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Marcelo BolshawGomes

DIVERSIDADES
2018
SUMÁRIO

Prefácio 05

TEXTOS SOBRE AUTISMO

1. O autismo visto pelo cinema 07

2. TCC e Síndrome de Asperger 17

3. Eu, autista? 57

ESTUDOS SOBRE O FEMININO

1. Cleópatra e o sagrado feminino 77


2. Os Pergaminhos deAmphipolis 95

3. Lost Girls - Um discurso erótico feminino? 135

REFRENCIAS

1. Audiovisuais 171

2. Gráficas-narrativas 173

3. Bibliográficas 174
Prefácio
Diversidades é uma coletânea de artigos e
textos, bastante diferenciados entre si. Apesar da
diversidade, o livro tem uma unidade reunindo os meus
textos mais pessoais do que teóricos sobre o autismo e o
feminino.
Os textos de autoajuda sobre autismo são
resultantes de minhas reflexões sobre minha condição de
portador da síndrome de Asperger. Só foram publicados no
blog Eu, autista? e formam o presente livro em virtude de
serem importantes em minha experiência de vida. São
textos que eu ‘tive’ que escrever por motivos pessoais.
Não são necessariamente contribuições clínicas para o
tratamento de portadores.
Há ainda três textos de estudos narrativos
sobre o feminino: Cleópatra e o Sagrado Feminino, Os
pergaminhos de Amphipolis (sobre o seriado de TV Xena, a
princesa guerreira) e Lost Girls (sobre a série de histórias
em quadrinhos de Alan Moore).
Gostaria ainda de agradecer a todos por toda
ajuda que tive e por mais essa oportunidade de mostrar
minhas ideias. Obrigado.
O AUTISMO VISTO PELO
CINEMA
Diz a lenda que,
certa vez, pediram uma
música a John Lenon:
“Aquela que fala de amor”. Ao
que respondeu o
compositor: “Mas todas
nossas canções falam de
amor”. O mesmo acontece
com o cinema, pois, quando
tentamos lembrar dos
filmes sobre
comportamentos irracionais, pensamos que 'todos os
filmes são sobre a loucura'. A loucura sempre foi um
'objeto' privilegiado do cinema. E de uma forma ambígua:
ora como antagonista, ora como protagonista. Nos
filmes favoráveis à racionalidade (geralmente de ação e
romance), ela sempre foi o vilão e está associada à
violência. A maldade é explicada como loucura e o herói
é o homem racional. Nos filmes contrários à razão
(frequentemente nas comédias), o louco é um anti-herói,
um sábio às avessas, um artista incompreendido ou uma
satírica crítica ao poder.
Filmes sobre o drama de ser louco são mais raros e
bem mais recentes. Nos últimos 40 anos, no entanto,
esses dramas não só se multiplicaram como também se
especializaram em diferentes tipos de psicopatologia. Há
filmes dramáticos sobre artistas esquizofrênicos, sobre
assassinos psicopatas, sobre jovens psicóticos e rebeldes,
sobre mulheres histéricas e há filmes específicos sobre
autismo.
Há uma primeira geração de filmes sobre o drama
do autismo em que os portadores são representados de
bastante forma caricatural, isto é, simplificada e bem
distante da realidade. Rain man (1988); Forrest Gump, o
contador de histórias (1994); e Código para o inferno
(1998) – são três filmes que colaboraram muito para divulgar
o autismo, embora de modo bem diferente de sua
verdadeira realidade.
Rain man, além de ter sido sucesso de público e
de crítica, foi também um marco revolucionário no
sentido de divulgar e promover uma compreensão
pública ampliada dos sintomas do comportamento autista
e da possibilidade de convivência familiar com os
portadores. O filme conta a história de Charlie Babbitt
(Tom Cruise), um jovem boa vida que viaja a um hospital
psiquiátricoparatentar descobrir quem é o beneficiário da
fortuna que seu pai deixara ao falecer. Ao chegar ao
hospital, Charlie descobre que o beneficiário é
Raymond (Dustin Hoffman), um irmão mais velho autista
de quem nunca ouvira falar. Para garantir o dinheiro da
herança, Charles se aproxima de Raymond, disposto a
brigar judicialmente pela guarda legal do irmão. Os dois
então viajam pelos EUA, se conhecendo melhor, aprendendo
a conviver e passando por inúmeras dificuldades juntos.
Aos poucos, o laço de afeto entre os dois irmãos ganha
força e o dinheiro deixa de ser importante. Levando-se
em consideração o momento, o filme ensina a convivência
com autismo e desmistifica o preconceito.
Um segundo passo será dado com o filme
Forrest Gump, dirigido por Robert Zemeckis com Tom
Hanks no papel-título. O filme narra quarenta anos da
história dos Estados Unidos, vistos pelos olhos de um anti-
herói autista que, por obra do acaso e de um modo meio
cômico, consegue participar de momentos cruciais, como a
Guerra do Vietnã e Watergate.
Trata-se de uma poetização do autismo, que
ressalta várias capacidades reais do autista (de viver com
autonomia, de realização pessoal e profissional do
portador por outros meios), mas romantiza demais sua
vida.
Há ainda, nessa primeira geração do olhar
cinematográfico sobre o autismo, o filme Código para o
inferno. Nele o agente decadente do F.B.I Arthur Jeffries
(Bruce Willis) tenta a todo custo defender da morte
Simon Lynch (Miko Hughes), um menino de nove anos
autista que código secreto e está sendo perseguido pelo
governo americano. Apesar do enredo voltado para
aventura e para o suspense, esse é, dos três filmes, o que
apresenta mais elementos significativos para
compreensão do autismo, pois o desenvolvimento da
trama depende da comunicação entre o agente Jeffries e o
garoto Simon – o que passa para o público a real sensação
de incapacidade autista.
No entanto, em nenhum momento, o filme quis
ou pretendeu dar uma solução definitiva a esse impasse
pois sua proposta é a de mostrar o comportamento autista
em um filme de aventura e não o de fazer um filme sobre as
caraterísticas do autismo ou sobre as dificuldades de
seus portadores. Essa mesma estratégia (de colocar
portadores de forma trivial em narrativas com outros focos)
pode ser observada também em outros filmes recentes
como Querido John, um drama romântico que incorpora o
autismo com naturalidade ao cotidiano de seus
personagens em segundo plano.
Filmes de autoajuda
Há também um segundo tipo de filme
abordando o tema do autismo, mas interessado em
focar um público mais próximo do comportamento. São
filmes de autoajuda ou filmes pedagógicos. Por exemplo:
Meu filho, meu mundo (Son-Rise, A miracle of love) de
1979, que conta a história autobiográfica da família que
fundou o método Son-rise, após se confrontar com os
tratamentos behaviouristas do autismo. Trata-se de um
filme obrigatório no que diz respeito a alertar as famílias
dos portadores contra os tratamentos comportamentais
baseados em castigos e punições.
Também incluímos nessa categoria de autoajuda
filmes mais leves, como Simples como amar (The other
sister, 1999). No filme, após se formar em uma escola
especial, a portadora Carla Tate (Juliette Lewis), apesar
de ser intelectualmente limitada, não quer voltar para
casa de seus pais em São Francisco, planejando morar
sozinha, ter uma vida independente e se libertar da
presença da supercontroladora mãe (Diane Keaton), que a
vigia de forma sufocante. Este desejo de autonomia
aumenta quando Carla começa a namorar Danny McMann
(Giovanni Ribisi), um jovem que, como ela, também é
autista e já mora sozinho. É preciso dizer que a caricatura
de supermãe feita por Diane Keaton desperta gostosas
risadas dos portadores de comportamento autista e a fúria
indignada de suas mães. E, é claro, o filme minimiza as
dificuldades.
Outro filme importante de ser citado é Um certo
olhar (Snow Cake, 2006). Alex (Alan Rickman) é um
taciturno inglês que está no Canadá para se encontrar com
a mãe de seu falecido filho. No caminho ele dá carona para
Vivienne (Emily Hampshire), jovem que vai visitar a mãe.
Na viagem um caminhão atinge o carro, matando
Vivienne. Alex sai então à procura da mãe da jovem. Ao
encontrá-la, descobreque ela (Sigourney Weaver) é autista.
Linda não tem qualquer reação ao saber da tragédia, mas
Alex decide ficar com ela até o funeral. É quando ele
conhece Maggie (Carrie-Anne Moss), a vizinha com quem
se envolve. Weaver está impecável como autista e de
todos os filmes já citados, esse é o mais próximo da
realidade.
Filmes especiais
E finalmente é preciso dizer que existem filmes
especiais para pessoas especiais. E não simplesmente sobre
pessoas especiais.
Pode-se dizer: 1) que os primeiros filmes que
tratavam o autismo de forma caricatural, e eram
direcionados para o público não-autista; 2) que a geração de
filmes de autoajuda era voltada para consolar e orientar
os pais, amigos e familiares dos portadores; e 3) que,
apenas recentemente, o cinema passou a focar sua
mensagem para os próprios autistas (ou para porção autista
que há em todos nós).
Chocolate (Thai, 2008) é um desses filmes. Zin
(Ammara Siripong) é uma integrante da máfia
tailandesa que foi expulsa da organização após se
envolver com um membro do alto escalão da Yakuza,
Masashi (Hiroshi Abe). Ela engravida de Masashi e dá a luz a
Zen (Yanin “Jeeja” Vismitananda), uma menina que
nasceu com autismo, mas com uma incrível habilidade de
aprender a lutar apenas com sua memória fotográfica.
A primeira vista, esse breve enredo apenas
contextualiza mais um filme de artes marciais, uma tragédia
tailandesa, em que uma menina autista mata todo mundo
e morre de apanhar no final - um terror para os pais e
professores.
No entanto, observando melhor se perceberá
que a intenção principal do filme é demonstrar que a
teimosia pode ser converter em treinamento. Atriz que
faz a protagonista é realmente autista e realmente luta
artes marciais sem dublê – como se pode ver nas
tomadas após o final da estória. Os portadores de
síndromes do espectro autista geralmente sofrem muito
por não saberem se defender e ter acessos de raiva. A
mensagem de Chocolate é: toda agressividade pode ser
canalizada em objetivos, aprenda a se defender e não
gaste energia.
A Menina no País das Maravilhas (Phoebe in
Wonderland, 2009) é menos violento que Chocolate
mas também vê o mundo a partir de uma perspectiva
autista, levando o público a pensar e a sentir como se fosse
um portador. Phoebe (Elle Fanning) é uma menina
rejeitada pelos seus colegas de classe, que deseja mais do
que tudo participar da peça de teatro da escola, Alice no
País das Maravilhas. Phoebe tem a Síndrome de Tourette e
toda narrativa segue a lógica da protagonista. Aliás, outra
caraterística desta terceira geração do olhar
cinematográfico sobre o autismo é que os filmes se
especializaram ainda mais, enquadrando as diferentes
síndromes do transtorno de comportamento. A síndrome
de Asperger por ser a mais conhecida do espectro autista é
a que rendeu mais filmes até o momento.
Loucos de Amor (Mozart and Whale, 2005)
Donald Morton (Josh Hartnett) e Isabelle Sorenson
(Radha Mitchell) sofrem da síndrome de Asperger, uma
espécie de autismo que provoca disfunções emocionais.
Donald trabalha como motorista de táxi, adora os pássaros e
tem uma incomum habilidade em lidar com números.
Ele gosta e precisa seguir um padrão em sua vida, para que
possa levá-la de forma normal. Entretanto ao conhecer
Isabelle em seu grupo de ajuda tudo muda em sua vida.
O filme teve e tem uma importância
significativa para muitos portadores da síndrome de
Asperger, uma vez lhes dá um modelo e uma esperança de
relacionamento. É que devido a dificuldade de se
relacionar, a maioria dos aspies são extremamente
sozinhos e imaturos, muitos nunca tiveram a
oportunidade de experimentar um romance.
No entanto, nesse sentido, o melhor filme sobre
Asperger já realizado é Adam (2009) dirigido por Max
Mayer. Nele, rapaz solitário e programador brilhante
(Hugh Dancy), portador da síndrome de Asperger,
desenvolve uma romance com sua vizinha que é normal, a
escritora Beth (Rose Byrne). O filme é tão fiel à realidade dos
Aspergers, que muitas pessoas (no mundo todo) já se
autodiagnosticaram após assisti-lo.
Há também Mary and Max (2009). Uma
animação sobre a amizade através de cartas entre Mary -
uma solitária menina de oito anos que vive no subúrbios
de Melbourne; e Max - um portador de Asperger de 44
anos que vive em Nova Iorque. O filme segue o mesmo tom
sarcástico e tragicômico caraterístico dos aspies, beirando o
humor negro e a melancolia, procurando dizer coisas
difíceis de modo engraçado. Na verdade, é uma estória
bela e triste.
A atenção da mídia para o tema Asperger nos EUA
hoje é bem forte: recentemente houve até um candidata
aspie (Heather Kuzmichd) no reality-show America´s
Next Top Model; e há atualmente vários seriados no ar
(Bones, The Big Bang Theory, Criminal Minds e Regenesis) que
têm personagens portadores da síndrome. No Brasil, no
entanto, ainda reina a desinformação e o preconceito; há
pouco espaço na mídia e esses filmes ainda não são de
amplo conhecimento – daí a razão do presente texto, que
sistematiza essas iniciativas e incentiva que se realizem
outras.
TEORIA SOCIAL COGNITIVA E
SÍNDROME DE ASPERGER
Este texto, além de se pretender um
breve resumo comentado sobre os
avanços e limitações das ideias do
psicólogo contemporâneo Albert
Bandura e dos conceitos principais
da teoria de aprendizagem social e
da teoria social cognitiva, trata
também da evolução das teorias e
tratamentos sobre autismo. A ideia é demonstrar que as novas
psicologias cognitivas podem ajudar a entender e a tratar (em
conjunto com outras terapias) dos transtornos de desenvolvimento
do espectro autista, principalmente a Síndrome de Asperger.

Introdução
Durante os anos 90, as ideias de Bandura
passaram a desempenhar um papel importante no
cenário global, passando a ser ensinadas em praticamente
todas as universidades de psicologia e de pedagogia do
mundo. Mais que isso: milhões de pessoas, desiludidos
com a psicanálise e com o behaviorismo, passaram a
trabalhar terapeuticamente a partir do enfoque
cognitivo comportamental proposto por Bandura e por
outros pesquisadores. Passou-se do modelo terapêutico
das entrevistas interpretativas para treinamentos
orientados para ação.
O ponto de partida de Bandura é perguntar como
as pessoas exercem algum controle sobre seu
comportamento? Para os adeptos do determinismo
ambiental unidirecional (ou Behaviorismo) o homem é
produto do meio ambiente. Por outro lado para os
diferentes tipos de humanismo idealista, é o homem
que cria as condições na qual se desenvolve. Ambas as
perspectivas, apesar de antagônicas, acreditam na
reciprocidade do aspecto oposto. Ou seja, tanto os
comportamentalistas creem na capacidade do homem
de mudar o ambiente, como os idealistas observam o
condicionamento ambiental.
O modelo de Bandura é resultado de três
interfaces teóricas simultâneas: de suas críticas ao
behaviorismo radical de Skinner, de seu diálogo com outros
cognitivistas como Piaget e dos seus avanços clínicos e
terapêuticos em relação à psicanálise e a Freud. Em relação a
Skinner, Bandura introduziu a categoria de Self (não do
modo esotérico como na tradição junguiana, mas como
um campo da subjetividade e de interpretação afetiva
dos estímulos). Em contrapartida, Bandura coloca a
reflexão freudiana dentro de um contexto
comportamental. E, finalmente, em relação a Piaget,
Bandura repensa a ideia de aprendizado cognitivo.
Apenas a teoria da aprendizagem social insere um
terceiro termo no modelo, postulando um
determinismo recíproco entre os fatores ambientais,
pessoais e comportamentais. Na teoria da
aprendizagem social, há um sistema de controle – a
agência e suas funções cognitivas - em que a auto
regulação é governada pela antecipação e por auto
reações afetivas.

Nosso primeiro enunciado é que o modelo


triádico de condicionamento recíproco elaborado por
Bandura permite definir os comportamentos autistas
como aqueles que têm uma deficiência de interação
direta entre comportamento e ambiente, fazendo com que
se desenvolvam resiliências, ecolias, recorrências e
fixações no campo cognitivo. O autista aprende a
adequar seu comportamento indiretamente através de
modelações secundárias ou repetições das modelações
primárias do comportamento.
Os comportamentos autistas se caracterizam por
três fatores básicos: ausência de sociabilidade,
dificuldades de comunicação e imaginação obsessiva e
repetitiva. No autismo, há uma falha na interação social
recíproca: frequentemente, o autista se isola como se
estivesse em outro mundo; é passivo diante dos outros
e tem dificuldade de estar com mais de uma pessoa ao
mesmo tempo; suas tentativas de interação social
podem ser desastradas e inábeis. Também há
dificuldades de comunicação. Alguns não falam e tem
pouca linguagem não-verbal. Outros têm a fala limitada,
com imitações que podem ser do que o interlocutor
acabou de dizer (ecolalia imediata) ou de situações mais
distantes (ecolalia remota).
É comum o uso da terceira pessoa ao invés do ‘eu’.
Abreviação de frases, expressão do estritamente
necessário, sendo ignorados o contato social e a ‘troca de
ideias’. A linguagem apresenta alterações no discurso
recíproco, na compreensão da linguagem figurada e
entoação estranha, apesar do vocabulário e da gramática
intactos. E, finalmente, existe imaginação limitada;
repetição incessante de movimentos, rotina ou de
atividades específicas; reações comportamentais
drástica mediante mudanças como, por exemplo, trocar
de lugar um objeto da casa; rituais pessoais; mania de
perfeição; tudo deve ser simétrico e não pode ficar fora
daquele lugar. Gostam de alinhar coisas, colocar e tirar
objetos de uma caixa. Tem pouca espontaneidade,
mimese corporal, com comportamentos estereotipados,
mal copiados dos outros.
Nossa hipótese é que essas duas das três
características (a dificuldade de comunicação e a ausência
de sociabilidade) são causadas por baixa interação
ambiente-comportamento, enquanto a terceira
característica, a disfunção na imaginação e na linguagem, é
uma forma compensação cognitiva, que pode se
desenvolver como resiliência, como no caso dos
Asperger. Isto, no entanto, não significa que os fatores
condicionantes ontogenéticos e filogenéticos se
sobrepõem à subjetividade e ao Self. Ao contrário, no
modelo de Bandura e (acreditamos) na sintomatologia
do autismo, a consciência é o fator determinante. No
entanto, é também o fator mais variável e flexível, se
adaptando aos diferentes tipos condicionamentos.
Autismo e Asperger
O autismo foi cientificamente descrito pela
primeira vez em 1943, pelo médico austríaco Leo Kanner.
Pode-se subdividir a evolução dos estudos sobre a
síndrome1 autista em três etapas distintas:
a) A fase psicogênica (ou psicanalítica) em que o autismo era
entendido como uma perturbação emocional adquirida.
b) A fase behaviorista (e vygostskyana), a partir dos anos 70,
em que o autismo será visto como um transtorno orgânico-
comportamental de cunho biológico e hereditário (fase
da ‘descoberta’ do espectro autista2).
c) E a fase atual, neuro-científica e cognitivista, em que fatores
genéticos, ambientais e cognitivos condicionam uma
anatomia cerebral diferente. Fase cujo marco inicial é a
pesquisa clínica desenvolvida por Donald Winnicott sobre
o papel decisivo da subjetividade no autismo.

1 Síndrome’ significa ‘um conjunto de sintomas dos quais se


desconhecem as causas’.
2 O espectro autista é formado pelas seguintes síndromes: Autismo típico,
Síndrome de Asperger, Síndrome de Rett, Síndrome X Frágil, Síndrome
Landau-Kleffner, Síndrome de Williams e Transtorno Desintegrativo
Infantil.
Pode-se dizer também que a Síndrome de
Asperger (SA) é o transtorno menos grave do continuum
autístico 3. A SA é um transtorno de múltiplas funções do
psiquismo com afetação principal na área do
relacionamento interpessoal e no da comunicação, embora
a fala seja relativamente normal. Há ainda interesses e
habilidades específicas, o pedantismo, o comportamento
estereotipado e repetitivo e distúrbios motores. Os
portadores são pensadores visuais, literais e inflexíveis.
Orientados pela rotina e por regras, com dificuldades em se
socializar, são pessoas bastante confiáveis e obsessivos por
seus temas, assuntos e interesses favoritos.
Nesta terceira fase de pesquisa, várias explicações
científicas parciais para as causas do autismo foram
elaboradas, dando ênfase aos diferentes aspectos: as
teorias cognitivas (de déficit da função executiva, de
déficit de coerência central e de déficit de meta-
representação), que admite os fatores ambientais e inatos,
ressaltam o papel da subjetividade; a hipótese de
intoxicação alimentar, que, aceita o papel do Self e da
genética, enfatiza o meio ambiente; e as explicações

33 Para uma revisão bibliográfica completa sobre asperger :


<http://euautista.blogspot.com/2009/08/revisao-bibliografica.html>
que priorizam as diferenças anatômicas do cérebro
determinadas pela hereditariedade genética.
A teoria cognitiva do déficit da função executiva
se baseia na constatação de comprometimento da
capacidade de planejamento e execução no autismo e da
semelhança entre o comportamento de indivíduos com
disfunção cortical pré-frontal e aqueles com autismo:
inflexibilidade, perseveração, primazia do detalhe e
dificuldade de inibição de respostas.
Já a teoria cognitiva de déficit da coerência
central na representação é um aperfeiçoamento da teoria
de disfunção executiva, que enfatiza a dificuldade de
processar conceitos de totalidades abstratas e da
preferência pelo processamento de imagens referentes a
realidades parciais concretas. Em comum, as teorias
cognitivas apresentam uma característica: a atribuição
dos déficits sociais em autismo a dificuldades em modular
tanto a dados sensoriais quanto a experiência perceptiva.
Dessa forma, o ‘retraimento’ autista tem sido explicado
em termos de um estado de excitação crônico ou
flutuações nesses estados que conduzem à evitação do
olhar, reações negativas e retraimento da interação social,
como mecanismos para controlar o excesso de
estimulação.
Recuperando a noção de déficit inato na
capacidade de entrar em sintonia afetiva com os outros
no autismo, identificada pelas abordagens psicanalíticas,
surgiram também as explicações de danos na capacidade de
meta-representar (ou mais especificamente, na
incapacidade de desenvolver uma mente com ‘o outro
dentro de si’), como fator explicativo das síndromes do
espectro autista.
A segunda grande hipótese contemporânea, a
de contaminação alimentar, acredita que o autismo é
causado por stress oxidativo, metilação inadequada e
distúrbios na sulfatação que acabam atingindo o cérebro e
provocando o que chamamos de autismo.
A Dra. Amy Yasko é médica holística e naturopata,
trabalha nos EUA com um protocolo feito através de
exames genéticos, baseado no projeto GENOMA e mais
precisamente com a epigenética, a ciência que pretende
esclarecer como fatores ambientais (hábitos alimentares
e estresse, por exemplo) podem interferir no
funcionamento dos genes. Nesta perspectiva, o
comportamento autista se mantém em um tripé que
envolve os sistemas imunológico, intestinal e
endócrino. E as causas principais do distúrbio autista são:
a) a presença de mercúrio e metais pesados acumulado no
organismo e; b) a produção de morfinas pelo organismo,
metabolizadas a partir do glúten e da caseína4. O
protocolo se baseia em tratar o autismo através do
comportamento do processo metabólico de cada
indivíduo, com destaque para as dietas sem glúten e
caseína, suplementação de vitamina B6, e uso de camara
hiperbárica.

4
Glúten e a caseína são transformados em peptídeos, denominados
gliadinomorfina (a quebra da proteína do glúten) e caseomorfina (a
quebra da proteína da caseína). Esses peptídeos são complexas cadeias
longas de aminoácidos e exigem um bom funcionamento da produção
enzimática para serem quebrados e absorvidos. Ambos os peptídeos
agem como a morfina no corpo. Isto acontece com pessoas que tem
problemas de fungos no intestino. Um grupo de fungos com
crescimento desordenado, adere à parede do intestino tornando-o
permeável. Substâncias que não são completamente digeridas podem
entrar no fluxo sanguíneo e daí chegar até o cérebro. Vários estudos
mostram que o autista tanto tem sérias deficiências de produção
enzimática com pouca ou nenhuma produção da enzima DPP IV
responsável pela quebra desses peptídeos, quanto o desequilíbrio da
flora intestinal, provocando o intestino permeável e deixando que essas
substâncias entrem na corrente sanguínea e se liguem aos receptores
opiáceos no cérebro. A deficiência na sulfatação é outro fator que
contribui para o intestino permeável. Os glucosaminoglucanos,
polissacarídeos responsáveis por manter a integridade celular da
mucosa intestinal e da barreira hematoencefálica, são dependentes de
sulfatação. Sem sulfatação, os glicosaminoglucanos não podem
desempenhar o seu papel de manter a integridade celular.
Defendem essa hipótese organizações
importantes como (Autism Research Institute),
responsável pelo protocolo DAN (Defeat Autism Now).
Aqui no Brasil, o DAN é representado pela ADEFA
(Associação Em Defesa do Autismo) e o movimento
passou a ser chamar “O autismo é tratável”.
De acordo com o protocolo DAN há muitos
pontos a serem analisados 5. Cada caso tem uma
combinação.
Localizam-se os desequilíbrios no organismo
através de exames específicos de sangue, urina, fezes e
mineralograma; e prescreve-se uma terapia nutricional e
bioquímica específica para cada caso, em conjunto com
um tratamento educacional intensivo.

5 Indicadores: níveis de IgA secretora diminuídos; doença inflamatória


intestinal; deficiências nutricionais; refluxo gastresofágico; intestino
permeável; acúmulo de metais pesados; trombofilia; disfunção
sensorial; alterações cromossômicas; sarampo recorrente; presença de
opióides; deficiência de melatonina; déficits nutricionais; alergias
alimentares; autoimunidade cerebral; alteração na perfusão; alteração
nos níveis de dopamina; CMIS alterado; gastrite; disbiose; nível de amônia
elevado; alteração nos níveis de purina; alteração nos níveis de serotonina;
alteração nos mecanismos de sulfatação; e deficiência nos níveis de
ômega 3.
E, finalmente, há ainda as abordagens que
privilegiam o aspecto genético, secundarizando a
subjetividade e o meio ambiente. Em abril de 2008, a
Escola Americana de Medicina Genética (ACMG),
estabeleceu procedimentos de práticas clínicas a serem
seguidos por geneticistas clínicos, tanto para determinar
a etiologia dos casos de desordens do espectro autista
como para tratar pacientes com este diagnóstico. Este
estudo confirma que atualmente existe uma rotina bem
estabelecida, clinicamente disponível, com
biomarcadores identificados que auxiliam os
geneticistas clínicos a avaliar e tratar indivíduos,
descrevendo sucintamente alguns biomarcadores
reconhecidos, importantes ferramentas clínicas
identificadas para avaliação médica e resposta ao
tratamento monitorizado6.

6 1. Biomarcadores de Pofirinas - ajuda a determinar se o mercúrio


tóxico está presente e, quando ele for encontrado, monitora as
alterações das quantidades de mercúrio, durante as terapias de
desintoxicação (quelação); 2. Biomarcadores de Transulfatação -
ajuda a determinar se a suscetibilidade bioquímica ao mercúrio está
presente e, quando for encontrada, monitora a resposta do paciente
durante a suplementação de terapias nutricionais, tais como:
metilcobalamina (a forma metil de vitamina B12), ácido folínico, e
piroxidina (vitamina B6); 3. O estresse oxidativo/biomarcadores de
Dentre as abordagens que enfatizam as
diferenças na anatomia cerebral, destaque-se a pesquisa
Espelhos Quebrados – uma teoria sobre o autismo
(RAMACHANDRAN e OBERMAN, 2006) afirmando que
deficiência anatômica no sistema de neurônios-espelho é a
causa do autismo. Os neurônios-espelhos são os
responsáveis pela modelação do comportamento a partir
do ambiente e sua disfunção biológica explicaria a
sobrecarga cognitiva, uma vez que a função de mimese

Inflamação - ajuda a determinar se há excesso de subprodutos de


vias metabólicas e, quando forem encontrados, monitora os
progressos dos pacientes durante a suplementação com anti-
inflamatórios, como Aldactone ® (espironolactona); 4. Biomarcadores
Hormonais - ajuda a determinar se alterações hormonais estão
presentes e, quando forem encontrados, monitora os progressos dos
pacientes durante o tratamento indicado com drogas de regulação
hormonal tais como Lupron ® (acetato de leuprolide) e Yaz ®
(drospirenone / ethynyl estradiol); 5. Biomarcadores de disfunção
mitocondrial - ajuda a determinar se houver perturbações nos
percursos de produção de energia celular e, quando forem
encontrados, monitora os progressos dos pacientes durante a
suplementação com drogas como a Carnitor ® (L-carnitina); e 6.
Biomarcadores Genéticos - ajuda a determinar se há susceptibilidade
genética ou fatores causais presentes e, quando forem encontrados,
fornece dicas sobre as modificações comportamentais que reduzem
o impacto genético.
passaria a ser desenvolvida por outras partes do
cérebro. Também nesse paradigma, há muitos, como
Oliver Sacks (1995), que não consideram mais o autismo
como uma doença e sim como uma forma diferente de
sentir e de pensar o mundo, tão válida quanto qualquer
outra. Embora possuir uma anatomia cerebral diferente
não seja necessariamente uma patologia, para maioria, o
autismo ainda é um problema sério de vida e não ‘um
modo alternativo de ser’.7
Enquanto os médicos naturalistas dão uma ênfase à
dieta SGSC (sem glúten e sem caseína) e a desintoxicação
de metais pesados; os psiquiatras acreditam na
prevalência genética/diferença anatômica do cérebro
autista; e os clínicos, na hipótese da dissonância
cognitiva; cada um, apostando em terapias específicas
genéticas, farmacológicas ou psicopedagógicas. Porém os
melhores resultados de tratamento são com adoção de
várias terapias em conjunto - o que decorre de uma
concepção que crê em um sistema de determinantes
múltiplo e não de uma causa principal para o autista.

7Para uma revisão bibliográfica completa sobre autismo v.:


<http://euautista.blogspot.com/2009/08/revisao-bibliografica-
autismo.html>
E isso nos leva ao nosso segundo enunciado: a
Teoria Social Cognitiva, em virtude do seu modelo de
condicionamento recíproco entre os fatores hereditários,
ambientais e cognitivos, é a filosofia ideal para a
integração dos tratamentos e terapias do autismo,
através da técnica de Modelação.
Modelação
A mais importante contribuição teórica e prática
de Bandura é a ideia de modeling – traduzida pelos
adeptos da psicologia cognitiva para o português como
modelação (enquanto a palavra shaping é traduzida
como modelagem, utilizada pelos que preferem a
análise comportamental). Modelação significa a
adaptação/mudança por mimese criativa de
comportamentos, isto é, através da imitação
reinterpretada de atitudes, gestos, ideias, afetos. Para
ele, todo aprendizado social se dá por modelação de
comportamento. O termo ‘mimese’ foi utilizado por
Platão e Aristóteles (e por vários teóricos da arte e
filósofos como Paul Ricoeur) para designar o mesmo que
‘modelação’: a apreensão criativa (e muitas vezes
involuntária) de condutas alheias para incorporação no
próprio comportamento.
Em seus primeiros trabalhos (1961-1986),
referentes à teoria da aprendizagem social, Bandura
estudou o papel pedagógico da imitação. Em um
segundo momento (1986 até agora), ele vai aprofundar
seus estudos no sentido de verificar a eficácia terapêutica
da imitação, de “transmissão de condutas através de
modelação”, principalmente no tratamento de fobias e
dependências psicológicas. Porém, é importante citar a
famosa experiência de modelação de comportamento
agressivo com o ‘João Bobo’.8 Na experiência um grupo
de crianças observa um filme em que adultos (dos
ambos os sexos) gritavam e agrediam o boneco inflável.
As crianças foram divididas e um grupo de controle não
foi submetido à visualização do filme. No momento em
que o ‘joão bobo’ é apresentado à criança, ela não tem
quaisquer atitudes hostis com o boneco. Porém, após
observer o adulto tendo comportamento agressivo com o
brinquedo, a criança também passa a reproduzir o
comportamento agressivo.
Bandura verificou que as crianças que tinham
assistido ao filme apresentavam o dobro das respostas
agressivas comparativamente ao grupo de controle,

8 Veja o vídeo em: http://www.youtube.com/watch?v=BTB-I-L3YIE


inventando inclusive novas formas de agressão que não
tinham sido observadas. Observou também que entre os
que foram expostos à violência, os meninos foram mais
vulneráveis a imitações agressivas que as meninas.
A modelação como terapia foi inicialmente usada
por Bandura para trabalhar com herpefóbicos (pessoas
com um medo neurótico de serpentes), fazendo com que
eles imitem modelos de exposição a cobras, vencendo
assim a fobia. Bandura observou que a modelação
propicia tanto no aprendizado social como na readaptação
terapêutica, três efeitos distintos de mudança de
comportamento: o modelador, o interprete e o
observador.9

9 Em Tempo e Narrativa (1994), o filósofo Paul Ricoeur, confrontando as


ideias de Santo Agostinho com o pensamento de Aristóteles, também
desenvolve uma teoria tríplice mimese ou três níveis de leitura do
mundo. A mimese I é o mundo prático ainda não explorado pela
atividade poética, portanto, ainda não narrado. Esse mundo já está
impregnado de uma pré-narratividade que servirá de referência para o ato
de construção poética (configuração), a mimese II. A mimese não se
encerra no ato de configuração (o mundo do texto), mas sim na
atividade de leitura, ou, como diz Ricoeur, no ato de refiguração, a
mimese III. Na mimese hermenêutica, há um percurso que parte da vida
vivida e ainda não narrada, passa pela configuração da trama e encontra
o mundo do leitor final.
É lugar
comum dizer que
os autistas,
principalmente os
portadores de SA,
copiam
comportamentos,
falas, sotaque e
aparência de outras pessoas. Por outro lado, uma dos
sintomas mais comuns de diagnóstico autista é a
incapacidade de se colocar no lugar dos outros ou ainda da
capacidade de representar e/ou abstrair. Pode parecer
contraditório, mas as duas assertivas são verdadeiras:
tanto os portadores de Asperger são notáveis imitadores
como têm dificuldades em representar. Se nossa hipótese
central for correta, os autistas têm dificuldades em
modelar involuntariamente, eles precisam aprender a
aprender comportamentos. Os três efeitos distintos de
Bandura são simultâneos, mas também podem ser
vistos como etapas de desenvolvimento da técnica de
modelar para síndromes autistas e o objetivo integrado
de seus treinamentos cognitivos deve ser o
desenvolvimento e a ampliação da capacidade de meta-
representação. O treinamento através de modelação
incorpora outras técnicas psicodramáticas e teatrais.
Mas, vamos ao que interessa: nosso segundo
enunciado é que a modelação elaborada por Bandura é o
método ideal para integração dos tratamentos de
distúrbios autistas.
O tratamento ABA (Applied Beravior Analysis,
Análise Aplicada do Comportamento) é o principal
programa de ensino intensivo das habilidades
necessárias para que o indivíduo diagnosticado com
autismo ou transtornos invasivos do desenvolvimento
possa adquirir a melhor qualidade de vida possível. As
oportunidades de aprendizagem são repetidas muitas
vezes, até que a criança demonstre a habilidade sem erro
em diversos ambientes e situações. A principal
característica do tratamento é o uso de consequências
positivas ou de reforço (presentes, elogios, gratificação).
A modelação de Bandura trabalha com três tipos
de reforços positivos: o incentivo passado (tradicional ou
clássico behaviorismo), o reforço prometido e o reforço
vicário ou indireto, a capacidade seletiva de
automotivação através da escolha do ambiente, dos
modelos e dos reforços. Note-se que estes motivos têm
sido tradicionalmente vistos como as ‘causas’ da
aprendizagem.
Bandura diz que eles não estão determinando
‘o que’ nós aprendemos, mas condicionando ‘como’
aprendemos.
Claro, existem também três motivações negativas
para imitar: a lembrança dos últimos castigos, as ameaças
(punições prometidas) e o castigo vicário através de
situações que exijam grande desempenho ou que
frustrem o sujeito aprendiz, inibindo comportamentos
indesejáveis. Bandura diz que a punição em suas diferentes
formas, não funciona tão bem como o reforço positivo e
que, de fato, há uma tendência do sistema de
restrições se voltarem contra o desenvolvimento do
sujeito do aprendizado. Por ‘punição’ também não se deve
entender castigos corporais ou constrangimentos morais,
mas sim penalidades consensuais assumidas com
antecedência, ‘prendas’, atividades compensatórias
realizadas por espontânea vontade.
O uso positivo da culpa aliado à mudança das
formas e ocasiões de auto- gratificação pode acelerar
bastante um processo de aprendizagem por modelação.
Em todo caso, a modelação de Bandura permite
incrementar bastante o tratamento ABA em sua concepção
tradicional.
No filme Meu filho, Meu mundo (Son-rise: a
miracle of love, 1979) 10, há uma cena em que os médicos
behavioristas criticam os pais do menino autista
protagonista por esses imitarem seu comportamento
patológico, enquanto ‘o correto’ seria que apenas a criança
imitasse os pais e professores. E, como filme mostra, a
chave para entrar em contato emocional com a criança
autista é justamente a reciprocidade da modelação, o
fato dela ser uma via dupla é que permite que haja
realmente comunicação. A grande relevância desta
abordagem, no entanto, está em provar o papel central da
afetividade na mudança do comportamento autista. E, no
ABA, a imitação é unilateral e segue um modelo de
interaçãoum-um.

10 O filme que conta a história de outra iniciativa terapêutica importante


no tratamento da síndrome autista, o Programa Son-Rise®. No início dos
anos 70, o casal Barry e Samahria Kaufman, ouviram dos especialistas que
não havia recuperação para seu filho Raun. Foi a partir da dedicação
intuitiva e amorosa, que eles desenvolveram o Son-Rise. Raun se
recuperou após três anos e meio de trabalho intensivo com seus pais,
continuou a se desenvolver, cursou uma universidade e agora trabalha
no Autism Treatment Center of América. Desde então, milhares de
crianças utilizando o programa têm se desenvolvido muito além das
expectativas, algumas delas apresentado completa recuperação. No Brasil, o
Son-rise está em: www.inspiradospeloautismo.com.br
Outra forma de tratamento autista por
treinamento cognitivo muito conhecido e aplicado é o
TEACCH11. Enquanto o ABA é uma terapia
comportamental que tem por objetivo adaptar o
portador do distúrbio ao ambiente social, o programa
TEACCH, mais atual, há uma ênfase no desenvolvimento
da consciência das diferenças neuro- cognitivas. Mudar
o comportamento não é um objetivo em si mesmo. É
possível combinar estratégias do TEACCH e da ABA,
porém, é muito importante que eles sejam
filosoficamente integrados (pela Teoria Social Cognitiva,
por exemplo). Talvez os que trabalham com ABA não
enfatizem tanto a autonomia, sendo às vezes difícil
evitar que as crianças tornem-se dependentes de

11 O TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Communication


Handicapped Children, Tratamento e Educação de Crianças Autistas e
com Desvantagens na Comunicação) é um programa especial de
educação talhado para as necessidades individuais de aprendizado da
criança autista baseado no desenvolvimento do cotidiano. Baseado no
fato de autistas serem frequentemente aprendizes visuais, o TEACCH traz
uma clareza visual ao processo de aprendizado buscando a receptividade, a
compreensão, a organização e a independência. Embora o TEACCH não
foque especificamente nas habilidades sociais e comunicativas tanto
quanto o ABA, ele pode ser usado junto com esse tratamento para
torná-los mais efetivos.
modelos. Por outro lado, trabalhar com a abordagem
TEACCH pode fazer com que se concentrem demais na
independência e deixem de trabalhar com imitação.
Entre as terapias, também há várias possibilidades de
combinação, porém as mais importantes são: a terapia
ocupacional, a de integração sensorial e a terapia da fala
ou fonoaudiológica. A integração das terapias pode ser
embasada nos programas TEACCH e ABA. Também poderá
utilizar o recurso PECS (Picturing Exchanging
Communication System, Sistema de Comunicação pela
Troca de Figuras).
O Círculo de Repetição é uma técnica bastante
utilizada. Ela consiste em todos imitarem cada um dos
participantes da roda12. O Círculo comporta diferentes
aplicações pedagógicas (ensino de línguas, de música,

12 A imitação deve ser a mais perfeita possível em termos de


movimento, voz e intenção – devendo-se evitar o máximo
‘interpretar’ o outro, embora isso seja inevitável e as pessoas acabem
vendo como são vistas pelos outros. Esse não é a principal função do
exercício, apenas um estágio inicial. Com o tempo (uns 30 minutos),
cria-se um vínculo inconsciente entre os participantes, que passam a
sentir a presença de si nos outros e dos outros dentro de si, e se
estabelece um jogo profundo de troca de identidades e modos de ver
e pensar.
contar estórias míticas), terapêuticas (expressão de
conteúdos emocionais reprimidos, ampliação da
identidade individual) e hipnóticas (viagens da
imaginação – a repetição de vozes com os olhos
fechados), embora a verdadeira essência desta prática
esteja em seu caráter lúdico e aberto à improvisação. O
círculo de repetição abre as portas para inúmeras
outras técnicas de roda (biodança, danças circulares,
cirandas), psicodramas, narrativas míticas e de sonhos.
Porém, para promover essa integração de
tratamentos e terapias através do aprendizado social
por modelação de comportamento, não basta adotar a
imitação como técnica principal, é preciso também
ressaltar processos relevantes da mimese cognitiva:
 Atenção. Se você vai aprender algo, você precisa estar
prestando atenção. A atenção é o foco da percepção. Alguns
dos fatores que influenciam a atenção têm a ver com as
propriedades do modelo. Se o modelo é colorido e
dramático, por exemplo, mais atenção. Se o modelo é
atraente, de prestígio ou parece ser particularmente
competente, despertará mais atenção. E se o modelo está
mais perto de nós, ‘chama’ mais atenção. Essas variáveis
foram usadas por Bandura para mensurar os efeitos da
televisão sobre as crianças.
 Retenção. Em segundo lugar, temos de ser capazes de
lembrar do que prestamos atenção. Aqui, a imaginação e
a linguagem entram em jogo, reanimando a imagem ou a
descrição para que possamos reproduzi-los com o nosso
próprio comportamento.
 Reprodução. Neste ponto, estamos sonhando acordados.
Posso passar um dia inteiro assistindo um patinador
olímpico fazer o seu trabalho e não ser capaz de reproduzir
os seus saltos, porque eu não sei nada patinação. É preciso ter
a capacidade de reproduzir o comportamento memorizado.
Por outro lado, é através da imitação que se melhora o
próprio comportamento.
 Motivação. Além de prestar atenção, se lembrar dos
comportamentos e saber reproduzi-los, nós ainda não
nos modificaremos, se não formos motivados para imitar,
isto é, a menos que tenhamos boas razões para fazê-lo. Como
vimos, há três reforços positivos e três negativos.
“Aprender a aprender” através da observação e
modelação de comportamentos, implica na capacidade
auto regulação e do sujeito do aprendizado ‘ser agente’,
isto é “fazer as coisas acontecerem intencionalmente”
(2008, 69) em função do desenvolvimento, a adaptação
e a mudança – não apenas do comportamento como
também do meio ambiente que o condiciona e da
consciência que o determina. Mudando o entorno,
muda-se os condicionamentos e o agente.
A noção de agência
A noção de agência, mais do que se definir como
uma mera mediadora dos aspectos ambientais e
comportamentais, tem um papel fundamental na
constituição desses fatores e é formada a partir de
quatro atividades cognitivas distintas: intencionalidade,
antecipação, auto reatividade e autorreflexão.
 Intencionalidade – Além do desejo consciente de mudança
e/ou adaptação do comportamento, a intenção de se
modificar ao longo do tempo implica em planos e
estratégias.
 Antecipação – Porém, o planejamento para modificar
seu próprio comportamento implica em traçar objetivos e
prever os resultados.
 Auto reatividade ou auto regulação como atividade cognitiva
necessária à mudança de comportamento pode ser
subdividida em: a) motivação, isto é: na capacidade de se
manter emocional confiante na mudança através,
principalmente, das crenças de auto eficácia; e b) auto
regulação propriamente dita, que para Bandura se dá
principalmente através da modelação (a imitação criativa
de outros modelos de comportamento).
 Autorreflexão – É a consciência, entendida como auto
referência e capacidade meta cognitiva de refletir sobre si
mesmo, como o principal fator interno no processo de
aprendizagem social e nas mudanças adaptativas de
comportamento.
Agência pode ser ainda pessoal, delegada ou
coletiva; mas nunca individual para evitar a dicotomia com
o social. Particularmente, também não gosto da agência
coletiva. O importante, no entanto, é que a noção de
agência permite pensar as possibilidades de aumentar
autonomia dos comportamentos em função de seu
condicionamento, alterando parte deste
condicionamento.
Um exemplo: para mudar a dieta (excluir o
açúcar e carboidratos com glúten – o que básico para os
portadores de autismo), uma pessoa deve, em primeiro
lugar, compreendendo que o desejo é mais forte que a
vontade, desejar viver com qualidade para vencer (ou
“ficar magro e bonito”) a vontade de comer doces e
massas, e não ao contrário (colocar a força de vontade
contra o desejo de come-los).
Mas definição correta do desejo a ser intentado,
evitando-se a interpretar a restrição como uma punição
corporal, não é suficiente sem uma estratégia e de um
plano, envolvendo tempo, reforços, mudanças de
condicionamento. A faculdade da antecipação, por sua
vez, permite a redefinição constante dos objetivos
possíveis e a motivação através dos resultados
alcançados. A pessoa pode, no exemplo, evitar
situações e lugares que propiciam o desregramento
alimentar por algum tempo. A auto regulação apresenta dois
aspectos.
Acreditar que se é capaz de parar de mudar de
hábitos é preponderante para fazê-lo. Muitos manuais de
autoajuda aconselham ao uso do gerúndio (“estou
mudando”) ou mesmo o artifício decisão de longo prazo
(“já me decidi emagrecer e vou conseguir não importa
quantas vezes precise recomeçar”). O outro aspecto é a
modelação, isto é, a imitação de comportamentos de
pessoas saudáveis: o exemplo de amigos a quem admira e o
apoio da família, além de diferentes tipos de reforço
terapêutico, exercícios físicos, outras rotinas. O corpo
aprendeu a comer bobagens por modelação e precisa
aprender outros comportamentos para largar o antigo
condicionamento.
A autorreflexão, como sub-função do
agenciamento cognitivo, consiste na compreensão do
consumo excessivo de açúcar e amido (na verdade, do vício
em dopamina associado à alimentação) como uma boa
oportunidade para o descondicionamento da mente. A
consciência agradece os ensinamentos da compulsão, pois
entende seu papel no desenvolvimento. Mesmo
considerando a auto reflexividade como a sub-função
mais importante no processo de agenciamento cognitivo
entre comportamento e ambiente, a ênfase de
Bandura é na auto regulação.
O processo de auto regulação, para Bandura,
começa com a auto-observação, seguida pela
autojulgamento, que possibilita a auto reação. O ciclo das
sub-funções da auto regulação não é automático e as
etapas só ocorrem quando ativadas seletiva e
voluntariamente pela consciência. Bandura prescreve uma
auto-observação mental de médio e longo prazo, baseada
em dois grupos de parâmetros: as dimensões de
desempenho (as motivações do vício) e a qualidade de
monitoramento (quantas vezes e como observamos). Esses
dois parâmetros permitem estabelecer processos de
autojulgamento, levando em conta nossos padrões
pessoais assim como outras referências de
desempenho (comparações com os outros e com o
próprio desempenho em momentos diferentes).
Processo de auto regulação (por contingência auto prescrita)
OBSERVAÇÃO JULGAMENTO AUTO-REAÇÃO
Dimensões de
Padrões pessoais Auto reações avaliativas
Desempenho
Qualidade
Produtividade
Originalidade Nível Positiva
Sociabilidade Explicidade Negativa
Moralidade Proximidade Neutra
Desvio Generalidade
Eticidade
Velocidade
Qualidade de Referências de
Monitoramento desempenho Auto reações tangíveis
Regularidade Normas padrão
Proximidade temporal Comparação social Reforçadoras
Acuracidade Auto comparação Punitivas
Feedback Comparação coletiva
Valor da atividade e
determinantes de Auto reação inexistente
desempenho
Pode-se, então, estabelecer o valor da atividade
observada e seus determinantes são externos e/ou
psicológicos. A partir daí, avaliam-se as auto reações
emocionais de entusiasmo e frustração e prescrevem-se
medidas de punição e incentivo necessárias para
modificar o comportamento observado. Nesse ponto,
percebemos a importância do sistema de crenças do sujeito
observado/observador. E entre as crenças, Bandura destaca a
importância da crença na própria eficácia como sendo a
mais relevante no aprendizado social.
A crença na Autoeficácia
Para Bandura, entre os fatores que propiciam
uma auto regulação dinâmica no sentido da mudança
de hábitos e comportamento está a crença na auto
eficácia, resultante das expectativas de desempenho e
resultado. Dito assim, parece ‘pensamento positivo’ ou
outro ilusão de autoajuda, em que se desejando uma
coisa, ela acontece - como no filme O Segredo.
Porém, a auto eficácia é apenas o julgamento da
capacidade pessoal (2008, 32) e não uma força mágica ou
telepática capaz de influir nos acontecimentos. Enquanto
a autoimagem (ou auto conceituação) é resultante do
passado e a autoestima é enraizada na situação emocional
presente, a auto eficácia é uma crença que nos remete
para o futuro. “Auto eficácia é o julgamento da
capacidade para organizar e executar ações necessárias
para alcançar certos tipos de desempenho” (2008,101).
Vejamos então como a crença na auto eficácia se
encaixa no conjunto das ideias de Bandura. Uma
intensificação consciente desta modelação secundária,
através de um treinamento em habilidades sociais é
bastante indicada em várias situações, como por exemplo,
a pessoa submissa socialmente e intolerante com os
familiares. Geralmente esse comportamento (assim como
outros semelhantes) é resultado de uma educação
inadequada das pessoas com necessidades especiais severas
e pode ser modificada através da modelação um-a- um.
No entanto, para portadores da Síndrome de
Asperger (bem como para outros tipos de deficiência
cognitiva de alta funcionalidade em que os portadores
têm autonomia), a Teoria Social Cognitiva prescreve a
autoterapia (Self therapy), em que a crença na auto eficácia
ocupa um lugar central. A técnica que tem sido muito
bem sucedida com problemas como tabagismo,
distúrbios alimentares, dependência química e
mudança de hábitos em geral.
Pode-se subdividi-la em três procedimentos:
 Registros das condutas. A auto-observação requer que você
escreva modos de conduta, tanto antes como depois das
tentativas de mudança de comportamento. Este ato inclui
coisas simples como a contagem dos alimentos consumidos
por dia até comportamentos mais complexos, como por
exemplo, cada motivo específico de consumi-los.
 Planejamento Ambiental. Mudar o ambiente: eliminar ou
evitar as situações que levam ao vício (televisão,
geladeira, crianças). Também mudar de ambiente: fazer
ginástica, curtir a natureza, evitar bares ou programas
associados à alimentação desregrada.
 Autocontratos. Por último, há declaração de compromisso
com o plano de mudanças, com suas recompensas e
castigos. Estes contratos devem ser escritos na frente de
testemunhas (para o nosso terapeuta, por exemplo) e os
detalhes devem ser muito bem especificados: "Só vou
para um jantar no sábado à noite se eu não comer bobagens
esta semana do que a última. Senão, eu vou ficar em casa
trabalhando” ou promessas semelhantes.

Nas terapias de modelagem um-a-um, outras


pessoas (o terapeuta e os pais) controlam as recompensas e
punições para motivar a mudança de comportamento,
pois os portadores de necessidades severas não
conseguem ser muito rigorosos com eles próprios.
Na autoterapia, no entanto, trata-se de aumentar
ainda mais a capacidade de auto regulação do agente,
dando lhe o máximo de autonomia com supervisão para
garantir um mínimo de frustrações e de experiências
negativas. O erro faz parte do aprendizado. Mas. no
desenvolvimento da crença na auto eficácia é mais
importante celebrar vitórias que reavaliar atitudes
fracassadas. Outra diretriz importante é estabelecer os
domínios de auto eficácia e os domínios de deficiência
cognitiva e estabelecer metas para diminuição das
dificuldades e otimização das capacidades. Seguindo o
mesmo exemplo: um autista acredita na sua eficácia
nos domínios matemáticos ou musicais, e de sua
deficiência no domínio da vida afetiva e social. Pode-se
dizer que o conjunto dos domínios (eficientes e
deficientes) forma um círculo vicioso de causas co-
recorrentes em que as situações recorrentes se repetem
de forma compulsiva e involuntária. O círculo vicioso
pode ser revertido através de um plano de excelência de
vida, retirando e adicionando fatores de reforço, para
maximizar os domínios de auto eficácia e minimizar os
domínios de incapacidade. E à medida que a pessoa
toma consciência desses padrões de repetição, rompe-
se o círculo vicioso e há uma reorganização cognitiva e
uma mudança progressiva na sua estrutura interna. Na
maioria dos casos, deve-se pensar um processo gradual que
comece com a condição de um paciente dependente (da
família e do reforço do terapeuta) e evolua para o
contexto de um agente consciente que lute para
conquistar autonomia, modificando-se na medida em
que muda seu ambiente. Geralmente, isso exige que as
mães (e as vezes, os pais e irmãos) também entrem em
processo terapêutico, treinando novos
comportamentos. Há vários modos de definir as
eficiências e deficiências, bem como de compreender os
domínios para detalhá-los. No site ‘Coaching Asperger’ se
enumeram as oito vantagens competitivas dos Asperger’s - o
que é bastante interessante, porém limitado ao domínio
profissional. Do ponto de vista da formação escolar (e do
desenvolvimento cognitivo da linguagem e da
comunicação), há atualmente uma grande ênfase na
utilização do computador como prótese da mente autista13

13Prótese em dois aspectos distintos. O primeiro é que a cognição visual


dos autistas se assemelha com a sintaxe do computador. Enquanto a mente
do autista ‘roda Windows’, a mente neurotípica se auto programa através
de um sistema operacional algoritmo. Há também algumas vantagens
oferecidas por computadores na educação e no tratamento do autismo: o
ambiente estruturado, as respostas previsíveis, a organização visual, o auto
auxílio individual.
e no fato de que há grande número de portadores de SA
que se tornam programadores ‘naturalmente’.
Mas, quando se fala de prótese mental não se
trata apenas da cognição visual propiciada pela sintaxe
do computador, mas sim da constituição de uma
identidade ‘à distância’ via Internet, transformando
indivíduos introvertidos e isolados em uma rede de seres
sociais, o que é um pré-requisito não só para uma ação
social efetiva em uma voz na arena pública, mas,
sobretudo, para uma mudança no comportamento e na
identidade autista.14 O principal desses primeiros grupos
é a ANI (Autism Network International).

14 Hoje, além dos milhares de blogs de mães e crianças autistas, que


se multiplicam rapidamente na internet, há várias iniciativas
interessantes estão sendo desenvolvidas nesse sentido. Mas, há
também iniciativas bem práticas como a de um avô, John LeSieur,
que criou um navegador especial para, seu neto autista Zackary
Villeneuve: o Zac Browser. Um navegador desenvolvido
especificamente para crianças autistas, cujo objetivo principal é que
possam interatuar através de jogos e atividades desenvolvidos
especialmente pata eles, do modo que seja mais fácil para sua
compreensão e entendimento, focado na sua forma de ver o mundo
(e com disposições de supervisão e controle de conteúdo pelos pais).
É claro que o computador não substitui a
dedicação dos professores, nem o afeto e a atenção
dos pais. Ele é apenas uma ferramenta superação para
tríplice deficiência do autismo (comunicação, interação
social e conduta recorrente), um instrumento para
desenvolvimento da auto eficácia. O importante é a
mudança de atitude. É, principalmente, através da auto
representação, que os autistas podem desenvolver sua
autonomia e vencer o regime de dependência física e
psicológica inerente a sua condição.
E há ainda quatro aspectos sobre o uso do
computador em educação especial que são relevantes
para o seu uso com autismo: aumenta a habilidade de
comunicação; melhora a cognição; ajuda nas atividades
que envolvem coordenação motora; e pode também
ajudar dentro da política educacional de inclusão em
escolas regulares.
Conclusão
Além de realizar um breve resumo comentado
das ideias do psicólogo contemporâneo Albert Bandura,
aplicou-se aqui seus principais conceitos ao tratamento
do autismo de alta funcionalidade e/ou síndrome de
Asperger.
Com modelo triádico definiram-se os
comportamentos autistas como aqueles que têm uma
deficiência de interação direta entre comportamento
(condicionamento ontogenético), ambiente
(condicionamento filogenético) e o Self, em que se
desenvolvam resiliências, ecolias, recorrências e
fixações no campo cognitivo.
Ressaltamos também que, na perspectiva de
Bandura, o comportamento e o ambiente são fatores
condicionantes, enquanto o Self, a subjetividade, a
consciência são fatores determinantes do
desenvolvimento cognitivo e do aprendizado social.
Em seguida, com o método de aprendizagem
social por modelagem através dos quatro processos
(atenção, retenção, reprodução e motivação) como o ideal
para integração dos tratamentos e das terapias de
recuperação dos portadores de distúrbios autistas: a dieta
SGSC (elaborada a partir de exames clínicos), medicação
(segundo os biomarcadores genéticos) e o treinamento
psicopedagógico da capacidade de representação
cognitiva15.

15Há um teste em: http://euautista.blogspot.com/2009/06/aspie-


quiz.html
Com a noção de agência e suas propriedades
cognitivas (intencionalidade, antecipação, auto
reatividade e auto reflexividade), apresentou-se a
proposta de auto regulação (ancorada na observação, no
julgamento e na auto reação) da Teoria Social Cognitiva.
Finalmente, apresentou-se a crença na auto
eficácia, discutiu- se as técnicas de autoterapia (o registro
de condutas, o planejamento ambiental e o uso de
autocontratos) no tratamento de portadores de SA,
principalmente com a utilização da internet. E,
concluímos que: é através da auto representação em suas
diferentes esferas (social, política e pessoal) que os
autistas podem conquistar autonomia e uma vida melhor
em sociedade.
EU, AUTISTA?
Na escola
Alfabetizei-me através da leitura de histórias em
quadrinhos e quando entrei na escola já sabia ler. Depois
encontrei muita dificuldade de achar estórias gráficas que
continuassem com seu aprendizado e aderi, a
contragosto, aos textos escritos. Mas, sempre continuei
lendo histórias em quadrinhos, apesar disto ter se tornado
uma excentricidade e até uma inconveniência. Ao ficar mais
velho e observador, percebi que as narrativas sequenciais
através de imagens desempenhavam um papel importante
na minha forma de pensar e de ver o mundo.
Eu sou um pensador visual em quadrinhos,
minha mente trabalha com mapas conceituais – uma
característica dos portadores da Síndrome de Asperger, um
tipo de autismo de alto-desempenho.
Muitas pessoas dizem que o pensamento
autista é diferenciado, que ‘precisamos aprender a
valorizar outras formas de ver e pensar a realidade’. Mas,
pouco se diz sobre o resultado das diferenças cognitivas em
portadores autistas que tenham alcançado alto nível de
desempenho intelectual. Como portador não diagnosticado
durante 47 anos aprendi a tirar vantagem intuitivamente de
minhas características e a minimizar meus déficits.
Como diferenciais competitivos os portadores
SA tem: o foco (a habilidade para focalizar em um objetivo
em cima de períodos longos de tempo sem ficar
distraído); a perspectiva complexa (de conjunto e de
detalhes, capaz de descobrir conexões novas entre fatos e
ideias); e o pensamento singular; a motivação interna; a
imaginação tridimensional.
Há também dificuldades funcionais em virtude
da falta de empatia emocional e da incapacidade de
firmar laços afetivos de amizade; dos surtos de
ansiedade; e, sobretudo, do enorme desgaste psicológico e
físico de se submeter a situações sociais (como dar aulas e
fazer entrevistas), o que para outras pessoas não é, de
forma alguma, estressante.
Descobri também vários mitos e verdades
parciais sobre o desenvolvimento cognitivo de autistas.
Por exemplo: no passado pensou-se que os autistas não
tinham senso de humor e que não entendiam
metáforas ou ironias, compreendendo apenas o sentido
literal dos discursos. Na verdade, existe um humor peculiar
aos autistas (principalmente através de associações
inusitadas) como também há um modo diferente de
entender a linguagem. O distúrbio de compreensão literal
e a ‘cegueira emocional’ existem, mas são parciais e têm
variações. Existem casos diferentes de resiliência e
adaptação criativa desta restrição cognitiva. Tenho um
colega asperger, também professor da UFRN, que se tornou
um especialista em filosofia analítica. Também é
importante dizer que a maioria dos Aspergers prefere as
linguagens matemáticas e lógicas que as narrativas
interpretativas. A arte e a beleza são secundarizadas pela
mente autista diante da funcionalidade e do
pragmatismo. Porém, em meu caso em particular,
desenvolveu-se uma configuração mais complexa, em
função de um conflito com uma professora de
português, que me ensinou a gostar de poesia e, ao
mesmo tempo, a utilizá-la, tornando-a um instrumento
de crítica e publicidade de ideias. A professora era
integrante de um importante grupo vocal de MPB e nos
introduziu a poesia usando músicas.
A poesia me pareceu então uma forma de
comunicação sintética e telegráfica, capaz de transmitir o
máximo através do mínimo. Para os autistas, a arte-pela-
arte, a beleza estética em si, não faz muito sentido se não
utilizada socialmente com algum objetivo estratégico.
Sempre gostei de pensar que o jornalista é um poeta
mercenário, que trafica ideias em troca do vil metal.
A escola foi bastante difícil para mim,
principalmente durante os recreios e com as brincadeiras
sem supervisão. Ao mesmo tempo em que tive dificuldades
de fazer amigos também sempre me destaquei social e
intelectualmente – atitude que me ensinou a conviver
com a antipatia e a hostilidade desde muito cedo.
O Tarô
Devido a minha dificuldade de comunicação
emocional, tornei- me um excelente jogador de Tarô. Esse
foi o modo que encontrei de me relacionar intimamente
com as pessoas. E o tarô, talvez seja preciso explicar, não
é simplesmente um jogo de cartas, mas um jogo de
identidade simbólica para leitura do inconsciente.
Também é preciso dizer que o Tarô apenas coroou uma
forma peculiar que desenvolvi desde criança de me
comunicar diretamente com o inconsciente das pessoas,
através dacombinaçãodaslinguagensde verbal evisual.
A alfabetização de autistas atualmente é feita
por sistema chamado PECS (Picturing Exchanging
Communication System), em que as palavras são
substituídas por signos visuais. O tarô é semelhante,
sendo que ao invés de signos visuais para o
desenvolvimento da linguagem verbal sobre a realidade
objetiva, utilizam-se imagens arquetípicas para, através
de uma linguagem simbólica, propiciar leituras de
realidades subjetivas.
A facilidade com a imaginação simbólica e a
dificuldade de me comunicar diretamente de uma forma
emocional me propiciaram transferir e contratransferir
conteúdos psíquicos com facilidade. Minha mente
mimetiza a outra mente, compreendendo-a e
oferecendo à mente mimetizada uma imagem objetiva de
si mesma através do meu olhar. E a síndrome me permite
partilhar a vida íntima das pessoas em um contato ‘frio’
com suas cargas afetivas. Assim, devido à cegueira
emocional e à imaginação visual, jogar tarô aguçou minha
capacidade de transferência e de contratransferência não-
analíticas de conteúdos simbólicos. É muito difícil
explicar o aprendizado que as cartas proporcionam.
Com o tempo, o tarô passa a funcionar como uma
linguagem universal, capaz de descrever as situações por
dentro. O mais relevante é o conhecimento da vida das
pessoas
Sua excelência, o computador
Quando ainda não havia a palavra ‘nerd’, eu já
curtia ficção científica e jogos de tabuleiro com os
amigos. Fui proprietário de um computador AT (antes do
286), que só rodava o DOS e um editor de texto chamado
Wordstar, da Microsoft. Fiz curso de programação Cobol (e
não aprendi). Participei de uma BBS coordenada pelo
Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal
antes do aparecimento da web. Anos depois, não tive
vergonha compilar páginas horrorosas em HTML com o
finado Netscape. Sempre fui apaixonado por
computadores.
Hoje sabemos que o computador desempenha
um papel importante no desenvolvimento e no
aprendizado dos portadores de autismo, tanto no
sentido de propiciar contatos e amizades não
presenciais, como principalmente pela ampliação das
funções cognitivas. Uma forma interesse de explicar o
funcionamento da mente autista é que ela se assemelha a
um sistema operacional de imagens (como o Windows)
que a máquina cerebral ‘roda’, enquanto a mente
neurotípica equivale aos sistemas operacionais por
comandos alfanuméricos como o DOS ou o Linux. Um
funciona através de imagens; o outro, através de
algoritmos. O sistema de imagens é mais pesado, mais
lento (por isso, às vezes, trava), mas é muito mais
complexo, apresentando interações inusitadas.
Quando comecei a dar aula, as máquinas de
escrever ainda eram bastante utilizadas. As pessoas
acreditavam que o computador era apenas uma nova mídia e
não a convergência de todas as mídias em um único objeto.
Mas, as primeiras turmas de alunos formadas pelo
computador também foram muito superiores (em
repertório, criatividade e habilidades técnicas) às
formadas pela televisão + a escrita. Eram uma geração de
alunos que pensavam com os dois lados do cérebro de
forma integrada e, não mais os semi alfabetizados
encantados pela linguagem audiovisual como as gerações
anteriores. Com a chegada do computador ao cotidiano
também começaram as mudanças na produção industrial
da comunicação. A informação deixou de ser aferida
pelo espaço que ocupa, mas pelo tempo que dura. O
modelo de organização da mídia passou a ser a empresa
de televisão (onde o dead-line era contado em segundos e
não em horas) e não mais o jornal impresso. Houve
diminuição e diversificação das atividades sequenciais
da linha de produção. A diminuição técnica da linha de
montagem exige que comunicador domine os diversos
aspectos técnicos que envolvem a produção,
conhecendo funções que antes eram executadas apenas
por especialistas. As novas tecnologias não apenas
diminuíram a especialização técnica, mas mudaram o
perfil dos profissionais de comunicação de empregados
em pequenos empreendedores independentes, que
prestam serviços às empresas. A comunicação também
terceirizou sua produção. O aparecimento da Internet
acrescenta ainda a questão da interatividade e da
segmentação da audiência em diferentes grupos de
interesse. A publicação de páginas na web praticamente
elimina todos os custos, equipamentos e técnicos
necessários pelo jornalismo impresso e de TV. Esses
fatores (a diminuição drástica do tempo e dos custos de
produção; os equipamentos terem se tornados portáteis
e baratos; e um novo perfil profissional mais ágil e
melhor preparado) ainda estão alterando o mercado de
comunicação. Ganhamos tempo e qualidade de vida, mas
perdemos aquele aprendizado do tempo regressivo que
permitia apreender o texto em tempo real e o
jornalismo como estilo de vida boêmia e estressada.
Em compensação, a mídia passou a estressar o
público cada vez mais, a fazê-lo viver de forma regressiva.
Antes apenas os jornalistas, bancários, padeiros e outras
profissões trabalhavam contra o relógio. Hoje, com a
mecanização, não há mais pressa nessas profissões, mas
todo mundo passou a viver por metas e prazos.
Como descobri que sou autista?
Tudo começou com minha estranha dificuldade
de cumprimentar pela segunda vez pessoas que eu já
havia conhecido. Como não entendia minha atitude, ora
pensava que meu egocentrismo fosse orgulho,
superioridade; ora, ao contrário: pensava que era
vergonha, timidez, solidão mórbida. Cheguei a desconfiar
de que seria uma pessoa preconceituosa sem saber,
principalmente com as pessoas especiais. De toda forma
sempre fui considerado uma pessoa excêntrica,
autoritária e egocêntrica. Após anos de trabalho e tentativas
sinceras de mudar, esse traço de caráter não só persistiu
como se aguçou em relação a situações específicas. Na
verdade, o egocentrismo travestia a dificuldade de troca
afetiva e emocional. Eu fingia ser autoritário e excêntrico
para esconder de mim mesmo meu transtorno
comportamental.
Meu comportamento distante e atrevido
sempre foi bastante antipático. A primeira impressão quase
nunca é positiva. Isto acrescido a uma postura competitiva –
“metido” - geralmente é interpretada como uma afronta,
como uma invasão territorial. Quem me compreende e
passa dessa primeira impressão negativa, acaba gostando
de mim, até que, em determinado momento, eu
deliberada ou involuntariamente a machuco com verdades
inconvenientes. Ocorrem transferências não- analíticas de
conteúdos negativos e eu acabo incitando o que há de pior
em cada pessoa. Além do que, eu nunca soube como
fazer amigos. Sempre dei muitos e muitos presentes para
conquistar-lhes a confiança e os abandonando
afetivamente. Descobri Amadeus Mozart, Isaac Newton
e Andy Wharol – entre outros prováveis portadores da
síndrome - faziam o mesmo. Também apresento vários
outros sintomas comuns à síndrome. Sempre fui um
colecionador compulsivo (álbuns de figurinhas, História
em Quadrinhos e Tarôs) com alguns interesses
específicos. Tenho um grande gosto pelo silencio e pela
solidão. E o desejo de ser invisível já me rendeu até
apelidos. Tenho momentos recorrentes de mal humor e
de ansiedade, em que perco o contato visual e fico
monossilábico.
Alfabetizei-me sozinho; tive dificuldades motoras e
fonológicas, que superei tardiamente de formas
criativas; apesar de um desempenho intelectual acima
da média, sempre apresentei dificuldades de integração
e de adaptação escolar. Quando já achava que havia algo
realmente errado comigo, assisti na televisão, minha
velha professora, um seriado que tinha um personagem
Asperger e me identifiquei. Fui, então, ao Dr. Google e
depois aos psiquiatras que confirmaram minhas
suspeitas. Aos 47 anos de idade, 25 dos quais voltados
para autoconhecimento, descobri que sou autismo de
alta funcionalidade, caracterizado, por um lado, pela
dificuldade de sociabilidade e de expressão emocional, e
por outro, por habilidades hiperdesenvolvidas.
A síndrome fez de mim uma pessoa forte em
vários sentidos. Porém, me levou também a um beco sem
saída, a uma vida solitária e incapaz de crescimento com
autonomia interdependente. Com o tempo, minhas
limitações tornaram-se evidentes para mim e para
todos. Como alguém tão desenvolvido no campo das
ideias pode ser assim tão estúpido no campo emocional?
Como alguém (que dedica tanto tempo e energia ao
próprio desenvolvimento) pode apresentar tantos e tão
contraditórios aspectos negativos em sua personalidade?
Por que considero todos tão falsos e sinto que todos estão
não apenas me enganando (o que seria uma simples
paranoia), mas enganando a si mesmos?
Quando “a ficha caiu” foi como se eu encontrasse a
solução de um quebra-cabeça, uma imagem construída a
partir de vários anos de observação através de diferentes
formas de autoconhecimento. É um grande alivio e uma
grande humilhação, descobrir que se é uma pessoa especial.
Houve, para mim, uma inversão de perspectiva
entre minha prepotência e minha impotência. Antes eu
me achava diferente num sentido de superioridade e
acabava sempre me frustrando comigo mesmo e me
sentindo inferior. Ao compreender minha diferença como
uma deficiência e as capacidades resultantes como
compensações secundárias, estou me aceitando melhor
e entendendo minha real potência. Aliás, houve
diversos tipos de readaptação em minha autoimagem.
Porém, se melhorei como pessoa, a vida profissional se
tornou muito difícil.
“As doenças mentais são apenas conjuntos de
sintomas, que classificadas pelo olhar clínico da
psicopatologia, são ‘naturalizadas’ como enfermidades.
Você não leu a História da Loucura de Foucault?” –
Perguntaram os colegas, surpresos com minha atitude de
assumir o transtorno.
E de nada adiantava eu dizer que a neurociência
reconstruiu a psiquiatria nos anos 90 (destruída pelos pós-
modernos nas décadas anteriores) ou que minha condição
neuroquímica é determinada pela anatomia cerebral.
“Você está vestindo a camisa da doença, aceitando um
rótulo” – alertavam, repetindo meus próprios
argumentos do passado.
É claro que levei as advertências em consideração.
Só cheguei aonde cheguei porque não sabia que era
autista. Quando vejo os especialistas centrados na
necessidade de um diagnóstico precoce, eu imagino que, ao
invés de ter uma vida mais humanizada, o que ocorrerá com
os autistas será a (auto) exclusão antecipada da maioria
das possibilidades de desenvolvimento. E, realmente, se
eu não tivesse ‘vestido a camisa’ e mantivesse minha
enfermidade discretamente, minha vida profissional não
teria sido tão prejudicada.
Mas como trabalho com autoconhecimento e
acredito que a verdade é sempre o melhor remédio. Esta
combatividade de ‘vestir a camisa’ teve como
contraponto negativo me entregar a um
comportamento retraído, deixando de lado meus vínculos
afetivos mais próximos e a ver muitos DVDs.
Eu havia lutado muitos anos contra a tendência
ao isolamento e à invisibilidade e resolvi me dar o direito
de ser quem era. Porém, o casamento e a constituição de
uma nova família acabaram me forçando ‘a vestir uma
segunda camisa’ por cima do autismo. Assim,
abandonei minha militância (do direito de ser quem sou)
e passei a ocupar no equilíbrio funcional da nova
realidade.
De modo que minha vida profissional chegou a
um impasse, gerado em parte pelo enquadramento
social e cultural de minha condição autista e, em parte,
pelas novas responsabilidades e obrigações decorrentes
da vida familiar.
Relacionamentos
James Redfield, autor da Profecia Celestina, em
outro trabalho, Jogos de Competição pela Energia,
aprofunda o tema dos ‘dramas de poder’, estratégias de
interação para conseguir roubar a atenção e a energia do
outro: a vítima (que manipula os sentimentos de
solidariedade), o sedutor distante (que chama atenção pelo
mistério), o interrogador (que rouba energia através das
críticas) e o Intimidador (que conquista a atenção
através de ameaças). O amor próprio é a grande solução
para vencer os dramas de controle e a manipulação, pois
só reencontrando sua própria fonte de energia se
consegue não necessitar da energia alheia nem deixar que
nos roubem a atenção. É claro que gentileza e
generosidade também ajudam – mas em um segundo
plano. Os relacionamentos são essa lapidação das almas, o
exorcismo psicológico desses dramas de poder. E a parceira
ideal é aquela que não se deixa dominar nem aceita
dominar o outro; aquela que não perde o amor próprio
nem deprecia seu parceiro.
Como minha família não sabia (ou não aceitava)
que eu era autista, a questão de fazer amigos sempre foi
imposta para mim, e depois assumida como uma
obrigação. Assim, sempre tive amigos, principalmente
entre as pessoas mais críticas e interessantes. Isso foi
muito bom para mim, mas injusto para meus amigos,
devo confessar. Amizades verdadeiras se baseiam na troca
equilibrada (e não no uso recíproco). A amizade profunda
é um cuidado com os sentimentos do outro, uma
dedicação mútua. Já as amizades superficiais são as
baseadas no duplo uso e geram dependências
emocionais e funcionais, como dirigir ou cozinhar. Demorei
a descobrir a amizade verdadeira e investi muito em
amizades funcionais.
No caso dos portadores de Asperger, os ‘amigos
funcionais’ mais frequentes são aqueles que suprem as
dificuldades de comunicação e de socialização. Durante
algum tempo. Esgotado o ciclo, os portadores de Asperger,
despidos de qualquer afetividade, dão um pé na bunda do
amigo, dizendo que foram ‘usados’ e cobrando todos os
presentes e dedicação dados em troca do poder de
manipular a situação. Repeti esse roteiro várias vezes em
minha vida. Machuquei muitas pessoas que realmente
gostavam de mim falando verdades para dispensá-las.
Embora o distúrbio não justifique meus atos, não foi
deliberadamente que eu as usei em virtude da minha
incapacidade de empatia afetiva. Só tomei consciência
plena do que fazia através da experiência de outros
portadores, que apresentavam exatamente a mesma
estória que eu tanto escondia. Muitas vezes me perguntei
se não era melhor não ter amigos do que tê-los por
interesse e depois machucá-los friamente.
Com meus relacionamentos amorosos, as coisas
foram mais complicadas. Antes da contracultura, havia
uma dissociação muito grande entre sexualidade e
afetividade masculina. Os homens amavam suas esposas e
faziam sexo com outras mulheres; e coração e sexo
ocupavam lugares diferentes na sexualidade masculina. O
machismo produz homens carentes, insatisfeitos e
divididos (entre a carência afetiva e a insatisfação sexual).
Sempre quis encontrar alguém que reunisse afetividade e
sexualidade, mas, condicionado pelo mundo machista,
também vivi o sexo sem amor e o amor sem sexo. O sexo
casual e a paixão platônica são complementares para
quem evita o envolvimento emocional verdadeiro. E, no
caso dos Asperger, há uma possibilidade de criação de
um círculo vicioso: sonhar com alguém inalcançável e ter
uma sexualidade dissociada de qualquer sentimento.
Eu, no entanto, tive sorte de encontrar pessoas
que se interessaram por mim; e que, pacientemente,
lutaram pelomeuafeto.
Para os autistas tratarem suas mães
Sua mãe é você. O que você chama de ‘mãe’, na
verdade, é uma parte do seu Eu. Portanto, cuidado: tudo
ou quase tudo que você disser sobre ela, estará falando
sobre si mesmo. E, se isto é verdade para todo mundo
em geral, é particularmente verdadeiro para os
portadores de deficiências em especial, caso estes
desejem ter autonomia e serem responsáveis por si
próprios.
Você é sua mãe. Para ter autonomia e ser
responsável por si mesmo, é preciso assumir a própria
deficiência. Sua mãe se sente culpada por ela. Você
também pode querer responsabilizá-la por seu(s)
problema(s). Não é fácil assumir a responsabilidade pela
própria doença quando temos alguém para assumi-la. Mas,
se você quiser ser alguém e se relacionar amorosamente
com outros, vai ter que superar a situação co-dependência
recíproca em que está envolvido.
Tenha paciência. Sua mãe te controla porque te
ama. Pelo menos, ela acredita nisso e você não vai ganhar
nada tentando mostrar que na verdade ela não ama. Na
verdade, não importa se ela o ama ou não, nem mesmo se
você ama a ela ou não, mas sim se você ama a si mesmo o
suficiente para ter calma com ela. Se você ficar com raiva
dela e ela se sentir culpada, você vai ficar com mais raiva
ainda e ela mais responsável. É preciso romper com este
círculo vicioso, assumindo a responsabilidade pelo
próprio sofrimento.
Perdoe os erros de sua mãe. Não basta o fato de
você ser deficiente, sua mãe também não é perfeita.
Perdoe a vergonha que ela tem de ti. Perdoe a vergonha
que ela sente dela mesmo. Perdoe os excessos de
cuidado e o descaso. Pense que foi você que a colocou
nesta situação (e não que foi ela que te colocou). Peça
perdão a ela por ter feito dela mãe de um deficiente. Não
faça isto por ela, faça por ti. Aproveite e reconheça todos
os problemas, todas as dificuldades que você criou para ela
(para seu pai e outros familiares). Se você for capaz dessa
grandeza, se libertará dela interiormente e poderá ser feliz
com alguém. E ainda se tornará amigo de sua mãe – uma
proezaespiritual.
Agradeça. Senão algum dia você vai querer reclamar
de alguma coisa com ela e vai perceber que sua mãe não
está mais lá.
CLEÓPATRA E O SAGRADO FEMININO

O presente texto investiga a história da lendária rainha do Egito


através de suas principais adaptações para o cinema de ficção e
de documentário. Com o objetivo de entender o personagem
histórico e explicar o mito, o trabalho compara as versões com
informações arqueológicas e históricas. Observa, ao final, que o
mito de Cleópatra encanta tanto seus críticos que tentam
encobrir e diminuir sua importância apresentando-a como
uma mulher ambiciosa e sedutora, quanto seus admiradores, que
não conseguem perceber seu comportamento vil, maquiavélico
e dominador.
Introdução
Cleópatra Thea Filopator (Alexandria, 69 a.C. ―
12 de agosto de 30 a.C.) foi a última rainha da dinastia
de Ptolomeu, general de Alexandre da Macedônia que
governou o Egito após sua morte. Cleópatra foi uma
grande negociante, estrategista militar, falava seis
idiomas e conhecia filosofia, literatura, astronomia e arte
gregas, tendo sido instruída pela elite intelectual de sua
época na biblioteca de Alexandria. Era também
sacerdotisa chefe de seu próprio culto, 'filha e encarnação
viva' da deusa lunar Isis. Era ainda a mulher mais rica do
mundoi de sua época, conhecida por sua extravagância, luxo
suntuoso e ostentação desmedidas.
Antes de morrer, Ptolomeu nomeou os seus filhos,
Cleópatra e Ptolomeu XIII para reinar juntos como faraós
do Egito. Seguindo a tradição da sua dinastia, Cleópatra
casou com o irmão de apenas 15 anos de idade. Este,
porém, aconselhado por seu séquito, trai a irmã e a exila,
em 49 a.C., para governar sozinho. Logo depois,
Pompeu é vencido por César na Batalha de Farsália, na
Tessália, e pede asilo a Ptolomeu XIII que aceita recebê-lo.
No entanto, o verdadeiro plano do rei era ordenar a
morte de Pompeu, julgando que sua cabeça decapitada
agradaria a César. O romano, porém, ficou horrorizado com
o ato bárbaro. Apesar de inimigos políticos, os romanos
eram também amigos: Pompeu tinha casado com a filha de
César, que morreu dando à luz um filho. César toma
Alexandria e decide ficar no Egito para resolver o conflito
entre Ptolomeu XIII e Cleópatra.
Segundo Plutarco, em sua biografia dos Césares,
Cleópatra marcou um encontrocom Júlio César,a fim delhe
dar um presente, que consistia num tapete. Ao ser
desenrolado, a própria rainha estava em seu interior.
Cleópatra tornou-se, então, sua amante, e retomou o seu
poder sobre o Egito. Por ordem de César, Cleópatra
passou a reinar conjuntamente com seu irmão
Ptolemeu XIV, com quem se casou seguindo a tradição
grego-egípcia. Em Junho de 47 a.C. Cleópatra deu à luz
Ptolomeu XV César, o "Pequeno César" (Cesarião).
Embora César tenha reconhecido a paternidade da
criança, a historiografia moderna coloca em causa esta
paternidade. Júlio Cézar, então, volta para Roma. O Egito
manteve-se independente, mas sob a proteção de Cézar
que aí deixou três legiões romanas. Um ano depois, a
convite de César, Cleópatra vai para Roma, com o filho e
Ptolomeu XIV, fixando residência nos jardins do Janículo,
próximo a casa de Cézar e de sua terceira esposa romana,
Calpúrnia Pisão. Em sua honra, César ordenou que fosse
colocada uma estátua de ouro de Cleópatra no templo da
deusa Venus Genetrix, antepassada de sua família. A
presença de Cleópatra em Roma gerou grande
descontentamento popular e o medo de seu filho se tornar
herdeiro de um novo império, englobando o Egito,
principal potência econômica do oriente, e a então
república romana, principal força militar do ocidente. Tais
medos e descontentamentos levaram ao assassinato de
Cézar e ao retorno de Cleópatra ao Egito. Em seguida,
segundo Eusébio de Cesareia, Cleópatra assassinou seu
irmão Ptolomeu XIV e passou a reinar sozinha. Seu filho
passou a ser seu co-regente. Em Roma, Marco Antônio e
Otaviano, com apoio da população, entram em guerra
contra Brutus e Cássio, para vingar a morte de Júlio Cézar.
Em 42 a.C., Marco Antônio convida Cleópatra para a
encontrá-lo em Tarso para pedir tropas contra o exército de
Cássio. Passaram juntos o inverno de 42 a 41 a.C. em
Alexandria. E ela ficou grávida pela segunda vez, desta vez
de gêmeos: Cleópatra Selene e Alexandre Hélio. Sabendo do
novo golpe do baú, Otaviano convence Marco Antônio a se
casar com sua irmã, Otaviana, assim que o tribuno volta à
Roma, para consolidarem sua aliança. Porém, quatro anos
depois, Marco António volta novamente ao Egito e aos
braços de sua rainha, passando a viver em Alexandria.
Então, Cleópatra deu à luz outro filho, Ptolomeu
Filadelfo. Otaviano declarou-lhes guerra em 31 a.C. Após
serem derrotados, ambos cometem suicídio, tendo a rainha
Cleópatra, segundo os historiadores romanos, se deixado
picar por uma serpente Naja, em 30 a.C.
Aliás, até bem pouco tempo, tudo que
sabíamos sobre Cleópatra era o que foi escrito por seus
inimigos romanos, que atrelaram sua história à sua
sexualidade. É mais fácil admitir que ela encantava os
homens pela sedução do que pela inteligência. Os escritos
sobre a rainha mostram o olhar masculino sobre os sujeitos
femininos, em que a agressividade, a iniciativa e o poder
de decisão são sempre atributos masculinos, nunca
atribuídos às mulheres, das quais espera-se submissão. E a
imagem de Cleópatra como uma mulher devassa e
pouco confiável, foi construída por homens que julgavam
ser intolerável o papel ativo de uma mulher na política. É
uma representação depreciativa do poder feminino.
Novos estudos (SCHIFF, 2010; HUGHES-
HALLETT, 2005) mostram que Cleópatra não era devassa,
não morreu picada por uma cobra, era uma ótima
estrategista... e estava longe de ser bela. Mas, já era tarde:
após muitos séculos de difamação, a imagem de mulher
promiscua e ardilosa da rainha do Egito já havia sido
construída e consolidada no imaginário popular,
gerando diversas formas de expressão.
A imortalidade pelaarte
“Dá-me o vestido; coloca-me a coroa.
Eu sinto em mim a sede da
imortalidade”, SHAKESPEARE,
William. Antony and Cleópatra.
Ato V, Cena 2.

Desde o início do cinema, Cleópatra tem servido


de tema para diversos filmes, nos quais seu drama tem
sido contado e interpretado das mais diversas maneiras. O
cinema foi apenas mais uma das formas de imortalizá-la.
Nas artes plásticas, o cenário da morte de Cleópatra
inspirou diversos artistas: Reginald Arthur, Augustin
Hirschvogel, Guido Cagnacci, Johann Liss, John William
Waterhouse e Jean-André Rixens. Na literatura
dramática, encontram-se peças de teatro de Étienne
Jodelle, de William Shakespeare, de Sá de Miranda e de
George Bernard Shaw. Na prosa literária, destacam-se os
trabalhos de Théophile Gautier e de H. Rider Haggard16.

16 Por ano, calcula-se, os rendimentos da rainha ultrapassavam 15 mil


talentos de prata. (SCHWENTZEL, 2009, p.35). Em valores atuais, sua
Há também vários romances contemporâneos
(FALCONER, 2004; GEORGE, 2012) e milhares de
interações do mito com outras narrativas midiáticas. A
história em quadrinhos de Asterix e Cleópatra, por
exemplo, de René Goscinny e Albert Uderzo, retrata a
rainha como uma 'patricinha': vaidosa e sedutora, mas
também caprichosa e inteligente.
Porém, a grande maioria das narrativas
midiáticas enfatiza apenas o lado negativo: o estereótipo
da mulher poderosa e devoradora de homens.
Desde o começo do cinema que Cleópatra tem
servido como tema de filmes. O primeiro foi em 1899,
dois minutos de Georges Méliès com a atriz francesa
Jeanne d'Alcy no papel da rainha egípcia. Há também
Marcantonio e Cleópatra (1913) de Enrico Guazzoni e
Cleópatra (1917) de J. Gordon Edwards, com Theda Bara17.
Um dos primeiros filmes do cinema falado a
retratar a rainha foi Cleópatra (1934), dirigido e
produzido por Cecil B. DeMille e protagonizado por

fortuna alcançaria 96 bilhões de dólares (quase o valor do orçamento de


2013 do governo brasileiro para investimentos).
17 Wikipédia, verbete Cleópatra <pt.wikipedia.org/wiki/Cleópatra>
Claudette Colbert. Filme revolucionário em vários
aspectos, principalmente pela forma inteligente que
apresenta a personagem protagonista. Cleópatra é a
riqueza do Egito, a quem o tribuno romano quer
conquistar; por outro lado, Júlio Cézar é o poder de Roma,
a quem a rainha deseja seduzir. Os diálogos entre os dois não
são entre homem e mulher, mas entre dois estadistas que
não faziam nenhuma distinção entre suas vidas pessoais e
seus objetivos militares.
Em compensação, o filme César e Cleópatra
(1945) - dirigido por Gabriel Pascal e estrelado por Claude
Rains e Vivien Leigh, adaptado a partir da peça homônima
escrita por George Bernard Shaw em 1901 – é
extremamente misógino e machista. Nele, vemos uma
Cleópatra fútil e infantil, que recebe ordens da ama
escrava e se torna um mero brinquedo nas mãos de Cézar,
que a abandona grávida em Alexandria e volta para Roma.
Essa versão não explica porque Júlio Cézar não anexou
imediatamente o Egito como província romana, colocando
Cleópatra novamente no trono, fazendo-lhe todas as
vontades contra os interesses da república romana.
O filme mais conhecido sobre a rainha do Egito
é Cleópatra (1963) realizado por Joseph L. Mankiewicz,
que foi protagonizado por Elizabeth Taylor, com Rex
Harrison no papel de Júlio César e Richard Burton no
personagem de Marco António. Mais conhecido e
também mais completo, caro18 e longo (192 min).
A narrativa retoma os diálogos políticos-
pessoais entre os protagonistas, mas em uma oitava mais
aguda: Cleópatra era uma deusa e Cézar era considerado um
deus por muitos romanos. E, muitas vezes, os diálogos de
amor e poder entre eles assumem um caráter sagrado e
tântrico, com ambos se considerando deuses e se
apaixonando pela divindade do outro. Outro ponto
interessante nessa versão é a hipótese do 'sonho de
Alexandre' de formar um grande império helênico ter sido
partilhado por Cleópatra, Júlio Cézar e Marco Antônio. A
ideia de que os três tinham o mesmo objetivo estratégico
serve para justificar as escolhas pessoais da rainha e
explicar o comportamento dos dois romanos, em
relação à república romana.

18
Cleópatra é considerado o segundo filme mais caro de todos os
tempos - perdendo apenas para Avatar de James Cameron; planejado
para custar 2 milhões de dólares em 1962, sua produção custou 44 milhões
de dólares em valores da época. Segundo valores atualizados em 2005, o
filme custou 286,4 milhões de dólares. Com o relativo fracasso
comercial, quase levou à bancarrota a 20th Century Fox, produtora e
financiadora do filme. (Fonte: Wikipedia)
Porém, em sua defesa apaixonada da rainha do
Egito, o filme falta com a verdade histórica pelos duas vezes:
mostrando uma cena em que Cleópatra prioriza a
alimentação de seu povo ao envio de mantimentos aos
romanos (na verdade, houve revoltas populares
durante seu reinado em virtude da fome e do envio de
alimentos para Roma) e justificando sua retirada durante a
batalha do Ácio. Na versão de 1963, Cleópatra abandona a
batalha naval pensando que seu marido estava morto; na
verdade, foi ela provocou a derrota, abandonando a
batalha pela metade, sendo seguida por Marco Antônio que
deixou para trás toda sua frota sem comando.
Outro episódio polêmico é sobre a resposta que
Cleópatra deu a Otaviano, quando este negociou a cabeça
de Antônio em troca da autonomia do Egito. No cinema,
a rainha recusa; porém as versões históricas, inclusive as
mais recentes, acreditam que ela aceitou, mandando
dizer ao romano que ela havia morrido, forçando-o ao
suicídio.
Foi realizada uma versão da história da rainha para
a televisão americana, Cleópatra (1999), com a
personagem título interpretada pela atriz chilena Leonor
Varela. Mais curto e ritmado que a versão de 1963, com
mais cenas de ação e com enquadramentos e edição mais
atuais, o filme resume a história da rainha, mantendo
os mesmos elementos progressistas das versões
anteriores: a inteligência e a erudição de Cleópatra, o
diálogo de amor e poder entre a rainha e Cézar, o 'sonho
de Alexandre' como justificativa do triangulo amoroso.
Nessa versão, não há cenas inverídicas em defesa da rainha,
como em seu antecessor.
O filme, no entanto, torna-se muito condensado,
com poucas possibilidades de atuação dramática dos atores
e de exploração subjetiva dos personagens.
Justamente o oposto do filme brasileiro
Cleópatra (2007) do cineasta Júlio Bressane, em que a
personagem-título é interpretada pela atriz Alessandra
Negrini; Miguel Falabella faz Júlio Cezar; e Bruno Garcia,
Marco Antônio. O filme, feito em planos fechados em
Copacabana no Rio de Janeiro, é um estudo psicológico
dos personagens míticos, em que o imaginário de cada
um é explorado subjetivamente, mais do que do diálogo
entre eles. Cleópatra, por exemplo, no momento que
antecede ao suicídio, reflete sobre o paradoxo de sua
imortalidade de deusa e sua morte de rainha, concluindo
que ela é a própria morte, que morre e não morre, a eterna
devoradora.
Trata-se de um filme de arte, às vezes um pouco
monótono em relação às versões mais comerciais, mas
interessante do ponto de vista dramático e psicológico.
E, finalmente, aguarda-se pelo filme A Rainha do
Nilo, de Ang Lee, estrelado por Angelina Jolie, com roteiro de
Eric Roth, previsto para 2013 e até agora sem previsão de
lançamento. O filme se baseia na biografia de Stacy Schiff
(2010) e promete integrar “os dois lados” da rainha do
Egito, sem diminuí-la nem idolatrá-la. O trabalho de Schiff
é uma compilação jornalística do trabalho de pesquisa
científica de vários arqueólogos e cientistas atuais, que
fazem uma revisão dos acontecimentos narrados pelos
historiadores romanos.
Documentários de TV
Mas, será que essa poderosa governante tinha
de fato uma beleza sem igual do cinema? Era mesmo uma
sedutora inescrupulosa como afirmam os romanos? Ela foi
realmente mordida por uma cobra?
Os três documentários de TV que
selecionamos tem como objetivo desvendar a verdade
sobre o mito de Cleópatra, livrando-o de seu aspecto
simbólico de mulher ardilosa e promíscua, através da
pesquisa arqueológica e histórica.
Os documentários seguem a mesma linha de
raciocínio de Schiff, questionando a narrativa dos
historiadores romanos que reduzem Cleópatra a uma
mulher vil, sedutora e ambiciosa, entrevistando
diretamente os pesquisadores responsáveis pelas novas
descobertas sobre a vida da rainha.
 Arquivo Confidencial: Cleópatra (da National Geografic
Channel) é baseado na entrevista de vários especialistas
atuais: Mei Trow, escritor; Dr. Christofer Syneder,
pesquisador de egiptologia da Marymount University; Dr.
Debbie Challis, da University College London; professor
Valerie Higgins da American University of Rome; entre
outros. O documentário apresenta uma consistente
contextualização histórica, política e econômica do Egito
ptolomaico.
 Egito Revelado: Cleópatra (da Discorevy Channel) é um
documentário que aborda principalmente o contexto
histórico do período ptolomaico e da cultura mista greco-
egípcia, reconstituindo arqueologicamente não apenas
seus principais monumentos arquitetônicos, como o
Farol e a Biblioteca de Alexandria, mas também seu
ambiente cultural cosmopolita e seu papel de centro
intelectual na Antiguidade.
 Cleópatra – a Rainha do Egito (também da Discorevy Channel)
é mais focado na biografia de Cleópatra, recontando sua
história de vida da forma mais objetiva possível.
Curiosamente, o distanciamento releva momentos
dramáticos que escaparam a outras narrativas históricas ou
ficcionais, como o momento em que a rainha vê sua irmã e
inimiga acorrentada e exposta publicamente no desfile
em tributo a Cézar, representando a submissão do Egito à
Roma; ou ainda quando, após dar a luz a gêmeos, foi
abandonada por Marco Antônio, quando este se casou com
a irmã de Otaviano, passando 4 anos fora do Egito.
Os documentários são baseados nos estudos mais
recentes e apontam três temas principais em que as
evidências históricas contradizem a lenda mítica
construída pelos historiadores romanos: a beleza, a
serpente e a mulher.
Ao que parece, Cleópatra não era bela como se
imaginava. Não há retratos da rainha, mas algumas
moedas da época a mostram com um queixo e um nariz
proeminentes, características estas herdadas da família.
Para compensar os traços fortes, ela era elegante e
carismática como uma deusa. Raspava a cabeça e usava
perucas. Ela era muito vaidosa. Fazia tratamentos de beleza
e hidratava a pele com banhos de leite e óleo de rosas -
invenção atribuída a ela. Cleópatra também gostava de
se maquiar, tendo inventado técnicas de escurecer os olhos
(SIMPSON, 2009). Para Plutarco e Cícero, além de sua
aparência suntuosa e impactante, o grande charme da
rainha vinha de seu gênio astuto, de sua personalidade
alegre, de sua inteligência e erudição (BRADFORD, 2002).
E não de sua beleza e/ou de seus atrativos sexuais como nos
fizeram pensar as narrativas contemporâneas.
Outro aspecto inverídico do mito romano na
lenda de Cleópatra é que ela foi morta por se deixar
picar por uma serpente. Entretanto, uma pesquisa do
historiador Christoph Schäfer, da Universidade de Trier,
concluiu que ela tomou um veneno, um coquetel “de
acônito, uma planta tóxica, cicuta e ópio" preparado por ela
própria para se matar, depois de ter sido presa pelas
tropas de Otaviano. A cobra, símbolo do poder dos
faraós e de perigo sinuoso para os romanos, pode ter
sido originada em seu enterro, em que a rainha aparecia
deitada coberta em gesso pintado com um cetro de
serpente em uma das mãos.
No afã de defender a rainha do Egito, no
entanto, há afirmações improváveis entre os estudos
recentes, como a que Cleópatra conheceu Júlio Cézar
virgem. É certo que a rainha estava longe de ser uma
libertina. Ela era uma sacerdotisa especializa em
venenos, conhecendo bem métodos abortivos e
contraceptivos. É improvável que César tenha sido seu
primeiro homem e Marco Antônio, com quem viveu 11
anos, o segundo e último – como afirma Stacy Schiff.
Embora não haja registros confiáveis de outros
envolvimentos amorosos, a sexualidade de uma rainha-
deusa é um assunto complexo, irredutível à polaridade
moral entre virgindade e luxúria. Impossível considerá-
la santa ou prostituta, pois essa distinção não existia no
contexto da antiguidade egípcia. O importante, hoje, é
perceber que, enquanto os romanos atribuíram todo
poder de Cleópatra à sua sexualidade e não a sua
inteligência; os estudiosos atuais pendem da direção
contrária, esvaziando a relevância de sua capacidade de
sedução e de sua destreza erótica.
5. Conclusão
Enquanto a psicologia estuda o mito do ponto
de vista subjetivo e universal; a antropologia valoriza
mais a estrutura que o conteúdo dos mitos, como se eles
fossem mensagens fragmentadas do passado, que, com o
passar do tempo, quase perderam o sentido original.
Também existem analistas que insistem no aspecto
ideológico dos mitos, que eles, na verdade, legitimam e
mascaram as relações de poder: Para esses, Sâo Jorge
matando o dragão representa apenas o Império Romano
dominando o deus dos druidas celtas. É claro que os mitos
tem uma dimensão política, como também tem
dimensões psicológica, astronômica, musical, culinária,
matemática, entre outras. É preciso entender o mito em sua
complexidade – o que é parcialmente feito pela
antropologia.
Digo 'parcialmente' porque a antropologia
investiga o mito em uma perspectiva temporal passado-
presente; enquanto a comunicação social pensa o mito
em um enquadramento aberto voltado para o futuro.
Por outro lado, os mitos modernos produzidos
pela mídia são 'parcialmente' artificiais. Os mitos
midiáticos se alimentam do simbolismo tradicional e dos
complexos psicológicos universais e são recanalizá-los
para o mercado de consumo. A diferença entre o mito
clássico e o mito moderno é que o primeiro aconteceu no
passado e o mito atual acontece agora e caminha para o
futuro.
Como a mídia sempre reinventa os mitos
segundo o gosto do público da época, é compreensível que
o cinema tenha tomado a defesa de Cleópatra e continue
valorizando mais sua inteligência que sua sensualidade.
Porém, não devemos esperar que o novo filme, A Rainha do
Nilo, seja realista quanto à aparência do personagem
(no caso, Angelina Jolie é um modelo de beleza distante
de Cleópatra) ou a sua verdadeira sexualidade. Mesmo
porque a compilação de Stacy Schiff também não é, com
suas preocupações sobre castidade e fidelidade conjugal,
completamente dissociadas do contexto da antiguidade,
mas bem presentes nos valores atuais.
Ao que parece o mito de Cleópatra encanta
tanto seus críticos que tentam encobrir e diminuir sua
importância apresentando-a como uma mulher ambiciosa
e sedutora, quanto seus admiradores, que não
conseguem perceber seu comportamento vil,
maquiavélico e dominador.
OS PERGAMINHOS DE AMPHIPOLIS 19
Aforismos meta narrativos sobre a saga da Princesa Guerreira20

O presente texto detalha e analisa a releitura meta narrativa de


diferentes mitologias realizadas pelo seriado de TV Xena, a princesa
Guerreira. O objetivo é identificar algumas características narrativas (os
universos múltiplos, a morte, a vida sem inimigos) e compará-las com
outros trabalhos contemporâneos, principalmente com a Grafic Novel
Sadman, do escritor Neil Gaiman. Conclui-se que o mito das moiras,
representando as estruturas narrativas do tempo, se tornou o
antagonista do anti-herói pós-moderno.

19 Publicado na Revista temática v. 9, n. 10. João Pessoa: UFPB, 2013. 19


20 Para Gelli Cristina Ahimed.
# 1 A princesa guerreira
Xena: Warrior Princess 21 estrelou em 1995 como
um spin-off da série Hércules: As Viagens Míticas, ou seja,
derivou dessa série. A saga de Xena na televisão americana
começou com uma participação especial de Xena em
Hércules durante três episódios, The Warrior Princess,
The Gauntlet e Unchained Heart. Nos dois primeiros
episódios, Xena era uma vilã, mas no terceiro, ela se
arrepende de seu passado e se alia a Hércules.
Xena fez tanto sucesso entre o público que os
produtores de Hércules resolveram gravar uma série
exclusiva com a princesa guerreira. A ideia partiu dos
produtores Robert Tapert e John Schulian, que em
companhia do diretor Sam Raimi, assinaram um acordo
com a Renaissance Pictures para 24 episódios de Xena,
como teste de audiência.
Desde então, a série teve um sucesso de larga escala
e tem sido referida como um fenômeno cultural e um ícone

21 A série foi uma série de TV norte-americana produzida na cidade


neozelandesa de Auckland e seus arredores, levada ao ar
originalmente entre 1995 e 2001. A série foi estrelada pelas atrizes Lucy
Lawless e Renée O'Connor. É exclusivamente distribuída pela MCA-TV e no
Brasil,é exibida,na sequência, do1º ao4º anoda série,no USA Channel
pop feminista. Em um curto espaço de tempo, Xena tornou-
se um sinônimo de força feminina e é frequentemente
citada como uma referência em vários outros trabalhos
contemporâneos: videogames, histórias em quadrinhos,
em outras séries de televisão e no cinema. Enquanto a
série de Hércules fracassou, durando apenas duas
temporadas, Xena durou seis anos com um grande sucesso
internacional, devido experimentando vários tipos de
narrativa e, principalmente, pensando a si mesmo como
meta narrativa.
Além do carisma das duas atrizes principais, o
sucesso se deve principalmente à conjunção de dois
temas aparentemente incompatíveis: homossexualismo
e espiritualidade.
O homossexualismo feminino é ‘sáfico’, as
protagonistas não são masculinizadas, ao contrário,
partilham fraternalmente e valorizam os valores
femininos: elas têm filhos, parceiros heterossexuais, mas
mantém a relação afetiva principal com a parceira. Embora
sem cenas eróticas explícitas, há inúmeras menções
verbais a relações homossexuais entre Xena, Gabrielle e
outras personagens da saga. Xena é cultuada como ícone
pela comunidade GLS. Há inclusive um grupo de ativistas
lésbicas chamado The Marching Xenas. A
homossexualidade das protagonistas é deixada ambígua
propositalmente pelos escritores da série. E esse, sem
dúvida, é um dos motivos do sucesso da série.
Mas o grande sucesso de Xena não reside
simplesmente nessa bissexualidade de preferências
femininas, tão antiga e tão atual: ao contrário de
Hércules, que é um herói patriarcal lutando contra a grande
deusa Hera; Xena é uma heroína matriarcal contra Ares,
o deus da guerra – o que é muito mais, digamos assim ...
politicamente correto. Ela, na verdade, agrega e
defende os valores femininos. Os comportamentos
machistas e violentos são constantemente
ridicularizados na série através dos personagens de Joxer
(Ted Raimi, irmão do diretor Sami Raimi) e do deus da
guerra Ares (Kevin Tod Smith).
Um bom exemplo dessa esculhambação completa
dos valores patriarcais é o episódio Here She Comes... Miss
Amphipolis, em que Xena entra num concurso de beleza
como Miss Amphipolis para descobrir quem dos
patrocinadores quer a morte das participantes.
Desmascarados os culpados, após um hilariante deboche
em que as principais concorrentes desistem da competição,
uma travesti ganha o concurso.
# 2 O narrador e a protagonista
Xena é uma personagem imaginária de uma cidade
imaginária, Amphipolis, que interage com diferentes
realidades históricas, reais e/ou mitológicas. Na série,
sua estória foi escrita por sua amiga Gabrielle em
pergaminhos que se perderam durante séculos e
redescobertos na atualidade nas ruínas de sua antiga
cidade natal. Apesar de toda estória ser imaginária, a
narrativa sugere que asérie foi baseada nos pergaminhos.
E a série de Xena e os pergaminhos de
Amphipolis contam a estória de uma guerreira cruel e
sanguinária que se arrepende de seu comportamento
violento e desumano, se convertendo ao caminho
espiritual dos guerreiros e defendendo os fracos e os
oprimidos. Mas, em relação à jornada arquetípica do herói,
ela é uma mulher e, ao invés da passagem do orgulho para
compaixão, sua estória dramatiza a passagem dos
sentimentos de vingança e rivalidade para os de justiça e
companheirismo. Isto - acrescido ao fato de que as
heroínas são bem mais solidárias e menos competitivas
do que os heróis em geral - dá a série um tom especial.
Além do conteúdo feminista, o segredo do sucesso da
série está na releitura mitológica popular de diferentes
formas de espiritualidade (judaísmo, paganismo,
cristianismo, etc) e, principalmente, na crítica ao modelo
narrativo da jornada do herói em seus elementos
internos básicos: o narrador, os personagens e o
cenário. Disse 'elementos internos', porque
externamente há ainda o autor e o leitor, mediados pelo
narrador (dentro da narrativa).
O seriado de Xena quebra parcialmente com
todos esses conceitos. A direção dos episódios é rotativa,
sendo feita inclusive por alguns atores como Renee
O'Connor e Michael Hurst (que faz o personagem de
Iolaus na série de Hércules); além de que vários
personagens secundários (Joxer, Gabrielle, Autolycus)
são circunstancialmente colocados na posição de
protagonista em episódios isolados. Há também vários
expedientes criativos para descolar os personagens dos
seus papeis narrativos. A atriz Lucy Lawless interpreta outros
personagens além da protagonista Xena: a princesa Lea
e a impagável malandra Molly – que surgem em diferentes
momentos da saga; Renee O'Connor faz também
Esperança, a filha diabólica de Gabrielle, e outras
personagens; Joxer tem irmão gêmeo do mal e assim por
diante.
Vários episódios utilizam ainda o expediente
da 'troca de corpos' para radicalizar mais e também
'descolar' os atores dos seus personagens. Nos episódios
Intimate Stranger e Ten Little Warlords, Ares faz Xena e
Callisto trocarem de corpos – fazendo com que cada uma
se colocasse no lugar da outra; e levando a atriz Hudson
Leick ao papel de princesa guerreira e Lucy Lawless a
viver sua pior rival. Em Little Problems, Xena é colocada
no corpo da menina Dafne; em Sucession, Ares une
Xena e Gabrielle num único corpo. Joxer e Autolycus, (ou
melhor: os atores Bruce Campbel e Ted Raimi) também
interpretam - em momentos distintos e por motivos
diferentes - a princesa guerreira, personagem
protagonista da saga.
Porém, o mais sutil e interessante caso de troca
dos personagens nos papeis narrativos durante a saga é
a estória de Gabrielle. A ideia inicial dos produtores da
série era de que a personagem Gabrielle morreria no
segundo episódio, mas como o carisma de Renee
O'Connor conquistou o público, resolveram mantê-la. Na
primeira temporada, Gabrielle é coadjuvante: jovem,
tagarela e inocente demonstra sua inteligência e
diplomacia. No segundo ano, ela é uma meta narradora,
uma poetisa que escreve a história de Xena em
pergaminhos. Apesar de não lutar, prova seu valor ao
lado de Xena usando astúcia. No terceiro ano, surgem
atritos entre as duas heroínas e Gabrielle torna-se
autossuficiente nas lutas. Finalmente, no quinto e sexto
anos da série, Gabrielle é uma guerreira completa –
parceira e também protagonista.
É importante ressaltar que não se trata apenas
de uma coadjuvante (ou parceira) que passa ao papel de co-
protagonista, mas, sobretudo, a meta narradora que
ocupa o lugar do herói. No episódio The Titans, Gabrielle
lê um pergaminho mágico e ressuscita três titãs; em Athens
City Academy of the Performing Bards, participa de um
concurso de contar histórias; em The Quill is Mightier,
Afrodite enfeitiça um pergaminho de Gabrielle, fazendo
com que tudo que ela escreva vire realidade; The Play's
the Ting, Gabrielle dirige uma peça de teatro baseado nas
aventuras de Xena, refletindo metalinguisticamente o
seriado, em função de conciliar o gosto do público por sexo
e violência com as intenções éticas e estéticas dos
artistas. A dupla formada por Don Quixote e Sancho Pança,
criada por Miguel de Cervantes, é um modelo de pensar
criticamente a narrativa heroica, em que o protagonista,
idealista e sonhador, vive submerso no universo das
estórias (da cavalaria medieval) e o coadjuvante, sua
consciência crítica bem enraizada no mundo das
necessidades e na realidade material. A dupla de heroínas
formada por Gabrielle e Xena é a inversão deste modelo,
pois enquanto a guerreira é pragmática e realista, a
poetisa confunde constantemente a realidade com suas
narrativas. Aliás, essa inversão das perspectivas permite não
apenas que uma personagem aprenda com a outra
dentro da estória, mas, sobretudo, que haja também
um diálogo dinâmico e transformador entre quem
escreve a estória e quem protagoniza a narrativa.
Ou seja: a dupla Xena/Gabrielle é uma
reinterpretação do modelo reflexivo entre autor e
personagem, para pensar o papel do escritor na jornada
do herói no interior da narrativa.
De uma forma geral, o produtor Sami Raidi tenta
fazer com que seus personagens escrevam a própria
narrativa e a própria série problematiza essa pluralidade
relativa dos narradores em alguns episódios como If the
Shoe Fits... em que Xena, Gabrielle, Joxer e Afrodite
levam a princesa Aésia de volta para casa e contam
diferentes versões da estória de Cinderela, chamada de
Cirela.
Além de interagir com os deuses gregos (Ares,
Afrodite, Hades, etc), com Hércules e outros personagens
lendários da mitologia helênica (Ulisses, Helena de
Tróia, Prometeu), Xena reinterpreta narrativas de outras
culturas. Em The Rheingold, o guerreiro nórdico Beowulf
pede ajuda a Xena; em Giant Killer, Xena decide enfrentar
seu amigo Golias pra defender os israelitas de serem mortos
pelos filisteus; em Altared States, Xena salva o menino Icos
(em alusão a Issac) de ser sacrificado pelo pai Anteus
(nome dado a Jacó) e descobre que o mandante do
crime foi um deus único22.
Outra característica da série de Xena é que há
também muitas homenagens, citações e adaptações de
outras narrativas. O clássico ‘Sonhos de uma noite de
verão’, de Shakespeare é homenageado no episódio A
Comedy of Eros, em que Volúptas, filho do Cupido e Psiquê,

22 Mas, a releitura mítica mais ousada e de maior importância para a


narrativa de Xena, é a da história de Eli (ou Jesus Cristo). Inicialmente Eli (Tim
Omundson) é um místico essênio que as heroínas conhecem em
peregrinação para Índia, que prega a filosofia da não- violência e do
amor universal. E Gabrielle se converte a esses ideais. Ele reaparece em
Devi, episódio em que a poeta tem seu corpo possuído pelo espírito da
demônia Tataka, na Índia, e é exorcizada por Eli; e, em The Way, quando
Xena luta contra Indrejit, o mais poderoso de todos os demônios, que
raptou Gabrielle e Eli. No início da quinta temporada, em Fallen Angel,
as heroínas são ressuscitadas por Eli após uma batalha entre o céu e o
inferno. E, finalmente, em Motherhood, Eli aparece novamente,
quando concede a Xena o poder de matar os deuses do Olimpo.
rouba as flechas do pai e faz com que Xena se apaixone por
Draco, que se apaixona por Gabrielle que se apaixona por
Joxer. Ou no episódio The Furies, uma releitura da tragédia
Electra de Sófocles. O episódio A Solstice Carol é uma
parodia de Um Conto de Natal: Xena, Gabrielle e o fabricante
de brinquedos Sinticles se juntam e se disfarçam de três
Moiras para fazer o rei Sílvus não expulsar órfãos de um
orfanato. Não se trata apenas de recontar outras estórias
dentro da própria narrativa, Xena quer expor as estruturas
da narratividade em seu liquidificador de sentido. Há
episódios imitando (ou incorporando) as narrativas de
terror, de investigação policial e judicial de crime, uma
ópera rock, dois musicais no estilo teatral da Broadway e
até de ficção científica: no episódio Been There, Done
That, Xena quebra a cabeça para achar um jeito de quebrar o
encantamento que o Cupido fez, em um dia que está
sempre se repetindo. É uma homenagem às narrativas
de laço de recorrência temporal, em que o protagonista
vive várias vezes o mesmo dia até descobrir o que estava
acontecendo. A cada dia repetido, dependendo das
opções da protagonista, vários personagens morrem. Mas,
com o início do dia, todos voltam a viver sem se lembrar de
nada.
#3 Passeando pelo Inconsciente Coletivo
E além de desconstruir o papel tradicional do
narrador e dos personagens, recontando várias
narrativas diferentes com seu enquadramento feminista,
a saga da princesa guerreira também desconstrói a noção
de cenário, isto é, do espaço-tempo em que a ação
dramática se desenvolve. As estórias de Xena são fractais,
isto é, cada episódio da série contém elementos do
conjunto da saga vistos de um ponto específico, cada
estória é cheia de detalhes e sutilezas que adiantam e
explicam o que está por acontecer ou o que aconteceu em
outra estória, dentro de um gigantesco quebra-cabeça
temporal.
Assim, no primeiro capítulo, quando Xena volta
arrependida a sua aldeia natal, para pedir perdão a sua mãe
depois de muitos anos de massacres e guerras, é que
vamos saber como foi sua saída de Amphipolis. Ou no
episódio Death Mask, Xena encontra seu irmão mais velho
Toris para vingar a morte do seu irmão mais novo, Lyceus.
Ou ainda em Orphan of War, Xena revê seu filho Solan,
educado pelos centauros há dez. A cada novo episódio, o
passado sombrio de Xena vai sendo mostrado em
flashbacks. Ao mesmo tempo em que a narrativa
estrutura uma história progressiva de uma guerreira em
busca de redenção, ela também constrói uma história
regressiva de culpa e selvageria, anterior a conversão de
Xena. Essa narrativa dupla, regressiva/progressiva, leva a
construção de uma linha de tempo de dois sentidos,
com personagens, locais e épocas bastante
contraditórios. Um bom exemplo é o episódio Past
Imperfect, enquanto revive suas lembranças da época de
sua gravidez até a morte de Bórias e nascimento de Solan,
Xena enfrenta sua ex-serva, Satrina, que está atacando
cidades no presente com as mesmas técnicas usadas por ela
para destruir Corinto no passado.
Na verdade, pode-se subdividir a saga completa
da princesa guerreira em ciclos geo-mitológicos:
romano; chinês; germânico; japonês. Xena visita esses
lugares pelo menos duas vezes, na época de guerreira cruel e
depois se redimindo do seu passado. No ciclo chinês, a
guerreira paga sua dívida com sua mentora espiritual Lao
Ma; no ciclo germânico, Xena tem que voltar para ajustar
contas com Odin, Brunilda e Grendel; no ciclo japonês,
Xena morre decapitada por samurais em virtude de ter
provocado um incêndio no passado.
Compreenda-se assim porque Xena desperta tanta
revolta dos que prezam pelo rigor histórico e gostam da
verossimilhança narrativa. Xena é um personagem fictício
que interage com personagens míticos e históricos muito
distantes cronologicamente, como, por exemplo, com Julio
Cesar e Tibério. Existem inúmeros absurdos de
continuidade histórica se formos levar em conta os
registros que temos de vários acontecimentos reais
narrados pelo seriado. Na verdade, a proposta da série é
que Xena e Gabrielle não viajam por regiões históricas
da antiguidade, mas sim através de diferentes mitologias
do inconsciente coletivo universal. Sua viagem sempre
nos remete ao resgate do passado através da realização
do presente.
Também há deslocamentos no tempo no futuro.
Aliás, Uberfic é o termo usado (criado pelo fã clube de
Xena na Internet) para designar as estórias em que os
personagens são mostrados em alguns episódios no
futuro, geralmente reencarnados em outros corpos,
tomando logo depois conhecimento sobre suas vidas
passadas. Esse tipo recurso foi usado no episódio The
Xena Scrolls, na segunda temporada: na Macedônia, em
1940, as antropólogas Melinda Pappas e Janice Covington,
reencarnações de Xena e Gabrielle, procuram os
pergaminhos de Amphipolis, que falam das aventuras
de Xena. Em Betwen the Lines, Xena e Gabrielle são
enviadas para o futuro para combater a reencarnação da
feiticeira Alti. Em Deja Vu All Over Again, quando, nos
tempos atuais, Harry, Anne e Matie, as reencarnações de
Xena, Gabrielle e Joxer fazem terapia de regressão de vidas
passadas. Xena e Gabrielle são entrevistadas, na
atualidade, por um repórter de TV em You Are There23.
Além dessa construção simultânea da narrativa
no tempo (no passado, no presente e no futuro), Xena e
Gabrielle também viajam, na sua revisão transcultural
das mitologias, em outras dimensões do espaço-tempo:
em Dreamworker, Gabrielle é raptada pelos sacerdotes de
Morpheus e Xena entra no mundo de sonhos para resgatá-la;

23 Há ainda dois episódios dedicados à atualidade: Send in the Clones, em


que Xena e Gabrielle são clonadas por três fãs obcecados pela série; e Soul
Possession, apresenta uma solução budista (troca de corpos) para os
conflitos kármicos dos três principais personagens da série: o espírito
de Xena reencarnou no corpo do ator Ted Raimi e o espírito do
paspalhão Joxer no corpo da atriz Lucy Lawless. Assim, a união entre as
almas gêmeas de Xena e Gabrielle se tornaria ‘heterossexual’ – o que
desagradou a muitos fãs. Nesses episódios, os artistas levam a sátira crítica
de si mesmo na série às suas últimas consequências. A questão da
importância dada pelos fãs clubes a questão do homossexualismo das
protagonistas é problematizada no interior da série. Além do público,
os produtores também são meta narrados: há uma cena hilária com os
irmãos Raimi sobre a possibilidade de realizar - a partir dos
pergaminhos perdidos de Xena (encontrados pelas reencarnações
trocadas dos antigos heróis) – um seriado criativo de baixo custo para TV
americana “com locações e elenco da Nova Zelândia”.
em The Bitter Suite, depois de mortas, Xena e Gabrielle vão
para o reino Ilúsia onde fazem as pazes; em Paradise Found,
Xena e Gabrielle caem num buraco e chegam em um
paraíso, mas é governado por Aidem, um bruxo que se
alimenta da bondade alheia.
Entre os ciclos regressivos envolvendo viagens
aos mundos espirituais, os episódios que contam a estória
da feiticeira siberiana Alti (Claire Stansfield) ocupam um
lugar especial. Gabrielle morre (pela primeira vez) no
final da terceira temporada da série. No primeiro
episódio do 4ºano, Adventures in the Sin Trade, para fazer
um último contato com ela, Xena resolve ir para o lugar “em
que as amazonas vão quando morrem”, mas descobre
que Alti, sua antiga aliada e uma poderosa xamã,
aprisionou as almas das antigas amazonas em uma
espécie de ‘limbo’. Xena, então, recorda de seu acordo com
Alti e de sua traição à rainha amazona Cyane. Xena, mais uma
vez, resgata sua dívida com o passado, libertando Gabrielle e
as amazonas, mas irá despertar a irá da feiticeira, que irá
persegui-la daí em diante, durante todo seriado, em várias
locais e épocas. Portanto, a descontinuidade narrativa dos
episódios da saga problematiza não apenas uma revisão
feminista de várias mitologias tradicionais, mas,
sobretudo, contar uma estória que fosse auto meta
narrativa, seja através da relação autor/ator
representada pela dupla de protagonistas, seja através
de cenas de metalinguagem e da explicitação dos vários
aspectos geralmente invisíveis nas séries de TV, como o
papel dos produtores, o sucesso da série, o
homossexualismo dos personagens, os fãs clubes, etc.
#4 O amor romântico
Atualmente, graças em parte à ação combinada
das mídias, existe uma fusão de gêneros narrativos. Os
filmes mais recentes, principalmente os baseados na
linguagem dos mangás e animês japoneses, são
simultaneamente de terror, ficção científica, romance,
suspense, humor e principalmente: hoje a maioria das
estórias que conhecemos, na mídia e fora dela, tem como
protagonista um casal que luta pelo seu amor contra as
mais diferentes situações. E mesmo as narrativas que não
são abertamente ‘de amor’, mas ‘de aventura, terror ou
suspense’, têm algum ingrediente romântico no enredo.
No entanto, no livro Amor: do mito ao
mercado (LÁZARO, 1996) fica claro que o amor
romântico, tal qual nos o conhecemos, é uma construção
histórica bastante recente. A Antiguidade clássica rejeita
a paixão amorosa e critica os indivíduos livres que são
escravizados por suas paixões. No Banquete de Platão, o
verdadeiro Eros resulta do controle do desejo, o amor
filosófico ritualizado pela virtude é um o caminho para
reconduzir o homem à plenitude cósmica. A relação
erótica é um método de conhecimento da verdade. Só
a verdade satisfaz o desejo e o amor é um meio para a
alma unir o sensível e o inteligível. O cristianismo,
principalmente com São Paulo, distanciará ainda mais o
amor da terra. A noção de “amor ágape” - amor
desinteressado e doador, afastado da sensualidade e da paixão
- passará a ocupar um lugar central na moral e na ética do
Ocidente. Na idade média, no entanto, como aponta
Lázaro, esse amor espiritualizado reencarnará nas
mulheres (ou na mulher-símbolo, no singular, objeto de
desejo inalcançável) no ideal do amor cortês. O amor
trovadoresco formou um sistema de regras de conduta
para fundamentar a organização familiar e, ao mesmo
tempo, aprofundar a subjetivação dos indivíduos. Por um
lado, este novo amor realça os valores cavalheirescos (a
coragem, o serviço, a submissão e o controle do desejo) e,
por outro lado, oferece à juventude um desejo
espiritualizado, uma reverência quase religiosa que o
amante sente ao menor pensamento da mulher a que ama;
o uso da delicadeza, a sofisticação da conduta amorosa, um
sentimento elevado.
O século XII é marcado por uma grande
mudança em vários aspectos da Idade Média, a partir
daí observa-se um movimento intrincado e complexo de
aproximação entre casamento e amor, que se desenvolverá
através do período medieval até sua plena ascensão na
Idade Moderna. O casamento era uma instituição que
visava apenas à estabilidade da sociedade, servindo apenas
para a reprodução e união de riquezas, dando
continuidade à estrutura feudal. A partir do momento
em que o amor cortês aparece associado ao casamento, a
reprodução e a união de riquezas passam a um segundo
plano, com a afetividade individual dos amantes
ameaçando toda essa estrutura. E, neste contexto histórico,
surgiram as estórias de amor recíproco trágico, as primeiras
narrativas sobre o amor apaixonado entre homens e
mulheres: Abelardo e Heloísa, Romeu e Julieta e Tristão
e Isolda; a estória mais antiga e pode ter dado origem às
outras, posteriores. De origem medieval, a lenda foi
contada e recontada em muitas diferentes versões ao
longo dos séculos. Na lenda de Tristão e Isolda o amor pelo
amante (a afetividade) é colocado acima do amor pelo
marido (e pelos laços sociais) pela primeira vez24.

24 Em outra ocasião (GOMES, 2009), analisamos o filme Romance de Guel


Tristão, cavaleiro a serviço de seu tio, o rei Marc da
Cornualha, viaja à Irlanda para trazer a bela princesa Isolda
(ou Iseu) para se casar com seu tio. Durante a viagem de
volta à Grã-Bretanha, os dois se apaixonam
perdidamente. Após várias tentativas de separação, no final
da estória, Tristão morre e Isolda, ao achá-lo morto,
também. No século XV, a narrativa passou a ser parte das
estórias sobre o rei Arthur e nos séculos XVIII e XIX, o rei
Marc foi substituído por um vilão, que tenta impedir o
amor do casal apaixonado, e o desfecho final deixando de
ser trágico com a união dos amantes.
Aos poucos, as narrativas de amor romântico
foram se fundindo com as narrativas de aventuras
mitológicas e, mais recentemente, com outros gêneros
narrativos (terror, humor, ficção científica, drama, etc).
Esse processo levou a uma padronização dos triângulos
amorosos nas narrativas midiáticas contemporâneas, em
que o elemento feminino se tornou um presente para o
herói vitorioso no final da estória.

Arraes, uma releitura da estória de Tristão e Isolda. O filme não faz apenas
mais uma nova leitura da lenda dos amantes medievais, ele utiliza a
narrativa para um exercício de Metateatro em relação à linguagem teatral
no palco, na TV,nocinema e da vida pessoal dos atores.
No caso de Xena e Gabrielle, essa 'edipização' das
narrativas é bastante criticada. Não há triângulo amoroso,
seja com Ares (o deus da guerra), seja entre outras
mulheres que surgem na narrativa. E o que realmente
importa não é se elas são lésbicas ou não, mas sim a quebra
deste paradigma narrativo de casamento no final da
Jornada do Herói patriarcal. Aliás, não importa se o amor é
platônico ou não, não importa se elas se beijam ou se
reencarnam com osexotrocado;oimportanteé que elas se
amam e que “qualquer forma de amor vale a pena” – eis a
mensagem essencial do seriado.
#5 O neobarroco
A integração de diferentes formas de ver e a
representação da realidade em mosaico de universos, com
uma variedade de espaços- tempo descontínuos de
diferentes durações e variadas intensidades em um único
quadro simultâneo, além de caracterizar o movimento
estético do neobarroco também podem ser identificados nos
campos da física quântica, da biologia do
conhecimento e de sínteses epistemológicas
contemporâneas importantes como a teoria da
complexidade.
Visto como um sistema de interpretação do
mundo, a estética neobarroca tem uma perspectiva que
vê a realidade como uma sobreposição de universos em
camadas (e não o universo como uma síntese das
realidades) - o que lhe permite assimilar e integrar em sua
forma de representar, outras formas de ver como uma de
suas camadas, absorvendo hermeneuticamente em si todas
as críticas e oposições.
O romance gráfico Sandman, o mestre dos sonhos, de
Neil Gaiman25, por exemplo, tem vários aspectos em
comum com o seriado de TV Xena, que podem ser vistos
como parâmetros que caracterizam o neobarroco: a
multiplicidade dos universos, a ausência de um
antagonista evidente, a morte como personagem e,
principalmente, a luta do protagonista com as estruturas
narrativas do tempo.

25 Neil Gaiman, para quem não conhece , é um dos mais importantes


escritores contemporâneos, com vários livros (O guia do mochileiro
das galáxias, Deuses Americanos, Os filhos de Anasi, Fragile Things, entre
outros), filmes (Stardust, A lenda de Beowulf) e principalmente histórias
em quadrinhos, ou melhor, grafic novels: Violent Cases, Orquídea Negra,
Oslivros da magia, A Paixão de Arlequim, A última tentação, 1602, Eternos e a
mega série Sandman, sua obra prima, formada por quase uma centena
de estórias, organizadas em dez arcos narrativos, contando a epopeia
trágica de Morpheus, o mestre dos sonhos.
A saga de Sandman começa quando o bruxo Roderick
Burgness tenta invocar e aprisionar a Morte em ritual
mágico para conquistar a imortalidade, e captura seu
irmão mais moço, o Sonho, provocando o
desencantamento do universo.
Várias estórias paralelas são narradas simultaneamente.
Muitos planos universos relativos em um único plano de
imanência absoluta. Como “um cozinheiro demente
fazendo um bolo de casamento”, diz clive Barken
(GAIMAN, 2006a, p.7) “construindo camada por camada e
escondendo todo tipo de sabores doces e azedos na
mistura”. E nessa mistura, entram várias doses de humor
e de terror; de referências filosóficas, literárias e
mitológicas; de citações do cinema, da música pop e do
próprio universo das histórias em quadrinhos.
As estórias de Sandman também são fractais, isto é, cada
parte série de estórias contém o conjunto da saga visto
de um ponto específico, cada estória é cheia de detalhes e
sutilezas que adiantam e explicam o que está por acontecer
ou o que aconteceu em outra estória, dentro de um
gigantesco quebra-cabeça temporal.
Ou como diz Frank Mc Connell, em Entes
Queridos:
As primeiras histórias de
Sandman, aproximadamente,
por mais brilhantes que fossem,
pareciam irregulares: obras de
gênio, mas carentes de um
centro definido, sem direção
definida. Até que, a partir de
Vidas Breves, a coisa toda
passou a ganhar velocidade e
forma impressionantes: os
desvios e digressões das primeiras
histórias começam a se unir
num único e atordoante
movimento final: não é
inadequado fazer comparações
com a estrutura de uma
sinfonia. (2008, p. 09)
Há muitas intercessões pontuais em comum entre
as sagas do Mestre dos Sonhos e da Princesa Guerreira:
personagens históricos e mitológicos em comum às duas
epopeias, como Augusto César e Odin; estórias que ambos
recontam dentro de sua narrativa, como Sonhos de uma
noite de verão de Shakespeare, entre outras; e lugares em
comum que tanto Xena como Sandman visitaram em sua
jornada de releitura mítica.
No inferno, o Mestre dos Sonhos já esteve
várias vezes. No início da saga, Sandman vai até o inferno
para resgatar seu Elmo, que havia sido roubado pelo bruxo
que o tinha aprisionado. Em seguida, ele volta ao inferno
para resgatar um antigo amor condenado ao sofrimento
eterno; mas, o inferno está vazio. Ou quase: encontra lúcifer
colocando os últimos demônios para fora e fechando
todas as portas. Lúcifer, então,pede a Morpheus quefique
com a chave do inferno. Com inferno fechado, os
demônios passam a vagar pelas outras dimensões e os
mortos voltam para terra, causando um grande transtorno.
Também no coração do sonhar, o palácio do mestre dos
sonhos, chegam delegações de diferentes dimensões e
reivindicam a posse do inferno. Morpheus entrega então
a chave do Inferno aos arcanjos Duma e Remiel. O inferno
sob nova administração de passa por profundas
mudanças. Acabaram os tormentos sem sentido, as
dores sem propósito. O sofrimento não é para punir,
mas para corrigir.
Algo semelhante transcorre com Xena. Ela mata
Mefistófelis e, paraimpedir osmortos vaguem pelaterra, se
torna ‘Rainha do Inferno’ (The Haunting of Amphipolis) e,
em seguida em Heart of Darkness, seduz o arcanjo Lúcifer,
fazendo ele cometer os sete pecados capitais para que ele
assuma o posto de ‘Rei do Inferno’ no lugar dela. Xena
também problematiza a mudança do regime moral da
culpa do Inferno cristão (na série existem outros infernos,
como o Tártaro governado por Hades) para um regime
mais corretivo e pedagógico.
Além de pôr múltiplos universos em uma única
narrativa e frisar a mudança no regime de sofrimento, há
inúmeras intercessões temáticas entre as estórias de
Sandman e Xena. Duas, no entanto, nos chamam mais a
atenção: a conversão dos antagonistas em ajudantes e o
modo como a morte é representada.
#6 A morte como personagem e como transformação
Nas lendas tradicionais, o herói desafia seu
destino e, após várias provas e aventuras, conquista a
imortalidade. Mas, em no seriado de Xena e na série de
Sandman, os protagonistas preferem morrer sem medo.
Callisto morre cinco vezes, Gabrielle, três vezes; e Xena,
quatro – sem contar as diferentes reencarnações. No
episódio Death in Chains, O rei Sísifos aprisiona Celeste, a
deusa-morte, tirando a morte da humanidade. E Xena
libertar a morte, fazendo com que a humanidade retorne à
sua condição efêmera. É que na vida atual, que essas estórias
pós-modernas representam, é preciso sempre ‘estar no
limite’. A morte como risco permanente é uma nova
forma de produção de sentido existencial. Como uma
presença constante, antes experiência exclusiva de poucos
místicos, se tornou agora, através da mídia, um modo de
sujeição das massas na cultura contemporânea. E a vida
se tornou fragmentada em vários micro-mortes
simuladas, em vários choques existenciais do corpo em
risco, em vários momentos finais antecipados de um único
tempo irreversível. E as narrativas atuais apenas
reproduzem essa realidade.
Na saga do Mestre dos Sonhos, a Morte
também é um personagem, é a irmã mais velha do Sonho.
Ambos são perpétuos e tem outros irmãos: Destino,
Desejo, Destruição, Delírio e Desespero. Os perpétuos não
são deuses, mas aspectos da alma humana. Gaiman faz não
apenas uma revisão mitológica (vários deuses de
diferentes panteões visitam suas estórias), mas procede
a uma atualização filosófica e teológica de nossos
símbolos, colocando-os dentro e abaixo dessas entidades
imanentes ao viver humano. A perpétua Morte, devido
ao seu apelo e carisma inegáveis, ganhou suas próprias
séries estórias26.

26 Morte – a festa, roteirizado e desenhado por Jill Thompson na linguagem


Questão da ética da não-violência também é
uma constante nas duas sagas. Em Xena, ela se coloca nos
episódios Crusader e The Convert, quando as heroínas
encontram Najara, uma guerreira que diz lutar para o bem,
mas na verdade é uma fanática religiosa, matando os que
não querem seguir o (seu) caminho da luz. O encontro
com a guerreira fanática serviu para definição de que,
apesar de seguirem juntas, as heroínas trilham caminhos
espirituais diferentes: Xena segue o Caminho do
Guerreiro, orientada por Krisna; Gabrielle segue o
Caminho do Amor, pregado por Eli.
Eis aqui um ponto importante: o amor entre
mulheres que seguem caminhos diferentes e se respeitam
(seja este amor sexual ou não) é que é o grande tema e
diferencial da série Xena em relação às estórias de
guerreiros. A fraternidade e amor entre homens seguem
outros parâmetros (é regrado e competitivo) e as mulheres
geralmente não possuem histórias que transcendam a
rivalidade feminina e que estabeleça parâmetros de

dos Mangás. (Conrad Editora, 2004); Morte – o preço da vida, (Ed. Globo,
1994); e Morte – o grande momento da vida, Ed. Abril, 1992. Os dois
últimos foram relançados pela Vertigo em 2006, em um único livro de
luxo dentro da coleção completa de Sandman.
comportamento solidário com perspectivas diferentes.
Xena é uma guerreira que é inimiga de si mesma: os
outros são adversários que podem se converter em aliados,
são obstáculos para o seu desenvolvimento militar e
espiritual. É claro que protagonista tem inimigos
irreconciliáveis que representaram o mal absoluto (como
a feiticeira Alti; o deus Dahak; Esperança, a filha de
Gabrielle), mas, durante todo seriado, a princesa
guerreira luta para converter seus adversários em
aliados, uma vez que ela mesma era uma ‘convertida’. Isto
é particularmente visível nos episódios que contam
com a participação da guerreira Callisto (Hudson Leick).
Em seus tempos de vilã, Xena saqueou e destruiu a cidade
de Cirra, matando a família de uma menina chamada
Callisto, que, nutrindo um ódio mortal pela princesa
guerreira, passou a vida toda buscando se vingar. A vida
toda, não. As várias vidas, pois Xena a mata várias vezes e ela
sempre retorna, cada vez maiscruel.
Porém, no episódio Fallen Angel, no início da
quinta temporada, Callisto se redimi e se torna um anjo
celestial depois que Xena a salva do inferno. E nos
capítulos seguintes, o anjo Callisto reencarna como Eva,
filha de Xena (não se sabe se com Lúcifer ou com o arcanjo
Miguel). Eva foi criada por Augusto César adotando o nome
de Lívia e se tornando uma guerreira romana
sanguinária, sendo novamente convertida por Eli ao
cristianismo e que tendo um papel importante no
crepúsculo dos deuses gregos no final da série.
Talvez a inversão dos papeis de protagonista e
antagonista, transformando vilões do passado em heróis
do presente, seja uma características das narrativas mais
recentes, que desejam representar um mundo mais
complexo feito por pessoas reais, que não são
inteiramente 'boas', nem 'más'. No universo das antigas
narrativas, existiam heróis e vilões. Agora, as narrativas
pós-modernas desejam mostrar que os conflitos são, na
sua maioria, mal entendidos, ruídos, jogos projetivos
entre o eu e o outro, dualidades neobarrocas do mesmo
mosaico.
Em Sandman, Desejo e Lúcifer são adversários de
Sonho, mas agem como protagonistas de suas histórias e
não inimigos a serem destruídos ou vencidos. Como
reviravolta narrativa, a desconstrução dos antagonistas é
visível no arco Um Jogo de Você (GAIMAN, 2006b). Um jogo
de você é um jogo de identidade construída pelo outro.
Essa é a ideia chave que perpassa todo trabalho de uma
forma sutil e obsessiva, com todos os personagens. O
antagonista deste arco narrativo é o Cuco dos Sonhos. O
cuco é um pássaro que coloca seus ovos em ninhos de
outras espécies, fazendo com seus filhotes se alimentem dos
filhotes de seus hospedeiros. Na estória, há um (ovo de) cuco
no sonho de Barbie e agora ele cresceu, se tornou sua
sósia, e quer invadir outros sonhos para colocar seus ovos.
Boa parte da estória trata da luta entre Barbie e o Cuco, ou
entre o eu e o outro. Morpheus não considera o Cuco um
vilão, apenas um ser que agiu segundo sua natureza. O mal
encarnado no antagonista é interpretado como uma
necessidade de sobrevivência do Outro (do Cuco). Já com
Thessaly, a bruxa que tentava ajudar Barbie contra a criatura,
o Mestre dos Sonhos fica bastante chateado, pois ela, ao
invocar a lua para penetrar no sonho da menina, coloca
em risco todo ordenamento entre a realidade e o sonhar.
Thessaly, ou melhor, as três bruxas27 (uma
jovem, outra de meia-idade e uma idosa) - as Moiras,
representando o passado, o presente e o futuro - passam a
desempenhar o papel de antagonistas do herói na saga do
mestre dos sonhos. As três Moiras representam a
existência inflexível do tempo acima e além da morte e
do destino – quase fora da narrativa. Na narrativa, Destino

27 As três bruxas apareceram nos quadrinhos da DC comics nos anos 70 na


revista de terror The Witching Hour e foram reciclados por Gaiman.
e Morte são perpétuos, irmãos do Sonho, protagonista
da estória. E os perpétuos não são deuses, mas aspectos
da alma humana.
As três bruxas surgem várias vezes nas estórias de
Sandman na forma de oráculo para diferentes
personagens e, no penúltimo arco, Entes Queridos (2008)
se colocam acima dos perpétuos e representam o despertar
da consciência do tempo no sonhar. A partir deste ponto da
narrativa, elas surgem como as verdadeiras antagonistas de
Morpheus. Neste arco, várias das estórias iniciadas
paralelamente convergem e se resolvem na grande
narrativa da saga. Vários dos sub vilões ressurgem como
instrumentos das Moiras.
Eis, então, as características neobarrocas das
estórias de Xena e de Sandman: a realidade vista como
multiplicidade virtual dentro de um único plano de
imanência, o mal entendido como um ruído subjetivo
que pode ser revertido pela compreensão do outro e,
principalmente, como veremos aseguir,a tríplice estrutura
do tempo – as moiras - como antagonista principal da
narrativa.
#7 As moiras, estruturas narrativas do tempo
O fundamental é que Xena é uma meta narrativa,
um conjunto de narrativas dentro de narrativa aberta a
interferências. Nas Mil e Uma Noites, as estórias se contem
umas às outras, mas estão contidas pela ‘história real’ de
Princesa Sherazadi. Em Sandman, há uma narrativa
“sinfônica”, com uma sucessão de desfechos de várias
narrativas iniciais. Na estória de Xena, a narrativa é ainda
mais circular. Seus episódios são descontínuos e podem ser
colocados em qualquer ordem, fazendo com que a narrativa
geral se mantenha. Não há começo, não há clímax, não há
desfecho da narrativa. É a total desconstrução da jornada
do herói patriarcal e de seus modelos.
Porém, a grande semelhança entre Xena e
Sandman está no papel desempenhado pelas Três Moiras,
que representam o passado, o presente e o futuro. As
origens do mito, no entanto, diferem um pouco destas
versões atuais. Em Macbeth, Shakespeare faz uma
sobreposição entre dois fragmentos simbólicos distintos
da mitologia grega, associando simultaneamente as três
bruxas profetisas da sua estória às Moiras e à deusa Hecate.
E Gaiman e os roteiristas de Xena compraram
essa sobreposição dos dois mitos sem saber de sua diferença.
As moiras são, na mitologia grega, as três irmãs que
determinam o destino tanto dos deuses quanto dos seres
humanos: Cloto (que significa ‘fiar’) que segura o fuso e tece
o fio da vida; Láquesis (ou ‘sortear’) que puxa e enrola o
fio tecido; Átropos (‘afastar’) que corta o fio da vida.
O tear é a Roda da Fortuna: as voltas da roda
posicionam os fios ora no topo, ora no fundo, explicando
assim os períodos de azar ou sorte de todos. Elas não
podem ser manipuladas e nada se pode fazer para detê-las
ou ganhar-lhes o favor. Já a deusa Hecate é uma divindade
tríplice lunar (representa a lua nova, a minguante e a
crescente), filha dos titãs Perses e Astéria, irmã dos gêmeos
Ártemis (a lua cheia) e Apolo (o sol). Acreditava-se que, nas
noites de lua nova, ela aparecia com sua horrível matilha
de cachorros fantasmas diante dos viajantes nas
encruzilhadas. Deusa da magia e da noite, Hecate era
representada com um corpo e três cabeças, usando uma
tiara com o crescente lunar, com tochas nas mãos e
serpentes enroladas em seu pescoço. Os marinheiros
consideravam-na sua padroeira e lhe rogavam boas
viagens. Hecate reinava sobre três domínios: lunar,
infernal e marinho.
Os dois mitos, o das Moiras e da tríplice Hecate,
chegaram aos nossos dias associados. E esse novo mito
composto emerge como o antagonista estrutural do herói
narrativo, o protagonista que luta contra as estruturas
narrativas do tempo. E, através, dessas estruturas
vislumbramos o sagrado na narrativa. A narrativa pós-
moderna procura um narrador participante da própria
narrativa. E as moiras são as únicas podem, acima dos
deuses e de outras entidades, estar dentro e fora da
narrativa, confrontando um protagonista que transforma
seus inimigos em aliados e tem a morte como
companheira.
As moiras também representam as diferentes
dimensões de ‘efeito de sentido’ que as narrativas têm
sobre seus leitores. As narrativas têm uma dimensão
emocional (causam alegria, medo, raiva, amor) que
funciona a partir da noção de pertencimento territorial,
da ampliação e/ou reafirmação da identidade étnica.
Essa dimensão corresponde à bruxa do presente.
Também têm uma dimensão psicológica em que nossa
mente associa e compara as estórias simbólicas à nossa
história biográfica, representando a bruxa do passado.
E as narrativas possuem ainda uma dimensão
sagrada em que nosso espírito sonha seus destinos – é a
bruxa do futuro. Além das emoções e das tradições, essa é a
dimensão sagrada das narrativas que, através da imaginação
individual, nos faz sonhar e reavaliar a vida. Para Bystrina, a
arte é “uma mensagem que comunica a si mesma, que tem
por referência principal sua própria estrutura”. (1995, 24)
Baseado nisso, pode-se dizer que as moiras
representam os três níveis inter-relacionados de
codificação da linguagem: a) a mídia primária (processos
vitais de câmbio informacional); b) a mídia secundária
(um sistema institucional de cognição coletiva); c) a mídia
terciária (a “segunda realidade” para perpetuar sonhos
para futuras gerações). As três Moiras representam a
existência inflexível do tempo acima e além da morte e do
destino – quase fora da narrativa. E, essa tripla estrutura –
a memória, a percepção e a imaginação - é o
antagonista que enquadra o anti-herói pós-moderno
(protagonista/narrador) em sua trágica narrativa. As
moiras são as Tecelãs da Intriga (GOMES, 2012).
# 8 Heroína transmidiática
Outro aspecto pioneiro, importante para
ressaltar do seriado da princesa guerreira é seu caráter
transmidiático. O termo ‘narrativa transmidiática’ foi
elaborado por Henry Jenkins (2008), levando em conta
três elementos: a) a participação da audiência na
narrativa; b) a sugestão de que o universo ficcional é uma
realidade; c) a presença dos principais personagens da
narrativa em diferentes suportes.
Segundo Jenkins, desde meados dos anos 90 já
é possível identificar produções de narrativas
transmidiáticas na indústria de entretenimento norte-
americana. Geralmente, a história é introduzida por uma
mídia (um filme, por exemplo) e incrementada através
de outras (séries de TV, sites com diversas funções,
blogs, games, quadrinhos, animações, romances),
ampliando seu desenvolvimento narrativo e expandindo
seu universo, permitindo não apenas a criação de novos
conflitos, novas estórias e personagens, como também
novas maneiras de se consumir e interagir com esse
universo com a participação interativa do público através
de blogs, sites, etc.
Matrix (franquia que, além da trilogia do
cinema, inclui também animações, estórias em
quadrinhos); A bruxa de Blair (vídeo imitando uma
gravação caseira associada a documentários falsos de
modo a construir um universo ficcional aparentemente
verdadeiro); e Lost, que utilizou vários recursos: mini
vídeos para celular com estórias rápidas que não passam
na TV, perfis dos personagens na internet, podcasts
(arquivos de áudio) semanais discutindo os episódios e
entrevistando os atores, diretores, produtores e
roteiristas da série, a lostpédia (uma enciclopédia wiki
criada por fãs), e um site falso da empresa aérea
Oceanic Airlines, supostamente responsável pelo
desaparecimento dos personagens após um acidente.
Assim, não se trata apenas da narrativa literária
adaptada em outros suportes ou de enfatizar seus
personagens (como na TV), mas sim de criar e gerir um
universo de várias estórias em que diversos personagens
interagem segundo as regras próprias do universo, através de
livros, filmes, quadrinhos, programas de TV, sites de internet,
games.
E seriado Xena, a princesa guerreira, foi um dos
pioneiros nessa tendência de transmidiatização atual,
principalmente no que diz respeito a produção de outras
estórias do universo narrativo por fãs em outras mídias:
quadrinhos, literatura, figurino, performances, fãs clubes,
etc. Também é importante ressaltar que essa
transmidiatização foi espontânea e inesperada, em
virtude do conteúdo da narrativa e não do planejamento da
utilização de recursos tecnológicos interativos.
#9 A Jornada do anti-herói
Se nos perguntarmos se Xena atende aos esquemas
narrativos das jornadas do herói ou da heroína, chegaremos
facilmente a resposta que não. O contrário: Xena é
carnavalização feminista desses esquemas, que devora tudo
em sua festa: outras estórias, personagens reais e
fictícios, universos mitológicos, gêneros literários ... Como
protagonista, Xena pode ser classificada como uma 'anti-
heroína', embora sem vulnerabilidade cômica
característica da maioria dos anti-heróis. Ela se assemelha
aos protagonistas trágicos, porque desafia os deuses (e o
mundo masculino), sofrendo um destino de sofrimento
e expiação. Talvez como todas as mulheres.
Por outro lado, Xena conquista o objetivo de
todos os heróis épicos, encontra a imortalidade do amor
verdadeiro. E um amor em que o par romântico, não é um
mero objeto de desejo, mas sim outra protagonista.
Lost Girls – Um
discurso erótico
feminino?28
O presente artigo tem por
objetivo estudar a
possibilidade de um
discurso erótico feminino,
através da análise
interpretativa da História em
Quadrinhos Lost Girls
(2007), escrita por Alan
Moore e ilustrada por
Melinda Gebbie. Através da
metodologia hermenêutica
narrativa, o texto discute
ainda o conceito de
erotismo em Bataille e
Pasolini, a representação do feminino no universo das HQs e faz uma análise
discursiva e semiótica dos elementos simbólicos da narrativa.

Um objeto erótico!
Desenhada por Melinda Gebbie (atual esposa do
roteirista Alan Moore) em um estilo Art Noveau
romântico, a série Lost Girls (2007) conta o inusitado

28Publicado por Nona Arte: Revista Brasileira de Pesquisas em Histórias em


Quadrinhos. v.3, n.1 p.35-58, 2014.
encontro de três conhecidas personagens femininas –
Wendy (Potter), de Peter Pan; Alice (Lady Fairchild), de Alice
no País das Maravilhas; e Dorothy (Srta. Gale), de O Mágico
de Oz - todas adultas, mas com idades diferentes, em um
hotel austríaco, no início da 1ª Guerra Mundial. Lá, elas
confessam entre si as suas preferências e vivências
sexuais em uma história cheia de cenas fortes com pedofilia
e fetichismo. O lançamento da obra nos Estados Unidos
foi alvo dos críticos mais radicais e moralistas por causa
do conteúdo sexual da história, envolvendo personagens
de livros infantis e até mesmo alguns lojistas recusaram-se
arevendê-la.
Os três livros de luxo (a narrativa não foi
publicada em forma de revistas) formam um objeto erótico
em si - que, além de ter a mesma utilidade da literatura do
gênero, - tem também personagens complexos,
desenhos artísticos, texto filosófico em que dialoga com as
ideias de Lacan (1966) e Bataille (1988). O próprio
Moore, no documentário The Mindscape of Alan Moore
(2005), afirma que não há distinção entre erotismo e
pornografia e que sua intenção com Lost Girls foi escrever
uma narrativa erótica-pornográfica inteligente em que o
aspecto sexual fosse acompanhado de elementos de outros
gêneros narrativos.
Porém, a arte de Melinda Gebbies distanciou
muito Lost Girls dos quadrinhos pornográficos clássicos -
como Guido Crepax (2007) e Milo Manara (2004, 2006,
2008) – e acrescentou vários elementos simbólicos do
universo erótico feminino.
Em Lost Girls, tudo é simétrico e regular (cada
volume tem dez capítulos e cada capítulo tem oito
páginas). A regularidade formal, no entanto, apenas
enquadra o transbordamento erótico, um crescimento
gradativo da obscenidade, em que novos elementos
pervertidos e depravados são inseridos progressivamente,
sem pressa, obedecendo a um ritmo lento e fatal, a uma
cadência calma e inevitável. Como no Bolero de Ravel,
ou melhor, como na Sagração da Primavera de
Stravinsky, explicitamente homenageada no capítulo X.
No primeiro volume da série, Meninas
Crescidas, as protagonistas se conhecem no hotel: Lady
Alice Fairchild, aristocrata inglesa, escritora, rica, lésbica e
viciada em ópio; Srta. Dorothy Gale, jovem norte-
americana, criada em uma fazenda no interior do Kansas; e a
Sra. Wendy Potter, dona de casa, acompanhada de seu
marido, um enfadonho engenheiro naval. Após vários
jogos de sedução, as protagonistas contam, para se
excitar mutuamente, como foram suas primeiras
experiências sexuais. O primeiro livro chega ao ápice com o
balé de Stravinsky. Nos livros seguintes, as narrativas
sobre o passado das protagonistas continuam e se
alternam – seguindo o mesmo padrão crescente e
gradativo.
Após ser molestada por um amigo de seu pai (o
coelho), Alice vai para um orfanato feminino, onde
forma um harém (O Jardim de Flores Vivas) e é escolhida
para adoção pela Sra. Redman (a rainha de copas), que a
vicia em ópio e a prostitui de diferentes modos. Alice,
cansada da rotina de orgias e drogas, rebela-se contra a
rainha e é internada em uma clínica psiquiátrica.
Dorothy conta suas aventuras rurais com os
empregados da fazenda do Kansas: o espantalho, com o qual
aprende a usar os homens (capítulo XIV); o leão covarde
(capítulo XVIII), a quem ensina a ter confiança com as
mulheres; e o homem de lata (capítulo XXIV), que a
acorrenta e a faz masturbar um jumento enquanto faz
sexo anal. Dorothy confessa ainda que transava com o
próprio pai biológico, tendo sido expulsa da fazenda pela
madrasta.
Wendy narra sua experiência sexual (e dos seus
dois irmãos) com Peter, um garoto de rua; os ciúmes e a
conquista da incestuosa irmã, Annabel; o medo e o
fascínio exercido pelo capitão gancho, um odioso voyeur
que prostituía e estuprava as crianças pobres do parque.
Um discurso erótico?
Existe um discurso erótico? Ou o verdadeiro
erotismo não se deixa aprisionar pela linguagem? Qual a
diferença entre erotismo e pornografia? E, se há
realmente um discurso erótico, ou melhor: se existem
diferentes discursos eróticos segundo o lugar e a época,
como caracterizá-los? Será possível distinguir o discurso
erótico feminino do masculino?
Erotismo deriva do nome de Eros, o deus grego
do amor, Cupido para os romanos, associado à paixão e
ao desejo intenso. Pornografia também deriva do grego
pórne, “prostituta”; grafé, representação. Ela é
representação, por quaisquer meios, de cenas ou objetos
obscenos destinados a serem apresentados a um público
e também expor práticas sexuais diversas, com o fim de
instigar a libido do observador. Quase sempre a
pornografia assume um caráter comercial, seja para os
próprios modelos, seja para os empresários do setor.
Enquanto o erotismo, em si, existe sem ser
comercializado e geralmente é gratuito, em vários
sentidos. Portanto, não se trata de bom gosto, da
pornografia ser grosseira e vulgar em oposição à estética
erótica, requintada e sutil: é a indústria cultural que
prostitui o erotismo transformando-o em pornografia.
Desta primeira constatação nascem duas posições
extremadas que evitamos: a primeira consiste em
acreditar que não existe um discurso erótico puro: tudo
que é enunciado é (ou pode ser) pornográfico. A segunda
posição é de que não existe distinção possível entre os
discursos erótico e pornográfico, uma vez que a
comercialização do discurso é uma questão externa à
linguagem.
Ambas se equivalem, pois negam a autonomia
discursiva do ato erótico, colocando-o em uma posição
transcendente. Pode parecer que esse valor extralinguístico
deseja supervalorizar o Erotismo, mas, na verdade, trata
apenas de escondê-lo e de silenciá-lo.
O que define o erotismo em si é “a
transgressão de um interdito” (BATAILLE, 1988). O fruto
proibido é sempre o mais desejado e o segredo erótico é
ocultar a sexualidade e simultaneamente sugerir seu
revelar sensual.
É um duplo movimento de esconder sensações
e descobrir emoções e sentimentos – que não existe nos
atos obscenos, no caráter apelativo e vulgar do
pornográfico.
O erotismo é um aspecto da subjetividade do
ser humano oposta à sexualidade animal livre de
restrições ou interdições. O homem, no processo
histórico de construção da máquina social, foi
simultaneamente reprimindo a sexualidade e a
consciência da própria morte, dando origem ao
erotismo. Somos seres descontínuos, na medida em
que somos individuais, diferentes e sós. E essa diferença
jamais pode ser completamente suprimida; apesar de
todos os esforços de comunicação, há um abismo
descontínuo entre Eu e o Outro. Somos descontínuos,
vivemos e morremos sozinhos, mas trazemos em nós o que
Bataille chama de “nostalgia da continuidade perdida”. No
entanto, ao mesmo tempo em que busca a experiência
da continuidade, o homem também a teme, pois ela é a
morte – o aniquilamento da individualidade
descontínua.
Baseado nessa relação dialética entre a repressão
sexual e o medo da morte, Bataille dá ao erotismo e à
violência uma dimensão espiritual, como uma forma de ser
além de si mesmo e transcendendo a descontinuidade:
(...) o Erotismo dos corpos, o
Erotismo dos corações e,
finalmente, o Erotismo sagrado.
Falarei dessas três formas a fim de
deixar bem claro que nelas o que
está sempre em questão é substituir
o isolamento do ser, a sua
descontinuidade, por um
sentimento de continuidade
profunda. (BATAILLE, 1988, 56)

Para compreender Bataille em sua totalidade é


preciso partir de sua ideia de uma ‘economia de
consumo’ primitiva (oposta às concepções econômicas
tradicionais baseadas na primazia da produção) e na adesão à
tese central de Um Ensaio sobre a Dádiva (MAUSS, 2008) - o
presentear e sua retribuição estão na origem das relações dos
homens entre si e com o Divino. Em alguns momentos, a
noção de ‘Erótico’ de Bataille lembra a de ‘Mana’ de Mauss;
isto é: de energia pessoal que fica impregnada em objetos e
lugares e a de ‘áurea do objeto artístico’ antes da
reprodutividade técnica de Benjamim (1994).
Nesta perspectiva, a uniformização industrial
não apenas dessacralizou a arte, libertando-a de sua
função religiosa, ele também ‘deserotizou’ os corpos e
seus objetos, privando-os de suas energias singulares
originais.
Antes da contracultura, o corpo e o erotismo
eram focos de resistência ao poder, mas a sociedade de
consumo os prostituiu (ou transformou-os em
mercadorias). O sexo não é mais um escândalo, sua
interdição não é mais tabu e, portanto, sua transgressão
não é mais uma libertação – como desejava Pasolini.
Pier Paolo Pasolini (2000), em seu cinema-poesia,
acreditava poder retratar uma sexualidade de tradição
clássica homoerótica, que remonta aos poetas latinos e
gregos da antiguidade, para subverter “as convenções
morais da burguesia”; valorizava a liberdade sexual e a
sensualidade sem culpa de um mundo popular, burlesco, não
subjugado pelo puritanismo burguês.
Ironicamente, o eros virou thanatus e, a partir
dos anos 70, o cinema de Pasolini estimulou a produção de
filmes pornográficos e sua própria obra foi vista de forma
pornográfica. O erotismo revolucionário do cineasta foi
absorvido pelo sistema. Na perspectiva de Pasolini,
aonde o fascismo histórico fracassou em realizar, o poder
conjugado do mercado e das mídias opera docemente (na
servidão voluntária) através da domesticação do erotismo:
um verdadeiro “genocídio cultural”, no qual o povo
desaparece em uma massa indiferenciada de consumidores
submissos e alienados (PASOLINI, 183, p. 53-58).
Mas será que o erotismo (como expressão da
sexualidade livre) foi completamente domesticado pela
mídia (e pela produção em escala industrial de imagens
obscenas)? Ou será que o Eros libidinoso ainda vaza pelas
brechas do sistema pornográfico?
Em nossa perspectiva, o erotismo foi, é e será
discursivo, não apenas por motivos comerciais, mas
sobretudo por motivos sexuais. O erótico se inscreve na
linguagem para nos excitar. Por outro lado, o discurso
erótico é semi silencioso e quase invisível, avesso às palavras
e à representação visual. Há até quem advogue que é a
representação visual que torna o erotismo
pornográfico.
E no que diz respeito a representação visual
(legítima ou não) do erótico e, principalmente, às histórias
pornográficas em quadrinhos, há um universo inteiro a
ser pesquisado.
A proposta de Lost Girls, no entanto, é muito
mais complexa, bastante recente e deriva do universo
fantástico feminino dos contos de fadas em um contexto
contemporâneo; principalmente no sentido de fusão de
gêneros narrativos, com momentos trágicos, cômicos,
filosóficos – combinados à narrativa erótica.
E um tema de discussão constante em Lost Girls é
justamente sobre a questão do poder das mulheres de
contarem a própria história, em que elas sejam
narradoras e protagonistas de seus desafios específicos.
A possibilidade de um discurso erótico tipicamente
feminino depende da capacidade das mulheres se
tornarem sujeitas históricas de suas narrativas
biográficas.

A erótica da heroína ou a heroína erótica?


A psicóloga Maureen Murdock (1990) ficou
bastante decepcionada quando questionou Joseph
Campbell (1995) sobre que aspectos a Jornada da
Heroína incorporava da Jornada do Herói.
Em toda tradição mitológica, a
mulher é. Tudo o que ela tem
que fazer é conscientizar-se que
está no lugar onde as pessoas
estão tentando chegar. Quando
uma mulher percebe esta
característica maravilhosa, ela
não fica confusa com a noção de
ser um pseudo macho
MURDOCK, 1990, p. 02).
A ‘Jornada do Herói’ como processo iniciático é
uma viagem eminentemente masculina, refletindo um
contexto cultural patriarcal. ‘Iniciação’ é um rito de
passagem, em que um jovem torna-se membro adulto de
uma determinada comunidade.
Nas lendas, os heróis são sempre homens,
enfrentando situações masculinas: lutando pela justiça e
pela verdade. As mulheres, nessas estórias, correspondem
ao Sagrado Feminino ou ‘anima narrativa’, isto é, à
representação projetada dos valores femininos do
narrador (mediação entre autor e leitor) no interior da
narrativa. Com isso, elas, ou são meras coadjuvantes,
sequestradas pelo dragão e resgatadas para o casamento
alquímico final; e/ou então se associam com o mal e seus
vilões, dificultando a vida do herói.
Há também estórias em que a mulher é a
protagonista em um universo com valores masculinos,
como a estória de Joana D’Arc, por exemplo. Por isso,
contar uma estória iniciática (uma jornada heroica) em
que a mulher e os valores femininos sejam os
protagonistas e o aspecto cognitivo masculino seja
minimizado sempre é um desafio nas próprias estórias.
Murdock não entendeu a resposta de Campbell,
considerando-a machista, no sentido, de excluir as mulheres
da jornada iniciática do autoconhecimento. Ou seja: as
meninas não jogam esse jogo simbólico narrativo da
transformação espiritual através de aventuras heroicas.
O episódio motivou a psicóloga na pesquisa de
uma jornada mística feminina, com características
próprias. Murdock pensa que o foco do
desenvolvimento espiritual feminino é o de curar a
divisão interna entre a mulher e sua natureza feminina.
E elaborou uma estrutura circular de dez etapas,
representando o processo de desenvolvimento
espiritual feminino.
A JORNADA DA HEROÍNA
Formação do feminino;
Identificação com masculino e reunião de aliados;
Caminho das provações;
Encontrando o sucesso;
Despertando os sentimentos de morte espiritual;
Iniciação e descida à deusa;
Apelo urgente para se reconectar com o feminino;
Curando a divisão entre mãe e filha;
Curando o masculino ferido;
Integração do masculino e feminino.

A pesquisadora Mônica Martinez (2008, 138-143)


interpretou a resposta de Campbell de modo diferente. Para
ela, o que Campbell (que estudou várias lendas de mitos
com protagonistas femininos) quis dizer foi que a mulher
não deve se masculinizar para trilhar a jornada iniciática
deum ponto de vista externo. Segundo Martinez, ‘a mulher
já é’, significa que a narrativa feminina é mais interior que
exterior, lugar em que os homens estão. Foi, digamos
assim, um infeliz galanteio anti- feminista: As mulheres
são; os homens estão.
Martinez quer adaptar a Jornada do Herói de
Campbell às questões específicas da mulher (mais
profundas e complexas que as masculinas); Murdock
prefere formular o próprio processo de
desenvolvimento feminino: a Jornada da Heroína.
As representações femininas dentro do universo
das histórias em quadrinhos, um universo tipicamente
masculino, sempre foi algo fora da realidade das
mulheres. Elas eram namoradas, secretárias, amigas dos
heróis; sequestradas pelo vilão e salvas pelo protagonista.
Em 1941, no entanto, surge a Mulher-Maravilha de William
Marston na revista All Star Comics n. 8, a primeira heroína a
protagonizar a própria história com sucesso comercial. A
personagem, no entanto, forjada no período da segunda
grande guerra, tinha um traje sensual estilizado a partir da
bandeira dos EUA, com acessórios alusivos a práticas
sadomasoquistas, como os braceletes indestrutíveis,
forjados a partir dos grilhões que mantinham as
amazonas escravas; e o laço mágico obriga a vítima a
obedecer às suas ordens.
Segundo Silva (2011, p. 9) embora a
personagem tenha se proposto a defender uma visão
progressista sobre a mulher (que deixa ser uma vítima do
vilão e um prêmio do herói), ela também reflete a
ideologia de vínculo entre mulher e a perversão sexual.
O mesmo padrão sexy patriótico da Mulher Maravilha
inspirou várias super- heroínas, mas, a partir dos anos 60,
novas personagens femininas, com outras características,
começaram a aparecer nas histórias em quadrinhos.
Elektra (1986), de Frank Miller, por exemplo.
Porém, mesmo quebrando estereótipos e
chegando mais próximo de uma protagonista feminina
semelhante à realidade, essas novas personagens não
passaram de novas representações masculinas da mulher
moderna (BARCELLOS, p. 7; SIQUEIRA, p. 195-196).
Porém, foi necessária a chegada da arte
sequencial japonesa (Mangás e Animês) ao ocidente para
que as estórias de personagens femininas se tornassem
realmente narrativas femininas, em que finalmente o
público feminino possa se reconhecer tanto em ‘jornadas
de heroínas’ (estórias juvenis de aventura29), como
também nos quadrinhos eróticos, os ‘Hentai’.
Por outro lado, a chegada dos mangás ao cenário
dos quadrinhos também corresponde ao aparecimento de
um novo público feminino globalizado interessado em
consumir narrativas que consolidem sua identidade.
Lost Girls
Observou-se aqui que as representações
femininas nas histórias em quadrinhos não são criação
de mulheres, mas sim projeções masculinas da mulher. E
se as mulheres não se reconhecem nesses personagens
estereotipados em relação ao universo das aventuras de
super-heróis, muito menos se identificam quando se trata
de quadrinhos eróticos, em que elas são geralmente
representadas de formas submissas. R
essaltou-se inclusive a interpretação de que toda
representação visual do erotismo pode ser considerada
pornográfica e vulgar por ser demasiadamente explícita.

29Como os animes Nausicaä do Vale do Vento (1984); e a Princesa


Mononoke (Mononoke Hime, 1997), ambos de Hayao Miyazaki,
produzido pelo Studio Ghibli.
A própria história Lost Girls, sob esse ponto de
vista, é uma transgressão moral e artística. Uma das
principais características femininas da narrativa é a
circularidade discursiva. O discurso masculino (erótico ou
não) tende a ser linear: começo, meio e fim.
Ou pior, a escritura masculina se assemelha ao
seu orgasmo: “um eterno introduzir com finais
abruptos”. Em contraponto, a escritura feminina e seu
orgasmo não se baseiam na lógica do ‘acumula, acumula e
gasta’, mas no fluxo ininterrupto e progressivo do
consumo.
Em outras palavras: o discurso não enfatiza nem
começo nem fim da narrativa, é um discurso circular ou
elíptico que se inicia onde encerra sua enunciação. Em
Lost Girls, a narrativa começa e termina com o espelho de
Alice. A moldura do espelho enquadra os Capítulos I e XXX,
sugerindo que toda a narrativa é contada indiretamente
pelos reflexos do Espelho.
E há diversas menções a essa dupla representação
em vários momentos da narrativa. Na sexta página do
primeiro capítulo, por exemplo, quando Monsieur
Rougeur comenta a qualidade da literatura erótica de
Lady Fairchild, sob o codinome de Hippolyte:
- De fato, como perito em tal
literatura, posso dizer que nas
suas nobres mãos, a ficção o
próprio espelho da realidade ...
onde memoráveis personagens
idealizadas refletem nossas
verdadeiras personalidades.
- Humm, estou lisonjeada,
Monsieur Rougeur” – responde
Alice – “embora não aprove sua
concepção de ficção. Eu prefiro a
concepção de Platão ... o ideal é
a questão; o mundo além do
espelho da ficção, esse é o
mundo real ... e somos apenas
a mais tênue das reflexões que
empalidece sob o vidro.
O Espelho está presente também no final, no
capítulo XXX (O espelho), quando as três protagonistas
finalmente vão fugir do hotel antes da chegada dos
soldados e Alice decide deixar o seu espelho.
Compara-se o espelho à imaginação, que
aprisiona e liberta, que será destruída pela violência dos
homens.
“Minha querida, coisas bonitas e
originais podem ser destruídas. A
beleza e a imaginação, não. Elas
florescem até em tempos de
guerra. Quanto ao meu espelho ...
Eu outrora pensava que parte de mim
estava presa nele, mas agora nós a
resgatamos. Hoje ele é apenas uma
estimada antiguidade. Deixe-me
dizer adeus. Depois vamos
embora.” (e beija o espelho)

De fato, os soldados alemães invadem o hotel e


destroem o espelho de Alice e a narrativa (a imaginação)
continua por mais três páginas completas sem o
enquadramento da moldura, dando a entender que os
autores preferiram não terminar a estória com ato de
violência, mas sim com sua crítica dentro do enredo
principal. A violência destrói apenas a representação
duplicada.
Também há tripla representação ou dupla
representação interna à narrativa através da presença de
um livro branco de contos eróticos escrito anonimamente
por Monsieur Rougeur (e assinado por diferentes autores,
cujo estilo pretende imitar) do qual há um exemplar em
cada quarto. Aliás, essa é uma das características
clássicas do discurso erótico, a presença de breves
estórias eróticas no interior da narrativa principal com o
objetivo de excitar seus personagens, e,
consequentemente, excitar os leitores finais em uma dupla
pedagogia sexual. Nas histórias em quadrinhos, cuja
linguagem permite o desenvolvimento de duas ou mais
narrativas em paralelo ao mesmo tempo, esse recurso é
particularmente possível. E Moore o explora bastante.
As lembranças confessadas das três protagonistas formam
narrativas paralelas que desempenham então o mesmo
papel das estórias eróticas do livro branco: excitá-las (e
excitar-nos também) em suas orgias, cada vez mais
obscenas e transgressoras.
No Capítulo III, Sombras Ausentes, enquanto Sra.
Wendy Potter lê um conto – Vênus e Tannahauser – em
que os personagens se masturbam com velas, gerando
desejos inconfessáveis e fantasias visíveis através das
sombras. Ou ainda, no Capítulo XXII, em que Monsieur
Rougeur lê um conto erótico em que uma família
completa (pai, mãe, filho e filha) faz sexo entre si,
embalando uma verdadeira orgia entre os hospedes
devassos do hotel. Ele, inclusive, enfatiza de que o livro
trata de incestos imaginários, cuja função é apenas excitar
seus leitores. Além do livro branco, que aparece em
vários outros capítulos, outro recurso erótico narrativo é
o do contraponto entre texto e imagem, entre a voz que
seduz e a imaginação seduzida. No Capítulo IV, Papoula,
enquanto Alice seduz Dorothy e a inicia no ópio em um
quarto, Wendy e o marido escutam o acontecido no
quarto vizinho. E no seguinte, Da noite à alvorada,
descobrimos o aconteceu na imaginação e na realidade de
Wendy no outro quarto. Outra característica feminina
de Lost Girls é o estilo Art Nouveau da ilustradora, uma
“tolice caprichosa”, definida pelo Sr. Potter na própria
narrativa, oposta ao figurativo da perspectiva realista, surge
também de forma decorativa, nos detalhes ilustrativos e no
acabamento refinado.
O erotismo masculino é misógino e sádico. Se
‘poder’ é “a capacidade de impor sua vontade aos
outros”. Pode-se dizer que há o poder de coação, em que a
vontade é imposta através da força; o poder de persuasão,
em que há o convencimento racional (incluindo aí a
chantagem e o aliciamento por dinheiro e drogas); e o
poder da sedução, em que o desejo domina o outro,
submetendo-o. No erotismo patriarcal, há um forte apelo
pela submissão pela força; no erotismo feminino, é a
sedução que força os sujeitos desejantes a realizarem a
vontade do dominador. Mesmo quando há violência e
submissão, elas são alegóricas e teatrais. “Você gosta que
eu o obrigue” – sussurra o Capitão Rolf Bauer (amante de
Dorothy) para (Sr.) Potter (marido de Wendy), enquanto
força gentilmente a penetração anal, no capítulo XIII, em
queeles bebem e transam, inspirados por um conto dolivro
branco sobre o caso de Dorian Gray com Lord Henry
Wooton.
E, no capítulo XXIII, em que as três
protagonistas torturam Monsieur Rougeur para que ele
confesse a autoria dos contos do livro branco; tal violência
é apenas uma encenação delicada da verdadeira
submissão sexual imposta contra vontade. A operação, em
que o prazer torturante substitui a dor física, se repete para
fazer Dorothy confessar que transava com o pai, no capítulo
XXVIII, O homem atrásdacortina.
Assim, é ao poder da sedução feminina que o
erotismo de Lost Girls rende sua homenagem. E o que
observamos é a excitação através da corrupção da
inocência, do sentimento de vergonha, da lenta
decomposição das resistências morais.
No Capítulo XII, Sacudindo e despertando, Alice
não apenas seduz, mas também corrompe moralmente
Wendy com suas joias, fazendo-a viver os sete pecados
capitais descritos no livro branco. Alice também prostitui e
vicia seus amantes, principalmente através do ópio e do
láudano, minando-lhes o amor próprio e a dignidade. O
papel excitante da inocência pode ser visto em vários
momentos e níveis do texto: os personagens saírem de
fábulas infantis, nas primeiras experiências sexuais
contadas pelas protagonistas, na sedução dos parceiros,
mas, principalmente de forma perversa com o Sr. Potter e
com o marido da rainha-madrasta (Sra. Redman) nas
memórias de Alice, que são sucessivamente traídos e
enganados com grande prazer. O mito de que a
homossexualidade sáfica, a relação entre mulheres
não- masculinizadas, é uma relação a três, incluindo ainda,
além das amantes principais, um ‘voyeur invisível’ – um
homem a quem as mulheres querem ferir e/ou excitar?
Não, e afinadas aos protestos femininos a essa fantasia
machista, há duas passagens em que a narrativa repreende
veementemente o voyeurismo não autorizado.
O primeiro, no capítulo VI, Rainhas Unidas,
onde Wendy observa Alice e Dorothy fazendo sexo oral
recíproco a céu aberto. E o outro, no capítulo XXVII, quando
a própria Wendy vence o próprio medo da violência,
engolindo o Capitão Gancho (o voyeur assustador que
prostituía as crianças pobres do parque) pela vagina como
se fosse um crocodilo, quando esse ia lhe estuprar:
“Eu ... eu mostrei minha boceta
despida e perguntei se não
achava que ela era muito
cabeluda e muito velha para
ele? Se meios seios não eram
demais para alguém que preferia
peitinhos achatados e bocetinhas
lisinhas? Alguém que tinha
pavor de mulheres adultas, e
que pensava que seria
subjugado e engolido por elas?
Eu remexi meus quadris,
abrindo minha vagina peluda
com meus dedos, urrando para
ele. ‘Crianças não sabem que
você inadequado. Você pode
fingir que ainda é jovem, como
elas, e que o relógio não está
fazendo tic-tac. É por isso que
você fode as crianças e tinge seu
cabelo. Você tem medo de
mulheres. E medo de
envelhecer.’”
Contudo, além do texto e dos esquemas de
gênero e dos modelos de transgressão e contra
transgressão sexual, há, na narrativa de Moore,
momentos de erotismo puro e inexplicável, ‘silêncios
visuais’, como no capítulo XX, Zás-trás, em que uma
orgia das protagonistas se entrelaça à viagem de ópio,
combinando o êxtase poético do texto aos delírios
visuais da narrativa. Ou no capítulo VII (O tornado?), o
primeiro orgasmo de Dorothy, durante um ciclone em
sua fazenda em Kansas.
Conclusão
Ressaltaram-se aqui vários elementos
discursivos eróticos femininos na narrativa de Lost Girls:
a simetria matemática da arte, a circularidade narrativa, a
múltipla representação (uma estória dentro de outras), a
sedução e a submissão voluntária como formas de poder, a
inocência como fator erótico, o ritmo narrativo
constante, gradativo e crescente, sempre encerrada por
apoteoses de êxtase. Tais elementos apontam para
intenção não declarada de produzir um erotismo mais
refinado, estético e... feminino.
Porém, o mais importante é o deslocamento do
foco narrativo das representações masculinas do feminino,
tanto nas protagonistas da ação narrativa como também na
narração da estória. Pasolini, no início dos anos 70,
renegou seus filmes eróticos, afirmando que eles foram
apropriados erroneamente pela indústria cultural, que os
classificava como pornográficos. Diante da absorção
conservadora das mídias na cultura de massas, que
transformou o erotismo em pornografia, Pasolini, trocou
a representação idealizada do sexo clássico por uma visão
denunciadora de sua violência. É quando Pasolini filmará sua
obra mais radical: Saló ou os 120 dias de Sodoma (1975),
superando qualquer coisa que tenha sido feita antes dele
em termos de transgressão estética e moral30.
Baseado na obra do Marquês de Sade, 120 dias de
Sodoma ou escola de libertinagem (2008), o filme conta
a história de quatro homens que compram meninos e
meninas para, enquanto esperam a queda iminente do
regime fascista que os sustentam na pequena república
de Saló, praticam o que de pior um ser humano pode

30 “Alegoria sinistra do fetichismo da sociedade de consumo”, Saló teve seu


equivalente e clímax com o assassinato de Pasolini, no mesmo ano de
1975, e contribuiu para fazer do cineasta uma verdadeira lenda negra -
transpondo o mito para cotidiano em imagens como em seus filmes, a
do anjo do mal, a do herege perseguido, a do último grande artista
maldito, sempre colocando em crise e subvertendo as concepções de
mundo dominantes, sempre dando visibilidade ao não-dito das
representações convencionais, sempre fazer surgir aquilo que foi repelido
do consenso social e cultural - sem nada ceder, jamais, sobre a sua
singularidade.
fazer com outro. Em um suntuoso castelo, cercadas de
seguranças armados e empregados, prostitutas contam
séries de estórias eróticas que são encenadas pelos
jovens escravos sexuais para o deleite dos quatro
senhores: há o ciclo de manias, o de merda, o do sangue...
Porém, mais do que as torturas físicas o que chama
atenção são as humilhações psicológicas, os
constrangimentos morais, o sofrimento de serem
vítimas inocentes e indefesas, objetos de crueldade por
simples prazer e diversão. Pasolini promove uma inversão
notável da intenção do texto original: coloca o sujeito-
narrador na situação de vítima e não na de agressor. O
filme não nos incita à violência (como fazem os filmes
violentos), mas sim aos sentimentos de vergonha e culpa.
Vários paralelos podem ser traçados em uma
analogia entre Lost Girls e Saló. Ambos trabalhos
abordam a questão do sexo e da violência, dentro de um
intervalo de tempo transitório. Porém, enquanto
Sade/Pasolini estabelecem um período de tempo limitado
e decrescente de suspensão do afeto para livre prática
da violência; Moore estabelece uma duração do prazer
antes da guerra. O sexo é colocado como uma resposta
feminina à violência do mundo masculino, antes da invasão
militar. O paralelo mais importante, no entanto, é que
assim como Pasolini reinterpretou o Marques de Sade de
modo masoquista, deslocando o foco narrativo do
agressor para a vítima – é possível observar no trabalho de
Moore/Gebbies, um deslocamento do agente sexual ativo
para protagonistas passivas. O que nos excita nas estórias
não é apenas o que elas fazem, mas também o que é feito
com elas. As protagonistas são senhoras da ação e
prisioneiras do seu contexto e do seu passado, ao
mesmo tempo. Trata-se, portanto, de uma nova forma de
representaçãodo femininoem narrativasgráficas.
O autor
O mais importante roteirista de histórias em
quadrinhos da atualidade – tanto em quantidade como em
qualidade e diversidade 31 – é mesmo Alan Moore, o bruxo
de Northampton. Profissionalmente, não é um exagero
dizer que Moore inventou sua própria história, trabalhando
nas duas grandes editoras – DC Comics e Marvel Comics – e
brigando com ambas por um sistema mais justo de
reconhecimento e de remuneração de direitos autorais.
Moore escreveu histórias sofisticadas tanto para heróis
tradicionais e criados por outros autores (Batman 32,
Superman 33, Monstro do Pântano 34, entre outros35) como

31Para conhecer toda produção de Alan Moore, acesse o site:


<http://www.alanmoorefansite.com/bibliography.html>.
32 Batman foi criado por Bob Kane. Moore escreveu duas estórias
importantes do homem morcego: Barro mortal, desenho John Byrne,
na Batman Annual 11, jul/1987 (MOORE et al., 2006, 232); e a A
piada mortal, desenho de Brian Bolland, em Batman: The killing Joke,
jul/1998 (MOORE et al, 2006, 256).
33 Superman foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster. Moore
escreveu: Para o homem que tem tudo, desenhos de Dave Gibbons,
na Superman anual 11, jan/1985 (2006, 9); A Linha da Selva, com
desenhos de Rick Veitch, na DC Comics Presents, n. 85 Set/1985
(MOORE et al., 2006, 128); e O que aconteceu com o homem de aço?
também criando narrativas com seus próprios personagens.
Aliás, como também criando suas próprias
histórias com personagens de outras narrativas, oriundos
da literatura, como é o caso da Liga Extraordinária.
No final do século XIX a rainha Vitória nomeia,
para combater um perigoso inimigo, um gênio do crime
que deseja conquistar o planeta uma legião de grandes
nomes da época: Allan Quatermain (As Minas do Rei
Salomão, de H. Rider Hagard), Mina Harker (Drácula, de
Bram Stoker), Henry Jekyll e Edward Hyde (O médico e o

desenhos Curt Swan & Murphy Anderson na Superman 423 e 583, em


set/1986 (MOORE et al, 2006, 164).
34 Monstro do Pântano foi criado por Len Wein e Berni Wrightson.
Moore assumiu a série em 1984, na edição #20 e, em oito números,
transformou um estrondoso fracasso em um retumbante sucesso
(MOORE, 2007).
35 Para o Arqueiro Verde, Moore escreve uma estória dupla:
Olimpíadas Noturnas, desenhos de Klaus Janson, na Detctive Comics,
# 549/550, abril-mai/1985 (MOORE et al., 2006, 51). Para o Lanterna
Verde, as mais importantes são: Mogo não comparece às reuniões,
desenhos de Dave Gibbons, na Green Lantern #188, mai/1985
(MOORE et al, 2006, 66); Tigres, desenhos Kevin O’Neill, na Tales of
the green Lantern corps, Annual 2, dez/1986 (MOORE et al, 2006,
152); Na noite mais densa, desenhos Billy Willinghan, na Tales of the
green Lantern corps, Annual 3, mai/1987 (MOORE et al, 2006, 226).
monstro, de Robert Louis Stevenson), Rodney Skinner (O
Homem Invisível, de H.G. Wells), Capitão Nemo (20.000
Léguas Submarinas, de Júlio Verne), Dorian Gray (O Retrato
de Dorian Gray, de Oscar Wilde), Tom Sawyer (As
Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain) e professor
James Moriarty (Memórias de Sherlock Holmes, de Arthur
Conan Doyle).
Mas, a adaptação da história para o cinema
(NORRINGTON, 2003) foi um fracasso de crítica e de
público. Motivo: os detalhes de época, as citações de
outras narrativas, a disposição gráfico-visual da narrativa
como um todo se perderam no tempo contínuo e linear
da sétima arte.
O próprio Moore detesta, declaradamente, a
ideia de adaptarem suas obras para o cinema e nunca se
envolveu em nenhuma das produções (DEZ, 2005).
O mesmo aconteceu com a adaptação de From
Hell (Do Inferno, 2005a) para o cinema (HUGLES, 2001),
com participações de Johnny Depp, Heather Graham e Ian
Holm. From Hell é um romance gráfico escrito por Alan
Moore e ilustrado por Eddie Campbell que especula
sobre a identidade e as motivações de Jack o Estripador.
Apesar de ser confessadamente um trabalho ficcional,
Moore faz uma rigorosa investigação sobre todas as fontes
do caso, não só para garantir plausibilidade e
verossimilhança da narrativa, mas como uma forma de
pesquisa e revisão das interpretações anteriores.
From Hell apresenta mais de 40 páginas de
informações e referências, indicando quais partes são
baseadas na imaginação de Moore e quais são tiradas de
fontes específicas. As opiniões de Moore sobre as
informações referenciais também são listadas. Além disso,
a verdadeira aula sobre a história e a arquitetura de
Londres – bem como sobre a época e os costumes em que
o Estripador fez suas vítimas. A obra é densa, cheia de
camadas e imensamente detalhada; a edição em coletânea
tem aproximadamente 572 páginas - que foram
severamente amputadas pela versão cinematográfica.
E, mesmo assim, o filme ficou monótono, sendo
elogiado pela crítica, ignorado pelo público.
Depois foi a vez de Constantine, uma
adaptação do personagem das histórias em quadrinhos
John Constantine36, protagonista da revista Hellblazer,

36 John Constantine foi criado por Alan Moore, como um mero


figurante da revista Monstro do Pântano, mas se popularizou
rapidamente. Arrogante, negligente e enganador, o personagem foi
para o cinema (LAWRENCE, 2005). Embora possa ser
considerado um sucesso de bilheteria, é muito criticado
pelos fãs dos quadrinhos pela falta de fidelidade ao
original. No filme, John Constantine (Keanu Reeves) é um
ocultista e exorcista, que ajuda Angela Dodson (Rachel
Weisz), uma policial cética, a investigar o misterioso
suicídio de sua irmã gêmea, Isabel. O filme é inspirado
numa história antiga de Hellblazer, Hábitos perigosos
(1995), em que Constantine descobre que têm câncer de
pulmão e já em estado terminal. O mago então tenta bolar
um plano para escapar da morte, lidando com demônios
legais e anjos malvados.
Mais recentemente, também houve adaptações
para cinema de dois dos principais trabalhos: V de Vingança
(2006a), com roteiro dos Irmãos Wachowski, da trilogia
Matrix (MC TEIGUE, 2005); e Watchmen (2005), dirigido
por Zack Snyder (2009).
V de Vingança (versão em português para V for
Vendetta) é uma série desenhada por David Lloyd em
preto e branco em 1983 e relançada em cores em 1988. A

inventado por Moore para satisfazer o pedido dos então desenhistas da


revista, Steve Bissette e John Totleben de ter um personagem parecido
com o cantor Sting nas histórias.
história, que se passa em um distópico futuro de 1997 no
Reino Unido, conta a história de Ivi, salva da morte por um
vigilante mascarado, conhecido apenas por ‘V’. À medida
que Ivi descobre a verdade sobre o misterioso V, ela descobre
também algumas verdades sobre si própria e assim
emerge uma inesperada aliada no plano para trazer
liberdade e justiça a uma sociedade marcada pela
crueldade e corrupção.
Lançada em 1985, Watchmen tornou-se um
extraordinário sucesso e é considerado um marco na
evolução dos quadrinhos, introduzindo temas e
linguagens antes utilizadas apenas por quadrinhos
alternativos. O sucesso crítico e de público que a série teve
ajudou a popularizar o formato conhecido como Graphic
Novel, até então pouco explorado pelo mercado.
Na trama de Watchmen, situada nos EUA de 1985,
existem super heróis mascarados reais. O país estaria em vias
de declarar uma guerra nuclear contra a União Soviética.
A estória envolve os episódios vividos por um grupo de
super-heróis no passado e no presente e o misterioso
assassinato de um deles.
Watchmen retrata os super-heróis como
indivíduos verossímeis, que enfrentam problemas éticos e
psicológicos, lutando contra neuroses e defeitos. E com
vários problemas de relacionamento entre eles.
Pode-se dizer que Moore entrou assim na 3ª
geração de grupos de heróis: primeiro na Liga da Justiça, ele
dá profundidade psicológica e narrativas sofisticadas aos
super-heróis tradicionais; com a Liga Extraordinária,
amplia ainda mais a façanha, elegendo sua própria
legião de heróis literários; com Watchmen, no entanto,
Moore desconstrói a própria noção de super-herói e de
grupo de super-heróis.
Nos últimos anos, Moore está trabalhando em
várias séries, retomando alguns projetos inacabados (A
Liga Extraordinária II e III e Supremo37) bem como
começando outros (As Aventuras de Tom Strong38 e

37Uma releitura satírica dos 50 anos de estórias de Superman, com várias


homenagens críticas, citações e analogias aos seus principais desenhistas e
roteiristas. Desenhado por Chris Sprouse, Rick Veitch e outros, publicado
por Image Comics/Awesome Entertainment, em 2003. A Editora Devir lançou
os quatro fascículos (A Era de Ouro, A Era de Prata, A Era de Cobre e A Era
Moderna) em português. (MOORE, 2008)
38No mesmo estilo de homenagem satírica de Supreme, Tom Strong
conta as aventuras de um science hero, inspirados nas histórias em
quadrinhos pulps das décadas de 1920/1930. Incluindo também as
séries derivadas da saga principal, há pelo menos dez volumes,
Promethea39). Mas certamente o projeto mais
incomum deste novo período de Moore é a série Lost
Girls.

desenhados por Chris Sprouse, Steve Moore, Art Adams e outros;


publicados pela DC Comics/Wildstorm/ABC, entre 1999 e 2006. Em
português, os dois principais (Um Século de Aventuras e No final dos
tempos) foram publicados pela Devir (2006) e Pixel (2008).
39A estudante Sophie Bangs, investigando o mito de Promethea, uma
espécie de heroína mística que se manifestou em diversas mulheres,
acaba por se tornar a nova encarnação dessa guerreira mitológica.
Desenhado por J.H. Williams III e outros, 1999-2005, 5 volumes, pela
DC Comics/Wildstorm/ABC. (MOORE, 1999).
REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS
DEZ, VYLENZ. The Mindscape of Alan Moore (2005) 80 min -
Documentary | Biography - 21 August 2005 (Denmark); Directors:
Dez Vylenz, Moritz Winkler Writers: Dez Vylenz, Moritz Winkler;
Stars: Glenn Doherty, Florian Fischer, Alan Moore. Produced by:
George Arton, Dez Vylenz, Gert Winkler, Moritz Winkler.
HUGHE, Alber e Allen. From Hell. Estados Unidos 2001 • cor • 122
min Produção; Direção: Albert Hughes; Allen Hughes; Roteiro
Adaptação: Terry Hayes, Rafael Yglesias; Graphic Novel: Alan
Moore, Eddie Campbell. Elenco original: Johnny Depp, Heather
Graham, Ian Holm; Género: Suspense, Idioma original; Inglês.
LAWRENCE, Francis. Constantine. Estados Unidos Alemanha
2005 • cor • 121 min Produção: Lorenzo di Bonaventura, Akiva
Goldsman, Benjamin Melniker, Lauren Shuler Donner, Erwin
Stoff, Michael E. Uslan. Roteiro: Kevin Brodbin, Frank A.
Cappello; argumento: Kevin Brodbin. Baseado na história de Alan
Moore, Garth Ennis, Jamie Delano. Elenco original: Keanu Reeves,
Rachel Weisz, Djimon Hounson. Género Aventura, Horror e
Fantasia; Idioma original: Inglês.
MC TEIGUE, James. V de V ingança (V for Vendetta) Reino Unido •
Estados Unidos, Alemanha; 2005 • cor • 132 min; Produção,
Direção: James McTeigue; Produção: Joel Silver, Larry Wachowski,
Andy Wachowski, Grant Hill; Roteiro Andy e Larry Wachowski;
Criação original: Alan Moore, David Lloyd; Elenco original: Natalie
Portman, Hugo Weaving, Stephen Rea, John Hurt; Gênero: ação
thriller; Idioma original: inglês.
Xena: Warrior Princess/ Xena: A Princesa Guerreira (BR).
Formato: Seriado; Gênero: Drama, Ação, Aventura, Sobrenatural,
Mitologia; Duração: 41-42 minutos (por episódio); Criador: Robert
Tapert, John Schulian; País de origem: Estados Unidos/ Nova
Zelândia; Idioma original: Inglês; Produtor(es) Sam Raimi
(executivo); R. J. Stewart (desenvolvedor); Elenco: Lucy Lawless,
Renée O'Connor, Ted Raimi, Kevin Tod Smith, Hudson Leick,
Adrienne Wilkinson, Alexandra Tydings; Tema de abertura: Joseph
LoDuca; Emissora de televisão original: USA Network; Formato de
exibição: NTSC; 480i (SDTV); Transmissão original: 4 de setembro
de 1995 - 18 de junho de 2001; № de temporadas: 06; № de
episódios: 134.
MIYAZAKI, Hasao. Nausicaä do Vale do Vento (1984) e A
Princesa Mononoke (1997). Studio Ghibli.
NORRINGTON, Steve. A liga dos cavaleiros extraordinários (The
League of Extraordinary Gentlemen”) (2003 – 106m). Baseado na
história de Alan Moore e Kevin O’Neill. Roteiro: James Dale
Robinson. Elenco: Sean Connery, Naseeruddin Shah, Peta Wilson, Tony
Curran, Stuart Townsend, Shane West.
SNYDER. Zack. Watchmen Estados Unidos 2009 • cor • 162 min
Produção: Direção Zack Snyder; Roteiro Filme: Roberto Orci, Alex
Kurtzman, Alex Tse, David Hayter. Obra original: Alan Moore
(nãocreditado) e Dave Gibbons; Elenco original: Patrick Wilson,
Jackie Earle Haley, Billy Crudup, Jeffrey Dean Morgan, Malin
Åkerman, Matthew Goode; Género Ação, drama, ficção científica;
Idioma original: inglês.
REFERÊNCIAS GRÁFICAS-NARRATIVAS
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Conrad, 2007.
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Hellblazer: hábitos perigosos. Hellblazer # 41, publicado
originalmente pela DC Comics, 1991. São Paulo: Vertigo, 1995.
MILLER, Frank; SIENKIEWICZ, Bill. Elektra assassina. São Paulo: Editora:
Panini Brasil, 1986.
MOORE, Alan; GIBBON, Dave. Watchmen. (Watchmen,1995) São
Paulo: Via Lettera Editora, 2005. 4v.
_; CAMPBELL, Eddie. Do inferno (From Hell, 1989/1999). 3. ed.
São Paulo: Via Lettera Editora, 2005a. 4v.
_ et al. Grandes clássicos DC n. 09 – Alan Moore. (Coletânea de
estórias, diversos desenhistas). São Paulo: Panini Comics,
Outubro de 2006.
; LLOYD, D. V de Vingança. São Paulo: Panini Comics, 2006a.
; BISSETE, Steve;TOTLEBEN, John. A saga do monstro do Pântano
(The saga of the swamp thing, 1984). Rio de Janeiro: Pixel Media,
2007.
; GEBBIE, Melinda. Lost Girls. São Paulo: Top Self Produtions &
Devir Livraria, 2007a. 3v.
; SPROUSE, Chris; VEITCH, Rick. et alli. Supremo. Publicado
originalmente por Image Comics/Awesome Entertainment, em
2003. São Paulo: Editora Devir, 2008. 4 vol.
_; SPROUSE, Chris; MOORE, Steve; ADAM, Art; et alli. Tom
Strong. Publicado originalmente pela DC Comics/Wildstorm/ABC,
entre 1999 e 2006. Em português, apenas dois principais foram
publicados: Um Século de Aventuras. São Paulo: Devir, 2006; e No
final dos tempos. Rio de Janeiro: Pixel, 2008.
_; WILLIAMS, J. H., III. Promethea. America’s Best Comics. (32
ver., 1999-2005) 1999.

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quadrinhos parte 1: A mulher pelos olhos dos homens. Revista
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2000. Disponível em:
<http://www.eca.usp.br/nucleos/nphqeca/agaque/ano2/numero
4/artigosn4_1v2.htm> Último acesso em: 10/07/2016.

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Marcelo Bolshaw Gomes é
jornalista, doutor em ciências
sociais e professor de
sociologia da comunicação
na graduação de
jornalismo, publicidade e
rádio/TV e de metodologia
científica em pesquisa no
Programa de Pós-
Graduação em Estudos da
Mídia da UFRN. É portador da
Síndrome de Asperger, uma
forma de autismo de alta funcionalidade, com baixa empatia
emocional compensada por uma imaginação visual figurativa
e um pensamento assimétrico. Escreve sobre temas diversos:
teoria narrativa, contracultura,hermenêutica.
Escreveu vários livros, entre os quais: Um mapa, uma bússola
(2000); Espiritualidade Contemporânea (2001); Decifra-me ou te
devorarei (UFRN, 2006); O Hermeneuta – uma introdução ao
estudo de Si (UFRN, 2010), O Encantador de Serpentes (inédito);
Mimese e Simulação (UFPB, 2015) Devaneios da Investigação
Simbólica (UFRN, 2016); Universos Sci-Fic (UFPB, 2016) e Lugar
Comum (no prelo, 2017).

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