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psiquismo humano
A psicologia, a
psiquiatria e a
psicanálise se
propõem a estudar a
fantasia, cada uma
com suas nuances
Ana Carolina de Salvador e
Isabel Rigon
O
médico neurologista e
criador da psicanálise,
Sigmund Freud, acredi-
ta ser impossível viver sem ilu-
sões, aliás, elas são necessárias,
pois o universo imaginário é
essencial para o desenvolvimen-
to humano. Para ele, a mente é
regida por uma premissa funda-
mental: o princípio do prazer. O
ser humano quer se satisfazer e
quando se depara diante de uma
realidade desagradável, ele ten-
de a recusá-la e criar uma fanta-
sia que lhe apraza.
Diante da relação dolorosa
com a realidade que o ser huma-
no carrega, ele é capaz de fan-
tasiar-se para fugir e amenizar o
sofrimento. Há uma diversidade
de ilusões que marcam diferen-
A obra de Francisco Goya O sono da razão produz monstros
tes formas de lidar com a rea-
lidade. No entanto, devaneios
podem tornar-se um problema ca e atuou principalmente nos é saber juntar a fantasia e reali-
quando a vida no mundo objeti- temas de infância, desenvolvi- dade, porque isso torna a pessoa
vo é completamente substituída mento, criatividade e consumo. capaz de realizar projetos que
pela vida na fantasia. A douto- Maria explica que é necessá- foram sonhados por ela. A fan-
ra em Psicologia Clínica, Maria rio um equilíbrio entre o real e tasia está dentro de cada um, e
Inês Bittencourt, tem experiên- o irreal. “O importante é saber cada um é dono da sua própria
cia em Intervenção Terapêuti- administrar a fantasia. O ideal fantasia”, explica.
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A doutora ainda diz que a fan- resultado de uma frustação com
tasia pode ser dividida em dois a realidade”, diz.
grandes grupos: a mergulhada A psicanalista ressalta que
e a afogada. Pessoas impossibi- sempre haverá uma dificuldade
litadas de sonhar são muito me- na relação com a realidade por
cânicas e não conseguem criar parte de todos os seres humanos,
fantasias. Maria afirma que a já que ela nos traz insatisfações.
falta de imaginação é um sinto- Com o tempo, aprendemos a li-
ma contemporâneo, sustentado dar com essas situações – ou não.
por um conformismo às pressões Cássia explica que o ser humano
externas que ditam como deve- cria artifícios para transformar a
mos nos comportar e não abre realidade diante da decepção,
espaço para o indivíduo ser o mas fantasiar se torna um pe- Professora e psicanalista Cássia Chaffin
que quer. O consumismo é um rigo quando a pessoa substitui
abafamento da fantasia, já que por completo a vida no mundo
se baseia naquilo que é concreto. objetivo pela vida imaginária. A concepções e não considera o
Nesse caso, as pessoas acreditam ruptura brutal com a realidade mundo objetivo, atrapalhando
que precisam ter coisas, quando define que um paciente deve fi- sua relação com o que é real.
se pode criá-las ou customizá-las car internado. Essa condição é caracterizada
e não permitem que a imagina- As doenças mentais – qualquer por uma série de fatores que dis-
ção seja ativada. alteração no funcionamento da torcem o senso de realidade do
Como a fantasia é uma di- mente – podem ser divididas em indivíduo e o aliena gravemen-
mensão humana para a psi- dois tipos: neurose e psicose. A te da percepção de si e do mun-
canálise e psicologia, todas as neurose é qualquer desequilíbrio do. Na leitura da psicanálise, há
doenças vão envolver o geren- mental que resulta em angústia um rompimento entre o Ego e a
ciamento e a organização da e ansiedade, é uma doença co- realidade, submetendo o indiví-
vida imaginária. Mas é neces- mum que não interfere na ca- duo aos impulsos do Id, sem um
sário cuidado para que a fan- pacidade funcional da pessoa. filtro sobre o que seria certo ou
tasia não se transforme em um Freud vai diagnosticá-la como errado. Assim, o psicótico não
sintoma de doença. A professora a dificuldade de lidar com as tem consciência de suas ações
do curso de Comunicação Social ideias que estão em desacordo nem da consequência delas.
da PUC-Rio, psicanalista e psicó- com a construção idealizada de
loga do Centro de Atenção Psi- si e da realidade. Mas, ainda as- Doenças neuróticas e
cossocial de Itaguaí (CAPS Bem sim, o neurótico não rompe com psicóticas
Viver), Cássia Chaffin, explica a realidade e se preocupa com Os distúrbios neuróticos têm
que a fantasia pode ser sinal de ela. A neurose é o resultado de como característica o exagero
doença quando o sujeito se pa- um conflito entre o que o indiví- de sensações psíquicas normais
ralisa diante da realidade. “No duo é de fato – chamado de Ego para qualquer ser humano. An-
fundo, todo ser humano é um na psicanálise – e o que ele al- gústia, ansiedade, medo, drama-
doente mental. Sempre haverá meja e desejaria ser – o Id. tização, obsessão e sentimentos
algo na realidade que está fora O neurótico está ciente de seus depressivos são algumas ocor-
da construção da fantasia pes- atos, mas não consegue contro- rências exageradas pelo neuróti-
soal. Uma pessoa considerada lá-los. Já o psicótico rejeita a co que resultam em sofrimento e
saudável é aquela que está dis- realidade radicalmente e, por a tentativa de “negociar” a rea-
ponível a considerar sempre algo isso, encontra-se imerso em seu lidade. O neurótico está sempre
que desestabiliza a sua imagem mundo interno, é aquele que buscando soluções para seus me-
de si ou do mundo, que está em chamamos de louco. Na psicose, dos, mas convive com eles sem
constante transformação. No o doente se aprisiona no mun- nunca se desligar do real. Para
fundo, todo mundo simbólico é do imaginário de suas próprias Freud, esses transtornos são de-
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Centro Cultural da Saúde/ Ministério da Saúde
Outro transtorno de cunho
neurótico é a mitomania, ou a
ação de contar mentiras com-
pulsivamente. Ele é caracteriza-
do pela mania de mentir para
se sentir mais confortável, evitar
a rejeição das pessoas e a pu-
nição por erros. Geralmente, as
mentiras são restritas a assuntos
específicos por conta de alguma
situação insatisfatória e visam
apresentar o indivíduo de ma-
neira idealizada para as pessoas
com quem convive. Em casos
mais graves, a própria pessoa
A psiquiatra Nise da Silveira revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil tem dificuldade de distinguir ou
lembrar o que é verdade e o que
correntes de situações já vividas, de ansiedade que causa a sen- é invenção.
principalmente na infância. sação súbita de perigo iminente, Os distúrbios psicóticos, por
A depressão neurótica é con- manifestado em crises inespera- outro lado, apresentam algo
siderada uma reação a fatores das de desespero, como o medo novo, diferente das variações
exógenos, ou seja, ao ambiente da morte, além do medo de en- permitidas em um ser humano
em que o indivíduo se insere ou louquecer e perder o controle. considerado normal. As pes-
a algum acontecimento especí- Suyane dos Santos Bezerra, de soas com esses transtornos têm
fico. É um transtorno de humor 26 anos, sofreu de síndrome do alucinações, delírios e mudan-
caracterizado por pensamentos pânico aos 17 anos e teve difi- ças comportamentais causadas
extremamente tristes e de deses- culdade em continuar os estudos pela perda de contato com a
perança. Nesse quadro, as vivên- por conta da doença. “O meu co- realidade.
cias de frustração na realidade ração acelerava, eu sentia muito A esquizofrenia é uma doen-
que nos causam desprazer são medo, falta de ar e meu corpo ça psicótica crônica que leva à
recalcadas a fim de sustentar a tremia quando tinha as crises. ruptura com a realidade através
fantasia normal ao ser humano, Elas podiam começar a qual- de delírios e alucinações visuais,
e, assim, surgem os sintomas. A quer momento e o medo de que sinestésicas ou auditivas. Os
depressão é uma das doenças acontecesse me atrapalhou mui- delírios mais comuns são aque-
mais frequentes na atualidade e to. Passei a evitar situações em les em que o indivíduo acredita
tem como sintomas recorrentes que podia me sentir desconfortá- estar sendo perseguido ou ob-
o sentimento de culpa, a agres- vel para que não acontecesse de servado e, com as alucinações,
sividade, o medo do abandono, novo e perdi a prova de vestibu- ele ouve ou vê coisas que não
a falta de energia, entre outros. lar por causa disso”, revela. estão lá. Além disso, pode sentir
Não é uma condição passagei- Suyane contou que a simples cheiros estranhos, sentir bichos
ra, como a tristeza que podemos preocupação de ter uma crise já andando pelo corpo, acreditar
sentir por algo doloroso que nos fazia disparar os sintomas. Se- que os familiares são imposto-
ocorreu, é um quadro que dura gundo ela, a primeira crise veio res e muitos outros sintomas, já
pelo menos duas semanas de por conta de uma dose exage- que cada pessoa tem um mundo
forma intensa. rada de um medicamento para fantasioso próprio. O paciente
Assim como a depressão, a sín- cólica menstrual que causou ar- não tem controle sobre nenhum
drome do pânico é uma doença ritmia cardíaca e consequente- desses sintomas e não cria a fan-
cercada por medos e pensamen- mente, o medo de morrer, além tasia intencionalmente, ela sur-
tos negativos. É um transtorno de outros sintomas físicos. ge espontaneamente e domina a
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consciência, além de influenciar
o comportamento.
Por fim, o transtorno bipolar
é caracterizado pela alternância
de humor de forma extrema.
São intercalados períodos lon-
gos de euforia e de depressão,
que podem ocorrer com muita
ou pouca frequência. Segundo a
doutora Maria Inês, essas gran-
des oscilações atrapalham mui-
to o andamento das relações de
vida do indivíduo. “Em um mo-
mento a pessoa se acha capaz de
tudo, sem motivo especial, e em
outro entra na depressão, se sen-
te inútil ou culpado e acha que
vai morrer. O doente não perce-
be essas alterações e é necessário
ajuda de pessoas próximas na
detecção do problema”, revela.
Fernando Diniz foi um dos artistas descobertos em uma das oficinas que Nise
A diferença entre promoveu
tratamento
psiquiátrico e inconsciente e que podem ser conhecimento mais profundo
psicanalítico tratados pela via simbólica da e completo do funcionamento
A psiquiatria é uma especia- palavra. O processo da psicaná- mental do indivíduo. Ela vas-
lidade da medicina que surgiu lise é mais lento, pois vai ofe- culha a escuridão da mente por
para cuidar e tratar aqueles que recer ao sujeito uma forma de sinais do que possa ter causado
viviam uma alienação mental. se inscrever na realidade de um a atual condição do paciente,
O modo de tratamento segue, modo diferente. Mas, em casos para que seja tratado a fundo e
então, o método da medicina graves, que são denominados o problema se dissolva por intei-
moderna, diminuindo e contro- psiquiátricos, essas vias simbó- ro. Esse processo de conhecimen-
lando os sintomas desorganiza- licas não são suficientes e é ne- to tem valor terapêutico e sugere
dores do psiquismo através da cessário complemento medica- que o paciente conheça a si pró-
via medicamentosa. Mas, para mentoso. “O remédio dissolve o prio de forma que lhe permita
a psicanalista Cássia, remédios sintoma, mas o que o motivou maior liberdade e satisfação.
não resolvem tudo. “A psiquia- não se dissolveu, o paciente vai
tria trabalha só com o sintoma ficar condenado aos medica- Liberdade pela arte
para dissolvê-lo e seu objetivo mentos para controlá-lo. A psi- A psiquiatra Nise da Silvei-
é fazê-lo desaparecer da forma canálise oferece o espaço para ra (1905-1999) foi considera-
mais rápida possível. O remédio que a pessoa descubra a moti- da uma mulher à frente do seu
vai atuar sobre os neurotrans- vação inconsciente daquele sin- tempo, pois rejeitava os mé-
missores, mas, na psicanálise, toma, então se trata de dissol- todos convencionais da época
é necessário ir além”, pondera. ver o mal estar que ele causa e para tratar os esquizofrênicos.
A psicanálise é uma forma descobrir porque aquela pessoa Ela refutava as técnicas brutais
de tratamento que reconhece o produziu”, ressalta. que eram usadas para tratar os
que os sintomas vitais são ex- Chamada de “psicologia pro- doentes, como, por exemplo,
pressão de um conflito psíquico funda”, a psicanálise busca o choques elétricos e lobotomia –
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Arquivo pessoal
interno do sujeito”, diz a profes-
sora.
Segundo Cássia, a arte não é
feita com o intuito de que o psicó-
tico se inscreva no mundo simbó-
lico, mas é a forma de organizar o
mundo interno através da expres-
são do delírio. Quem se preocupa
em produzir algo para intervir na
realidade é o neurótico, o que não
significa que o psicótico não pos-
sa produzir nesse mergulho um
grande discurso. “A relação com a
realidade é diferente, os psicóticos
já estão indiferentes a ela. A Nise
vai despertar a importância des-
Vitor Pordeus em espetáculo na praia do Arpoador
se espaço e oferecer a possibilida-
intervenção cirúrgica no cérebro má-lo em um ateliê cujo maior de de uma vida mais rica, dando
que retira a parte responsável destaque foi a oficina de artes uma chance de eles articularem,
pelas emoções. A violência com plásticas. Por meio da arte, Nise de alguma maneira, esse mundo
os pacientes a lembrava das tor- confrontou o sistema psiquiátri- interno”, explica.
turas que sofreu no período em co movido pela força e exclusão e O trabalho de Nise inspirou
que ficou presa, durante 15 me- deu oportunidade para os esqui- muitos outros projetos. É o caso de
ses no governo de Getúlio Var- zofrênicos se expressarem. Vitor Pordeus, coordenador do Nú-
gas, entre 1934 e 1936, por ter Cássia Chaffin, também pro- cleo de Cultura, Ciência e Saúde
livros marxistas em sua estante. fessora de Processos de Criação e da Secretaria Municipal de Saúde
Durante esse período, a psiquia- Psicanálise, explica que o artista do Rio de Janeiro. Formado em
tra observou que os presos que é aquele que cria uma realida- medicina e ator, Pordeus transfor-
se ocupavam não desanimavam de, pois tem dificuldades e lida mou três enfermarias desativadas
como os outros que não tinham com frustrações da quebra de seu do antigo hospital psiquiátrico,
nenhuma atividade a exercer. mundo ideal. A arte promove o onde hoje funciona o Instituto
Em 1944, depois de oito anos empoderamento de quem a faz Nise da Silveira, em um espaço
vivendo na clandestinidade, Nise e, assim, o paciente tem a opor- que encoraja a arte e a convivên-
voltou a exercer a profissão e foi tunidade de se transformar em cia. O “Hotel da Loucura”, como
trabalhar no Centro Psiquiátrico protagonista de sua obra. Cássia foi batizado, é um local de reali-
Pedro II, no Engenho Novo, Rio de ressalta que, no tratamento do zação de oficinas, palestras e espe-
Janeiro. Inspirada pelas pesquisas psicótico, a criação artística pos- táculos dos quais os pacientes do
do psicólogo suíço Carl Jung, Nise sibilita a organização do mundo hospital participam.
defendeu o tratamento humani- interior, que é caótico e atormen- Em 2012, as paredes sem vida
zado, no qual a arte pode servir ta a pessoa. Logo, a arte auxilia e descascadas da antiga ala psi-
como um método de reabilitação. na descarga da tensão interna, quiátrica deram espaço a cores
Pioneira no tratamento por meio apaziguando o sofrimento. “Eu fortes e frases motivacionais. As
da terapia ocupacional, ela foi vejo essa inserção de terapia ocu- janelas dos nove quartos foram
perseguida pelos médicos do hos- pacional como uma tentativa de enfeitadas com cortinas de estam-
pital e transferida para a Seção de oferecer aos psicóticos uma possi- pas coloridas e salas se transfor-
Terapia Ocupacional e Reabilita- bilidade de expressão, de colocar maram em biblioteca, ateliês e
ção (Stor). Até a entrada de Nise, o ali na arte essa possibilidade de locais de meditação. Nesse espaço,
Stor era um setor desprivilegiado, transformar em discurso pictórico Vitor promove espetáculos de tea-
mas a médica conseguiu transfor- essas forças que estão no mundo tro, que incluem a dança e o can-
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to, onde os atores são os próprios tes, nas oficinas e espetáculos que reconectar o paciente, a pessoa
pacientes. “Nesse processo, obser- os atores considerados saudáveis”, com a experiência coletiva, o jogo
vamos o efeito radical que o teatro conta. e a fantasia. “Com isso, expressa-
tem sobre os pacientes com esqui- Para Vitor, a obra de arte, a ex- mos nossa identidade profunda.
zofrenia, psicose crônica, formas pressão e os trabalhos feitos pelos Trabalhando com as pessoas que
gravíssimas de doença mental. pacientes são a própria revelação têm formas graves de doenças
Eles cantam, dançam, participam, do mundo interno e a cura deles. O mentais, podemos acessar os sím-
fazem cena e são regulares, par- teatro “DyoNises”, como é chama- bolos do inconsciente coletivo, con-
ticipam de todas as oficinas por do, é um tipo de teatro ritualístico, forme demonstrou pela experiência
vontade própria. Temos casos que tradicional desde os gregos e os po- da doutora Nise da Silveira, e nós
são mais regulares, mais presen- vos tribais antigos, que serve para z
confirmamos isso”, encerra.
No filme Nise – O coração da Loucura, Glória Pires Cena do filme em que Nise analisa as imagens do
interpreta a psiquiatra que descobriu talentos dentro de inconsciente de seus clientes
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