma das grandes
preocupações dos gestores públicos e que o esgotamento dos recursos naturais é ponto que vem gerando
inúmeras discussões, a perspectiva de reaproveitamento de materiais ganha destaque como alternativa
sustentável ou até como prática indispensável na atual conjuntura histórica.

* Professor Orientador do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de MG.


Endereço Profissional do Professor Orientador:
Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (campus Juiz de Fora) - Rua Bernardo Mascarenhas,
1283, Bairro Fábrica, Juiz de Fora, MG Email: vale.huk@bol.com.br
** Bolsistas de Iniciação Científica: PROBIC/JR.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 65-72, jan./dez. 2011


A ideia de se evitar o desperdício através do reaproveitamento é antiga na história da humanidade.
No Evangelho de João (6:12), por exemplo, encontra-se o seguinte trecho: “Quando se saciaram, disse
Jesus a seus discípulos: ‘Recolhei os pedaços que sobraram para que nada se perca.” (A Bíblia, 1980
apud EIGENHEER, 2003: 47)
No entanto, nos últimos séculos, tal mentalidade perdeu prestígio nas sociedades ocidentais.
Na modernidade ocidental, as questões do consumo e do consumismo são aspectos muito
importantes para se analisarem os hábitos de vida da coletividade. Havendo um enfraquecimento da
valorização de valores tradicionais (principalmente da tradição judaico-cristã), o consumo de bens
efêmeros passou a preencher a lacuna que se formou no imaginário social. (EIGENHEER, 2003: 26)
E esse consumo, segundo vários estudiosos, afirmou-se em uma perspectiva de exagero, dando
origem ao que se chamou de “consumismo”: o que se vende é mais do que produtos são frustrações, é a
possibilidade de se comprar novamente, de se obterem artigos novos, mais modernos, mais resistentes,
mais eficientes, em busca de uma satisfação pessoal sempre marcada pela incompletude.
Tal consumismo, no entanto, revela-se como orientação insustentável em uma época em que a
reflexão sobre o uso predatório dos recursos naturais toma proporções mundiais e que práticas racionais
de uso do ambiente natural vêm sendo defendidas.
Nesse sentido é que o projeto proposto ganhou sustentação. Através dele, buscou-se investigar
a existência, nas sociedades atuais, da prática do reaproveitamento, por meio de pesquisa sobre o
comércio de roupas usadas. O funcionamento de brechós e bazares foi alvo do estudo em questão, que
teve como material de pesquisa estabelecimentos do gênero situados na cidade de Juiz de Fora (MG).
Afinal, a compra de roupas usadas estaria associada a uma perspectiva essencialmente consumista?
Na sociedade de consumo, emergiriam perspectivas de não desperdício de materiais? O espírito da
modernidade, que se baseia na busca incessante do novo, apareceria como entrave ao setor de venda
de artigos usados?
Subjazem à pesquisa proposta essas questões complexas que não se pretende, certamente, esgotar
e sim tomar como ponto de partida de outros estudos, mais aprofundados no futuro.

Metodologia

O estudo proposto foi constituído primeiramente a partir da leitura de bibliografia relacionada


à questão do consumo nas sociedades modernas. Constituiu-se também a partir da realização de
entrevistas, em um período de dois meses no ano de 2010, com proprietários de brechós e bazares da
cidade de Juiz de Fora e com consumidores dos artigos vendidos nesses espaços. Esse trabalho de campo
se desenvolveu por amostragem e visou a identificação de aspectos importantes, tais como: o perfil do
público consumidor de artigos usados e a motivação da busca por esse tipo de mercadoria; a origem das
mercadorias oferecidas e a existência de tabus relacionados à compra de peças de vestimentas usadas. A
última parte da pesquisa foi resultado da análise dos dados obtidos através das entrevistas.

Resultados
Através das entrevistas realizadas com 25 donos de estabelecimentos de roupas usadas e 19
consumidores, buscou-se identificar como o comércio de roupas usadas em Juiz de Fora é percebido
pelos donos de bazares e brechós e pelos compradores dos produtos citados.

66 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 65-72, jan./dez. 2011


Uma constatação importante foi que nesse tipo de comércio em Juiz de Fora, embora 16%
dos entrevistados tenham relatado que estão na atividade há menos de 1 ano, diversos comerciantes
afirmaram estar no ramo há mais tempo. Um total de 52% dos entrevistados se encontram no setor
num período compreendido entre 1 e 5 anos, enquanto 24% já estão envolvidos na atividade num
período entre 6 a 10 anos. Já 8% dos entrevistados estão há mais de 11 anos nesse comércio. Percebeu-
se então que esta atividade vem crescendo nos últimos anos, pois praticamente há uma década o
percentual envolvido neste setor era pequeno, conforme pode ser atestado pela figura abaixo:

Figura 1

Já em relação à sensibilidade dos comerciantes no tocante ao fato de a reutilização contribuir para


a diminuição da pressão sobre recursos naturais do planeta, apesar de 92% dos entrevistados afirmarem
que têm a percepção sobre tal fato (Fig. 2), notou-se que esta reflexão não é bem definida por eles,
uma vez que encontraram dificuldades em relacionar diretamente o comércio de roupas usadas com a
conservação do meio ambiente.

Figura 2

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 65-72, jan./dez. 2011 67


Outro aspecto investigado foi o preconceito relacionado à aquisição de itens usados. Um total
de 72% dos comerciantes afirmaram existir preconceito na compra de roupas usadas (Fig. 3). Segundo
relato de muitos comerciantes, indivíduos mais novos, principalmente os adolescentes, são os mais
preconceituosos com relação a esse tipo de comércio. Vários donos de bazares relataram que os pais
desses adolescentes é que se encarregam de comprar artigos que atraem estes mesmos jovens, devido ao
fato de os mais novos não gostarem de ser vistos em lojas de roupas usadas.

Figura 3

Com relação aos consumidores, pôde-se perceber que vários aspectos os impulsionam a adquirir
roupas usadas, como demonstra a Fig. 4. Dentre os fatores citados, destacaram-se o preço baixo e a
qualidade dos produtos (31,58%). Muitos entrevistados enfatizaram o fato de encontrarem nesses
estabelecimentos produtos de marcas famosas e em estado de boa conservação, além de um preço
muito mais acessível. Para muitos consumidores, os preços praticados nesse tipo de comércio ainda se
tornam mais vantajosos se comparados aos de lojas populares da zona central da cidade - estas vendem
artigos novos, porém de qualidade inferior, embora os preços possam ser equivalentes aos de lojas de
roupas usadas.

Figura 4

68 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 65-72, jan./dez. 2011


O estigma de se usarem roupas de pessoas falecidas ainda está no imaginário de mais de 15,79%
dos entrevistados. Esse percentual acredita na carga negativa impregnada nas vestes ou em supostas
doenças que poderiam ser contraídas dos falecidos, antigos donos das peças. Um percentual pequeno
(5,26%) dos entrevistados afirmou que até usaria roupa de falecido, desde que não conhecesse o
seu antigo dono ou que o produto fosse de algum familiar do comprador ou então que o material
fosse devidamente desinfetado. Já 78,95% dos consumidores acreditam que não há problema algum
em utilizar-se de roupas de pessoas já mortas, não questionando na hora da compra a origem das
mercadorias adquiridas. (Fig. 5)

Figura 5

Essa questão é interessante, pois os comerciantes em nenhum momento (quando perguntados


informalmente) admitiram que suas mercadorias poderiam ter pertencido a pessoas falecidas. Alguns
comerciantes, quando questionados, não quiseram identificar a origem das roupas, outros negaram uma
possível relação com o tema morte, e outros, ainda, declararam que não informavam a procedência das
roupas para os clientes, pois, se o fizessem, estes poderiam deixar de consumir os produtos ofertados.
Outro ponto relevante da pesquisa foi o entendimento dos consumidores em relação aos termos
“bazar” e “brechó”. (Figura 6) Um total de 47,37% dos consumidores disse não haver diferença entre
os dois termos. Porém, a maioria dos que responderam haver diferença entre os termos (52,63%) não
soube identificar no que ela consistia. Já os consumidores entrevistados que conseguiram apontar a
natureza da distinção entre os termos, apresentaram como principal diferença a sofisticação e o preço
caro dos itens apresentados nos brechós.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 65-72, jan./dez. 2011 69


Figura 6

Discussão
Uma importante consideração sobre o consumo de roupas é perceber que o ofício que o sustenta
já funcionava antes mesmo das grandes inovações tecnológicas, como atestado por Lívia Barbosa:

As principais invenções mecânicas da indústria de tecidos, cabeça de lança da in-


dustrialização, só apareceram a partir da década de 1780, embora a indústria de
roupas já funcionasse a pleno vapor, fundada no trabalho externo ou doméstico
de artesãos, permanecendo com essa estrutura produtiva até a década de 1830.
(BARBOSA, 2004: 16)

No entanto, nos tempos atuais, tal consumo entrou na esteira do que se convencionou chamar
de “consumismo”, ou seja, um consumo exagerado que se baseia em uma insaciabilidade extrema, fruto
de um desejo sempre estimulado. Nesse sentido, a perspectiva da moda para a indumentária nada mais
faz do que corroborar o consumo excessivo de produtos de vestuário:

A moda deve ser considerada, pois, como um sintoma do gosto ideal que flu-
tua no cérebro humano acima de tudo o que a vida natural nele acumula de
grosseiro, terrestre e imundo, como uma deformação sublime da natureza, ou
melhor, como uma tentativa permanente e sucessiva de correção da natureza.
(BAUDELAIRE, 1996: 25)

A pressão que o consumismo vem exercendo sobre os recursos naturais do planeta, no entanto,
vem obrigando o homem a repensar esse comportamento exagerado que o tem tornado refém da
cultura do sempre novo, a qual trata o planeta Terra como fonte inesgotável para os desejos humanos. É
a perspectiva, defendida pelos ambientalistas, de se pensar em diminuir o consumo de novos produtos:

70 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 65-72, jan./dez. 2011


Trata-se inicialmente, de limitar o consumo excessivo e o incrível desperdício de
nossos hábitos: 80% dos bens postos no mercado são utilizados uma única vez,
antes de ir direto para o lixo. (LATOUCHE, 2009:49)

Tal perspectiva vem sendo muito identificada com a reciclagem. No entanto, a reciclagem não
deve ser vista como a única saída para o problema. De fato, reduzir o consumo é uma necessidade dos
tempos atuais, bem como reutilizar os produtos:

É importante repensar os 3Rs – reduzir, reutilizar, reciclar-, apresentados hoje à


população, não raro, como panacéia para o problema dos resíduos na sociedade
de consumo. De fato, apenas o reciclar é incentivado. A sociedade industrial, em
determinadas circunstâncias, tem interesse em recuperar matéria-prima e ener-
gia. Reutilizar, por outro lado, contraria a lógica do consumo de massa: enfatiza
o conservar, que por sua vez incentiva o zelo e o cuidado, valorizando o durável
e o bem feito. (EIGENHEER, 2003: 155)

Importante, portanto, seria que a prática da recuperação significasse uma mudança profunda no
modo de o homem perceber suas reais necessidades e de compreender sua presença na Terra:

Não se deve ver, pois, no nosso entender, as práticas de recuperação unicamente


por valores e necessidades econômicas. Tentar resgatar e conservar o que se esvai
com o tempo, e ressignificar ou recriar o que não se deseja mais ou nos ameaça,
são aspectos a serem considerados (...). (EIGENHEER et al. 2005: 26)

A proposta de se investigar o comércio de roupas usadas na cidade mineira de Juiz de Fora partiu
dessa intrigante perspectiva de mudança de mentalidade por parte do ser humano – o estudo proposto
buscou tentar entender a motivação da presença da prática da reutilização na atualidade, destacando
suas restrições e o que revela sobre o modo de o homem se relacionar com o mundo em que vive.

Conclusão
Concluiu-se, através do estudo proposto, que o comércio de roupas usadas é uma atividade
tradicional na cidade de Juiz de Fora. A pesquisa também apontou que, apesar de a maioria dos
entrevistados perceberem a importância do ato da reutilização para a conservação ambiental, não soube
explicar como se dá essa conexão. Outro aspecto que merece ser ressaltado é em relação à motivação
que leva os consumidores a adquirirem esses produtos: o preço e a qualidade estão entre os fatores
principais que levam a tal prática de reutilização.
Percebe-se assim que a prática da reutilização de roupas na cidade não se dá devido a uma
consciência ambiental, relacionada a uma orientação de não desperdício, mas sim pela questão
econômica (roupas de boa qualidade e preços mais acessíveis do que os das lojas populares).

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 65-72, jan./dez. 2011 71


Agradecimentos
O presente trabalho foi possível com o apoio da PROPESQ (UFJF) e da FAPEMIG, que
possibilitaram o desenvolvimento da pesquisa e sua divulgação, através do XVI Seminário de Iniciação
Científica.
O agradecimento se estende também ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Sudeste de Minas Gerais (campus Juiz de Fora) que gentilmente disponibilizou transporte para que as
bolsistas pudessem realizar entrevistas em vários bairros da cidade.

The practice of reutilization in Western societies today: a research on


trade in used clothing in the city of Juiz de Fora.
ABSTRACT
Our work consists in a research on the practice of reutilization based on the study of the selling
universe of used clothing in establishments localized in the city of Juiz de Fora (which is localized
in the state of Minas Gerais). The reason that led us to study this issue is the fact that consu-
merism, an extremely present behavior in the current capitalist universe, turned out to be an
unsustainable orientation in a time in which the rational practices of use of the natural environ-
ment are being defended. For that reason the interest on researching the level of existence of the
practice of reutilization in current societies and non-waste is relevant. Thus, besides reading the
bibliography related to the question of consumerism in modern societies, we dedicated ourselves
to conduct interviews with the owners of bazaars and ‘jumble sale’ stores in the city at issue as
well with the consumers of the items which are sold in those places. In this interview we aimed
at important aspects, such as: the origin of the goods that are sold, the profile of the consumer
of such products and for which motive he buys used clothing as well as the acceptance of these
products on society and the taboos related to the use of such goods.
Key words: reutilization; used clothing; consumption society.

Referências bibliográficas
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72 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 65-72, jan./dez. 2011


O MUTUALISMO E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A
EXPANSÃO DA CIDADANIA NO BRASIL

Antonio Gasparetto Júnior *


Cláudia Maria Ribeiro Viscardi **

Resumo
O presente artigo tem como objetivo apresentar resultados da pesquisa intitulada “Expansão da
Autoridade Pública e Cidadania: proposição, implantação e recepção dos projetos de República
no Brasil (1870-1909)”. O enfoque é dado sobre as associações de caráter mutualista, entendidas
como expressão do processo de organização da sociedade civil e contribuidoras para a expansão
da cidadania.
Palavras-chave: Mutualismo; Cidadania; Sociedade Civil; Autoridade Pública; República.

Introdução
O artigo apresentado resulta de pesquisas parciais realizadas no âmbito de um projeto mais geral,
intitulado “Expansão da Autoridade Pública e Cidadania: proposição, implantação e recepção dos
projetos de República no Brasil (1870-1909)”.
As atividades foram desenvolvidas no Laboratório de História Política e Social – LAHPS,
localizado no Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal
de Juiz de Fora. Os estudos realizados neste equipamento de pesquisa buscam fortalecer o Grupo de
Pesquisa do CNPq identificado como “Cidadania, Trabalho e Exclusão”.
Neste trabalho, em específico, abordaremos as estratégias construídas pelos trabalhadores com o
fim de escapar ou de superar a situação de pobreza e de desamparo social, num contexto de implantação
da República, caracterizado pela ausência de políticas públicas de proteção social, as quais demorariam
para ocorrer.


*
Bolsista de Iniciação Científica FAPEMIG/PROBIC/UFJF.

**
Professora Orientadora do Instituto de Ciências Humanas - UFJF. Email: claudia.viscardi@ufjf.edu.br

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 73-78, jan./dez. 2011 73


Metodologia
A compreensão do desenvolvimento do processo de expansão da cidadania no Brasil se dá
através da observação do processo de modernização do país, o qual foi profundamente influenciado
por tradições europeias. Parte-se do pressuposto de que a tradição em curso no Brasil foi abalada por
duas mudanças de grande impacto: a abolição e a implantação do regime republicano, fatos ocorridos
ao final do século XIX e que propiciaram as condições necessárias para o processo de modernização
nacional. Aberta tal perspectiva, o referido Projeto de Pesquisa visa investigar a convivência verificada
no país entre as relações de cunho paternalista e os ideais de modernidade. Estes, que carregavam
consigo valores como os de cidadania, democracia, liberdade e igualdade.
Tendo em vista o processo de transformação das culturas políticas em curso, a partir da introdução
de elementos impactantes para a ordem então corrente, o Projeto de Pesquisa analisa como os principais
atores do cenário político em questão apresentavam suas diferentes propostas de constituição de uma
República no Brasil. Na intermediação desses anseios políticos e ideológicos, é necessário abordar a
concepção que tais indivíduos compartilhavam acerca dos elos entre o Estado e sociedade civil. Por
outro lado, aborda também o impacto e a resposta para tais projetos modernizadores surgidos no
âmbito da sociedade civil.
O período de alteração da tradicional cultura política brasileira no século XIX é muito
identificado pela introdução dos eventos, já citados, a abolição e a República. Embora a ocorrência de
tais eventos tenha se dado em 1888 e 1889 respectivamente, é preciso retornar ainda mais no tempo
para compreender o desenvolvimento dos ideais modernizadores. A pesquisa estipula, então, como
marco inicial o ano de 1870, escolha feita em função de ser o ano da institucionalização do movimento
pela Proclamação da República no Brasil, através da publicação do Manifesto Republicano, no Rio de
Janeiro. No outro extremo, a baliza final tem como data o ano de 1909, ano que representa o fim da
gestão presidencial de Afonso Pena e também o fim da segunda década republicana.
O desenvolvimento da pesquisa se dá a partir de três fases. Em sua primeira fase, são analisados
os diferentes projetos de República apresentados pelas lideranças da propaganda republicana no
país, focados sobre a expansão da autoridade pública e da cidadania. Sabe-se que a influência das
experiências obtidas nos Estados Unidos e na França apresentaram dois modelos diferenciados de
República. E, em razão disso, os republicanos brasileiros tiveram que fazer escolhas fundamentais, as
quais a pesquisa teve que observar no primeiro momento. O resultado de experiências já consolidadas
foi lido e reinterpretado no Brasil pelos republicanos, objeto que guia a primeira fase da pesquisa.
A segunda fase contempla a forma como tais projetos de República foram viabilizados, uma
vez que, semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos, a República coexistiu com os processos de
secularização, imigração, industrialização e urbanização, mesmo que o regime republicano no Brasil
tenha sido iniciado um século depois dos Estados Unidos. Todavia, em ambos os casos, foi lenta e
restritiva a expansão da cidadania. A segunda fase da pesquisa aborda, então, a construção de um
modelo republicano como resultado dos princípios que norteavam a sua formulação, através da análise
dos textos constitucionais que fundaram o novo regime. Nesta fase são analisadas as constituições
estaduais e a carta federal, aprovados entre 1890 e 1892.
Em sua terceira fase, a pesquisa analisa a recepção do modelo de República implantado,
observando a reação dos setores mais organizados da sociedade civil brasileira e também daqueles
não dotados da mesma capacidade de organização. O que se verifica em algumas regiões do Brasil,
sobretudo as urbanas, é uma situação próxima à ocorrida na região Norte da Itália, que apresentou uma
tendência da sociedade em responder ao Estado através da organização de associações, que defendiam
determinados interesses, a exemplo das associações mutualistas, sindicais, recreativas e religiosas.

74 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 73-78, jan./dez. 2011


Diante do quadro apresentado, torna-se importante investigar o que os chamados “pais
fundadores” da República no Brasil pensavam acerca da articulação entre o nascente regime brasileiro
e a cidadania, destacando as aspirações das elites políticas e dos setores organizados e não organizados
da sociedade civil.
Estabelecidos os três eixos sobre os quais se apoia a presente pesquisa, percebe-se então que ela
se desenvolve em três etapas. A primeira delas aborda os modelos de República propostos pelos atores
políticos, em decorrência das influências que lhes serviram de inspiração. Neste momento, cabe analisar
a documentação dos partidos republicanos existentes, observando seus manifestos e regimentos. O
recorte cronológico que o determina inicia-se em 1870 e finda-se em 1889, marcado pela deflagração
do movimento republicano e da Proclamação da República, nas respectivas datas.
A segunda etapa analisa a forma como o regime republicano foi instaurado, tendo como
pressuposto os seus marcos jurídico-políticos. Nesta etapa examinamos as relações mantidas com
as propostas iniciais da propaganda republicana. Neste momento, apresentam-se como importantes
fontes de pesquisa a Constituição de 1891 e todos os textos finais das constituições estaduais, o Código
Penal de 1890, as leis eleitorais e todos os decretos relativos à incorporação ou exclusão dos setores
sociais no poder. O limite cronológico é datado com início em 1889 e fim no ano de 1904, uma vez
que foram produzidas nesse período as constituições estaduais, as leis eleitorais e o Código Civil. Sendo
que a data final é coincidente com a Lei Rosa e Silva, a qual garantiu maior participação das minorias
no processo eleitoral da Primeira Republica.
Na terceira e última fase da pesquisa a abordagem se dá sobre a recepção do modelo republicano
brasileiro, levando em consideração a organização da população e dos setores que optaram pelo contato
direto com as autoridades públicas, sem a intermediação das associações de defesa de interesses, então
existentes. Esta é uma fase que subdivide-se em duas modalidades: a abordagem da sociedade civil
que se organizou sob idéias liberais, com enfoque especial nas associações mutualistas; e as respostas
dadas por setores mais desorganizados da população em relação ao modelo republicano adotado. Para
o desenvolvimento desta terceira etapa, foram mapeadas as associações existentes e digitalizados seus
estatutos e correspondências com o Estado. O recorte temporal desta fase da pesquisa inicia-se com o
governo presidencial de Rodrigues Alves, em 1902, e se estende até o fim do governo presidencial de
Afonso Pena, em 1909, marcando-se pelas correspondências de ambos. A escolha foi feita em função
de tais governos representarem o período de consolidação da República no Brasil, quando então as
relações do povo com o poder poderiam se dar com mais estabilidade.

Resultados e Discussão
No momento de nossa integração às atividades do Projeto de Pesquisa “Expansão da Autoridade
Pública e Cidadania”, os trabalhos já se encontravam em estágio avançado, sendo que a maior parte da
documentação necessária para o desenvolvimento da pesquisa já se encontrava à disposição. A pesquisa
se dava no âmbito do Laboratório de História Política e Social (LAHPS) e contava ainda com o
trabalho de outros bolsistas do projeto. Sob esta circunstância, fomos alocados nas atividades referentes
ao terceiro eixo do Projeto de Pesquisa em questão.
Retomando as informações, o terceiro eixo de abordagem do Projeto contempla as reações da
sociedade civil em relação ao modelo republicano adotado no Brasil. Neste viés, a abordagem recai
especialmente sobre as associações de caráter mutualista, uma vez que as mesmas representaram uma
das mais importantes possibilidades de organização social, daquele período. Tratava-se de uma forma de
organização autônoma em relação ao Estado e funcionava também como mecanismo de representação
de interesses da época, o que permitia à sociedade civil relacionar-se diretamente com o Estado.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 73-78, jan./dez. 2011 75


Para além da análise da documentação previamente coletada, e com base nos marcos teóricos
utilizados na pesquisa em curso, em nossa pesquisa individual, optamos por concentrar nossa atenção
sobre as associações de socorro mútuo de Juiz de Fora, sobretudo as organizadas por imigrantes. Entre
as muitas existentes, escolhemos estudar as portuguesas e italianas.
No trabalho de coleta realizado, tivemos a felicidade de descobrir e acessar arquivos particulares
de familiares de indivíduos que integraram tais associações e, desta forma, foi possível aumentar ainda
mais a oferta de fontes que subsidiassem as pesquisas. A documentação, que já contava previamente
com os estatutos e as correspondências digitalizadas de todas as associações levantadas, foi incrementada
ainda mais com outros tipos de documentos acessados em arquivo particular, a saber: fotografias,
certificados e notas documentais variadas. Especificamente, tais documentos eram referentes à
Associação Beneficente dos Irmãos Artistas, a qual tinha sede em Juiz de Fora no início do século
XX. Com o acesso à documentação relatada, as associações passaram a ser analisadas em relação ao
relacionamento que estabeleciam com as autoridades públicas republicanas.
A abordagem sobre as associações mutualistas e suas implicações políticas, civis e sociais configura-
se como uma temática de pesquisa relativamente recente no Brasil. Pioneira em tais estudos foi Tânia
Regina de Luca que, em 1990, apresentou o resultado em tese de doutorado, a qual virou livro, de suas
pesquisas sobre associações mutualistas nas cidades de São Paulo e Santos. Só então tais estudos, que
já ocorriam há mais tempo em países da Europa, foram colocados para a historiografia brasileira como
temática importante para análise do processo de organização da sociedade civil brasileira. Ainda assim,
o desenvolvimento das pesquisas sobre o tema caminhou lentamente durante a década de 1990, com
pesquisas especialmente desenvolvidas ou orientadas por Cláudio Batalha na UNICAMP, em Campinas.
O estudo sobre as associações mutualistas começou a tomar corpo no Brasil com bases em
estudos regionais, no século XXI. Destacaram-se então os estudos de Adhemar da Silva Júnior (2005),
no Rio Grande do Sul, Vitor Manoel Marques da Fonseca (2008), sobre o associativismo no Rio de
Janeiro, e de Cláudia Maria Ribeiro Viscardi (2006), com abordagem sobre as mutuais no estado de
Minas Gerais.
A especial atenção com as associações mutualistas resultou na publicação de um capítulo no livro
“À Margem do Caminho Novo” (VISCARDI & OLIVEIRA, 2010) sobre grupos sociais desfavorecidos
socialmente em Juiz de Fora no final do século XIX até a metade do século XX, tendo como autores
os mesmos deste artigo.
Em geral, as associações mutualistas tinham características variadas e se organizavam em diferentes
modalidades, a saber: científicas, patronais, de ofícios específicos ou mistos (JESUS, 2006). O estudo
sobre tais modalidades organizativas, em um período de ausência de mercado previdenciário, tornou-
se muito relevante no decorrer do tempo e conquistou contínuo interesse de jovens pesquisadores. O
associativismo urbano como expressão de uma cultura cívica, e de formação de uma esfera pública, capaz
de propiciar a ligação entre os indivíduos em busca do atendimento de necessidades não contempladas
pelo Estado, tornou-se cada vez mais destacado, à medida que analisávamos as fontes. Desta forma, seu
papel tornou-se notável no processo de construção da cidadania no Brasil.
Em suma, as atividades desenvolvidas no Projeto de Pesquisa resultaram em grande avanço para
a discussão da constituição de uma esfera pública no Brasil e do processo de expansão da cidadania.
A abordagem dada sobre o tema colocou em foco a mobilização social nos anos iniciais da República,
revelando uma ampla capacidade nesse sentido. Assim, foi possível verificar o desenvolvimento de
uma cultura associativa, que implicou na composição de uma cultura cívica para consolidar uma esfera
pública e, consequentemente, ampliar a cidadania.

76 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 73-78, jan./dez. 2011


Conclusão
A pesquisa detalhada sobre as atividades das associações mutualistas após a implantação do
projeto de República aceito no Brasil foi fundamental para contribuir para o momento de revisão da
ideia tradicional de ausência de organização da sociedade civil na Primeira República. Os novos estudos
que abordam o período mudaram a concepção que existia sobre a incapacidade dos trabalhadores em se
mobilizar, sobre a inexistência de cultura associativa, de cultura cívica e sobre a ausência de cidadania. O
chamado paradigma da ausência foi explorado pelo Projeto, que encontrou nas associações mutualistas
um importante elemento para revelar a capacidade de organização dos trabalhadores.
Dados estatísticos mostraram a relevante presença das mutuais em todas as regiões do país,
fortificando os laços de união entre os trabalhadores e sua capacidade de organização. E, a partir das
verificações na pesquisa, surgiu um projeto de pesquisa em nível de Mestrado que busca solucionar
mais uma lacuna desta discussão historiográfica, qual seja, a participação dos numerosos trabalhadores
imigrantes e suas organizações mutualistas nesse cenário.

Agradecimentos
Agradecemos ao Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento – CNPq, pelo patrocínio
do Projeto de Pesquisa “Expansão da Autoridade Pública e Cidadania”; à Fundação de Amparo à
Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG, que também financiou a pesquisa e concedeu bolsas de
Iniciação Científica que possibilitaram nossa participação nas atividades desenvolvidas; a todos os que
prestaram suas contribuições que auxiliaram ou enriqueceram as investigações e à Professora Doutora
Cláudia Maria Ribeiro Viscardi que esteve sempre presente na orientação das atividades da pesquisa.

The Mutualism in the Expansion of the Public Authority and


Citizenship in Brazil
ABSTRACT
This article aims to present partial results from a research entitled “Expansion of Citizenship and
Public Authority: proposal, implementation and the approval of projects of Republic in Brazil
(1870-1909)”. The focus is given over friendly societies’ movement, seen as part of civil society
organization and over their contributions for the expansion of citizenship in Brazil.
Keywords: Mutualism; Citizenship; Civil Society; Public Authority; Republic.

Referências Bibliográficas
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VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As Experiências Mutualistas de Minas Gerais: um ensaio inter-
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Viscardi, Cláudia Maria Ribeiro & GASPARETTO JÚNIOR, Antonio. O Mutualismo em Juiz de
Fora: as experiências da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: VISCARDI, Cláudia Maria
Ribeiro & OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. (Org.) À Margem do Caminho Novo. Editora FGV,
2010.

78 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 73-78, jan./dez. 2011


O ESPAÇO URBANO DE JUIZ DE FORA E A DINÂMICA
REGIONAL CONTEMPORÂNEA
Regis Francisco Rafael Silva *
Watuse Mirian de Jesus Geraldo *
Maria Lucia Pires Menezes **

RESUMO
Em Juiz de Fora destaca-se uma série de investimentos públicos e privados em modernização de
infra estrutura viária (aeroportos, criação de eixos de acesso e duplicação de rodovias), criação
de centros empresariais e condomínios industriais, desenvolvimento de projetos urbanísticos,
que culminaram com a valorização de espaços urbanos refletindo no incremento do mercado
fundiário/imobiliário, com a instalação de condomínios fechados e criação de espaços privados
de lazer e cultura, dinamizando a prestação de serviços e comércio. Em decorrência desta valori-
zação observa-se a emergência de novas polaridades urbanas, criando uma nova ordem espacial
em Juiz de Fora, com implicações para região de influência direta da cidade. Observou-se ainda
a estruturação de novos subcentros nas regiões sudoeste e nordeste da cidade. Estes novos inves-
timentos, muitos dos quais previstos no “Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável”
visam à inclusão da cidade na economia globalizada, através de mecanismo de city marketing.
Obviamente estes investimentos logísticos propiciam a ampliação de fluxos, inserindo Juiz de
Fora quanto ponto nodal na rede de circulação e produção da economia globalizada, amplian-
do a competitividade dos setores econômicos da cidade em escala local, regional e nacional. A
presente pesquisa “O Espaço Urbano de Juiz de Fora e a Dinâmica Regional Contemporânea”
intenta constatar e analisar os fluxos estabelecidos a partir dos novos fixos territoriais e a territo-
rialização das novas dinâmicas espaciais no espaço intraurbano de Juiz de Fora e microrregião.
Palavras Chaves: espaço urbano, dinâmicas espaciais, fixos, fluxos e rede urbana.

Introdução
O “Espaço Urbano de Juiz de Fora e a Dinâmica Regional Contemporânea” (2009) é um projeto
que dá continuidade ao projeto “Novas Geografias no Espaço Urbano-Regional de Juiz de Fora” (2007),
ambos contemplados com recursos da FAPEMIG. O primeiro, direcionado para a análise da expansão
urbana ao longo dos eixos viários nas regiões sudoeste e noroeste (eixos de ligação com a BR-040) permitiu

* Bolsista de iniciação científica FAPEMIG/PROBIC/UFJF.


** Professora Orientadora do Instituto de Ciências Humanas - UFJF
Endereço Profissional da Professora Orientadora:
Depto Geociências – ICH – UFJF; Campus Universutário, Bairro Martelos, sn, CEP: 36036-330, Juiz de Fora /MG. Email:
mlmgeo@terra.com.br

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 79-84, jan./dez. 2011


identificar a emergência de novas polaridades, ou seja, a reestruturação da ordem espacial na cidade com
reflexos na região de influência direta de Juiz de Fora, temática do segundo projeto (Cf. Menezes, 2009).
Destacam-se, nos últimos anos em Juiz de Fora, significativas mudanças na tipologia de ocupação
urbana, no que concerne a investimentos nos chamados fixos territoriais, tais como aeroportos,
centros de negócios, parques industriais e infraestrutura viária, visando a refuncionalização da cidade
e o incremento econômico, propiciando a valorização do espaço, dinamizando os setores fundiário/
imobiliário, bem como diversificação do comércio e prestação de serviços. Estas mudanças na tipologia
de ocupação devem ser entendidas como causa/consequência de processos mais amplos, uma vez que
há o entendimento do espaço quanto conjunto indissociável de fixos territoriais e fluxos, onde os fixos
representam locações no espaço e permitem ações que modificam o lugar e os fluxos que correspondem
a processos existentes ou possivelmente renovados que criam e recriam condições ambientais e sociais,
(re)modelando o espaço (SANTOS, 1997). Desta forma, estes novos fixos propiciam a estruturação
de uma rede de fluxos, criando novas territorialidades e articulando a cidade dentro da rede urbana.
Esta pesquisa esta centrada nas reflexões acerca das transformações espaciais ocorridas na
morfologia da cidade, porém ultrapassa a identificação e localização de novos fixos territoriais ao
analisar os fluxos que propiciaram estas transformações no espaço urbano de Juiz de Fora, bem como
os atores envolvidos e as implicações para a microrregião, frente às novas dinâmicas econômicas e de
reestruturação do espaço intraurbano e regional.

Metodologia

Na primeira fase do desenvolvimento da pesquisa foi realizada uma revisão bibliográfica sobre
a literatura referente à Geografia Urbana, consistindo no embasamento teórico para reconhecimento
e análise posterior das novas dinâmicas espaciais urbanas e regionais; foi realizada ainda revisão de
literatura sobre a Cartografia para elaboração de mapas temáticos (segundo normas e padrões técnicos
vigentes) sobre os novos fixos presentes na cidade, a nova ordem espacial urbana e as mobilidades
intraurbana e microrregional.
A legislação urbana, projetos urbanísticos e documentos oficiais foram pesquisados em diversos
arquivos históricos e em portal oficial da prefeitura municipal, para o entendimento da evolução
urbana de Juiz de Fora, com ênfase nas regiões onde se observou o surgimento de novas polaridades.
As informações obtidas foram documentadas e catalogadas. Intenta-se a criação de um banco dados
do LATUR (Laboratório de Territorialidades Urbano-regionais/Depto. Geociências - UFJF) acerca da
evolução urbana de Juiz de Fora para subsídios também aos demais projetos do laboratório.
Os trabalhos de campo, ainda em fase de execução, consistiram na identificação das novas formas
de uso e ocupação do solo, especialmente aquelas que configuram as novas geografias locais, a fim de
montar acervo fotográfico que evidencie a evolução das novas áreas de polaridades urbanas. Os trabalhos
de campo são imprescindíveis para a coleta de dados a serem utilizados na elaboração de mapas.
Por fim, intenta-se a constatação da territorialização das novas dinâmicas no espaço urbano de
Juiz de Fora, os fluxos estabelecidos e os principais atores envolvidos.

Resultados e Discussão
O município de Juiz de Fora, com 517.872 habitantes residentes (IBGE, 2010) é centro regional
da Zona da Mata, posição consolidada desde início do século XX, constituindo centro polarizador

80 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 79-84, jan./dez. 2011


de equipamentos e serviços urbanos mais especializados; apresentou nos últimos anos um modelo de
desenvolvimento urbano materializado por novas estruturas industriais, comerciais, imobiliárias e de
serviços na tentativa de inserção da cidade na economia globalizada por meio de mecanismos da city
marketing. As ações privadas e públicas, por meio de políticas de planejamento e ordenamento territorial,
direcionam a expansão urbana para a periferia da cidade, com a alocação dos novos investimentos nas
regiões sudoeste e noroeste nos eixos de acesso à BR-040. As ações de city marketing são subsidiadas
pelo “Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano” e principalmente pelo “Plano Estratégico de
Desenvolvimento Sustentável”, elaborado pelo Programa Centro Ibero-americano de Desenvolvimento
Estratégico Urbano (CIDEU) e pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional (AECI) em
consorcio com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Um dos principais eixos temáticos
do plano é a “sustentabilidade econômica e dinamismo nos negócios”, prevendo para este fim parcerias
publicas e privadas para adequação da infraestrutura às necessidades da economia globalizada, criação
de estrutura de apoio à instalação de grandes equipamentos e geração de emprego, com objetivo de
ampliar a competitividade dos setores econômicos da cidade em escala local, regional e nacional.
Como desdobramento do Plano Estratégico a reestruturação do espaço urbano local se deu com
as mudanças na estrutura viária, materializadas na construção dos Acessos Norte e Sul, eixos de ligação
à BR-040. Na região do Acesso Sul verificou-se alterações na tipologia da paisagem urbana com a
implantação de diversos condomínios voltados para classe média alta, inclusive com a criação de um
novo bairro, a saber, Estrela Sul. Nos bairros de ocupação mais antiga (bairro Cascatinha e Teixeiras) são
marcados por dois processos: verticalização, decorrente da maior demanda imobiliária e da especulação,
afinal este processo constitui uma possibilidade de multiplicação do solo urbano, que não é apenas
terra, mas também infraestrutura urbana, acesso aos serviços públicos e equipamentos coletivos, ou
seja, condições que não totalmente reproduzíveis, resultando na também na multiplicação dos lucros
auferidos pelo setor imobiliário; e diversificação e intensificação das atividades comerciais para atender
às novas demandas. Observamos a mudança de funcionalidade no entorno das principais vias de acesso
da região, com a presença de grandes empreendimentos de lazer e cultura, com destaque para o centro
de eventos La Roca, o centro de negócio Center Car e o Independência Shopping. Na atualidade o
bairro Cascatinha torna-se um subcentro devido a suas características espaciais e polarizador de grandes
empreendimentos imobiliários e mercadológicos.
Na região do acesso norte há destaque dos empreendimentos logísticos e industriais, onde se
localizam os dois distritos industriais do município, que surgem como tentativas de retomado da
economia industrial na cidade e modernização do parque industrial. Destacam-se grandes empresas
multinacionais no eixo norte da BR-040 tais como Mercedes Benz e Arcelor Mittal. Como espaço
logístico e integrador de mercados a região noroeste centraliza grandes redes atacadistas de hipermercado
e de transportes, com destaque para a rede Makro. Caracterizada como área de expansão urbana pela
Prefeitura Municipal, o crescimento populacional se dá com o surgimento de novos bairros bem como
a criação de conjuntos habitacionais e condomínios verticais para a população de baixa e média renda
através de investimentos privados e públicos no setor habitacional. Destaca-se ainda o surgimento dos
primeiros empreendimentos imobiliários que não se caracterizam como mercado de baixa renda e/ou
econômico (até R$100.000,00), com anúncios de condomínios que se enquadram para o mercado
de classe média alta, em contradição à ocupação tradicional da região e ocupações urbanas irregulares
que surgem às margens da BR-040. Há na região a estruturação do bairro Benfica enquanto subcentro
por oferecer uma ampla gama de serviços e comércio, além de centros regionais do serviço público
municipal.
Na região Oeste as mudanças na morfologia da paisagem urbana consistem na implantação de
novos padrões residenciais, com implantação de loteamentos, granjeamentos e condomínios horizontais

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 79-84, jan./dez. 2011 81


fechados compostos por unidades unifamiliares, voltados para a população de classe média alta e alta.
A região tem concentrado este tipo de empreendimento imobiliário, uma vez que desde 1990 foram
aprovados pela Prefeitura Municipal 16 empreendimentos, dos quais apenas um não se localizava
nesta região, porém situado no bairro Estrela Sul (região do acesso sul). Consoante esta concentração
há o desenvolvimento de infraestrutura, serviços e equipamentos direcionados para atender às novas
demandas.
O desenvolvimento técnico e o maior dinamismo urbano da cidade e sua inserção na hierarquia
urbana nacional é fundamental para os novos fluxos de capital, pessoas e mercadorias. Como nos
aponta Santos (2006:17)

A parcela técnica da produção permite que as cidades locais ou regionais tenham


um certo controle sobre a porção do território que as rodeia. Este comando se
baseia na configuração técnica do território, em sua densidade técnica e, tam-
bém, de alguma forma, na sua densidade funcional a que podemos igualmente
chamar densidade informacional.

Os investimentos em logística com implantação de diversos fixos territoriais propiciam a ampliação


dos fluxos, criando linhas efetivas de circulação, ativando vários pontos da rede, caracterizando Juiz de
Fora como um ponto nodal na rede urbana nacional. A cidade é interligada às principais metrópoles
(Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília) pela BR-040; a BR-267 que liga ao Sul de Minas
e demais microrregiões da Zona da Mata; e a MG-353 que constitui eixo de integração da microrregião
de Juiz de Fora, onde se localiza o Aeroporto Regional da Zona da Mata na cidade de Goianá. Esta
dinâmica espacial é a materialização das redes no território que insere a cidade nos circuito superior da
economia.
O Centro de Convenções (CONEX) e o Park Sul (condomínio empresarial) integram a rede de
investimentos públicos e privados no eixo da BR-040; o primeiro investimento do Governo Estadual e
o segundo um marco logístico regional, com a presença de grandes empresas nacionais.
As ações propostas pelo Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável consistiram em
mudanças logísticas, centradas nas margens da BR-040 e em seus eixos de ligação. A reestruturação do
espaço urbano-regional fruto da seletividade do capital promovida através da articulação entre estado
e iniciativa privada funcionaliza as regiões e hierarquiza espaços, reestruturando a ordem espacial
intraurbana tradicional.

Conclusão
As mudanças na paisagem urbana de Juiz de Fora com o estabelecimento de novos fixos estruturam
novos fluxos. Estes se materializam no espaço urbano e regional formatando um novo padrão de
desenvolvimento baseado na refuncionalização da economia urbana de Juiz de Fora e, em especial,
das áreas valorizadas pelo capital imobiliário. Como efeito cascata, isto é sob o ponto de vista do custo
empresarial, estes novos equipamentos significam novos projetos urbanísticos, tais como centros de
eventos e negócios, equipamentos de logística, indústrias, shoppings e condomínios fechados. Numa
possível regionalização interna do espaço urbano são destacados os eixos que demandam a rodovia BR
040, os chamados acesso norte e acesso sul. Ambos vêm se desenvolvendo a partir de novas localizações
de uso e ocupação do solo atrelados aos equipamentos supracitados. Esta dinâmica espelha também
a chegada de empresas nacionais e estrangeiras que revelam a posição estratégica funcional da cidade

82 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 79-84, jan./dez. 2011


dentro da rede urbana regional e nacional e o próprio peso do mercado consumidor interno e sua
dinâmica imobiliária. Assim concluímos que há uma complementaridade na forma de uso e ocupação
que denota uma maior especialização territorial no espaço intra-urbano, estando este processo ancorado
na realização e agregação de maior valor do solo urbano da cidade de Juiz de Fora.

THE URBAN SPACE OF “JUIZ DE FORA” AND THE CONTEMPORARY


REGIONAL DYNAMICS
ABSTRACT
In “Juiz de Fora” stands a series of public and private investments in modernization of infrastruc-
ture (airports, creation of access routes and duplication of roads), creation of businness centers
and industrial parks, development of urban projects, which culminated with the valuation of
urban spaces reflecting the increase in the housing market, with the installation of condomi-
niums and creating private spaces for recreation and culture, stimulating services and trade. In
consequence the urban improvement observed the emergence of new urban polarities, creating
a new spatial order in “Juiz de Fora”, with implications for the region of direct influence of the
city. There was also the structuring of new sub-centers in southwest and northeast regions of
the city. These new investments, many of which are provided in the “Strategic Plan for Sustai-
nable Development” are intended to include the city in the global economy, by mechanism of
city marketing. Obviously these logistical investments provide expansion of flows entering “Juiz
de Fora” as a nodal point in the network of production and circulation of the global economy,
expanding the competitiveness of economic sectors of the city in scope locally, regionally and
nationally. This research “The Urban Space of Juiz de Fora and the Contemporary Regional
Dynamics” attempts to identify the flows down from the new investments and analyze the new
spatial dynamics in the city and region.
Key Words: urban space, spatial dynamics, fixed, flows, urban network.

Referências Bibliográficas
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www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1, acesso em 20/04/2011.

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RODRIGUES, Andréia de Souza Ribeiro. Atuais Dinâmicas Socioespaciais: A Habitação em Juiz
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SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec,
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84 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 79-84, jan./dez. 2011


EDUCAÇÃO BILÍNGUE: PROCESSOS DE AQUISIÇÃO
DA LINGUAGEM E CAPACITAÇÃO DE PROFISSIONAIS
ESPECIALIZADOS.
Waldyr Imbroisi Rocha *
Tatiane Abrantes da Silva *
Ana Cláudia Peters Salgado **

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar a educação bilíngue em contexto formal de ensino
de línguas de sociedades monolíngues bem como algumas das práticas observadas para o desen-
volvimento dessa abordagem. Apresentaremos aqui um panorama dos aspectos que permeiam o
desenvolvimento dos profissionais e alunos envolvidos nesse processo de aquisição de linguagem.
Também estão presentes neste trabalho características pertinentes ao mundo atual que fizeram
com que a perspectiva da educação bilíngue encerrasse a melhor opção de formação daquele
indivíduo que estará diante de um fenômeno de globalização nunca antes observado. Com base
nos estudos de Krashen (2003; 1982), Garcia (2009), Stryker & Leaver (1997), Mehisto et al
(2008), Mejía (2002), Salgado (2008) e Myers-Scotton (2006), essa pesquisa discute questões
tais como motivação, contexto de ensino, aspectos pedagógicos da abordagem e aquisição de
línguas apresentados através das notas de campo colhidas das observações participantes feitas em
uma instituição de ensino de línguas da cidade de Juiz de Fora/MG. A preocupação dessa insti-
tuição é oferecer aos alunos atividades em língua inglesa que visam a motivar a participação dos
alunos e desenvolver neles autonomia e confiança quanto ao uso da língua. As notas de campo
dos pesquisadores, que posteriormente foram expandidas, apresentam registros de abordagens
por parte dos profissionais especializados, busca por motivação e interação dos estudantes, re-
ações dos alunos face ao novo conhecimento apresentado, a manutenção da perspectiva de re-
criação constante de ambiente bilíngue entre outros aspectos. Esse trabalho também se propõe a
elencar características básicas que permitam a compreensão de conceitos tais como bilinguismo
e bilingualidade.
Palavras-chave: bilinguismo, bilingualidade, educação bilíngue, CLIL, CBI

* Bolsista de Iniciação Científica BIC/UFJF.


** Professora orientadora da Faculdade de Letras. Email: ana.peters@ufjf.edu.br

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 85-92, jan./dez. 2011


Introdução
Este trabalho apresenta as primeiras compreensões sobre o processo de aquisição de uma língua
estrangeira pela criança. O termo língua estrangeira, no contexto desta pesquisa, não se opõe, como
tradicionalmente poderia se pensar, ao termo segunda língua. Não se trata de hierarquizar a importância
de uma língua em relação à outra.
Usamos o termo língua estrangeira para nos referir àquela outra língua – ou outras línguas – que
vai incorporar o repertório linguístico de uma criança através do contato formal dessa com a língua.
Quer dizer, apresentamos aqui nossas primeiras avaliações sobre como se dá a ampliação do repertório
linguístico de uma criança, exposta ao contato com outra língua em uma situação de contexto formal
de educação: a escola.
Nesse sentido, o projeto de pesquisa que viabilizou nosso estudo visava a investigar os caminhos da
aquisição de línguas na perspectiva sociolinguística de línguas em contato na educação bilíngue, tendo
como objetivos: i) identificar os aspectos sociais, linguísticos e pedagógicos envolvidos na aquisição de
línguas no contexto escolar; ii) propor ações pedagógicas para o desenvolvimento da bilingualidade do
aprendiz e iii) orientar a capacitação de profissionais, professores de línguas.

O ensino de línguas, a educação bilíngue e o desenvolvimento da


bilingualidade

O gradual e exponencial processo de globalização que vem ocorrendo há tempos encurtou as


distâncias e aproximou línguas e culturas umas das outras. É sabido que a Globalização não é um
fenômeno exclusivo dos dias atuais, mas se a aliamos às revoluções nas comunicações e no meio digital,
podemos dizer seguramente que estamos diante de uma globalização de proporções nunca vistas
anteriormente.
Atualmente, o acesso a meios culturais expressos em diversos códigos linguísticos é facilitado a
uma grande parcela da população por meio da internet e a mobilidade – tanto física como virtual –
está se tornando uma realidade cada vez mais presente e intensa. Ao mesmo tempo em que há uma
demanda linguística muito maior para a vida no mundo de hoje, o campo de acesso a outras línguas
se expande igualmente: “o mundo está se tornando rapidamente um vilarejo global misto”, afirma
Mehisto (2008, p. 10).
Da mesma forma, o fenômeno do bilinguismo não é característico dos dias de hoje e nem pode
ser considerado uma caracteríscitca extraordinária. Grosjean (1982) estima que cerca de metade da
população do mundo é bilíngue, ou seja, não se trata de um fenômeno excepcional. É, na verdade,
um fenômeno natural, mas que, como afirma Savedra (1994, p. 20) envolve uma “complexa relação
psicológica, linguística e social”.
A complexidade dessa relação encerra a própria diferença entre conceitos relativos ao fenômeno
em questão. Bilinguismo diz respeito ao contexto social, assim, nos referimos a um contexto bilíngue
quando nele estão presentes duas ou mais línguas1 em situação de contato. Bilingualidade, por sua vez,
é a condição inerente ao indivíduo bilíngue – trata-se da manifestação individual do bilinguismo. É,
pois uma condição mutável, instável, em contínuo processo de transformação (SALGADO, 2008),
uma vez que se manifesta de forma particular em diferentes contextos.

1
Fazemos a opção pelo termo bilinguismo para nos referir a duas ou mais línguas para evitarmos controvérsias acerca de termos
tais como trilinguismo, plurilinguismo, polilinguismo, multilinguismo.

86 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 85-92, jan./dez. 2011


Outra questão muito relevante é: quem é o indivíduo bilíngue. Para grande maioria das pessoas,
o indivíduo bilíngue é aquele que “domina” duas línguas, dois códigos linguísticos. Como lembra
Valdés (apud HEYE, 2001, p. 37), as pessoas usam o termo “bilíngue” para se referirem a alguém que
fala duas línguas “perfeitamente” e imaginam que essa pessoa sabe falar, compreender, ler e escrever
igualmente as duas línguas no nível mais alto de desempenho dessas. Hoje sabemos que esse é o mito
do bilinguismo equilibrado. Quer dizer, são poucas as pessoas bilíngues que manifestam as suas línguas
de maneira unívoca porque ou adquiriram uma língua mais completamente que a outra, ou usam uma
língua mais frequentemente que as suas outras, as quais certamente foram adquiridas em graus variados
(SALGADO, 2008).
Assim, dizer que o bilíngue é a pessoa que fala duas ou mais línguas com a habilidade de um
falante nativo exclui a grande maioria dos bilíngues. Há que se considerar dentre os bilíngues também
aqueles indivíduos que podem compreender ou produzir enunciados falados ou escritos em qualquer
grau em mais de uma língua. Isso implica em pensar a bilingualidade como um contínuo e, o falante
bilíngue, como aquele que se desloca em ambas as direções em função da necessidade contextual de
uso de uma das línguas que compõem as extremidades desse contínuo ou, de uso de ambas, tendendo
a um ponto médio do mesmo.
Como consequência, capacitar o falante para transitar nesse contínuo – ou seja, desenvolver
nele sua bilingualidade – deveria ser o foco da educação bilíngue e do ensino de línguas, mesmo em
sociedades supostamente monolíngues. Hoje em dia, as regiões e países que possuem um contexto
bilíngue, frequentemente optam por uma educação condizente com a realidade linguística, a fim de
valorizar os idiomas envolvidos. Muitas vezes, decisões acerca das línguas envolvidas na educação
são, além de pedagógicas, também políticas. Nessas sociedades é comum encontrarmos metodologias
de ensino de línguas que visam a contemplar o contexto bilíngue já existente. Em nosso projeto
de pesquisa, acompanhamos uma instituição que se propõe a oferecer uma educação bilíngue em
sociedades monolíngues, como é o caso de tantas outras instituições de ensino.
Este projeto – Educação bilíngue: compreensão dos processos de aquisição da linguagem e capacitação
de profissionais especializados – busca compreender e relacionar os aspectos pedagógicos, linguísticos,
psicológicos e sociais envolvidos no ensino de línguas pela perspectiva da educação bilíngue.

Caminhos metodológicos
Esta pesquisa desenvolveu-se, teórica e empiricamente, nos âmbitos da Universidade Federal de
Juiz de Fora e de uma escola de idiomas que atende crianças de três a quatorze anos na cidade de Juiz de
Fora/MG. Nessa instituição de ensino – campo de nossa investigação de cunho etnográfico –, bolsistas
do projeto de pesquisa acompanharam aulas desenvolvidas com base na proposta da observação
participante no momento em que produziam suas notas de campo. Tais notas eram posteriormente
expandidas (NE = notas expandidas), debatidas e contrastadas com aportes teóricos dos quais nos
servimos.
Assim, em nossos encontros semanais, o grupo avaliava os diferentes aspectos do ensino de
língua, no caso específico o inglês, na referida escola. Questões tais como motivação, contexto de
ensino, abordagens pedagógicas do ensino e aquisição de línguas foram subsidiados pelas leituras de
Krashen (1982; 2003), García (2009) e Houwer (2009). As concepções metodológicas de ensino de
línguas nos levaram a estudar as propostas da educação bilíngue (GARCIA, 2009), da instrução baseada
em conteúdo - Content-Based Instruction (STRYKER & LEAVER, 1997) e do CLIL – Content and
Language Integrated Learning (MEHISTO et al., 2008). Os aspectos sociais que envolvem o bilinguismo
também foram avaliados por nós com base na perspectiva de Mejía (2002) e Myers-Scotton (2006).

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 85-92, jan./dez. 2011 87


Aprendendo uma língua estrangeira pela perspectiva da educação
bilíngue

Acompanhamos as aulas de inglês na escola de idiomas que nos serve de lócus de pesquisa.
Percebemos nessa instituição de ensino uma proposta de metodologia inovadora em relação a outras
escolas e centros de ensino de idiomas, justamente por se apoiar nos fundamentos da educação bilíngue.
Constatamos que a produção em língua inglesa dos alunos, tanto oral quanto escrita, apresenta franco
desenvolvimento. Esses estudantes vão, a cada dia, tornando-se mais e mais livres para transitarem por
um ou outro código linguístico (português ou inglês), com perceptível autonomia e segurança.
Nessa escola, as aulas são baseadas nas abordagens CBI e CLIL e os professores são preparados
para, junto com alunos e funcionários, construírem um ambiente de motivação e desenvolvimento
para os alunos. As turmas são compostas por até 12 estudantes de faixas etárias homogêneas e com base
no ano em que esse aluno se encontra na escola regular de educação básica.
Destacamos, brevemente, alguns momentos de interação das aulas que observamos, como, por
exemplo, quando o professor ensina o uso do tempo passado em inglês (simple past).

Após uma cooking class, o professor relembra os ingredientes que foram usados
no preparo do sanduíche.
Students: “Carrots, tuna fish, mayo, ricotta cheese, bread”
Teacher: “And then we mix the ingredients, right?”
Students: “Right teacher.”
Em seguida, o professor relembra a mistura que fizeram com os ingredientes e,
como a resposta foi dada no presente, pergunta onde estão os materiais para que
possam misturá-los novamente. Neste momento, uma das alunas diz que o fato
ocorreu na aula anterior e que os ingredientes não estão mais ali, portanto, não
poderiam fazer a mistura novamente.
Teacher: “So, let’s mix the ingredients. Where are they?”
Lara: “Teacher, não tem ingredients. Foi yesterday.”
Teacher: “But you said we are going to mix the ingredients...”
Lara: “No, teacher. We mix the ingredients yesterday.”
A partir do reconhecimento da situação feito pelos alunos, o professor aproveita
para explicar que é preciso dizer isto de forma diferente para marcar o que já
foi feito.
Teacher: “So, we must say it in a different way. We mixed the ingredients.”
Students: “Mixed the ingredients.” (NE 002)

Outra aula observada, dessa vez com um assunto ligado à área de Ciências cujo tema era ossos
e músculos, sugere que o professor, além de elaborar as aulas, deve se preparar para elas e ser bastante
versátil.

(...) O professor desenhou ossos e músculos no quadro, explicou que os mús-


culos funcionavam em pares e ensinou como eles trabalhavam. Aproveitou para
mostrar os verbos “extend” e “contract” e o que eles significavam usando o braço
para demonstrar a contração e a distensão. Em seguida, distribui uma “work
sheet” com o desenho de um corpo. Pediu que os alunos desenhassem um rosto
naquele corpo e que depois cortassem as partes para que pudessem uni-las com

88 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 85-92, jan./dez. 2011


“split points” e, assim, montar um boneco que pudesse se mexer. Depois, o pro-
fessor entregou alguns palitos de picolé e pediu que as crianças os quebrassem e
fizessem os ossos da boneca.
(...)
O professor pergunta se eles se lembravam o que foi dado na última aula.
Students: “Bones e muscles.”
O professor, então, lembra que o corpo tem duzentos e dezesseis ossos e seis-
centos músculos e que os últimos trabalham em pares. Quando um “extend” o
outro “contract”. (NE 004)

A motivação é parte imprescindível quando se trata de ensino de língua. Deixar com que os
alunos percam o interesse pelas aulas é fator de preocupação. A seguir apresentaremos uma atividade
que, de maneira simples, fez com que, através da criação de um ambiente agradável, os estudantes
ficassem mais motivados para assistirem as aulas que seriam dadas posteriormente.

O professor leva as crianças ao salão e propõe um jogo de dança eletrônico para


playstation 2. Arma os tapetes no chão e pede às crianças que se dividam em
duplas para jogarem na modalidade “versus”. (...) A música começa e, durante
a brincadeira, o professor dá as instruções para as crianças seguirem os passos:
“right, left, back, front”. (...) Os alunos perguntaram quando iriam jogar nova-
mente, porque foi muito divertido.(...) (NE 005)

Da mesma forma, atividades feitas fora do ambiente da sala de aula também são muito bem
recebidas pelos alunos e geram bons resultados. Fazer com que os alunos se sintam parte do processo de
ensino é parte importante do processo de motivação. Ensejar neles a liberdade de ousar na outra língua
e criar oportunidades para que os alunos a utilizem é fundamental. No trecho abaixo – NE 007 – o
professor ensinava medidas lineares:

Em seguida, propõe que os alunos saiam pela escola fazendo diversas medições.
(...)
O professor distribuiu uma folha de papel em branco e disse que as crianças
deveriam copiar as perguntas que ele iria escrever no quadro.
1) How long is our lunch room table?
2) How long is the seat in our school front desk?
3) How long is our school front desk?
4) How long is the car in front of our school?
5) How long is our school’s gate?
(…)
O professor busca pranchetas para todos os alunos apoiarem suas folhas e po-
derem sair da sala para fazerem as medições. Ao chegar à recepção, o professor,
com a ajuda dos alunos, tira as medidas dos objetos mencionados para que todos
possam fazer suas anotações. Ao longo da atividade, todos querem participar.
(...)

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 85-92, jan./dez. 2011 89


Considerações finais e perspectivas de futuros estudos
O foco desta pesquisa é compreender os processos que viabilizam a aquisição de línguas para
além das tradicionais metodologias baseadas na estrutura da língua. Isso porque os professores não
podem – e não devem – recorrer ao ensino da estrutura da língua visto que tal procedimento seria em
vão devido a pouca idade dos alunos. Buscamos compreender como as crianças podem se tornar
bilíngues em contextos formais de educação em uma sociedade aparentemente monolíngue, como é o
caso da cidade de Juiz de Fora/MG.
Constatamos que, pelo paradigma da educação bilíngue, as crianças podem sim desenvolver
habilidades e competências linguísticas e discursivas na língua que estão adquirindo a despeito
de conhecerem a gramática dessa. Tal observação ratifica a proposta de Ofelia García (2009) que
preconiza a educação bilíngue como a melhor forma de se educar no século XXI. Garcia cita Pierre
Bourdieu (2009, p.12), o qual entende que a educação está ligada à reprodução da ordem social,
assim, ele propõe que vejamos a educação como um capital, um trunfo de valor quantificável. Nas
escolas, os alunos adquirem capital cultural como conhecimento, habilidades e capital simbólico
relacionado à respeitabilidade e valores, mas também adquirem capital linguístico e habilidade de
usar apropriadamente a(s) língua(s). Isso depende principalmente da educação que os alunos recebem,
tendo a escola um papel fundamental de regular a língua como capital e mediar o acesso a ela.
Ainda há muito o que investigar quanto à educação bilíngue, às abordagens metodológicas
das quais ela pode dispor, aos aspectos motivacionais e linguísticos envolvidos, como por exemplo
o code-switching, code-mixing, interlíngua. Fato é que quando ensinamos na língua adicional e não a
língua adicional – que é uma proposta da educação bilíngue – e nos pautamos pelos conteúdos da
grade curricular da escola das crianças, não cerceamos a quantidade de informação, mas nem por
isso os alunos se cansam ou se sentem desmotivados. Ao contrário do que se pensa, eles constroem
um conhecimento contextualizado. Nesse sentido, a educação bilíngue tem o potencial de dar acesso
a interações sociais em contextos diversos, permitindo uma troca de informações mais ampliada e
construção de relações. A educação bilíngue capacita o indivíduo a operar sua agentividade no mundo
atual, enquanto advoga em favor do multiculturalismo e da tolerância uma vez que aproxima culturas
e exige de seus interactantes responsabilidade social e linguística.

Agradecemos à Universidade Federal de Juiz de Fora pelas bolsas de Iniciação Científica


concedidas aos alunos que participam deste projeto de pesquisa (2009/2010 e 2010/2011).

Bilingual Education: acquisition language processes and preparation of


specialized professionals.

ABSTRACT
This article aims at presenting bilingual education in a formal context of language teaching in
monolingual societies as well as discussing some practices which were observed for the development
of this approach. We present here an overview of the aspects which undergo the development of the
professionals and students involved in the process of language acquisition. We also discuss the cha-
racteristics of present world that suggest that the bilingual education could be the best perspective
for the formation of those individuals who face a unique globalizing phenomenon. Our research was
anchored by the studies of Krashen (2003; 1982), Garcia (2009), Stryker & Leaver (1997), Mehisto et

90 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 85-92, jan./dez. 2011


al (2008), Mejía (2002), Salgado (2008) and Myers-Scotton (2006), and we discuss questions such as
motivation, context of teaching and learning, pedagogical aspects, and language acquisition based on
field notes collected during our participant observation at a language school in Juiz de Fora/MG. This
school is very much concerned about offering the students English activities to motivate them and to
help them to develop their autonomy and confidence to use the language they are acquiring. The field
notes were expanded (NE) and constitute registers of strategies of teaching and learning motivation,
students’ reactions when facing the subjects presented, the maintenance of the creation and recreation
of the bilingual environment. Finally, this work characterizes the aspects involved in the concepts bi-
lingualism and bilinguality.
Key-words: bilingualism, bilinguality, bilingual education, CLIL, CBI

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92 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 85-92, jan./dez. 2011


A IDADE DO SERROTE, DE MURILO MENDES:
A ESCRITA DA MEMÓRIA COMO RIZOMA TEXTUAL
Angie Miranda Antunes *
Fernando Fiorese **

RESUMO

Em A idade do serrote (1968), o poeta Murilo Mendes acopla poesia e prosa para engendrar um
texto fragmentário, labiríntico e multiforme, no qual desvela-se a analogia entre o funcionamento
do aparelho mnemônico e a máquina hipertextual. Enquanto rizoma textual, a escrita da
memória se caracteriza pelos links e enlaces que realizam o trânsito entre espaços, tempos e
personae virtuais.
Palavras-chave: Memória; Hipertexto; Rizoma; Murilo Mendes; A idade do serrote

Em torno do hipertexto
Oriunda do verbo latino těxō, -is, -ěre, texŭī, textum, com o sentido de coisa a ser tecida, entrelaçada
ou tramada, a palavra “texto” comporta o que podemos chamar de tessitura, arranjo e rearranjo, um
verdadeiro entrecruzamento de significantes, significados e referências. Conceitualmente, o vocábulo
“hipertexto” contém a definição apresentada anteriormente e trata-se de uma transformação há
muito antevista e desejada. Em O virtual e o hipertextual (1999), André Parente esclarece que coube
ao filósofo e sociólogo norte-americano, Theodore Nelson, pioneiro da Tecnologia da Informação,
primeiro recriar a própria Biblioteca de Alexandria, denominando-a Projeto Xanadu (1960) – uma
rede de computadores de interface simples –, para depois cunhar os termos “hipertexto” (hypertext)
e hipermídia (hypermedia), conforme constam no livro publicado em 19651. O hipertexto, ainda
segundo Parente, será definido por Nelson como “um texto de dimensões cósmicas, informatizado,
contendo todos os livros, incluindo imagens e sons, acessível à distância e navegável de forma não-
linear” (PARENTE, 1999, p. 73).

* Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq/UFJF.


** Professor Orientador da Faculdade de Letras - UFJF.
Endereço profissional do professor orientador: Faculdade de Letras/UFJF - Rua José Lourenço Kelmer, s/n – Campus Universitário -
Bairro São Pedro – Juiz de Fora/MG – 36036-900. Email: fernando.fiorese@acessa.com.
1
Atribui-se também a Nelson a invenção das palavras “transclusão” (transclusion), “virtualidade” (virtuality) e transcopyright,
dentre outras .

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 93-98, jan./dez. 2011


Corroborando a nossa assertiva, Alberto Navarro, no ensaio “Espacio y tiempo en la narrativa
hipertextual”, ressalta que as novas tecnologias e suportes de comunicação vêm transformando as
coordenadas de espaço e tempo do universo social (NAVARRO, 2004). Como um destes suportes,
o hipertexto proporciona ao leitor experimentar as dimensões espaço-temporais de modo próprio e
irrepetível, pois a constituição do hipertexto através de seus nós e enlaces permite a cada indivíduo
decidir o seu próprio itinerário. A ideia de rede tornou-se um paradigma fundamental no século XXI,
tanto que as relações – sejam elas sociais, econômicas, políticas, comunicacionais etc. – adquiriram
um aspecto integral e interativo, indicando uma cooperação plurilateral. Assim, a interatividade que
fundamenta os modos e manobras da operação hipertextual permite uma maior permeabilidade de
informações e ideias, o que reafirma o vigor da influência deste na mentalidade e nos comportamentos
do homem contemporâneo.
Em Mil platôs: captalismo e esquizofrenia, os teóricos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari
apresentam três formas do pensamento e adotam o livro como exemplo (cf. DELEUZE & GUATARRI,
1995, p. 11-15). Trata-se de retirar do livro a finitude das margens, atribuindo-lhe um sistema aberto
em que não se pode mais apontar as fronteiras entre mundo, escritor e leitor. Há no livro as setas
de convergência e escoamento que o tornam outro a cada momento. A noção de intertextualidade
permitiu a conscientização da abertura do texto. Além da abertura para as possíveis conexões feitas
pelos leitores, esta noção traz a ideia de que um texto é constituído por outros textos. Leitor e escritor
deixam os papéis de receptor e produtor e se respaldam nos variados signos inseridos (ou não) no
mundo, na construção de sentidos.
De acordo com os pensadores franceses, a noção de rizoma pode ser compreendida a partir
das seis características aproximativas a seguir enumeradas (cf. Ibidem, p. 15-21). Os dois primeiros
princípios do rizoma são a conexão e a heterogeneidade, uma vez que qualquer ponto de tal forma pode
e deve ser conectado a outro ponto, propiciando origens diversas a cada retomada. A multiplicidade
seria o terceiro princípio, pois o rizoma não teria nem sujeito nem objeto, mas grandezas que, na
medida da mudança de tamanho, altera-se também a sua natureza, ampliando-se a quantidade de
pontos de conexão. O quarto princípio, ruptura, aponta para a possibilidade de o rizoma ser rompido
ou retomado em qualquer ponto, sem qualquer prejuízo em seu funcionamento. Tanto as linhas de
segmentariedade quanto as de desterritorização remetem umas às outras, engendrando a multiplicidade
inerente à forma rizomática. Os princípios de número cinco e seis são denominados, respectivamente,
cartografia e decalcomania e consistem no fato de um rizoma não poder ser justificado por nenhum
modelo estrutural ou gerativo. Cartografia porque o rizoma se assemelha antes a um mapa por possuir
várias entradas e levar a múltiplos caminhos, construídos de acordo com a necessidade e o desejo.
Quanto ao decalque, o rizoma se aproxima de sua essência não por ser uma cópia da matriz, pois
o decalque transforma o rizoma em imagem e se reproduz. Dos mapas, o decalque só reproduz os
bloqueios ou os pontos de estruturação (cf. Ibidem, 1995, p. 15-23)
Considerando-os como realizações do rizoma, tanto o livro quanto o hipertexto são engendrados
em “platôs”, noção definida por Deleuze e Guattari como “toda multiplicidade conectável com outras
hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma” (Ibidem, p. 33). Desta
forma, enquanto a forma árvore do livro-raiz impõe uma hierarquia através do verbo “ser”, as realizações
rizomáticas estão sempre no meio, tendo “como tecido a conjunção ‘e... e... e...’” (Ibidem, p. 37).

Modos e manobras da memória


A linguagem busca, nos objetos e fenômenos mais cotidianos, metáforas capazes de traduzir ou
avizinhar-se da descrição do funcionamento da mente humana. Entre as aproximações mais frequentes,
94 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 93-98, jan./dez. 2011
figuram as invenções e processos maquínicos. Desde a placa de cera de Platão até os computadores de
nossa era, a linguagem prosaica se funde às teorias filosóficas e psicológicas com o intuito de desvelar os
modos e manobras da lembrança e do esquecimento, recorrendo muitas vezes aos métodos e técnicas
que utilizamos no registro, armazenamento e reprodução de dados e informações.
As diferentes metáforas proveem das mais diversas perspectivas, refletindo o “clima intelectual”
(DRAAISMA, 2005, p. 23) de uma determinada época. As máquinas capazes de raciocínio lógico
figuram como metáforas do funcionamento da memória desde fins do século XVI, quando ampliou-se
consideravelmente a necessidade de aplicação da matemática na atividades do comércio internacional.
As revoluções industriais iniciadas na travessia do século XVII ao XIX e o avanço das pesquisas acerca
do sistema nervoso, bem como os aprimoramentos das primeiras máquinas de calcular no decorrer dos
novecentos, ensejaram tanto a busca contínua pela inteligência artificial quanto as diversas figurações
digitais da memória. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a necessidade de meios
seguros de transmissão de dados e informações secretas e de recursos de precisão para as operações
bélicas determinaram o investimento maciço em pesquisas que culminariam no rápido progresso da
computação e da cibernética.
Além de oferecer vasto campo semântico à psicologia da memória, o computador passou de
simples metáfora a instrumento que, através de métodos e técnicas de programação, possibilita a
simulação dos processos cognitivos. De qualquer forma, ainda no campo metafórico, foi possível uma
separação entre corpo e espírito em processos físicos e psicológicos, denominados hardware e software,
respectivamente. Contudo, nos anos 1970, as teorias acerca das redes neurais e da construção de
computadores chegaram ao consenso de que os processos psíquicos seguem rumos menos retilíneos e
mais equívocos do que se presumia. Na verdade, intuições e suposições desempenhavam papéis iguais
aos das deduções lógicas. O advento das teorias conexistas culminaria na explicitação do funcionamento
das redes neurais. Sob uma ampla perspectiva, qualquer rede neural pode ser chamada de memória
uma vez que a configuração das conexões e suas forças mudam em função da experiência. O acesso à
memória ocorre em camadas funcionais, sendo as mesmas denominadas “de entrada”, responsável por
receber os estímulos; “de execução”; e um ou mais estratos “ocultos”, que mantém a conexão entre os
níveis de entrada e saída. Dessa forma, o conhecimento acerca das redes neurais permite a aproximação
mais apurada entre memórias artificiais e a memória humana.

Escrita da memória, rizoma textual


O hipertexto se assemelha ao rizoma e às redes neurais, pois os três possuem a forma de uma rede
repleta de junções – sejam links, nós ou sinapses –, a partir dos quais se ligam por linhas de articulação
a outros pontos de contato, possibilitando inúmeras abordagens ou formas de acesso, uma vez que as
conexões entre diversas junções permitem caminhos diferentes a cada retomada.
Essa noção de rede acentrada, que não busca uma totalidade, permite o desvelamento das
características rizomáticas e hipertextuais da obra de Murilo Mendes intitulada A idade do serrote
(1968). As diferentes vias de acesso, a partir das quais um ponto de conexão pode se desdobrar
em outra rede, possibilita surpreender similaridades entre os modos de textualização da memória e
as operações múltiplas advindas da hipertextualidade. É perceptível que os princípios rizomáticos
descritos por Deleuze e Guatarri se fazem presentes tanto na totalidade da obra de Murilo Mendes
quanto nos seus fragmentos.
A seção intitulada “Origem, memória, contato, iniciação”, cujo formato se assemelha menos
à introdução de um livro do que a uma lista de endereços eletrônicos num portal de busca, propicia

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 93-98, jan./dez. 2011 95


a experiência do princípio de conexão do rizoma, pois, selecionado um ponto, o mesmo funciona
como “entrada” para outro ponto da rede textual. Assim, a primeira entrada “O dia, a noite” remete
ao texto bíblico “Gênesis” e às referências a Adão e Eva, que, por sua vez, nos levam às memórias dos
pais, “descendentes” do casal primeiro. Além de ser encontrado ao longo da obra, como no exemplo
anterior, o princípio da conexão pode estar em um único fragmento, tal é o caso de “Etelvina” –
“Aparentemente tudo principiou com Etelvina”, que era “toca e santuário”: o fogo, as palavras, música
e ritmo. Dentre os muitos ensinamentos propiciados por esta ama de leite, estão as noções das cores
preta e branca, reiteradas respectivamente pelas palavras “profundezas”, “noite”, “escuro”, “medo” e
“leite”. Além de apresentá-las separadamente, a ama de leite mostrava as possibilidades de junção, assim
como a necessidade de afastamento: “Etelvina implicava síntese da cor e ausência da cor” (MENDES,
1968, p. 11).
No que se refere à conexão com a própria origem, além dos pais, de Etelvina e das referências
bíblicas, o narrador refere a importância da memória:

Nasci oficialmente em Juiz de Fora. Quanto à data do mês e ano, isto é da


competência do registro civil. Não me vi nascer, não me recordo de nada que se
passou naquele tempo. Na verdade, nascemos a posteriori. No mínimo uns dois
anos depois. Mesmo porque, antes era o dilúvio (Ibidem, 8).

Desta forma, observa-se a conectividade do todo e das partes da obra, que tem como subtítulo
“Memórias”. Tal palavra plural anuncia uma escrita constituída por experiências diversas e distintas
no tempo e no espaço, figurando o princípio da heterogeneidade rizomática. São necessárias três
vivências para compor a lembrança: um hospital na juventude do narrador e a Catedral de Chartres
vista na idade adulta se misturam, recebendo ainda a interferência do homem maduro que escreve tal
relato.
No que concerne ao princípio da multiplicidade do rizoma textual muriliano, cite-se como
exemplo a referência às “notícias de Eros” que o narrador “captava com o ar mais sonso do mundo”
(Ibidem). A narrativa da iniciação sexual demonstra que, quando as grandezas mudam de tamanho,
mudam também de natureza e, por consequência, multiplicam-se os pontos de conexão. No primeiro
ponto, a investida de Dona Coló causa repulsa ao menino de dez anos: “Repeli-a com a maior violência.
Não por virtude, mas por nojo.” (Ibidem, 37). A “amizade amorosa” de Cláudia inaugura um segundo
ponto de conexão, a partir do qual o narrador deriva para todos os amores futuros, configurando-a
como “uma colagem de tipos de mulher que me (lhe) atraíam e me (lhe) atrairiam depois” (Ibidem, 66).
De modo diverso, embora próximo, Cláudia encerra uma outra sexualidade, vinculada a afinidades –
literatura, música, questionamentos. Mais adiante no livro – mas não no rizoma, uma vez que neste o
tempo não se configura linearmente –, outra mulher, Teresa, desperta “inclinação erótica” no menino-
adolescente. Juntos descobrem carícias e o jogo do amor: “Mas não é o amor uma representação
teatral?” (Ibidem, p.147).
Ainda com as “notícias de Eros”, temos a possibilidade de interromper e retomar a navegação
pelo rizoma sem qualquer prejuízo. Elucidando o princípio da ruptura, a figura de Asta Nielsen
compõe lembranças que principiam em Juiz de Fora, cidade de origem do narrador, e o acompanham
em suas investidas na descoberta de signos cinematográficos. A atriz representa algo fora do comum:
“O avanço de Asta Nielsen na tela equivalia a um tiro de revólver numa situação acadêmica, na vida
corrente, prevista” (Ibidem, p. 106).
Para exemplificar o quinto princípio de funcionamento do rizoma – a cartografia –, pode-
se recorrer a algumas das diversas descrições da cidade de Juiz de Fora feitas pelo narrador. Desde

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referências acerca do modo de viver – “Juiz de Fora naquele tempo era um trecho de terra cercado
de pianos por todos os lados” (p. 61) – até às caracterizações históricas da “Manchester Mineira”
das primeiras décadas do século XX, o rizoma textual muriliano nos permite acessar a cidade e,
consequentemente, suas memórias por diferentes entradas. No fragmento “A rua Halfeld”, o próprio
narrador admite a impossibilidade de formatar o rizoma textual: “Escrevo sobre a rua Halfeld sem
situá-la no espaço, ocupando-me somente com as pessoas que a percorrem” (Ibidem, p. 144). Apesar
de apresentar modos atemporais e atópicos, o rizoma não perde a conectividade de seus nós. As “águas
melancólicas” (Ibidem, p. 147) do rio Paraibuna, por exemplo, são mencionadas em diversas seções,
bem como a protuberante industrialização da cidade.
A decalcomania, sexto e último princípio rizomático, está relacionada de maneira intrínseca com
o da cartografia, pois, apesar de não podermos delinear o rizoma, podemos reproduzi-lo ao infinito.
O olho que se anuncia precoce, mira diversas direções, constantemente em busca de novidades. “Cedo
começou minha fascinação pelos dois mundos, o visível e o invisível” (Ibidem, p. 170). A repetição
do modo de olhar não limita o rizoma textual, apenas direciona enquanto multiplica ad infinitum:
meninas, mulheres, amigas, operárias, atrizes. “Confesso que uma boa parte desta minha incipiente
diligência cultural baseava-se no interesse pela mulher...” (Ibidem).

Conclusão
Os seis princípios de funcionamento de um rizoma definidos por Deleuze e Guatarri podem ser
detectados em um único fragmento, tal como naquele que o poeta intitula “A lagartixa” (Ibidem, p.
109-111). A partir de observações acerca do “pequeno sáurio” num jardim romano, engendra-se um
pensar que se mostra a mercê do devir. “Falando lagartixa” fala “infância” e também “adolescência,
mocidade, madureza e próxima velhice” que, por sua vez, fala “figura feminina”. Este tom próximo ao
relato oral permite acompanhar tanto o vaguear mnemônico quanto as conexões feitas pelo narrador.
A repetição do vocábulo lagartixa por diversas vezes (decalcomania) implica, a cada aparição, uma
outra forma de acesso às memórias do narrador (cartografia). O desvelar de formas, a passagem do
tempo, a diversidade comportamental entre seres aparentemente semelhantes relacionam a pequena
lagartixa com algo diferente, tornando-a múltipla (princípio da multiplicidade). A fim de compor a
heterogeneidade desta única lembrança, é preciso lançar mão de lagartixa, carnaval, jardim, Dolores. A
ruptura do rizoma textual pode ser mais uma vez exemplificada com as “notícias de Eros”. A inevitável
presença feminina é invocada até mesmo na semelhança entre os pequenos animais e os traços comuns
às “meninas chinesas”, à figura feminina capaz de fazer durar o mundo, à “namorada”, “ex-linda amiga”,
“menina-moça” Dolores. Porque, na textualização da memória, vigoram a dor e a saudade, fêmeas e
verticais, mesmo quando a palavra enseja recuperar o tempo, as coisas e as pessoas perdidas.

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MURILO MENDES’ A IDADE DO SERROTE:
THE SELF WRITING AS A TEXTUAL RHIZOME
ABSTRACT
In A idade do serrote (1968), the Brazilian poet Murilo Mendes associates prose and poetry in
order to engender a fragmentary text, labyrinthine and also multiform in which the analogy
between the mnemonic apparatus and the “hypertextual machine” may be unveiled. As a textual
rhizome the self writing might be identified by links and attachments that make possible the
movements between spaces, times and virtual persona.
Keywords: Memory; Hypertext; Rhizome; Murilo Mendes; A idade do serrote

Referências bibliográficas
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PARENTE, André. O virtual e o hipertextual. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999.

98 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 93-98, jan./dez. 2011


MEMÓRIA-SONHO: O REAL QUE SE ESCOLHE NA
FORMAÇÃO DA OBRA MURILO MENDES
Felipe Moratori Pires *
Terezinha Maria Scher Pereira **

RESUMO
Este artigo pretende analisar as relações entre realidade biográfica e ficção na construção da obra
Murilo Mendes.
Palavras chave: Murilo Mendes, Memória, Nijinski, I Ching.

Introdução

Reconhecida por manter o espírito original prontamente moderno e por revelar um extremismo
poético do surreal, a obra do juiz-forano Murilo Mendes se apresenta como uma “biografia sonhada”
que faz confundir de forma singular o “real biográfico” e o “real ficcional”. A obra muriliana nasce
com seu autor na modernidade e permanece nela. A partir das considerações, a hipótese da presente
pesquisa traz a leitura de que a obra de Murilo Mendes se constrói na medida em que se constrói o
personagem Murilo Mendes a partir da infância.
A “escrita do eu” em Murilo Mendes favorece o diálogo entre o sonho e a realidade, pois se
determina pelo distanciamento no tempo e no espaço entre o Murilo autor e o Murilo personagem.
O sentimento da escrita madura sobre as memórias da infância presente em Idade do Serrote perpassa
também Retratos-Relâmpago, pois a composição de ambos os livros se deu em Roma simultaneamente
(entre 1965/66, a 2ª série de RR entre 1973/75). A nostalgia de um “exilado” faz com que ficção e sonho
caracterizem a memória da sua infância. A premissa deste trabalho é que a formação do menino a partir
da memória do adulto, que se descreve, é o caminho de formação do próprio poeta, e, assim, da obra
que ele compõe. É possível ler que a obra e o “menino Murilo” descrito, que é um forte personagem,
se “formam” na mesma medida. A partir das considerações, é interessante um aprofundamento sobre

* Bolsista PIBIC/CNPq/UFJF.
** Professora Orientadora da Faculdade de Letras - UFJF.
Endereço Profissional da Professora Orientadora:
Depto. de Letras, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Email: scherpereira@acessa.com

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 99-105, jan./dez. 2011


traços específicos da biografia e da obra que dizem sobre a infância e sobre aqueles que dialogam entre
a realidade e a ficção.

Metodologia

O desdobramento do conceito de memória percorreu os livros Metamorfoses, Mundo Enigma e


Poesia Liberdade enquanto o lugar do masculino e feminino na infância foram apontados entre Retratos
Relâmpago e Idade do Serrote. Dialogou-se com a filosofia oriental através do I CHING, o livro das
mutações. No aprofundamento do último diálogo, outro nome foi estudado comparativamente com
Murilo Mendes: o bailarino russo Vaslav Nijinski. Ao corpus teórico as principais obras acrescentadas
ao estudo foram Orientalismo e Cultura e imperialismo, ambos de Edward Said, as Teses sobre o conceito
de história de Walter Benjamin e A poética do espaço de Gaston Bachelard.

Discussão/Resultados
As discussões principais analisaram as relações real-biográfico e real-ficcional, o desdobramento
do conceito de “memória” no surrealismo e suas aproximações com o lugar do sonho, o masculino e o
feminino na infância e o lugar da autoria na crítica contemporânea.

I.
A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO
Ofício no altar terrestre,
Roseiras dando-se as mãos,
Iluminações na usina.
O filho pródigo
Despenteou as nuvens,
Levanta a saia das árvores,
Abraça o amigo e o inimigo.
Navios batendo palmas
O esperam na enseada.

Ordenam a sinfonia:
Nijinski dançando no arco-íris
Reconcilia o céu e a terra.1

II.

Cito Vaslav Nijinski no “Espectro da Rosa”: através de uma janela voa no espaço, mal toca o pavimento; traz
consigo o apetite da terra e o disfarce do céu. Estamos no Rio de Janeiro dançante, ainda com o infinito da
baía, sem arranha-céus ou pistas de automóveis. Tenho 16 anos, logo rejeito a dimensão comum do mundo.


1
MENDES, Murilo. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2006. p. 324.

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Precipita-se o carro do meu destino. Alço-me à faixa relâmpago. Não existe o problema de Deus. Existe Deus
revelado pelo “êxtase material”.
Prossegue o diálogo sonho realidade. Sete anos anteriormente eu participara do cometa Halley, quatro anos
depois descobrirei o prodígio Ismael Nery, Nijinski da conversação, e o choque Mallarmé.

Nijinski atrai a força do universo. Escreve um livro onde por meio de sinais inventados registra os passos
da dança. Penetra agora a zona da perturbação da própria personalidade oficial; ajudado pelas sandálias da
noite voa-se, talvez construa no escuro uma barca lunar, dialogue com o sacerdote esotérico ou a sibila que
presidiram ao rito da primeira dança em tempos antiqüíssimos da formação do cosmo.

Conduzem-no (“ressuscitará?”) a um espetáculo de ballets russos. Distingue um homem forte de bigodes, que
traja smoking e domina a atmosfera. Pergunta: “Quem é este?” “Diaghilev”. “E quem é Diaghilev?”

Figuras do mesmo conflito, eclipsam-se luz e sombra. Em que território sem galáxia ou escadas volantes
penetrou Nijinski? Desfeito o apetite da terra, suspenso o disfarce do céu, dissolvidas a palavra “outrora” que
nos alimenta, e as torres de Kiev, Nijinski sonhará que é dançado pela dança?2

A leitura de (I) nos dá uma sofisticada aproximação entre as imagens do filho pródigo da
tradição cristã e do polêmico bailarino. O bailarino aparece, numa primeira leitura, entre o celestial e
o mundano. A relação Murilo-Nijinski se tornou mais simbólica com a inserção da tradição oriental
para a leitura dos significantes “céu” e “terra”. No I CHING, as imagens se referem ao masculino
e ao feminino respectivamente. De um lado, o trigrama Chi’en, formado por três linhas não
interrompidas, representa o céu e está associado ao pai e à criatividade. Do outro, K’un, , formado
por três linhas interrompidas, representa a terra e se associa à imagem da mãe e da receptividade. Neste
sentido, “Nijinski dançando no arco-íris” não está simbolicamente situado apenas entre o terreno e o
celestial, mas também entre o masculino e o feminino.
Símbolo de transgressão do menino Murilo Mendes frente à família, Nijinski é uma figura de
profundo interesse, porque toca de forma muito particular a questão de gênero, que é um ponto chave
de leitura dos fragmentos (I) e (II), selecionados. Trata-se de uma leitura em que, ao buscar análise da
obra a partir da infância, surge do texto a necessidade de se tratar a relação familiar, e assim, o lugar do
sujeito entre o masculino e o feminino.
O caráter de transgressão se acentua na aproximação do “personagem” Nijinski à parábola cristã
do filho pródigo, em (I), poema do livro As Metamorfoses. O paralelo que se estabelece é muito
interessante na medida em que nos traz outra característica da obra de Murilo Mendes que é a
religiosidade, quase sempre mediada por um “algo profano”. A existência do filho pródigo é dependente
de uma figura paterna autoritária, que motiva um desejo de liberdade e leva a um comportamento de
rebeldia. Ao fugir do colégio interno para assistir ao balé de Nijinski, o Murilo descrito se veste de filho
pródigo e transgride a autoridade familiar. Na medida em que se constrói a obra do poeta, em que o
sonho e a ficção promovem a biografia, a recusa em continuar os estudos tem um significado marcante
de oposição à atitude de opressão da família — castradora do destino do menino à arte, à sensibilidade
poética.

Tenho 16 anos, logo rejeito a dimensão comum do mundo. Precipita-se o carro do meu destino (...).
Prossegue o diálogo sonho realidade. Sete anos anteriormente eu participara do cometa Halley.3

2
Ibidem. p. 1275.
3
Ibidem. p. 1275.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 99-105, jan./dez. 2011 101


O destino de Murilo à arte tem um ponto especialmente cuidado na biografia, que é a passagem
do cometa Halley em 1910, aos seus nove anos de idade. Ao citar Halley no retrato de Nijinski, Murilo
parece reafirmar o quão marcante é o contato com o balé russo, no que tange a sua formação sensível e
intelectual. É notável também a ausência de limites na percepção daquele Murilo que assistiu ao balé.
O que nos permite pensar num processo de formação, cujos limites (que também têm a função de
definir) ainda não foram estabelecidos.

(...) através de uma janela voa no espaço, mal toca o pavimento; traz consigo o apetite da terra e o disfarce do
céu (...). Nijinski atrai a força do universo. (...) Penetra agora a zona da perturbação da própria personalidade
oficial; ajudado pelas sandálias da noite voa-se (...)4

Se concentrarmos nas características que o poeta atribui ao dançarino no seu retrato-relâmpago,


encontraremos justamente uma “ausência de limites”, uma poderosa força que parece perturbada entre
o céu e a terra, imagens que aparecem significativamente em (I) e (II) e merecem atenção especial.

Em (1) “Nijinski dançando no arco-íris / Reconcilia o céu e a terra.”


Em (2) “Traz consigo o apetite da terra e o disfarce do céu (...)

A análise se torna ainda mais sofisticada quando se observa o sentido dos hexagramas formados
pela união dos dois trigramas. “Céu” sobre a “Terra” forma o hexagrama P’I, que nos indica a imagem
da “estagnação”:

No julgamento oracular pressupõe-se um indivíduo que está sendo afastado de seus princípios
pelo relacionamento que não se estabelece com a figura de autoridade. A relação de conflito que se
estabelece entre o desejo de Murilo à arte e a autoridade do pai contra esse desejo pode ser lida por esse
hexagrama. Assim como a relação de autoridade entre Nijinski e o patrono Diaghilev.
A inversão dos trigramas “Terra” e “Céu” formam o hexagrama T’AI:

De modo muito instigante, tal inversão faz com que o sentido de “estagnação” se transforme no
sentido de “paz”. Nijinski e Murilo através da arte se reconciliam com a autoridade repressora.
No diálogo entre o ficcional e a biografia, chegamos na relação de Murilo Mendes com o pai,
Onofre Mendes, que, se a princípio era castrador da vontade do filho à poesia, sabe-se, finalmente,
como um pai extremamente carinhoso e presente.

Meu pai é de uma paciência absoluta com o adolescente estranho que eu sou (...) Declaro sistematicamente
que só quero ser poeta, nada mais. (...) Mais tarde alegra-se diante do sucesso dos filhos (...) Quanto a mim,
alheio às maquinações literárias, recebo o prêmio de poesia da Fundação Graça Aranha com o meu primeiro
livro Poemas, que ele próprio fizera editar em Juiz de Fora. 5

Ibidem. p.1275/76
4


5
Ibidem. p. 972

102 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 99-105, jan./dez. 2011


O fragmento acima é do capítulo “Meu pai” de A Idade do Serrote que mostra claramente a
relação fraterna de Murilo com o pai, que participou ativamente da formação do poeta Murilo Mendes,
na edição do seu primeiro livro. Assim é perceptível como a construção do personagem Murilo Mendes
se entrelaça com a obra em que ele se insere.

III.

MEMÓRIA

Virar a vida pelo avesso.

A fábula com suas raízes


Mergulha na esfera branca.

Passado, presente futuro,


Tiro o alimento de tudo.

O diadema da noite
Tecido de madressilvas
Espera núpcias solenes.

Preparam o cristal da música.

Espírito que passas murmurando,


Detém-se, suspende o vôo:
Morro de esperar a morte.

IV.

MEMÓRIA

Obscuríssimos quartos
Dando para terraços em azulejos
Onde um homem de couro e seda
Faz sinais para Saturno
E onde moças inconscientes
Mostram o coração

Tatuagens

... Para que o invisível se manifeste.


Para que o relógio possa falar
E os anjos operadores
Descansem da tarefa
De mudar crueldade em ternura.

A memória lida como tatuagem revela o caráter arbitrário da recordação biográfica para a
construção ficcional. A “memória-tatuagem” é aquela que é escolhida para ser gravada no tempo.
Tempo o qual, em Murilo Mendes, dentro da compreensão surrealista, não se estrutura na linearidade,
já que o alimento poético é “retirado de tudo”: passado, presente e futuro. Segundo Bachelard:

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 99-105, jan./dez. 2011 103


No teatro do passado que é a nossa memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante. Às
vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços
da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo.6

Neste sentido, é interessante pensar o quanto a “escrita do eu”, em caráter literário, está sujeita
à “traição” do real, especialmente quando se fala de uma escrita memorialística como a de Murilo
Mendes, construída no deslocamento temporal “maturidade-infância” e espacial “Roma-Juiz de Fora”.
O conhecer-se no tempo nada mais é que conhecer algumas fixações (ou tatuagens) de realidade no
tempo. Que, no artifício da construção literária e poética, consiste em trabalho, escolha precisa da
linguagem.

Conclusão

A ressignificação ou plurissignificação do pensamento cultural contemporâneo permite o diálogo


entre identidades, e tem, como consequência, uma profunda mudança no olhar e nas leituras estéticas.
Foi de grande interesse aqui observar o caráter seletivo da memória que, em Murilo Mendes, pode
ser lida como intenção fundamental na construção das imagens. Ao se pensar nas abordagens teórico
críticas no século XX, voltamo-nos à questão da autoria. A obra de Murilo Mendes é forte exemplo
de uma literatura autorreferencial que poderia prescindir de referências à figura do autor, contra uma
literatura que volta-se para o texto de forma incisiva, apontada a não pertinência da intenção do
escritor para a significação da obra. A leitura aqui proposta não abre mão da intenção do autor, mas
propõe outros campos referencias de significação para investigar os limites entre o real biográfico e o
que de mais precioso o “sonho” do fazer poético em Murilo Mendes conseguiu alcançar.

Political and Poetical Practices - A Study of Friendship in Murilo


Mendes as an Strategy of Survival in Diverse Worlds
ABSTRACT
This article analyzes the relationship between biographical fact and fiction in the construction
work of the poet Murilo Mendes.
Key-Words: Murilo Mendes, Memory, Nijinski, I CHING.

Referências

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6
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do vale Santos Leal. Rio de Janeiro: Eldorado
Tijuca, [s.d.]

104 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 99-105, jan./dez. 2011


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Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 99-105, jan./dez. 2011 105


A EMERGÊNCIA DA CIDADANIA NOS METAVERSOS
Maria Tereza Carneiro Umbelino *
Dr. Francisco José Paoliello Pimenta **

RESUMO
A partir de estudo sobre plataformas interativas multicódigos, lançamos a ideia de que estaría-
mos frente a uma inédita preocupação com a cidadania e a consequente construção de estratégias
relativas a essas atividades em ambientes imersivos digitais. Daí, este trabalho procura verificar, a
partir da análise de três grupos ativistas constituídos no Second Life, se de fato, estaria surgindo
tal sentimento de cidadania dentro do metaverso e se já existe uma organização efetiva para re-
pensar as condições deste ambiente virtual como espaço colaborativo.
Palavras-chave: Metaversos; Cidadania; Semiótica.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho se insere nas atividades do projeto de pesquisa ‘Plataformas interativas e seus
padrões sígnicos: o caso Second Life’, que busca melhores formas de aproveitar os recursos hipermídia
nas plataformas interativas em redes multicódigos, tomando como base a plataforma do Second Life.
Envolve pesquisadores e bolsistas da Universidade Federal de Juiz de Fora e de outras universidades
associadas, com financiamentos da Sesu-MEC, Capes-Pibic, Capes-DS e Capes-Procad. Como uma
sub-hipótese do projeto, foi proposta a ideia de que estaríamos frente a uma inédita preocupação com
a cidadania e a consequente construção de estratégias relativas a essas atividades em um ambiente
imersivo digital.
Este trabalho procura verificar, a partir da análise de três grupos ativistas constituídos no Second
Life, se, de fato, estaria surgindo tal sentimento de cidadania dentro do metaverso1; e se já existe uma
organização efetiva para repensar as condições deste ambiente virtual como espaço colaborativo.

* Bolsista PIBIC/CNPq/UFJF.
** Professor Orientador da Faculdade de Comunicação - UFJF.
Endereço Profissional da Professora Orientadora:
Programa de Pós Graduação em Comunicação Facom - Universidade Federal de Juiz de Fora, Cidade Universitária, Bairro
Martelos, CEP 36036-330, Juiz de Fora, MG/Brasil. E-mail: paoliello@acessa.com
1
O termo “metaverso” vem do romance de ficção cyberpunk Snow Crash, de Neal Stephenson, publicado em 1992, e refere-se
às plataformas de realidade virtual interativas.

Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 107-115, jan./dez. 2011


O Second Life é um software que propõe a construção de um “outro mundo”, virtual, lançado
em 2006 pela empresa Linden Lab. Existem duas possibilidades de acesso a esse ambiente: uma conta
premium e uma conta gratuita. Com a premium, os usuários adquirem recursos por meio dos quais
podem criar tudo, de prédios a roupas. A possibilidade de qualquer usuário criar animações como
abraçar, se deslocar em veículos, desmaiar ou chorar, difere o software do Second Life de outros ambientes
virtuais onde é possível utilizar apenas o que já foi criado pela própria plataforma.
Assim, das grandes cidades desse metaverso até um simples gesto, a maior parte foi criada
pelos usuários em um contínuo processo colaborativo. Nesse tipo de ambiente não há objetivos pré-
determinados que levem os frequentadores a alcançar um determinado nível ou passar de fase, como
ocorre nos jogos eletrônicos. Com o slogan “Seu mundo, sua imaginação”, o Second Life apresenta
diversas possibilidades tanto para a representação mimética do mundo real quanto para a criação de
ambientes ficcionais e fantásticos.
Nos interessa, aqui, especialmente, o fato desse metaverso se propor a criar vínculos entre milhões
de usuários por meio da interação de suas representações virtuais, chamadas de avatares, de forma que,
assim, é possível até mesmo conhecer pessoas e adicioná-las à sua rede de amigos da vida real. Existe
uma ênfase na ideia de pertencimento, pois a formação de grupos é o ponto chave dessa interação
virtual. A maioria dos avatares tem uma casa, diversos grupos de afinidade, amigos e lugares preferidos.
Todas essas escolhas aparecem no perfil dos usuários e podem ser acessadas por outros participantes,
mostrando quem ele é e com que se envolve dentro do metaverso. Há, portanto, uma interessante
aproximação entre os metaversos e as redes sociais, conforme já apontamos em outro trabalho (Pimenta
& Varges, 2009).

2. Metodologia

Após o recorte dos grupos a serem estudados, foi feita uma análise de caráter semiótico de seus
padrões sígnicos predominantes, obtidos por meio da observação das características visuais, sonoras e
verbais; das formas de representação do que é externo à plataforma; dos laços de existencialidade que
ligam os signos e respectivos objetos; e os efeitos que possivelmente os construtores da plataforma
desejavam gerar em seus visitantes.
Foram consideradas três hipóteses de padrões predominantes de acordo com as categorias
triádicas de Charles Sanders Peirce (Peirce, 1998). A primeira sugere que os padrões poderiam ter um
caráter delimitado pela interferência da interface digital e dos demais mecanismos de funcionamento
do software. Sendo assim, as representações ficariam restritas a um determinado modo de operação, que
só poderia ser alterado por meio de mudanças ou adaptações no programa que gerencia o Second Life.
Outra hipótese prevê a predominância de padrões específicos, ligados a um grupo social, cultural
ou temático. Sendo assim, as representações do Second Life estariam presas a representações que utilizam
padrões particulares de referências. Já a terceira hipótese avalia a possível existência de padrões cada vez
mais amplos e complexos, caminhando para um pensamento de caráter mais universal, assim como
definido dentro da vertente da biosemiótica (Kull, 1999).
Tais hipóteses podem ser relacionadas, então, à nossa sub-hipótese, segundo a qual estaria
se desenvolvendo um movimento pela cidadania nos ambientes virtuais, caso encontremos um
predomínio de padrões na terceira esfera, ou seja, naquela que trabalha com pensamentos de caráter
mais universal. Isto porque adotamos como critério para nossa concepção de cidadania aquelas ações
que não estão meramente associadas a aspectos técnicos (primeira esfera) nem, tampouco, a qualquer
tipo de particularidade social ou cultural (segunda esfera).

108 Principia, Juiz de Fora, v. 15, p. 107-115, jan./dez. 2011


De acordo com o Pragmatismo de Charles Peirce, o desenvolvimento humano estaria, na
realidade, relacionado a uma inserção cada vez maior dos agentes sociais em concepções coletivas,
sujeitas a heterocríticas de caráter amplo. Tal postura decorre de sua adoção do Realismo Escolástico,
segundo o qual, os universais são reais e, se assim forem compreendidos, estarão aptos a conduzir o
pensamento a uma maior harmonia com padrões que transcendem culturas e nos aproximariam de
uma possível concepção relacionada à própria lógica da natureza (Peirce, 1998).
Desta forma, não nos prenderíamos a interesses individuais, grupais ou locais, preconceitos
raciais ou de gênero, nem a quaisquer tipos de relativismos, entre eles o histórico (Rouanet, 1988).
Portanto, consideramos que o Realismo e, dentro dele, o Pragmatismo peirceano, é capaz de colaborar
para a construção de uma concepção de cidadania de caráter filosófico, a qual desenvolvemos em
diversos trabalhos voltados para o ciberativismo (Pimenta, 2006) e mais uma vez adotamos aqui.

3. Resultados
O conceito de cidadania, no que se refere à relação dos indivíduos diante do Estado e da Sociedade,
toma outras formas dentro do Second Life. A empresa desenvolvedora Linden Lab, que assume a figura
de “Estado” deste mundo virtual, incentiva a organização e a discussão entre os residentes. Assim,
dentro do metaverso, existem vários grupos de temática política voltada tanto para a Second Life (SL)
quanto para a Real Life (RL). Entretanto, também foram definidas regras gerais que devem ser seguidas
por todos, os chamados “Big Six” e “TOS”, cuja desobediência é punida com ações da empresa que vão
desde avisos, passam pela suspensão e chegam até a pena de banimento do metaverso.
O “Big Six” são seis comportamentos condenáveis, aplicáveis a todas as áreas do Second Life,
Second Life Forum, bem como ao Second Life Website: 1. intolerância (relativa à raça, à etnia, ao sexo, à
religião ou à orientação sexual); 2. assédio (avanço sexual ou comportamentos que causem mal-estar ou
tensão); 3. agressão (atirar, empurrar ou atropelar outro residente ou criar programas que o impedem
de se divertir); 4. ameaça à privacidade (divulgação de informações pessoais e de conversas travadas no
ambiente digital); 5. Pornografia (limitada a regiões privadas ou ao continente adulto, o Zindra) e 6.
Pertubação da paz (atrapalhar eventos ou o sistema informático, transmitir publicidade indesejada ou
sons repetitivos).
Apesar de não se responsabilizar por todas as ações, incluindo as financeiras, que acontecem
no metaverso, a empresa se preocupou em criar a ferramenta “denunciar abuso”, por meio da qual são
emitidos relatórios de uso indevido, com a identidade do relator mantida em caráter confidencial, para
posterior análise e punição, se for o caso. Já o “TOS” são os termos de serviço da Linden Lab, ou seja,
o acordo firmado entre cada usuário e a empresa. Veremos, a seguir, outras características da cidadania
no Second Life, por meio da descrição de três ambientes por nós analisados.

3.1. Os Lanternas Verdes Brasil: “heróis” da comunidade

Em 2006, com o objetivo de promover uma conscientização no mundo virtual sobre os distúrbios
étnicos em curso no Sudão, foi construída a ilha “Better World” dentro do SL. O chamado “Camp
Darfur” recriava uma área de refugiados, intercalando as tendas azuis da ONU e grandes fotos de
campos reais. Contudo, assim como existe violência no RL, ela também ocorre no SL, e, assim, após
uma onda de ataques ao local, um usuário reuniu alguns amigos e criou um grupo de vigilantes, o
“Green Lantern Core” para patrulhar a área, e mais tarde, todo o Second Life.

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Esses ataques foram realizados por “griefers”, que é a denominação dada para usuários ofensivos
ou agressivos, que podem atuar tanto em redes sociais, jogos ou no Second Life. Os ativistas “anti-
griefer” do “Core” logo se tornaram conhecidos no mundo virtual e na mídia RL e são facilmente
reconhecíveis por suas roupas inspiradas nos quadrinhos do Lanterna Verde, da editora americana DC
Comics.
Alguns participantes brasileiros do “Green Lantern Core” criaram, então, o grupo Lanternas
Verdes (LV), voltado principalmente para a comunidade brasileira dentro do metaverso. Em sua
página na internet, os Lanternas Verdes deixam claro que a proposta do grupo não é agir como uma
‘polícia do Second Life’, mas como um ponto de apoio para outros residentes. Assim, promovem cursos
sobre diversos temas, patrulhas em várias regiões, plantão de atendimento à residentes com dúvidas e
problemas, reuniões semanais da cúpula do grupo, e ainda, reuniões abertas a todos os interessados. O
personagem Lanterna Verde traz ao grupo uma filosofia que direciona as ações e os pilares fundamentais
do grupo que são “aprender, aperfeiçoar e auxiliar”.
A formação de novos membros também é um foco de atuação dos LV. Todos esses valores são
passados para os aspirantes durante o curso de formação, no qual analisam o “TOS” e o “Big Six”
da Linden Lab para poder reportar ilegalidades e aconselhar outros avatares. Também são levados a
conhecer a filosofia do grupo e se especializam nas diferenças e modos de operação de cada viewer do
software, ou seja cada diferente interface, no sentido de poderem ajudar residentes usando as várias
versões do programa. O perfil dos candidatos é assim descrito no site:

“Um residente atuante, sempre prestativo, pronto a auxiliar a qualquer um que


solicite ou necessite de seu apoio, de comportamento polido, disciplinado em
seus deveres, sempre buscando manter ou restabelecer a ordem. Sempre com o
desejo de ajudar e servir à comunidade, onde estiver e a qualquer momento, sabe
que sua missão é nobre e desprovida de recompensas materiais; sua satisfação é a
evolução pessoal, através do refinamento de suas qualidades rumo à excelência.”
[Extraído de http://lanternasverdes.xp3.biz/]

­­­­­­­­3.2. O Second Life Left United: um coletivo democrático

O Second Life Left United (SLLU) é um grupo criado pelo avatar Plot Tracer dentro do metaverso
para reunir simpatizantes e participantes de partidos de esquerda ao redor do mundo. O grupo tem sua
própria ilha dentro do SL, onde c­­­­onstruiu a sede do grupo e outros dois prédios de grupos de discussão
específicos: SLLU Feminist Network e o SLLU LGBT. Em um manifesto, o grupo define sua proposta
da seguinte forma:

“A SLLU busca meios criativos e não violentos de promover um diálogo revolu-


cionário social. Nós nos opomos ao capitalismo, assim como ao racismo e sexis-
mo como parte do capitalismo. Nosso objetivo é desenvolver o socialismo para
maximizar a atividade e pensamento de esquerda no SL” [Extraído de http://
slleftunity.blogspot.com/]

Abrangendo questões amplas como as diferentes vertentes da esquerda política, o feminismo, o


antifascismo, os direitos homossexuais e manifestações não violentas, grande parte de seus participantes
têm alguma ligação com o ativismo político também na vida real. O planejamento das manifestações é

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feito em reuniões abertas, em avisos de encontros e nas notícias referentes aos temas tratados enviadas
aos participantes do grupo.
Uma das recentes iniciativas apoiadas pela SLLU foi a campanha NO BERLUSCONI, criada na
Itália da Real Life. Caixas de doação para a campanha foram espalhadas pela ilha da SLLU no Second
Life, e realizados shows nos dias 20 e 21 de fevereiro para arrecadar doações para a manifestação nas
ruas da Itália real, que aconteceram no dia 27 do mesmo mês.
Nem sempre, contudo, ocorre um evento específico na SLLU para apoiar um movimento externo
como, por exemplo, a 6ª Semana Internacional de Apartheid Israelense (IAW). Tratou-se de um evento
em apoio à causa palestina, denunciando os ataques cometidos à Faixa de Gaza, e pedindo sanções e o
boicote a Israel. Foram promovidas ações em várias cidades do mundo, entre os dias 1 e 14 de março,
incluindo sessões de filmes, palestras e discussões.
Não ocorreram manifestações sobre isto no SL, mas os notecards do grupo espalharam a notícia e
convocaram quem estava nas cidades participantes para comparecer aos encontros ou, ao menos, visitar
o site (http://apartheidweek.org/). Mesmo sem um evento, foram feitas bandeiras de Israel com um ‘X’
e a palavra boicote em cima. Também foi montado um stand onde era possível pegar arquivos de textos
que continham informações sobre os conflitos na Faixa de Gaza.
O grupo SLLU Feminist Network, por sua vez, é um dos mais ativos e promove encontros semanais
para o debate de questões ligadas à mulher, tanto dentro do metaverso quanto na Real Life. Em seu site
são disponibilizados dados de pesquisas e links de livros feministas online para uma formação ativista. A
cada semana, diversos assuntos são discutidos no prédio da SLLUFN e os textos maiores são postados
no blog (http://feministnetwork.blogspot.com/).
O principal foco do grupo neste momento é a violência contra a mulher fora e dentro do SL,
pois começaram a aparecer animações de espancamento e violência sexual no mundo virtual. No site
do grupo existem sugestões de segurança para que os novos usuários (newbies) se protejam de possíveis
ataques. As ações violentas são diversas e, embora não tenham resultados físicos, existem os potenciais
danos psicológicos aos envolvidos, por se tratar de um local de intensa imersão virtual.

3.3. AIRE: arte de vanguarda pela ecologia

O AIRE é um organização ecologista sem fins lucrativos que existe desde 1996 e tem sua sede na
cidade de Moulins, na França, e que, a partir de outubro de 2006, também ganhou uma sede no Second
Life. Seu grupo inworld é composto por duzentos e treze avatares e oferece exposições, workshops e
eventos em todos os campos da arte contemporânea (2D, 3D, música, design e arquitetura), bem
como da temática ecologia transacional: natural, social e psicológica.
O responsável pelo grupo tanto no SL quanto na vida real é o artista multimídia Marc Blieux
cujo avatar chama-se Marc Moana. O AIRE realizou sua primeira ação ativista artística no Second Life,
intitulada EP-AIRE, em 22 de Abril de 2007. Neste dia foi realizado o primeiro turno das eleições
presidenciais na França, na qual um dos candidatos era José Bové, líder esquerdista do movimento
antiglobalização que detém a simpatia da grande maioria dos ecologistas franceses. Nesse mesmo dia
era comemorado o Dia da Terra, evento que tem como objetivo despertar a consciência global para a
preservação e a conservação do meio ambiente. Foram, então, espalhados, em três movimentadas ilhas
do Second Life, dezenas de barris de lixo radioativo prontos para explodir, que liberavam fumaça verde
e folders com mensagens contra a utilização de energia nuclear.
A partir daí, o grupo prossegue com atividades conjugando ativismo e ecologia, sempre com sua
ênfase principal voltada para as proposições de caráter artístico.

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4. Discussão

4.1. Primeira hipótese: as limitações técnicas

A análise da limitação técnica, procedimental, na produção dos signos pelos três grupos traz
resultados bastante próximos, já que existem restrições do próprio suporte para a representação fiel do
real nos três ambientes observados. Os signos se mostram semelhantes (iconicidade, segundo Peirce) e
com conexões existenciais com seus objetos (indexicalidade, segundo Peirce) dentro da realidade 3D
do Second Life, mas ainda assim poderiam ter muito mais pontos em comum com aquilo que intentam
representar.
O ambiente que deveria ter avatares se movimentando e gesticulando, como seres humanos, não
atinge seu objetivo. Existe um menu separado para comandar gestos como rir, acenar, dançar, se irritar,
mas ele é pouco funcional e geralmente fica esquecido pelos usuários. Como a maioria das conversas
ocorre através de textos escritos, as emoções são representadas com “emoticons”, ou seja, desenhos com
sinais gráficos que formam expressões faciais, também usados nos demais intercâmbios digitais fora do
metaverso.
Já existe a opção de conversa por meio de voz no metaverso, mas esta não se compara à uma
conversa em um “chat” (conversa) de voz pois existe um delay nas falas, ou seja um atraso na chegada
da mensagem de áudio. Além disso, nessa forma de comunicação perde-se a possibilidade de uso de
programas de tradução para as mensagens. Como muitos dos usuários não falam a mesma língua e se
comunicam graças a tais programas de tradução anexados à caixa de diálogo, isto acaba por reduzir
toda a complexidade do mundo virtual a um “chat” textual. É o que acontece, por exemplo, nas
reuniões da SLLU e LV.
A tentativa de resolução de dificuldades de ordem procedimental, por sinal, é uma das funções
dos LV no Second Life, na medida em que estes ajudam residentes a entender melhor a interface e
executar tarefas. Porém, isso não os exime dos mesmos problemas técnicos, reduzindo as possibilidades
de interação nesse tipo de suporte.
No caso do AIRE, por se tratar de uma plataforma criada sem a pretensão de reproduzir um
ambiente da RL e por propor instalações artísticas para mobilizar os residentes, existe a oportunidade
de se criar algo novo, uma arte específica para o SL, com o que é fornecido pela plataforma. Portanto,
dos três ambientes observados, é o único que se apropria da interface digital sem tantas restrições de
caráter técnico, o que o credencia a estimular, de forma mais produtiva, atividades pró-cidadania na
Rede.

4.2. Segunda hipótese: presença dos particularismos

Ao analisarmos se os padrões sígnicos são limitados por aspectos particulares de cada um desses
grupos nos foi possível perceber que mesmo dentro das temáticas e propostas globais que os movem
são fortes alguns traços particularistas. No caso do SLLU, o prédio da SLLUFN e suas referências à luta
feminista trazem informações que nem todos os participantes do SLLU partilham, daí algumas perdem
a força e seu sentido inicial.
O prédio de três andares tem, em sua parte térrea, uma loja de discos de vinil de bandas feministas
e posters colados nas paredes, entre eles o da cantora Billie Holiday. No segundo andar, fica a biblioteca
que tem um manifesto sobre tráfico de mulheres afixado na parede, assim como um desenho da
ativista negra Angela Davis com a frase “Irmã, você é bem-vinda nesta casa!”. Na mesa, fica o jornal
que é link para um site contra pornografia (http://www.oneangrygirl.net/antiporn.html). A prateleira

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também tem diversos links de sites. O terceiro andar é a sala de reunião, com caixotes de madeira e puffs
de tecido militar. Quanto às ações, o grupo, que se propõe reunir simpatizantes da esquerda de todo
o mundo, acaba dando ênfase apenas a assuntos relacionados à Europa, onde vive grande parte dos
membros. Os padrões de pensamento da esquerda local prevalecem, portanto, sobre aqueles de uma
esquerda universal.
No caso dos Lanternas Verdes, o vínculo com as histórias em quadrinhos traz diversos elementos
visuais para a ilha que não são do domínio de todos os usuários. É necessário conhecer a estória
para compreender as cenas reproduzidas em 2D e os objetos apresentados na sala/museu do Lanterna
Verde. As ações do grupo, apesar de serem pautadas por regras convencionadas e aceitas dentro da
comunidade do Second Life, também sofrem interferência da ética do grupo e de sua filosofia. Decisões
como, por exemplo, quem pode fazer parte do grupo ou como agir em determinada área é feita em
reuniões fechadas da cúpula.
No caso do AIRE, as instalações se apresentam como arte de vanguarda, que por si só já é um
signo marcado pelo particularismo. Caso o residente que visite a ilha não tenha contato com arte de
vanguarda ou com a cyberarte, seu interpretante pode não ser o pretendido pelo autor da instalação.
Quanto às ações e padrões de pensamento, ambos são delimitados pela mente criadora de Marc Moana
e ligadas à organização do AIRE fora do metaverso.
Portanto, nos três ambientes observados constatamos uma significativa presença de signos de
caráter particularista, o que restringe seu caráter universalista, e, portanto, de acordo com nossos
critérios, seu impacto positivo sobre a cidadania.

4.3. Terceira hipótese: a projeção para o universal

Por outro lado, podemos dizer também que os três grupos observados buscam, de alguma forma,
a projeção ao universalismo. O SLLU, em suas representações de símbolos da esquerda, como Marx
e Che Guevara, pintados em tinta vermelha na parede principal da ilha, busca se identificar com o
pensamento da esquerda universal. A ideia de urbanidade permeia todos os signos da plataforma, que
faz clara referência aos prédios, praças e muros das cidades globais e também transforma a ilha em um
lugar que se assemelha a diversos outros do mundo real.
No campo das ações, a SLLU tem se direcionado mais para as discussões em grupo sobre as
possíveis ações do que para manifestações, o que mantém inexploradas diversas possibilidades da
plataforma 3D. Contudo, busca-se uma polifonia nas discussões e sempre que ainda houver alguém
contrário ou disposto a falar sobre determinado assunto o tópico é reaberto. Apesar da predominância
dos assuntos de apelo maior na Europa, como o caso Berlusconi e ações antinazistas, em detrimento
de discussões sobre pobreza na America latina ou ações Chavistas, por exemplo, ainda assim propostas
da esquerda mundial estão presentes no discurso da SLLU e em suas reuniões. De alguma forma, o
grupo consegue atrair avatares de diferentes vertentes, caminhando para um pensamento mais amplo
e universal.
No caso dos LV, a presença da biblioteca e das salas de aula mostra que existe uma busca pela
participação ativa dos residentes que visitam o local e uma tentativa de construção conjunta de
signos. Os critérios que norteiam o grupo na busca do aperfeiçoamento dos LV como indivíduos e
da comunidade do Second Life gera um padrão de pensamento voltado para o que é aceito dentro do
metaverso, com ênfase em uma cidadania do espaço virtual.
O AIRE, por sua vez, apesar de marcado pelo particularismo dos signos da arte de vanguarda,
busca passar sua mensagem sobre ecologia através de instalações de espaços para interação dos
avatares. As ações do grupo visam à inserção do usuário no movimento ecológico internacional, e

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daí, seus padrões de pensamento, voltados para o ambientalismo e a preservação do planeta, ganham
incontestável caráter universalista.

5. CONCLUSÃO

Podemos concluir, portanto, que após pesquisarmos a possível emergência de uma consciência
cidadã na esfera virtual do Second Life, é possível afirmar que isso de fato vem ocorrendo, a partir
dos exemplos apresentados, embora todos os processos possam ser descritos como ainda bastante
incipientes. É importante ressaltar que existem inúmeras outras iniciativas nesse sentido e que os
ambientes observados constituem apenas uma pequena amostra, embora representativa, desse universo.
Conforme vimos na primeira parte, a própria empresa desenvolvedora desse metaverso se preocupa com
uma convivência colaborativa entre seus usuários, até mesmo como forma de garantir o sucesso de seu
empreendimento.
Porém, o que dá consistência à nossa hipótese de que estaríamos frente ao surgimento de um
movimento de cidadania na esfera virtual são as iniciativas do tipo que apresentamos aqui, ou seja,
lançadas por grupos sociais sem interesses comerciais e que se propõem a conscientizar os usuários seja
por meio de ideias, signos, ações políticas, colaborativas ou artísticas.
Nos casos observados, constatamos, contudo, a existência de muitas limitações técnicas,
restringindo a capacidade de representação de ambientes e de interações entre grupos e pessoas e também
o apego a uma estética, ações e pensamentos particularistas. Por outro lado, observamos, também, a
preocupação com valores universais, o que conduz seus proponentes a uma postura colaborativa e
cidadã, pelo menos de acordo com nossos critérios.

THE EMERGENCE OF CITIZENSHIP IN METAVERSES

ABSTRACT ­­­
From a study about interactive multicode platforms, we propose the idea that we would be
facing an unprecedented concern for citizenship and the consequent development of strategies
relating to these activities in digital immersive environments. So, analysing three activist groups
from Second Life, this study seeks to verify if there is indeed a citizenship feeling emerging in
metaverses and if there is already an effective organization to rethink these virtual environments
as a collaborative spaces.­­
Keywords: Metaverses; Citizenship; Semiotic.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS­­­­

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127(1/4). S.l: s.n, p. 385-414, 1999.

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Cenários, Teorias e Epistemologias da Comunicação. Rio de Janeiro: E-Papers, 2007.

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Instruções aos Autores

A Revista PRINCIPIA - Caminhos da Iniciação Científica - publica artigos originais, em todas


as áreas do conhecimento, de alunos dos Programas de Iniciação Científica (IC) da Universidade
Federal de Juiz de Fora.
Os artigos publicados referem-se aos trabalhos selecionados por consultores externos, pesquisadores
do CNPq, durante o evento anual Seminário de Iniciação Científica da UFJF, coordenado pela
Pró-Reitoria de Pesquisa.

O professor orientador deverá encaminhar o artigo a ser publicado para o email pesquisa.
propesq@ufjf.edu.br, assunto “Principia: artigo para publicação”, que será analisado pelo
Conselho Editorial, quanto ao cumprimento das normas.
O artigo deverá ser redigido em português, arquivo em word, formatado com fonte Arial tamanho
12, espaçamento 1,5, margens de 2cm, texto justificado, contendo no máximo 10 páginas, com a
seguinte sequência:

1. Título

2. Nome dos autores por extenso, com número sobrescrito indicando o Programa de IC
envolvido, e endereço profissional completo do professor orientador.

3. Resumo, máximo de 3.000 caracteres

4. Palavras-chave, máximo de cinco

5. Abstract, precedido pelo Título em inglês

6. Key words

7. Introdução, Metodologia, Resultados, Discussão, Conclusão, Agradecimentos e Referências.


Os itens Resultados e Discussão ou Discussão e Conclusão poderão ser apresentados em
conjunto.

8. Referências (conforme ABNT NBR: 6023:2002)

Figuras e Tabelas
Fotos, desenho, gráficos e mapas serão denominados Figuras. As Figuras e Tabelas devem ser
numeradas, respectivamente, em algarismos arábicos, e serem chamadas no texto em ordem crescente,
abreviadas Fig. 1. Tab. I.

Citações Bibliográficas:
No texto, as citações bibliográficas devem ser mencionadas no sistema AUTOR (ano) NBR
10520:2002, no caso de dois autores e et al.

Obs: O et al. só é usado dentro do parênteses.

117
Referências
As citações devem ser apresentadas em ordem alfabética e conforme normas da ABNT - NBR:
6023:2002; espaçamento simples entre as linhas e 1,5 entre elas.

Artigos em Periódicos
AUTOR(ES). Título: subtítulo do artigo (se houver). Título do periódico, local, volume,
fascículo, página inicial-final, ano.

SILVA, V.A.; ANDRADE, L.H.C. Etinobotânica Xucuru: espécies místicas. Biotemas, Florianópolis,
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BODEN, M.J.; KENNAWAY, D.J. Circadian rhythms and reproduction. Reproduction, v. 132, p.
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Livros
AUTOR(ES). Título. Edição. Local: Editora, ano de publicação.

CALVINO, I. Por que ler os clássicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Livros: mais de três autores


BUSH, A.O. et al. Parasitism: The diversity and ecology of animal parasites. 1 ed.
Cambridge;University Press, 2001.

Livros: sem autores


ROSARIO: mapa de la ciudad. [Buenos Aires?]: Argentina.com,
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Autor entidade
MUSEU DE ASTRONOMIA E CIENCIAS AFINS. Acervo musicológico=museological
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Capítulos de livro
AUTOR(ES) do capítulo. Título. In: SOBRENOME, Prenome (autor da obra no todo). Título.

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Local: Editora, ano. Páginas inicial e final do capítulo.
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Tese/Dissertação
AUTOR. Título. Ano, Total de folhas. Tese (Doutorado - Programa) ou Dissertação (Mestrado -
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FERRAZ, R.L. Acoplamento dos Processos do Adensamento e do Transporte de Contaminantes


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Trabalho publicado em Anais de Congressos, Simpósios e similares


AUTOR(ES). Título. In: NOME DO EVENTO, número, ano, Cidade de realização.
Anais... Cidade de publicação, Editora, ano, páginas inicial-final.

AMARAL, L.A. Atividade física e diferença significativa/deficiência: algumas questões psicossociais


remetidas à inclusão/convívio pelo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ATIVIDADE MOTORA
ADAPTADA, 4., 2001, Curitiba. Anais... Curitiba: SOBAMA, 2001. p. 30-31.

Trabalho Apresentado em Evento (Meio Eletrônico).


Adota-se o mesmo procedimento para trabalho publicado em Anais de eventos, acrescido das
informações referentes ao meio eletrônico. (VHS, CD-ROM, ONLINE).

LUCK, Esther Hermes; MOTTA, Jandira Souza Thompson: SOUZA, Clarice Muhlethaler de;
SAMPAIO, Maria da Penha Franco; RODRIGUES, Maria da Penha Franco; RODRIGUES,
Mara Eliane Fonseca. A biblioteca universitária e as diretrizes curriculares do ensino de graduação.
In: SEMINARIO NACIONAL DE BIBLIOTECAS UNIVERSITARIAS, 2000, Florianópolis.
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