Você está na página 1de 6

Opinião ● Política ● Economia & Negócios ● Brasil ● Internacional ● Esportes ● Cultura ● Úl

Latest: PERSONA CINEMA: A mise-en-scène contra a morte    

O CÂNONE EM PAUTA FALANDO DE MÚSICA O GRANDE TEATRO DO MUNDO ESTADO DA ARTE EM REVISTA 
ESTADO DO CINEMA AUTORES SOBRE

Café Filosó co CPFL


Filoso a   Literatura  

Algumas notas sobre Aristóteles e A literatura na s…


s…
a de nição de poesia
 14/04/2017  Gabriel Nocchi Macedo

por Gabriel Nocchi Macedo


00:00 48:10
O que diferencia prosa e poesia? Feita a um grupo de estudantes
universitários, em uma prestigiosa universidade, a pergunta gerou
hesitação. Com alguma insistência, obtiveram-se algumas tímidas Recentes
respostas: a poesia é uma “expressão de sentimentos”, enquanto a
prosa “conta uma história”. Qualquer distinção formal entre uma e A Peste no De rerum natura
outra categoria de composição literária, mesmo a noção de “verso”, (6.1138-286) de Lucrécio (II)
passa despercebida. A resposta dos nossos universitários re ete, de
Por uma interpretação do
certa forma, a ideia que o público geral tem do propósito da poesia:
Brasil (Parte 3)
exprimir sentimentos, criar imagens, sugerir afetos, enquanto
romances, contos e novelas narram histórias com início, meio e m. Ruy Fausto e o sentido da
teimosia
No entanto, na tradição literária, a distinção essencial entre prosa e
poesia deve-se não tanto ao conteúdo quanto à forma, e sobretudo O museu de palavras

ao metro (do grego metron, “medida”): uma estrutura rítmica de nida PERSONA CINEMA: A mise-
sobre a qual se constrói o verso, ou seja, a linha poética. Até o século en-scène contra a morte
XIX, com a emergência da prosa poética seguida, ao início do século
A Objetividade Cientí ca e
XX, pela aparição do verso livre (cujo ritmo é despojado de qualquer Seus Contextos (Evandro
coerção métrica), o metro era o critério essencial, a condição sine qua Agazzi) – 01
non à criação poética.
Os antigos gregos, criadores da crítica literária, foram os primeiros a Assunto
teorizar sobre a natureza da poesia. Platão, notório por sua aparente
antipatia por poetas, refere-se ao metro como uma vestimenta ou Select Catego
armadura que cobre as “palavras nuas” (logoi psiloi), ou seja, a prosa.
Na sua Poética, Aristóteles reconhece o metro como o denominador
comum dos diversos gêneros de poesia (Aristóteles, Poética 1447b 14- Arquivo
20):
Select Month
Colando o verbo poiein [1] ao nome do metro, eles chamam uns
de “poetas elegíacos”, outros de “poetas épicos”, não pela
representação (mimèsis), mas de acordo com o metro que usam; Assine o podcast
de fato, costumam-se chamar assim também aqueles que
tratam, usando metro, de medicina ou da natureza. Porem, não Spotify
há nada em comum entre Homero e Empédocles além do metro,
por isso, é mais justo chamar o segundo de especialista da
Android
natureza do que de poeta.

Como ilustra essa passagem, o uso do metro na Grécia antiga era


muito mais amplo do que a ideia moderna de poesia. Em seus
primeiros séculos, toda a literatura grega era poética; até tratados
cientí cos e losó cos, como o Da natureza de Empédocles de
Acragas, eram versi cados. Aristóteles foi o primeiro a questionar a
identi cação convencional “texto em metro = poesia”, situando no
centro de sua de nição de poesia a noção de mimèsis, traduzido ora
por “representação” ora por “imitação”. Empédocles escreve versos
com um proposito cientí co (ou didático), não mimético: nada, em sua
obra, imita ou representa a ação humana. Ele, portanto, não deveria
ser considerado poeta, mas um “escritor cientí co”. A essência do
poético, segundo Aristóteles, reside no seu caráter mimético. O metro
só não basta à poesia.

Mimèsis é o conceito central da loso a estética de Aristóteles. As


artes são formas de mimèsis, imitações da natureza, de eventos, do
caráter, da ação, e das emoções humanas, cada uma com meios que
lhes são próprios (Poética, 1447a 18-28):

Aqueles que criam imagens representam muitos objetos pelo uso


formas e cores (…), outros o fazem pelo uso da voz, como em
todas as artes mencionadas acima, que fazem imitações usando
ritmo, linguagem e melodia, separadamente ou em conjunto. As
músicas da auta, da cítara e de outros instrumentos com efeito
semelhante, como a auta de Pan, usam melodia e ritmo apenas,
enquanto a dança usa o ritmo sem melodia (de fato, os
dançarinos, pelo ritmo de seus gestos, imitam caráteres, emoções
e ações).
Após uma digressão sobre a nomenclatura de alguns gêneros
literários, o fundador do Liceu conclui (Poética, 1447b 24-27):

Há também artes que usam todos os meios aqui evocados, digo


ritmo, melodia e metro, como a poesia ditirâmbica, a poesia
nômica, a tragédia e a comédia[2].

Aristóteles, infelizmente, não trata de todos os tipos de literatura e de


sua relação com a mimèsis (a maior parte do primeiro livro da Poética
é de fato dedicada somente à tragédia; o segundo livro, que tratava da
comédia, foi perdido). Porém, aplicando o raciocínio aristotélico à
terminologia moderna, chegar-se-ia às seguintes de nições: poesia é a
arte que usa, como meios de realizar a mimèsis, linguagem e ritmo.
Alguns gêneros poéticos usam tão somente linguagem e ritmo (como
a épica), outros, linguagem, ritmo e melodia (como os gêneros de
poesia cantada citados acima). A arte que realiza a mimèsis pelo uso
da linguagem pura, sem ritmo, é o que hoje chamaríamos de “prosa
literária” ou “ cção” e englobaria os o romance, o conto, a novela, etc.
A “não cção”, ou seja, a prosa cientí ca, losó ca, ensaística, etc., faz
uso da linguagem pura, mas não realiza mimèsis. Os antigos tratados
losó cos em verso, como o de Empédocles, preenchem as condições
formais da poesia, i.e. usam linguagem e ritmo, mas também não são
miméticos e excluem-se assim da teoria poética de Aristóteles.

A mimèsis, e consequentemente a poesia, têm suas origens, segundo


Aristóteles, na natureza humana (Poética 1448b 4-24):

Duas causas parecem ter originado a arte poética, ambas


naturais. A representação é natural aos seres humanos desde a
infância, e é por ela que eles se diferenciam dos outros animais.
Pois, o ser humano é o mais mimético de todos [os seres] e seus
primeiros aprendizados se fazem através da representação. E
todos os homens obtêm prazer das representações. Um sinal
comum disso é que nos alegramos ao ver reproduções
extremamente realistas de coisas que nos são dolorosas de ver,
como cadáveres ou formas de animais repugnantes. A causa disto
é que não só os lósofos gostam de aprender, mas também os
homens comuns, mesmo se eles têm menos aptidão. É por isso
que as pessoas têm prazer em contemplar imagens, porque
contemplando-as elas aprendem e inferem o que cada coisa é,
por exemplo, “isto é tal coisa”. Até porque, se eles por acaso
nunca viram o objeto representado, não é a representação que
lhes trará prazer, mas a técnica, a cor ou algum outro elemento.

Representação nos é então natural, assim como a melodia e o ritmo (o


metro é, bem entendido, parte do ritmo). Desde o início, aqueles mais
naturalmente inclinados a tais coisas desenvolveram, pouco a pouco,
a poesia a partir da improvisação.

Tem-se aqui um ponto central da estética aristotélica, que, em


momento algum, reivindica-se de l’art pour l’art. A mimèsis, inerente à
natureza humana, não provoca somente prazer ao homem, ela é um
modo de aprendizado. A poesia, enquanto expressão mimética,
mantém essa função e reveste-se assim de uma importância moral. O
dever do poeta, diz Aristóteles, não é contar o que aconteceu na
realidade, mas o que poderia acontecer, por necessidade ou
probabilidade. O historiador relata fatos e eventos, muitos dos quais
são frutos do acaso ou não se podem explicar. Cabe ao poeta
expressar, na sua representação desses fatos e dos homens que
participam deles, aquilo que, nas circunstâncias e na ação de um
homem, é útil a todos os homens (Poética, 1451a 38 – 1451b 10):

A diferença entre o historiador e o poeta não é que um escreve


sem metro e o outro com metro (de fato, se a obra de Heródoto
fosse posta em metro, ela ainda seria um tipo de história, com ou
sem metro), mas a diferença é que um diz o que aconteceu, o
outro, o que poderia acontecer. Por isso, a poesia é mais losó ca
e mais séria que a história, pois a poesia revela o universal, e a
história, o particular. O universal diz respeito ao tipo de coisa que
um tipo de pessoa deve provavelmente ou necessariamente dizer,
e este é o objetivo da poesia, mesmo se ela usa nomes
particulares.

Exempli cando: a verdade de Édipo Rei não é aquela de um antigo rei


de Tebas (que provavelmente nunca existiu) que matou o pai e casou-
se com a mãe. O que o expectador (ou leitor) aprende ao ver
representadas ações dos personagens e suas consequências, é a
verdade sobre insolência humana, sobre os perigos do poder, sobre a
inexorabilidade do destino.

As de nições de Aristóteles podem parecer ultrapassadas nos dias de


hoje, quando a arte já não tem sempre um dever mimético e se
considera, desde Nietzsche, independente da moralidade. Mas, na
idade onde a história se escreve em tweets, onde jornalistas viraram
ideólogos e youtubers, é reconfortante lembrar do velho lósofo e
saber que, pelo menos na poesia, há verdades que permanecem
inalteradas.

[1] Poiein, do qual derivam “poesia”, “poeta”, etc., signi ca “fazer,


criar”.  Literalmente, Aristóteles refere-se a poetas elegíacos e épicos
como “fazedores de elegia” e “fazedores de épica”.

[2] O ditirambo e o nomos são odes líricas entoada por um coral, o


primeiro em homenagem a Dionísios, o segundo a Apolo. As tragédias
e comédias gregas, compostas eram inteiramente em verso,
compunham-se de partes faladas e de partes cantadas com
acompanhamento musical.

Con ra também

Entrevista com André Malta, Fernando Gazoni, Vicente Sampaio

Gabriel Nocchi Macedo


Gabriel Nocchi Macedo é doutor em Línguas e Literaturas
Clássicas pela Universidade de Liège (Bélgica) e leciona
atualmente na Universidade do Michigan.

Share This Post: 


0 
0
Editores: Eduardo Wolf e Marcelo
Consentino

Deputy editor: Gilberto Morbach

Direitos autorais © 2020 Estado da Arte. All rights reserved.


   

Você também pode gostar