Você está na página 1de 16

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Jonatas Leal Gonçalves dos Santos

ANÁLISE MOTÍVICA DA SEGUNDA SINFONIA DE BRAHMS


Trabalho de conclusão da matéria de Literatura e Estruturação musical VIII

Salvador
2018
ANÁLISE MOTÍVICA DA SEGUNDA SINFONIA DE BRAHMS

A segunda das quatro sinfonias de Brahms foi composta em 1877 - logo após ter
escrito a primeira sinfonia - na região de Pörtschach no Wörthersee nos Alpes austríacos.
A segunda sinfonia teve sua estreia em Viena, dia 30 de dezembro de 1877, dirigida por
Hans Richter, que também estreou a terceira sinfonia do compositor. Richter foi um dos
mais importantes e renomados maestros de seu tempo, e sua presença foi uma prova da
consideração que o maestro tinha do compositor. O público e a crítica receberam suas
sinfonias com grande entusiasmo (esta mais que a sua primeira), atingindo rapidamente
um lugar proeminente entre os compositores e obras da época. A estrutura da obra
localiza-se no limite entre o classicismo e o romantismo, mostrando a ligação do
compositor com o período.
O primeiro movimento, caracteriza-se pela vasta exposição, com um
desenvolvimento relativamente breve e denso. O motivo do primeiro tema é formado por
apenas três notas expostas no primeiro compasso da obra. A instrumentação chama a
atenção por sua maestria de combinações. O segundo tema é apresentado pelas violas e
violoncelos, logo retomado pelas madeiras que tem como resultado uma forma que se
assemelha a uma valsa.
O segundo movimento é um episódio lento, quem sabe um dos mais interessantes
da sinfonia. A melodia dos violoncelos tem um caráter meditativo sendo respondidos por
uma leveza transportada pelos instrumentos de madeira. Um terceiro tema vai-se
desenvolver de uma forma mais jocosa com os instrumentos de corda. Todo o movimento
mostra uma escrita contrapontística muito bem elaborada, num equilíbrio entre a
genialidade e a técnica da composição.
O terceiro movimento é uma dança ligeira e alegre, simples de caráter popular. O
movimento apresenta e dois momentos um desenvolvimento temático com variações, em
uma das vezes baseado no motivo inicial do tema e na última vez estruturado no
motivo final do mesmo tema.
O quarto movimento e final, é um movimento longo. O primeiro tema é
apresentado com o termo sotto voce pelas cordas baseado no motivo inicial da sinfonia,
que também vai aparecer de uma forma exuberante durante o movimento. Com o clarinete
surge o segundo tema, seguido por todos os demais naipes da orquestra, passando por
transformações, quando aparece em terças e depois passando por uma nova idéia
pontuada por um ritmo mais enérgico. Aí inicia-se uma nova fase do movimento que é o
desenvolvimento partindo do tema inicial. Um novo motivo rítmico é apresentado com a
indicação do termo tranquillo, que se apresenta em tercinas de semínimas, que nos leva a
uma associação com o tema inicial, tema este que dominará todo o final do
desenvolvimento até ao momento da repetição. A Coda, muito curta conclui com a
presença de metais que utilizam o segundo tema, concluindo assim a sinfonia.
Neste trabalho será abordado os processos no qual se desenvolve os temas desta
maravilhosa sinfonia. Em música, um tema é a célula inicial ou primária/principal.
A Encyclopédie Fasquelle1, de 1958, define um tema do seguinte modo: "Qualquer
elemento, motivo ou pequena peça musical que originou alguma variação se torna um
tema a partir desse momento. O objetivo deste trabalho, portanto, é fazer correlações no
processo temático da segunda sinfonia de Brahms através da aplicação em uma análise
real tendo como modelo principal elementos temáticos do primeiro movimento.

Tabela 1. Brahms, sinfonia no. 2 in D maior, op. 73,


I. Allegro non troppo. Estrutura formal.
Compasso Secção Tonalidade
1-23 1 tema I
19-43 Transição 1 V
44-65 Tema intermediário I
66-81 Transição 2 III
82-101 2 tema -1 III
102-117 2 tema – 2 III
118-155 Transição 3 V/V
156-184 2 tema – 3 V
185-301 Desenvolvimento ?
302-323 1 intro do tema I
319-349 Transição 1 V
350-369 2 tema – 1 VI
370-385 2 tema – 2 VI
386-423 Transição 3 V
424-446 2 tema – 3 I
446-523 Coda I

Como mostra o esboço formal na Tabela 1, uma leitura convencional do primeiro


movimento da segunda Sinfonia de Brahms apresenta várias dificuldades em relação às

1
Encyclopédie Fasquelle in NATTIEZ, Jean-Jacques. Music and Discourse: Toward a Semiology
of Music (Musicologie générale et sémiologue, 1987). New Jersey:Princeton University Press,
traduzido para o inglês por Carolyn Abbate. 1990.
expectativas normais dos elementos comumente discutidos como fundamentais para os
contrastes dramáticos tão próprios da forma sonata. Essas questões questionáveis são
abordadas da maneira mais simples possível na tabela, pois o objetivo deste trabalho é
fazer uma análise motívica desta obra.
A exposição da segunda sinfonia de Brahms contém três seções temáticas bem
delineadas. O primeiro tema é bastante introdutório em caráter. Curiosamente, a
tonalidade ganha a definição na transição para o segundo tema, uma seção que possui
todas as características de uma típica sonata no seu início. Na terceira seção temática,
encontramos um tema típico de um segundo assunto. No entanto, ao invés de se mover
para o dominante, Brahms vai para a mediante fracamente definido. Após uma repetição
variada deste tema, chega um novo material que parece indicar que a exposição está
chegando ao fim. Em vez disso, leva a outra iteração do terceiro tema, desta vez
apresentado claramente na dominante e levando diretamente ao final da exposição.
Na recapitulação, algumas das irregularidades são reconciliadas quando Brahms
sobrepõe os dois primeiros temas em um assunto mais definido. A transição definindo a
tonalidade da exposição também cumpre seu papel de um modo mais natural desta vez,
pois o segundo tema chega no submediante, em vez da mediante da exposição. Este
processor temático é mais uma vez normalizado na terceira iteração do assunto.
Além do relacionamento harmônico e da forte identidade temática, o equilíbrio
arquitetônico é um elemento geralmente incluído nas discussões sobre a forma sonata.
Como Allan Forte e outros sugeriram, o conjunto deve se parecer com algo que se
aproxima da simetria de três partes ou do equilíbrio de duas partes. No primeiro
movimento segunda sinfonia de Brahms, a exposição é de 369 compassos quando
repetida, o desenvolvimento é de 119 compassos, e a recapitulação com coda é de 221
compassos. Em termos de comprimento total, então, a estrutura do movimento divide-se
claramente em duas partes quase iguais. Interna e musicalmente, no entanto, as
proporções não são muito claras.

Exemplo 1a Brahms, Segunda Sinfonia, I. Allegro non troppo, compassos 1-5.


IIa

I II I(inv.)
Exemplo 1b. Análise schenkeriana da célula motívica II

c. II b. II a. II - complexo

Vamos considerar sua forma em termos da estrutura temática. O exemplo 1a


contém a divisão da frase de abertura da sinfonia e suas células motívicas. No exemplo
1b, houve um esclarecimento da segunda célula motívica. Na imagem c do exemplo 1b
foi adicionado o que foi chamado de “complexo”. O motivo dessa adição se tornará
aparente nos outros exemplos temáticos. Reti2, afirma que o restante do primeiro período
é visto no Exemplo 2a, que ele diz "representa uma reiteração ligeiramente variada das
últimas três barras do grupo anterior". No entanto, quando tomamos o II complexo como
uma entidade, a identidade desta frase entra em foco com o reconhecimento de suas partes
constituintes.

Exemplo 2. segunda sinfonia de Brahms, comp. 6-9

I-b II- complexo -a III


Existem dois itens adicionais de nota no Exemplo 2, o primeiro dos quais é a
evolução da célula I descrito no exemplo 1 na célula I-b. Reti3, em sua análise da Nona
Sinfonia de Beethoven, mostrou que parte da ligação de células motívicas aparentemente
dispares é enraizada no padrão celular que define o tema.
Neste exemplo, a complexa célula II é reconhecível auditivamente e sua nova
forma é principalmente o resultado da inversão do intervalo final de uma quarta justa
ascendente para uma quinta justa e descendente. Como a célula I vem antes da célula II,
então, podemos aceitar a equivalência das células I e I-b. portanto, há mais relação entre
as células I e I-b do que o esperado.

2
Veja Reti, Thematic Process, 78.
3
Veja Reti, Thematic process,
Eu reconstruí o exemplo de Reti no exemplo 3, abaixo, para mostrar todos esses
relacionamentos. Observe a inclusão da célula III. Embora na maioria dos casos, a célula
III é representada por uma única nota, longa ou curta, constata-se ser um elemento
importante na forma do tema.

Exemplo 3. Segunda sinfonia de Brahms, comp. 1-9


II – comp. I-a III-a I-b II-comp- a III

A B

I III I III I
No exemplo acima, está à mostra a abertura do primeiro movimento em duas
frases. Note que Brahms acrescentou a célula I no compasso 5 como um conectivo para
a frase B. Não só isso restaura a força da célula I anteriormente perdida, mas também nos
encoraja a entender a célula I-b como relacionada à inversão inicial da célula I no
compasso 4, isto é, a célula I-a. A única alteração necessária para tornar I-a equivalente a
I-b é inverter o segundo intervalo. Em vez de uma segunda ascendente seguido de uma
segunda descendente, temos uma segunda ascendente seguido de outra segunda
ascendente.
O que se percebe até aqui é uma sofisticação, ainda que simples, dos motivos
apresentados no exemplo 1. À medida que a música avança, mais complexa ficará a
relação destes motivos nos processos e construções temáticas.

Veja o exemplo abaixo:

Exemplo 4a – I – complexo- a
Exemplo 4b – sinfonia nº 2 Brahms, compassos 33-40. Redução do Singer

À medida que avançamos para a primeira seção de transição, se apresenta uma


nova entidade, ou seja, o complexo I. Com base na célula I-b, o exemplo 4a mostra sua
derivação e como ela se relaciona fortemente com a célula I (como indicado por A. no
exemplo 4a) e I-a (B.). O complexo I pode ser visto em operação no Exemplo 4b. Observe
a falta da Celula II. Mas isso não é motivo para se preocupar, pois a falta deste elemento
se fará mais presente nas próximas sessões temáticas.

Exemplo 4c: Sinfonia nª 2 de Brahms, compassos 32-44.

I-b

III
I-comp-
I I

III
Os exemplos 5a a 5c mostram as relações que há entre os temas do primeiro
movimento da segunda sinfonia de Brahms. O que foi feito nestes exemplos foi dividir o
tema para demonstrar sua afinidade que o "tema intermediário" no compasso 44 tem com
o tema inicial da sinfonia. O exemplo 5b particiona o tema inicial da sinfonia com o
intuito de mostrar sua relação com o tema de transição e o exemplo 5c estabelece uma
relação entre o tema intermediário e o segundo tema.

Exemplo 5a: sinfonia nº 2, compassos 44-51

I II

Exemplo 5b: segunda sinfonia, comparação entre o tema inicial e o tema intermediário

Tema inicial
b

a c
Tema intermediário
b

a c
Exemplo 5c: segunda sinfonia, comparação entre o tema intermediário e o segundo tema

Tema intermediário

Segundo tema

O exemplo 6a mostra como a célula I-d se expande para sugerir falsamente a


mudança para a célula II e o exemplo 6b mostra como os motivos começam a se sobrepor
antes da transição para o segundo tema. Observe que este segmento ainda mantém o
padrão temático: duas unidades da célula I, uma ocorrência do II complexo e célula III.
Note-se, também, a supressão crescente das células através da transição, introduzindo e
movendo-se em direção a uma qualidade que é fundamental para a formação do segundo
tema, conforme descrito no Exemplo 7. O motivo II- complexo é claramente usado pelo
acompanhamento como explicitado no Exemplo 7b.

Exemplo 6a: segunda sinfonia, progressão motívica, compassos 52-62

I-d

I-e II- em variação


II – complexo- d
Exemplo 6b: I I I I

I-a I-a

II II

Exemplo 7a: Segunda sinfonia, segundo tema, compassos 82-85

Exemplo 7b: Segunda sinfonia, acompanhamento do segundo tema, compassos 82-85

O primeiro movimento da segunda sinfonia de Brahms explora os motivos


apresentados no início da sinfonia, como já demonstrados neste trabalho, até chegar ao
ponto de parecer esgotar as possibilidades de variações, expansões e transformações
motívicas. O objetivo da análise motívica até aqui foi escrutinar como as células
motívicas foram sendo utilizadas na construção dos dois temas principais do primeiro
movimento. Se fizéssemos um aprofundamento mais rigoroso deste movimento e
engendrássemos em direção ao desenvolvimento4 perceberíamos quão – aparentemente-

4
Relembrando que o primeiro movimento desta sinfonia está na forma Sonata. Portanto, a sua estrutura
formal se divide, de maneira geral, em exposição, desenvolvimento, reexposição, coda e final.
distantes os elementos temáticos ficaram dos motivos iniciais, apresentado no exemplo
1. Para fins deste trabalho, mostraremos um pouco das transformações temáticas nos
outros movimentos desta sinfonia.
O que se pode claramente perceber é que muitos dos elementos motívicos
variados, expandidos e transformados alcançados no primeiro movimento se tornaram
tema e objeto de exposição dos outros movimentos. Veja o exemplo 8a. Na introdução
deste adágio pode-se ver o uso da célula I de maneira expandida. Observe no exemplo 8b
que entre a nota mi e fá no primeiro compasso, Brahms adiciona mais três notas rápidas
complementares. Estas notas complementares são a própria célula I de maneira variada.
A mesma ideia está presente na célula II –expandido, com a adição da célula I no meio
da celúla II.

Exemplo 8b: segunda sinfonia,

Embora o segundo movimento usa temas que parecem distantes do tema do


primeiro movimento, a estrutura formal continua a mesma. Brahms insiste em todos os
momentos nesta sinfonia na forma temática I – II – I-variado - III. Esta observação mostra
que cada elemento presente nesta obra foi engenhosamente pensada, nada é descartável.
Percebe-se também a obsessão pela simetria da forma.

Exemplo 8c: 2 mov. Segunda sinfonia.

I-exp. II-exp. I-d III- exp.

I. II. I-b III.

A célula I neste movimento não é mais usada apenas como uma entidade melódica
em si mesma direta e claramente identificável, mas como um construto melódico-
harmônico. Podemos chamar este fenômeno de entidade motívica – harmônica. Esta
característica que é o motivo sendo usado em favor da harmonia é o distintivo deste
movimento em relação aos outros. No exemplo 8d, observe a linha das madeiras a partir
da anacruse do 3º compasso. A melodia presente é da célula I. Enquanto o primeiro oboé
e, a partir do 4º compasso o 1º1 fagote, toca a célula I sem variações, a flauta e o e 2º
fagote tocam esta mesma célula mas de maneira variada. O que chama atenção neste
exemplo é que estas linhas melódicas são usadas harmonicamente enquanto os violinos
expõem a melodia da introdução. O exemplo 8e mostra a mesma intenção feita pelos
trombones.

Exemplo 8d: 2 mov. Segunda sinfonia. O motivo sendo usado harmonicamente


Exemplo 8e: 2 mov. Segunda sinfonia. Relação com o exemplo 4c

No terceiro movimento desta sinfonia, talvez a mais simples de intuir as nuances


motívicas, já nos primeiros compassos se distingue a presença marcante, porém variada
da célula I e II. Mais uma vez percebe-se a mesma estrutura formal I – II – I var. - III.

Exemplo 9a: 3 mov. Segunda sinfonia.

I. II

I - variado III

No exemplo 9b podemos apreender a entidade motívico- harmônico interagindo


entre a célula I e II.

Exemplo 9b: compasso 13, entidade motívico-harmônico


O 4º movimento inicia com este tema demonstrado no exemplo 10a. Este
movimento é complexo de analisar pois Brahms a desenvolve misturando elementos da
célula I e II na mesma frase.

Exemplo 10a
1

I II

II II II
1-variado 1II

Nos exemplos 10b a 10f está explicitado a célula motriz da exposição do 4º


movimento. Entende-se que esta célula é uma versão da célula I com a adição de uma
terça no fim.

Exemplo 10b: segunda sinfonia, célula motriz da exposição do quarto movimento.

Exemplo 10c: quarto movimento, compasso 31


Exemplo 10d: compasso 43, célula motriz do quarto movimento com variação

Exemplo 10e: compasso 49, célula motriz do quarto movimento com variação rítmica

Exemplo 10f: compasso 55, célula motriz do quarto movimento

Como mencionado anteriormente, o objetivo deste trabalho foi transcorrer uma


análise motívica dentro da segunda sinfonia de Brahms e como estes motivos se
relacionaram dentro de uma estrutura temática. Ficou claro a coesão que toda esta sinfonia
apresenta por causa do profundo e, muitas das vezes, complexo tratamento que os motivos
foram apresentados ao longo desta maravilhosa obra. Não há de negar também a absoluta
genialidade de Brahms ao pensar, engenhosamente, cada singular nota dentro desta peça.
Nada é sem “motivo”, nada é sem razão, sem lógica. Brahms não gosta de “desperdiçar
notas”. A simetria presente em suas obras – embora não tenha sido objeto de estudo para
este trabalho – impressiona, pois, nos faz ter uma outra percepção deste gênio da música:
a do Arquiteto Musical. Sem dúvida Brahms foi um gênio da Arquitetura.
Há uma monergia quase que cósmica em sua obra, se vista de maneira holística.
As profundidades harmônico-estruturais nos arremetem à perfeição do todo, da natureza,
de Deus. É como se o autor desta sinfonia quisesse espelhar o encaixe da natureza, do
cosmo, do transcendente. Confesso que tendo a acreditar que sempre há mais
profundidade do que simplesmente um conjunto de notas em obras desta magnitude. Há
uma dose de mistério, de transcendente, de espiritual. É esta magia cósmica que faz a arte
transcender. É esta comunicação não comunicável que nos faz se aproximar do Belo. O
Belo à serviço da Arte, exposto pela Arte, para a Arte... E para nós.

Você também pode gostar