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Zeljko LOPARIC
UNICAMP
1 A CRISE DO INFINITISMO
(*) o presente artigo é uma versão modificada e ampliada da palestra pronunciada durante
o Ciclo sob o título: Possibilidades de uma Nova Ética. Por falta de espaço, o material
relativo a Levinas e à periculosidade das éticas foi deixado para outras publicações.
Agradeço a Eisa Oliveira Dias Loparic, Juliano GarciaPessanha e Leopoldo P. Fulgên-
cio Jr. pelas críticas e ajuda na elaboração do texto final.
2 Numa entrevista, Levinas declarou: "Mas, em princfpio, os que pregam o marxismo espe·
ravam tornar o poder polltico inútil. /. . ./ Há aí um messianismo. Outra coisa é o que isso
deu na prática ... Para mim, uma das grandes decepções da história do século XX, tem si·
do o fato de um movimento como esse ter dado no stalinismo. É isso aí a finitude!" (Levi-
nas 199111982/,p. 139).
4 Lowith está se referindo à obra de Kitaro Nishida: Die morgenlãndischen und abendlán-
dischen Kultutfonnen in alter Zeit \'0/11 metaphysischen Standpukt aus gesehen. Berlim:
Abhandlungen der Preussischen Akadernie der Wissenschaften, 1939.
conta da extensão em que o Ocidente contemporâneo segue animado pela 'fé profética',
pelo sentido da santidade do dever, pela pressão do modo como as coisas poderiam e de-
veriam ser mesmo se, por enquanto, ainda não sejam. Tal fé tem virtudes óbvias, mas se
torna excessivamente opressiva, quando não é contrabalançada pelo sentido complemen-
tar do caráter sagrado do é. Se os nossos olhos sempre se dirigem para o amanhã, o hoje
se esvai sem ser percebido. Para o Ocidente, que na sua preocupação de remodelar o céu
e a terra, corre o perigo de deixar escapar das mãos o momento presente da vida - a única
vida que realmente temos, o zen relernbra que se não aprendermos a perceber o mistério
e a beleza da vida presente, a nossa hora presente, não perceberemos mais o valor de vida
alguma, de hora alguma. /.. ./. O zen nos diz que o é é sagrado /.. ./. " (Kapleau 1967, p.
XIII). Huston Smith está se referindo aos esforços que não tentam mais, como fazia
Schopenhauer (em parte, por dispor apenas de traduções muito escassas e falhas dos tex-
tos orientais), e como ainda fez Jung, encaixar o pensamento oriental nas categorias oci-
. dentais e, sim, aprender dos orientais novos modos de pensar, como sugerem R.M. Smul-
Iyan (1977), um lógico matemático, e Masud Kahn (1979), um psicanalista pós-freudiano.
6 Heidegger gosta de citar as opiniões dos cientistas e tecnocratas sobre a era do átomo. De
um livro intitulado Vil'eremos através de átomos prefaciado pelo prêmio Nobel OUo Hahn,
ele destaca a frase: "A era do átomo pode tornar-se uma época cheia de esperanças, flo-
rescente, feliz, uma época na qual viveremos através de átomos. Isso só depende de nós".
(1957a, p. 198). Numa outra ocasião, Heidegger cita a seguinte opinião de dezoito prê-
mios Nobel, emitida na Ilha de Mainau em junho de 1955: "A ciência é um caminho para
a vida humana mais feliz". (Heidegger 1959b, p. 19).
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8 Cabe observar que a destruição (Desuuktionv da meta física não significa o seu desmante-
lamento, mas a sua desconstntção (Abhau) a partir da sua origem pré-metaffsica. Trata-se
de uma tarefa que obedece a leis próprias, distintas das que regem estudos histórico-fi-
losóficos e Iilológicos (as traduções violentas dos textos gregos, oferecidas por Heidegger,
são a melhor prova disso). Da mesma maneira, a expressão "o fim da metaftsica" não de-
signa a sua eliminação da vida cultural do Ocidente, mas tão somente a libertação do ente
do poder da representação. - O projeto heideggeriano de desconstrução foi associado por
Levinas e Derrida, com repercussões conhecidas, ao antiontologismo da tradição judaica.
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9 Por destinamento (do ser) traduzo as expressões heideggerianas geschick des seins e Seins-
geschick; bem como certos usos de geschichte des Seins e de Seinsgeschichte. Proponho,
ainda, o neologismo destinamental para o heideggeriano geschicklicn e, em certas
acepções, para o seinsgeschichtlich. Creio ser conveniente guardar historial, devido ao seu
sentido etimológico, que deriva do grego historein, investigar, observar, narrar, para carac-
terizar processos que se dão no interior das épocas marcadas pelos destinamentos do ser,
bem como os sabere.s que dizem respeito a esses processos. Cf. a nota 3.
2 O PRINCÍPIO DE IfUNDAMENTO
o infinitismo
das éticas tradicionais, assim como o das ontolo-
gias, é centrado no principio de fundamento: nihil est sine ratione
(nada é ou existe sem razão). A palavra latina ratio é traduzida não
14 E. Stein traduz stiften por erigir e begriinden por fundamentar (Heidegger 1979, p. 120).
15 Em Ser e Tempo e outros escritos da primeira fase, Heidegger oferece uma interpretação
da finitude do ser no horizonte do tempo tridimensional do estar-ar. A bifurcação entre o
projeto e o lançamento será fundamentada na oposição entre o futuro e o passado de!
tempo-do-mundo, tridimensional. No nível mais fundamental ainda, a oposição entre o
sim e o não do poder-(sim)-estar-aí e o poder-não-estar-aí será remetida àquela entre
o ainda-sim-desde e o não-mais do passado-preteridade e do futuro-advento, êxtases do'
tempo originário do estar-ar. Para os fins do presente artigo, não é necessário entrar nes-
sa tentativa de redução da negatividade ontológica à negatividade temporal (não-mais,
ainda-não). De resto, o segundo Heidegger desistirá da interpretação temporal da finitu-
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de do ser e passará a pensar esta última a partir do Ereignis, como mostraremos. Pode-se
até dizer que foi a negatividade do tempo tridimensional, concebido como o horizonte
transcendental do sentido do ser, que ocultava a negatividade mais profunda do Ereignis,
a "quarta dimensão" (Heidegger 1969b, pp. 29, 31; tr. pp. 276, 277).
nota de Leibniz de 1677, que diz: Cum Deus calculat, fit mundus.
Deus é comparável à máquina universal de cálculo, à máquina de
Turing, que só pensa computando e que resolve, dessa maneira, to-
dos os problemas do mundo. Mesmo depois da morte de Deus,
atestada por Nietzsche, na época de hoje, "o mundo permanece
calculado, pondo até mesmo os homens nos seus cálculos, na medi-
da em que tudo é contado segundo o princípio de razão suficiente"
(p.170).
Tendo chegado ao pleno desenvolvimento em Kant, o princí-
pio de fundamento passou a dominar o idealismo alemão e a sua
teoria do saber de si do espírito absoluto com a qual a filosofia che-
ga ao seu fim (Heidegger 1957a, p. 114). Na modernidade, a
exigência da total racionalização do ente, decorrente do princípio
de fundamento, torna-se imposição da calculabilidade total, cara do
ser na época da vontade de potência, inicialmente percebida por
Nietzsche (p. 115). A ciência físico-matemática, para a qual só exis-
te o que é computável, é apenas a expressão mais acabada dessa fa-
se final da metafísica, fase em que tudo é posto sob o controle da
única grande potência existente: o princípio de explicitação da
razão suficiente.
Heidegger chamará atenção, ainda, para a duplicidade de sen-
tido de ratio, entendida, por um lado, como razão e, por outro, co-
mo fundamento e causa. Essa bifurcação (Gabelung), que faz da ra-
tio romana uma forquilha (Zwiesel), remontaria ao sentido original
da ratio latina que não significa nem razão nem fundamento. Para
os romanos, a ratio pertence à linguagem dos mercadores e deriva
do verbo reor que quer dizer, em primeiro lugar, contar algo e as-
sim, tomar algo por algo, representar algo como algo. Em segundo
lugar, reor significa contar com e sobre algo representado como al-
go, supô-Ia como suporte (ibid., p. 167, 172, 174). O calcular dos
romanos significa tomar algo como base, como solo (Boden), isto é,
como fundamento, para efetuar algo. O calcular é um fazer funda-
mentado, uma prestação de contas (p. 168) e, por extensão, um
produzir (producere, hervorbnngens de eventos a partir de um fun- .
damento, uma causa, com e sobre a qual se pode contar justifica-
damente. Aqui. o cálculo ainda não é definido, como acontecerá na
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19 Nas alíneas acima, oferecemos uma série de sugestões ousadas de tradução de termos
heideggerianos. No restante do presente trabalho, faremos ocasionalmente o mesmo.
Não há como evitar de correr tais riscos. Entender Heidegger, significa aprender a falar
de maneira não rnetaffsica, a servir-se de modelos ônticos da linguagem natural, recorta-
da, toda ela, sobre a cara do ente, para falar sobre o que não tem cara e sobre cuja
existência não cabe nada afirmar (cf. Heidegger, 1960c, pp. 51, 54;tr. pp. 290). De resto,
a terminologia brasileira da maioria dos filósofos metaffsicos ainda está longe de ter sido
estabelecida. Claro está, que o trabalho de tradução, sempre delicado, não poderá ser le-
vado a cabo sem criar tensões nos campos semânticos das palavras portuguesas e, sobre-
tudo, sem revigorar os sentidos esquecidos de várias delas dando-lhes, em neologismos,
novas chances de vida. Algumas boas traduções de textos heideggerianos e, em particu-
lar, o excelente livro de Nunes sobre Heidegger (1986) prestaram-me ajuda preciosa.
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23 Para Kant, as leis morais não poderiam ter o caráter de mandamentos capazes de deter-
minar a vontade pura, "se não conectassem a priori conseqüências adequadas com a sua
regra, e se não portassem consigo, pois, promessas e ameaças" (Kant 1787, p. 839). Essas
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promessas são justamente aquelas que alimentam a nossa esperança na felicidade. De fa-
to, voltaremos sobre isso em seguida, o bem soberano thõchste 0111) da razão não é sim-
plesmente a vontade cuja ação causal é determinada pela lei moral. Tal vontade, santa, é
apenas o bem supremo (oberste Gutv. O bem soberano, máximo, é a vontade santa
acompanhada de felicidade sem sombra. Na idéia da razão pura, a felicidade e a eticida-
de são, arnbas, fins {Zwecke'y necessários e inseparáveis do agir moral (jbid., p. 837).
Aqui, a palavra fim não é usada no sentido de idéia do fim, própria da faculdade do juízo,
mas no sentido de objeto da vontade e da ação por esta desenvolvida.
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24 Num outro lugar, Kant diz: "O mesmo mecanismo pelo qual o animal e o homem vivem
e crescem traz-Ihes finalmente a morte, quando o crescimento está completado" (Citado
segundo Eisler-Lexikon, p. 535).
25 Entregue como era auto-análise, Fernando Pessoa não tinha as dúvidas de Kant sobre
ã
esse assunto: "Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha)
infância, se perca. É a fuga abstrata do tempo não a fuga concreta do tempo - que é
meu, que me dói ( ... ). É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente
coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha re-
cordação". (Obra, 11,p. 673, nosso grifo). O poeta do sentir puro, em oposição ao filóso-
fo da razão pura, pode aperceber-se da essencial idade da transitoriedade e reconhecer
nela a finitude fundamental do ente do seu todo.
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28 o que torna essa felicidade possível é a unidade a priori de seus elementos, constituída
pela liberdade sob as leis gerais da vontade. Esta unidade é mesmo "a forma originária
da felicidade, que pode muito bem suportar a privação das coisas agradáveis e, por outro
lado, aceitar muitos males na vida sem a diminuição da satisfação, ou mesmo com o au-
mento desta" (Eisler-Lexikon, p. 215). O valor da virtude, ou seja, a constância na
obediência à Lei, não reside apenas no fato de ela ser a condição da felicidade. O seu
exercício é vivido ele mesmo como a fonte de auto-satisfação moral.
29 O ideal de felicidade como negação e alternativa sensível positiva da dor traumática pos-
sui uma plausibilidade imediata que só uma psicologia mais refinada e a crítica racional
podem questionar. Essa é a razão por que o hedonismo permanece uma das mais fortes,
senão a mais forte corrente da moral ocidental.
30 Essa insatisfação compreende. sublinho, não apenas o desprazer, mas também, a transi-
toriedade do prazer, tanto patológico como moral.
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31 Segundo Kant, a cessação do tempo sensível, momento em que também cessa toda mu-
dança, é um conceito revoltante para a nossa imaginação (1794, p. 512). Por isso, o "fim
do tempo" só pode ser pensado como passagem de um ente para o tempo inteligível. O
"fim do tempo da vida" significa o começo "da duração /Fortdauer/ ininterrupta do ho-
mem". Esta duração do existir humano "deve ser considerada como uma grandeza intei-
ramente incomparável com o tempo" (Kant 1794, pp. 495-6). A duração em questão é
chamada de duratio 110WIlC/lOII, isto é, duração meramente inteligível. Do tempo do exis-
tir humano após a morte, que somos obrigados a assumir, pela razão prática, não pode-
mos formar, portanto, nenhum conceito positivo, conceito com conteúdo, intuitivo. Ela é,
portanto, rigorosamente incognoscfvel.
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32 A atitude moral (moralische Gesinnungv pede que, na hora da morte, o tempo empírico
da nosa vida seja tomado como um todo para o fim de prestação de contas pela vida que
temos levado. Que a conta deve ser fechada definitivamente e que ninguém pode esperar
poder repor o débito, essa não é uma tese dogmática da religião cristã, mas um princípio
usado pela razão prática para justificar ou condenar uma conduta de vida (1793, p. 86n).
Na hora da morte, a razão prática coloca todo homem face a face com o Juiz Supremo do
mundo para que ouça o Jufzo Final que lhe dará a salvação ou danação eterna (1794, p.
498).
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33 Talvez não seja exagerado dizer que Kant foi o primeiro filósofo que reconheceu limites
externos e internos dos princípios da filosofia em diferentes áreas e, ao mesmo tempo,
criou elementos de uma filosofia positiva da finitude. Pelo primeiro, ele pode ser visto
como continuador ou mesmo aprofundador do ceticismo. Pelo segundo, Kant figura co-
mo iniciador de uma problemática inteiramente nova, que encontrou em Heidegger o
seu maior expoente até o presente momento. Cf. Loparic 1992.
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As verdades eternas,
a moralidade, a beleza objetiva, não são, no
terminus a quo, configurações do absoluto, mas explicitações da
acontecência do estar-aí, encobridoras da sua finitude. A
eternidade da verdade é uma modificação horizontal-linear do
tempo originário circular; a liberdade moralizada, o esquecimento
da finitude da liberdade conflituosa e dividida. Na ética kantiana, o
que conta não é tanto o que diz a lei, mas a função interna dessa lei
para o estar-aí, A questão não deve ser: que devo fazer?, mas: o
que significa essa lei e de que maneira ela é constitutiva para o
estar-aí e a personalidade? "Não se pode negar que aquilo que está
na lei ultrapassa a sensibilidade. Mas a questão é: qual é a estrutura
interna do estar-aí, ela é finita ou infinita?" (1929a, ed. 1973, p.
252). Finalmente, o caráter formal da beleza da obra de arte é uma
recusa do seu "sentido metafísico no interior da acontecência do
estar-aí". Quanto à angústia, ela pode, sim, ser afastada. Mas
quando isso ocorre o homem perde a possibilidade de se defrontar
com o nada. "Só se eu entender o nada ou a angústia", afirma
Heidegger, "estarei em condições de entender o ser. O ser é
incompreensível se o nada for incompreensível. Somente na
unidade da compreensão do ser e do nada pode surgir a pergunta
sobre o porquê". A libertação da angústia, prometida pelo
idealismo equivale à incapacitação para a verdadeira vida
filosóficaê'.
Resposta dura, sem dúvida, que revela bem até que ponto
Heidegger era tomado pelo problema da finitude. Nos anos que se
seguiram à publicação de Ser e Tempo, em que ficou clara a falta de
compreensão dos leitores para o seu projeto de análise temporal da
finitude do ser, Heidegger tentou, no livro intitulado Kant und das
Problem der Metaphysik (Kant e problema da metafísica) (1929a),
.encontrar, no texto de Kant, um refúgio e uma defesa da questão
da finitude do ser, que era a sua própria questão. Mais tarde, Hei-
degger admitirá que, na verdade, essa sua tentativa de interpretar
Kant a partir do Ser e Tempo introduz um modo de perguntar que
permanece-lhe estranho, embora condicionasse o de Kant35• Afir-
ma, ainda, que o recurso à filologia kantiana, domínio que possui
leis próprias, afastara-o da sua verdadeira questão: a desconstrução
do infinitismo. Parece-nos, não obstante, que os comentários, ainda
que invasivos, de Heidegger, sobre a finitude em Kant constituem,
ainda hoje, uma boa introdução à problemática da filosofia da fini-
tude em geral e, em especial, à ética.
A questão da [initude motiva, sustenta Heidegger no livro
citado, tanto a pergunta sobre o dever, como todas as perguntas
kantianas que expressam o interesse da razão. Ela reflete a
negatividade que habita o seu ser e que decorre da sua
transitoriedade. Um ente que coloca em questão um poder que é
seu e deseja determinar-lhe os limites, está se defrontando com o
não-poder. "Quem pergunta: que posso? Atesta com isso uma
finitude. Quem é movido, no seu interesse mais íntimo, por essa
pergunta, revela uma finitude no mais íntimo do seu ser". (1929a,
p. 195). Antes mesmo de Heidegger, Kant teria colocado a questão
da negatividade à frente do problema de dizer a positividade.
Sobre a relação entre o interesse pelo dever e a finitude, Hei-
degger escreve: "Quando se levantam perguntas sobre um dever, o
ente que faz essas perguntas está suspenso entre sim e não, sendo
35 Cf. o prefácio à 4~ edição de Kant und das Problem der Mctaphisik (Kant e o problema da
metaflsica), de 1973, p, XIII.
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perseguido pelo que não deve. Um ente que tem interesses funda-
mentais num dever, sabe de si como quem ainda-não-cumpriu, e se
questiona sobre aquilo que possa ser o seu dever. Esse ainda-não
de um cumprimento ainda indeterminado é testemunha de que um
ente, cujo interesse se prende a um dever, é finito no seu próprio
fundamento". (Heidegger 1929a, p. 195-6, nossos grifas).
Além disso, aquele que indaga "sobre o que é permitido, per-
gunta-se por aquilo que pode e aquilo que não pode ser objeto de
esperança. Todo aguardar revela uma privação. Caso essa necessi-
dade surja do interesse íntimo da razão humana, ele a estará reve-
lando como essencialmente finita" (1929a, p. 196).
De onde provém a negatividade manifestada nas perguntas
pelos limites do saber, nas restrições do agir impostas pelo dever e
nas incertezas do esperar? Não da nossa sensibilidade, como em
Kant, mas do próprio ser do homem, ser que consiste no cuidado
(Sorge) para com o poder-ser-finito. Na sua essência, o homem é
finito: ele contém em si mesmo o seu fim como elemento constitu-
tivo, ele é para-o-seu-fim, isto é, sua morte. O ser-para-a-morte, nos-
sa possibilidade incontornávcl, atesta a finitude essencial do tempo
do existir humano. A Iinitude humana é o sinônimo da transitorie-
dade. A negatividade constitutiva do ser humano é temporal.
o lôgos como externo ao ser e não como uma força, uma formação
(Priigung), do ser ele mesmo e pressupõem a presentidade
(Vohandenhein como o sentido do ser.Esse último ponto revela um
parentesco próximo entre as éticas acionais da infinitude e a me-
tafísica. Esta tamhém interpreta o ser, segundo mostra Heidegger,
como presentidade. Por isso, a desconstrução (Abbau) de uma po-
derá ser exatamente paralela da outra. Mais ainda, a alternativa
à
previsão. Ademais, a conquista do bem soberano necessário, que inclui a felicidade, exi-
ge, pelo menos neste mundo, conhecimentos que se fundamentam "em princípios
empíricos, pois de outro modo que não mediante a experiência, não posso saber quais as
inclinações existentes que pretendem ser satisfeitas nem quais as causas naturais que po-
dem afetar a sua satisfação". Em resumo, li metafísica da natureza faz um todo com a
metaffsica dos costumes. As duas respondem, em conjunto, à pergunta-guia da metaffsi-
ca: que é o ente? resposta: o ente é aquilo que é determinável pelos princípios do enten-
dimento (a natureza) ou pelos mandamentos da razão (a liberdade), de acordo com o
princípio de razão suficiente.
39 "O reino dos ~ins", diz Kant "só é possível por analogia com um reino da natureza; aque-
le, só segundo máximas, isto é, regras auto-impostas, este último só segundo leis das cau-
sas eficientes externas impostas" (1785, p. 84).
73
42 Em Loparic 1982, mostrei que a filosofia de Ser e Tempo era urna [enomenologia do agir,
sem discutir, entretanto, aspectos relativos a questões da ética. No presente artigo,
defendo um ponto de vista mais forte, a saber, de que a filosofia de Heidegger, tanto a de
Ser eTempo, como a da segunda fase. é, em si mesma, uma ética. Recentemente,
Gethmann (1988) e, com mais ênfase ainda. Seel (1989) avançaram na mesma direção,
embora com argumentos que nem sempre convergem com os meus, como farei ver em
seguida. Haar (1985) também fala em ética heideggeriana sem, entretanto, abordar o
assunto de frente.
43 Cf. Mórchenlvêv, p. 191. Conferir ainda as citações dos trechos do conde York, em Ser
e Tempo, apresentados como motivadores do empreendimento de Heidegger. York en-
tende que a alma de toda filosofia verdadeira. desde Platão e Aristóteles. é a pretensão
de ser prática e pedagógica. excluindo. contudo. a possibilidade de a filosofia, enquanto
ética, constituir-se como ciência racional (1927, p. 402).
75
46 t, de se notar que o projetar heideggeriano dos sentidos instrumentais dos entes intra-
mundanos não permite, por si só, [abricar instrumentos, mas tão somente encontrá-los.
Para fabricar instrumentos é necessário considerar, além do para-que e o a-fim-do-que, o
aspecto do instrumento. Ora, i! aspectualidade é um traço ontol6gico que não existe'
(ainda) no domínio da mera instrurneutalidade e que pressupõe a constituição do domí-
nio di! presentidade, necessariamente posterior, segundo Ser e Tempo, ao da instrurnen-
talidade.
78
entende "razão suficiente". Uma tal interpretação não se defenderia. Ela foi proposta,
de fato. por Gethmann (1988, p. 167), que afirma que o ser-para-a-morte é um
a-fim-de-si (isto é. uma relação a si mesmo Iundante de si mesmo) e, além disso, o
"fundamento" não apenas "necessário", mas "suficiente" da rnoralidade. Para começar,
o ser-para-a-morte não é um a-fim-de-si (das Worumwillen), pois esse existencial só se
refere a possibilidades mundanas do estar-aí. Ele é. antes, um a-fim-do-nada. O
ser-para-a-morte não é uma relação. vinculação, a si. mas, pelo contrário, urna
desvinculação de si, uma desrealização de si. Por isso mesmo, o ser-para-a-morte não
pode ser a raz»c10 suficiente de nenhuma norma do agir. Decerto, poder o não ser, o nada,
possibilita o estar-ai como ocupação preocupada, mas não a titulo de fundamento
positivo, determinante, e sim como lançamento, como abandono ao destino.
51 Segundo Gethmann, Heidegger teria podido derivar uma variante existencial do impera-
tivo categórico (1988, p. 167), isto é, regras intersubjetivamente obrigatórias de ação
moral e política, se tivesse explorado a fundo o fenômeno de a-fim-de-outros, embutido
no estar-com (Gethmann 1988, pp. 167, 169). Gethmann esquece, entretanto, que o exis-
tencial comunitário do a-fim-de-outros é definido, assim como o estar-com, no horizonte
do mundo cotidiano, ocupando, assim, um lugar no interior da estrutura do cuidado, não
sendo, portanto, um determinante dessa estrutura. Os fenômenos determinantes dá es-
trutura do cuidado são a morte e a culpa. Constitutivos tio cuidado como transcendência,
I .
isto é, de ultrapassamento da significância mundana panto horizonte do tempo estático
originário (revelado pelo irremissível e não cornpartilhável ter-que-ser-para-a-morte),
esses fenômenos não podem ser explicitados no horizonte da rnundanidade, Definitórios
do sentido do existir humano no seu todo, inclusive na sociedade, eles não podem ser so-
cializados. A ética heideggeriana do ter-que-estar-aí-no-mundo é, tanto quanto a ética
do imperativo categórico de Kant, uma ética do solus ipse (1927, p. 188) e, por esse moti-
vo, igualmente solitária e monológica.
83
Si! frente, embora. na verdade, estejamos sempre dentro dela. Isso é uma ilusão a que
princípio de fundamento. Nem por isso Kant deixa de assinalar que, se essas leis servem
para determinar a liberdade enquanto boa, elas não podem se usadas para caracterizar a
liberdade enquanto existente. O modo de existir da liberdade boa permanece
indcterminado e indeterminável, desde o ponto de vista da representação [undante em
geral. Ora, se é assim, permanece igualmente em suspenso, em Kant, se a liberdade que
pertence ao "reino dos fins", da "graça" ou da "virtude", existe ou não existe no sentido
de presentidade que caracteriza o "reino da natureza". Por conseguinte, a desconstrução
de Kant, do ponto de vista heideggeriano, não pode, nem precisa, consistir na objeção de
ontologismo, na imputação da presentidade da liberdade. Ela terá, antes, parece-me, que
se concentrar na desconstrução do tipo de lei proposto por Kant para determinar essa
liberdade incompreensivel. A liberdade kantiaua pode ouvir a voz da razão e viver dela.
Mas, isso não quer dizer que ela seja incapaz de entender leis instruídas em outras
linguagens, por exemplo, numa gesta que desconhece o princípio de razão suficiente.
Essa observação talvez explique por que um Levinas, adversário decidido do
ontologismo, sente-se particularmente próximo da filosofia prática de Kant (Levinas
1991, pp. 20, 23) e por que recusa decididamente a redução heideggeriana do esperar
kantiano ao aguardar uma presentidade, para perguntar: ter esperança, isso não
significaria mais que ser? (Levinas 1992, p. 73). - Voltaremos sobre esse assunto na
secção 10.
59 O.E. Moore (1903), além de Max Scheler e Nikolai Hartrnann, é um dos proponentes
mais destacados da ética dos valores. Ele os toma por propriedades objetivas inanalisáveis
e irredutfveis, seja aos predicados Iísicos (hedonistas, por exemplo), seja aos
supra-sensíveis (kantianos, por exemplo). Desde o ponto de vista de Heidegger,
entretanto, Moore permanece preso ao pensamento metaíísico, ao primado da presença.
87
60 Urna outra maneira, também tradicional no Ocidente, de tornar sem efeito o passado é o
arrependimento. No contexto da fé cristã, a redenção 0",oo5l./IIg) do "tem sido" possui o
caráter de perdão do pecado. Essa maneira de desrealizar o passado está fechada para o
pensamento do ser (cf. Loparic 199()a, capo VI).
88
66 So lemt ich traurig den verzicht] Kein ding sei wo das wort gcbricht, Heidegger 1959a, pp.
163,220).
95
67 o Ió~os dos pré-socráticos, lembra Hcidegger, tinha ainda () mesmo sentido bifurcado
que a palavra de George: o de gesta que mostra o ente, deitando o jacente na presença, e
que diz o sei; 11 presença do presente (Heidegger 1959a. p. 237).
96
68 No primeiro capitulo de 1'110 Te King, Lao Tse diz: "Voie qu'on énonce/ N'est pas Ia
Voiel 110mqu'on prononce/ n'est pas le Nom. Ii Sans nom/ Fit apparaüre le Ciel Terre/
Nomrné/ Est Mere des Dix Mille êtres.' (1'110 Te King; ed. Desclée De Brouwer, 1972, tr.
de Claude Larre s.j.).
97
69 Para muitos leitores, o retorno ao antigo, proposto por Heidegger, faz parte do
neopaganismo que grassava na época (cf. Habermas 1988, p. 186 e nota). Aqui devemos
ter em mente o fato de que o termo "pagão", derivado do latim paganus ("aldeão" ou,
ainda, "civil", em posição ao miles Christi, soldado cristão das legiões romanas) é uma
designação pejorativa dos inimigos do Deus verdadeiro e, por extensão, da verdade
revelada. Tudo indica que o antigo de Heidegger é de urna antigüidade muito mais alta
que o cristianismo, comparável àquela da "antiga natureza" de Alberto Caeiro.
Fernando Pessoa, de que se tem notícia ter pertencido ao Conselho Magistral do
Neopaganismo Português junto com o filósofo Dr. António Mora, observa que ninguém
pode ser neopagão, assim como a pedra não pode ser "ueopedra" ou a maçã "neomaçã".
"Tem o indivíduo que nascer pagão para ser pagão. Nascitur non fit, como o poeta, e,
afinal, como tudo o que é estável neste mundo." (Obra, III, p. 377). A evocação
heídeggeriana do antigo é tudo salvo urna manifestação de neofilia. Esse modo de "estar
por dentro" caracteriza, antes, a modernidade.
70 Sobre a diferença entre a compreensão hermética e hermenêutica do ser, cf. Heidegger
1959a, p. 121.
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74 o texto da tradução de Heidegger é o seguinte: " ... entlang dem Braueh; gehõren
nárnlich lassen sie Fug somit auch Ruch eines dem anderen (irn Verwinden) des
Un-Fugs". (Heidegger 1957h, p. 342). E. Stein oferece a seguinte versão: " .. .'Segundo a
mantença; deixam pois ter lugar o acordo e assim também o cuidado, um para o outro
(no penetrar e assumir) do des-acordo.!" (Os pré-socráticos, Ed. Abril, p. 47).
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75 o mau gerado pela separação foi descrito por outros autores da antigüidade grega, por
exemplo, por Plotino: "O princípio do mau /nas almas/ é a audácia, a geração, a primeira
diferença e a vontade de serem de si mesmas. Alegradas da sua independência, usam a
espontaneidade do seu movimento para correr para o lado oposto de Deus; tendo
chegado ao ponto mais distante, ignoram até mesmo de que provêm dele." (Eneades, V.
1, 1).
81 o esforço dos proponentes da ética do discurso em achar uma racional idade ampliada
como orientação geral para a vida humana no seu todo decorre de um encurtamento da
reflexão sobre o que está em questão nas éticas do silêncio.
82 Tradicionalmente, essa tese era interpretada no sentido de que o finito era o fIIS crcatutn
e, como tal, urna limitação, isto é, uma a negação, do ens originariurn, o seu criador
infinito.
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83 Traduzimos por "armação" o termo heideggeriano Gcstell que nomeia o modo de ser do
ente Í18 época di! técnica.
87 Heidegger sustenta que 11 linguagem ordinária não é, em si. metaffsica e, sim, ôntica, mas
que foi, ao longo da história do Ocidente, interpretada à maneira da metaffsica (1969, p.
55; tr. p. 291).
95 Agora é fácil entender como é possível criticar a ética do discurso (que só se interessa
pelo tipo de determinação da liberdade, no caso, pela sua coletivízaçâo) e ainda trabalhar
com Kant (que se abriu, o primeiro entre os filósofos, ao problema da indeterminação
do modo de existir da liberdade). Aqui nós divergimos, até um certo ponto, da
explicítação heideggeriana do sentido do ser em Kant, oferecida em Heidegger, 1963. É
importante notar que, nesse texto, Heidegger, mais preocupado em se distanciar do que
em apreciar as dimensões do pensamento kantiano, restringe a sua análise à primeira
Critica e deixa totalmente de lado a questão do modo de existir da liberdade,
desenvolvida nos escritos de Kant sobre a razão prática.
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Nota: As obras são citadas, via de regra, em edições originais. Na medida do possível,
são levadas em conta as traduções brasileiras que consideramos de qualidade. Estas nem
sempre coincidem com as nossas. Quando o contexto permite, as referências são indicadas
apenas pela página.
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RElmRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
___ 1947: Platons Lehre von der Wahrheit. Mit einem Brief
über den 'Humanismus' ". Bem: Francke. (Tr. de Carta sobre
o 'humanismo' em Heidegger 1979, pp. 147-175).
___ 1963: Kants These über das Sein. 2~ ed. Frankfurt a. M.:
K1ostermann. (Tr. em Heidegger 1979, pp. 231-254).
___ 1794: Das Ende allet Dinge. Ed. Weischedel, vol. IX, p.
1TJ ss.