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O GOL E A LÓGICA DO JOGO

Fernando Fábio Fiorese Furtadoi

O jogo é a afirmação e entrega do homem num movimento sem fins ou objetivos,

libertando-o das noções ordinárias de tempo e espaço para suprimir no puro prazer de jogar

a transitoriedade e a finitude humanas. Desta forma, conforme afirma Umberto Eco, a

atividade esportiva é dominada pela idéia do desperdício. (...) Há então um desperdício

lúdico ao qual não podemos renunciar: exercê-lo significa ser livre e livrar-se da tirania

do trabalho indispensável.

A atual campanha do Botafogo no Campeonato Carioca e, particularmente, a

performance do artilheiro Paulinho Criciúma (menos no gramado que no noticiário

esportivo), nos permite dar tratos à bola e refletir acerca das peculiaridades da cultura

brasileira contemporânea. Ao afirmar que o gol não é o momento lógico do jogo, Paulinho

Criciúma sintetiza a multiplicidade de angústias que se articulam no espaço de interação

entre os jogadores e a audiência. Tais angústias, exacerbadas em sua violência e contágio

durante o espetáculo esportivo, permeiam toda a vida cotidiana do homem contemporâneo,

devido ao fato de nos subtrairmos do exercício lúdico e da racionalidade livre de objetivos

em benefício de uma razão com funções instrumentais. E assim, através da razão

instrumental e com o objetivo de administrar o tempo e o espaço da experiência humana, a

cultura de massa logrou imobilizar os movimentos e separar fisicamente os participantes

do jogo investindo no individualismo, na passividade, na hierarquização e na

espetacularização.

A afirmação do jogador botafoguense, consciente ou inconscientemente, parece

significar a negação do futebol como espetáculo de massa, na medida em que recusa a

presença da logicidade inerente ao espetáculo quando inserido na esfera do consumo. As

expectativas da audiência em relação ao espetáculo e, principalmente, em relação ao


jogador são definidas pela mesma lógica que impele o espectador a consumir o evento

esportivo. Neste sentido, cumpre-nos observar que o atleta, ainda segundo Umberto Eco, é

o resultado das primeiras degenerações da competição, ou seja, a criação de seres

humanos destinados à competição. E tal destinação faz do atleta um ser que hipertrofiou

um único órgão, que faz de seu corpo a sede e a fonte exclusiva de um jogo. Esta

metamorfose independe da vontade ou da consciência do jogador, pois abarca todos nós

que participamos do jogo da cultura e por ele somos jogados. Eleito mito da sociedade de

consumo, resta ao atleta se deixar consumir e consumir-se na logicidade da hipertrofia.

As novas técnicas criam um tipo de espectador puro, isto é, destacado fisicamente

do espetáculo, reduzido ao estado passivo e voyeur. A afirmativa de Edgar Morin nos

remete à distância a que foi deslocada a audiência no espetáculo esportivo, sendo reduzida

então ao mero exercício do olhar na medida em que não tem possibilidade de aderir

fisicamente àquilo que contempla. O espectador de futebol, seja no campo, seja via

televisão, integra-se ao espetáculo não para jogar, mas para ser jogado e enredado nas

tramas do consumo.

Natural, então, que o torcedor venha a exigir do atleta a mesma submissão a que se

sujeita como consumidor do espetáculo: o gol deve ser a lógica do jogo, pois o evento

esportivo está inserido no princípio racionalizador das relações sociais. A cultura de massa,

ao substituir a realidade vital do homem por um simulacro técnico e funcional, forjou um

modelo mecânico que se estende à própria organização da sociedade, determinando as

necessidades, os comportamentos e as expectativas individuais. Portanto, nada mais natural

que o espectador exija do atleta a abolição do acaso, principalmente se considerarmos os

processos de tecnicização dos esportes, de profissionalização dos jogadores e de

organização/ordenação das torcidas.


As vaias ou os aplausos da torcida expressam a exigência em relação aos jogadores

da contraparte de sua participação no espetáculo. O espectador submeteu-se à lógica do

consumo, devorando a sua existência e o seu tempo e evadindo-se das realidades social,

política e econômica, de forma a permitir o domínio racional da natureza exterior e

humana. Espera, então, que o atleta, enquanto operário especializado do espetáculo, utilize

a racionalidade técnica para criar uma segunda natureza do jogo, do futebol – enfim liberto

do acaso, do desperdício, da ausência de lógica.


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FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. “O gol e a lógica do jogo”. Tribuna da Tarde, Juiz de Fora, 12 abr 1989, p. 2.

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