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ÉTICA E FINITUDE (*)

Zeljko LOPARIC
UNICAMP

A Benedito Nunes, leitor de Heidegger

1 A CRISE DO INFINITISMO

infinitismo é o princípio organizador da metafísica ocidental'.


Na ontologia, busca-se causas e verdades, na ética, máximas e
regras que sejam ao mesmo tempo primeiras e vigorem incondicio-
nalmente, que sejam infinitas. Quais são as esperanças depositadas
na infinitude do fundamento? As de encontrar um solo sobre o
qual seria possível, pelo menos em tese, assentar uma vida humana
plenificada, eterna e integrada numa totalidade cósmica e social.
Em outras palavras, visa-se a achar um antídoto universal para a
falta, a transitoriedade e a particularidade, os três elementos cons-
tituintes da finitude humana, todos assinalados pela dor.

(*) o presente artigo é uma versão modificada e ampliada da palestra pronunciada durante
o Ciclo sob o título: Possibilidades de uma Nova Ética. Por falta de espaço, o material
relativo a Levinas e à periculosidade das éticas foi deixado para outras publicações.
Agradeço a Eisa Oliveira Dias Loparic, Juliano GarciaPessanha e Leopoldo P. Fulgên-
cio Jr. pelas críticas e ajuda na elaboração do texto final.

Emprego o termo metafisica no sentido de Heidegger, para me referir à filosofia ocidental


em geral, entendida como o pensamento do ser posterior a Pia tão. Suponho, com Heideg-
ger, que a antologia e a ética fazem parte da rnetaffsica. A razão ficará clara em seguida.
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Hoje, o infinitismo está em crise tanto na filosofia como no resto da


cultura ocidental. O relativismo teórico e a falibilidade são moeda
. corrente nas teorias da natureza. A morte das utopias e domessia-
nismo secularizado sinaliza a mea culpa das éticas infinitistas-,
Também perderam a força as idéias correia tas do progresso e da
perfectibilidade do homem. A fantasia de criar o novo homem,
. quando prevaleceu, revelou-se um caminho de retorno à bárbarie.
O próprio conceito de história caiu em descrédito. Fala-se até em
fim da história. Não no sentido do cumprimento de um destino,
mas, pelo contrário, de substituição do movimento de totalização
pela administração total dos conflitos que vão aparecendo ..Assim
como o conceito tradicional de história, o da ética também sofreu
desgaste. Entraram em crise conceitos que atravessaram épocas: o
do dever e o do agir. De fato, hoje, o dever virou sinônimo de obe-
diência à realidade dos fatos e aos acordos sociais, perdendo o
sentido nobre de moralidade incondicional ou de compromisso
histórico inarredável. Agir não significa mais fazer o bem ou fazer
histôria, mas, de maneira crescente, agirplanejadamente. Dos frag-
mentos da ética de perfectibilidade surge a engenharia social. Das
cinzas da história do progresso, um mundo crescentemente admi-
nistrado. Nessas condições, pode não surpreender a sugestão de
que o modelo de história mais condizente com a acontecênciaê do
homem poderia bem ser 9 da história da arte, em que não há lugar
para os conceitos infinitistas que anunciam a plenitude dos tempos.

2 Numa entrevista, Levinas declarou: "Mas, em princfpio, os que pregam o marxismo espe·
ravam tornar o poder polltico inútil. /. . ./ Há aí um messianismo. Outra coisa é o que isso
deu na prática ... Para mim, uma das grandes decepções da história do século XX, tem si·
do o fato de um movimento como esse ter dado no stalinismo. É isso aí a finitude!" (Levi-
nas 199111982/,p. 139).

3 Aqui, o termo acontecência traduz geschehen e Geschichüichkeit do estar-ar (Daseinv, de


Ser e Tempo, bem como Seinsgeschehen, Geschichtlichkeit des Seins, do segundo Heideg-
geroUsamos acontecente para verter o geschichtlicli e seinsgeschichtlich. Cf, a nota 9.
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Alguns, no Oriente e no Ocidente, levantaram suspeitas de


que ambos os conceitos, o de ética baseada em regras categóricas e
o de história de salvação, seriam idiossincrasias ocidentais. Segundo
Daisetz T. Suzuki, a idéia bíblica de que o homem foi criado à ima-
gem de Deus e a natureza feita para ser dominada, idéia que
presidiu a todos os messianismos e milenarismos europeus, marca o
começo da tragédia humana (Suzuki 1956, p. 231). Karl Lówith,
num artigo escrito em homenagem a Heidegger, observa que a di-
visão entre o mundo da natureza e o mundo da história não existe
fora da Europa, por exemplo, no Japão. Ela decorreria exclusiva-
mente das tradições grega e judaica, tradições que, teme Lõwith,
tornaram-se estreitas demais para poder continuar orientando a
discussão dos problemas na ordem do dia. Lõwith cita a afirmação
do filósofo japonês, Kitaro Nishida (1870-1945)4, de que o Ociden-
te foi levado ao dualismo natureza-história porque, desde
Parmênides até Hegel, só pensou o ser, sem conhecer o conceito
verdadeiro, budista, do nada. Conceito este que não significa a me-
ra negação do ser e sim aquilo que há de mais rico e mais positivo.
O homem ocidental buscou o positivo ou, pelo menos, o melhor,
no lugar errado: no próprio ser, erroneamente suposto como infini-
to; e, além disso, usou os meios errados: ações visando ao aperfei-
çoamento infinito, dirigido por deveres éticos e pragmáticos, todos
em princípio racionalizáveis, isto é, plenamente justificáveis. A sa-
bedoria diz, entretanto, que o perfeito é menos distante de nós que
nós mesmos, e q_uesó nos aproximaremos dele se deixarmos de agir
em vista de resultados que tragam o progresso (Lowith 1959, pp.
109-115)5. .

4 Lowith está se referindo à obra de Kitaro Nishida: Die morgenlãndischen und abendlán-
dischen Kultutfonnen in alter Zeit \'0/11 metaphysischen Standpukt aus gesehen. Berlim:
Abhandlungen der Preussischen Akadernie der Wissenschaften, 1939.

5 Huston Smith, então professor de filosofia no Massachuseus Institute 01 Techonology, no


seu prefácio a uma coleção de textos zen-budistas (Kapleau 1967), explica, da seguinte
maneira, o crescente interesse do Ocidente pela cultura Oriental e, em particular, pelo
zen-budismo: "Nós entenderemos a atração específica do zen-budismo se nos dermos
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Nos mais diferentes domínios, a nossa época está esponta-


neamente abandonando a idéia de solução final dos problemas da
finitude. Mais ainda, as soluções infinitistas tradicionais caíram sob
a suspeita de gerarem, elas mesmas, novos perigos, avaliados como
infinitos, por ameaçarem, extremos, a própria essência do homem.
Tal objeção foi repetidamente dirigida por Heidegger contra o in-
finitismo, tanto contra o da ontologia e teoria do conhecimento,
como o da ética, ambos de origem grega. A verdade da metafísica
seria a vontade de potência, razão pela qual ela existiria hoje na
forma da técnica planetária que, respaldada na ciência moderna,
sujeita incondicionalmente todas as coisas à manipulação calcula-
dora", A verdade da ética estaria no igualitarismo não menos terro-
rista que ambiciona, sob o manto da justiça, semelhante avassala-
mento de todas as ações. Contribuindo para a longa série de críti-
cas alemãs, tanto de direita como de esquerda, do boIchevismo,

conta da extensão em que o Ocidente contemporâneo segue animado pela 'fé profética',
pelo sentido da santidade do dever, pela pressão do modo como as coisas poderiam e de-
veriam ser mesmo se, por enquanto, ainda não sejam. Tal fé tem virtudes óbvias, mas se
torna excessivamente opressiva, quando não é contrabalançada pelo sentido complemen-
tar do caráter sagrado do é. Se os nossos olhos sempre se dirigem para o amanhã, o hoje
se esvai sem ser percebido. Para o Ocidente, que na sua preocupação de remodelar o céu
e a terra, corre o perigo de deixar escapar das mãos o momento presente da vida - a única
vida que realmente temos, o zen relernbra que se não aprendermos a perceber o mistério
e a beleza da vida presente, a nossa hora presente, não perceberemos mais o valor de vida
alguma, de hora alguma. /.. ./. O zen nos diz que o é é sagrado /.. ./. " (Kapleau 1967, p.
XIII). Huston Smith está se referindo aos esforços que não tentam mais, como fazia
Schopenhauer (em parte, por dispor apenas de traduções muito escassas e falhas dos tex-
tos orientais), e como ainda fez Jung, encaixar o pensamento oriental nas categorias oci-
. dentais e, sim, aprender dos orientais novos modos de pensar, como sugerem R.M. Smul-
Iyan (1977), um lógico matemático, e Masud Kahn (1979), um psicanalista pós-freudiano.

6 Heidegger gosta de citar as opiniões dos cientistas e tecnocratas sobre a era do átomo. De
um livro intitulado Vil'eremos através de átomos prefaciado pelo prêmio Nobel OUo Hahn,
ele destaca a frase: "A era do átomo pode tornar-se uma época cheia de esperanças, flo-
rescente, feliz, uma época na qual viveremos através de átomos. Isso só depende de nós".
(1957a, p. 198). Numa outra ocasião, Heidegger cita a seguinte opinião de dezoito prê-
mios Nobel, emitida na Ilha de Mainau em junho de 1955: "A ciência é um caminho para
a vida humana mais feliz". (Heidegger 1959b, p. 19).
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Heidegger dirá que esse movimento, ao perseguir a industrialização


ilimitada e impor o nivelamento massificante (nesse ponto também
tributário da moral judaico-cristã) é a perfeita expressão da própria
essência do infinitismo devastador da cultura ocidental".
É justamente o desenraizamento de tudo o que dá na terra, o
crescimento do deserto, já diagnosticado por Nietzsche, que se tor-
na tema central do pensamento de Heidegger. Ele dirá que a saída
não está na mera modificação da nossa concepção do fundamento
infinito, ou seja, numa nova ontologia e nova ética. A salvação só
poderá se dar caso o projeto infinitista, nos dois domínios, seja re-
conhecido como um descaminho perigoso e for substituído pelo
caminho de retorno à finitude do ser. A saída estaria num pensa-
mento que se inicia com o atestado de morte da metafísica e na re-
consideração dos conceitos de dever e de agir. Só assim teríamos a
chance de encontrar "novas maneiras de tomar-chão /Bodenstiin-
digkeitl" (Heidegger 1959b, p. 26).
Na fase do Ser e Tempo, no final dos anos 20. Heidegger ainda
pensava que a destruição da metafísica'' poderia valer-se da trans-
cendência constitutiva do existir humano. Em meados dos anos 30,

7 Cf. Heidegger 1989, p. 54, bem como I-Ieidegger 1957a, p. 149.

8 Cabe observar que a destruição (Desuuktionv da meta física não significa o seu desmante-
lamento, mas a sua desconstntção (Abhau) a partir da sua origem pré-metaffsica. Trata-se
de uma tarefa que obedece a leis próprias, distintas das que regem estudos histórico-fi-
losóficos e Iilológicos (as traduções violentas dos textos gregos, oferecidas por Heidegger,
são a melhor prova disso). Da mesma maneira, a expressão "o fim da metaftsica" não de-
signa a sua eliminação da vida cultural do Ocidente, mas tão somente a libertação do ente
do poder da representação. - O projeto heideggeriano de desconstrução foi associado por
Levinas e Derrida, com repercussões conhecidas, ao antiontologismo da tradição judaica.
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ele descobriu que o infinitismo não era fruto de um projeto huma-


no, mas um destinamento? do ser ele mesmo. Assim sendo, o ho-
mem também não podia desvencilhar-se do infinitismo por suas
próprias forças, devendo aguardar a viragem (Kehre) do ser. Virada
súbita, não mediatizada e condicionada a um novo destinamento,
que só poderá dar-se como contencioso e, assim, também finito.
Para que possa corresponder a esse destinamento, entrar nes-
se contencioso, o homem não precisa apenas afastar-se de todas as
doutrinas metafísicas. Ele tem que convalescer da própria essência
da metafísica: transcender a vontade de presenciar a presença de
todas as coisas e de si mesmo na [orma da idéia, à maneira 'platô-
nica, e, a [ortiori, abandonar o acesso representacional ao ente. O
homem tem que se deixar interpelar pela presença mediatizada pe-
la ausência. Heidegger faz ver que o nosso pensamento da positivi-
dade precisa compenetrar-se daquela negatividade que não oblite-
ra, como temia o infinitismo tradicional, mas que, pelo contrário,
possibilita o acesso originário ao ser. Haverá necessidade de se
pensar o não-ser no ser, o ocultamento no desocultamento da ver-
dade, o in-devido em todo ter-que-ser. Haverá precisão em atentar
para o positivo na privação que possibilita. Será incontornável re-
conhecer, na positividade do fundamento tradicional, a negativida-
de do retraimento possibilitadorl'',

9 Por destinamento (do ser) traduzo as expressões heideggerianas geschick des seins e Seins-
geschick; bem como certos usos de geschichte des Seins e de Seinsgeschichte. Proponho,
ainda, o neologismo destinamental para o heideggeriano geschicklicn e, em certas
acepções, para o seinsgeschichtlich. Creio ser conveniente guardar historial, devido ao seu
sentido etimológico, que deriva do grego historein, investigar, observar, narrar, para carac-
terizar processos que se dão no interior das épocas marcadas pelos destinamentos do ser,
bem como os sabere.s que dizem respeito a esses processos. Cf. a nota 3.

10 Sobre a apreciação do positivo na essência privativa da a-létheia, cf. Heidegger


1947, p.51.
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Esse pensamento da finitude é o agirfundamental para o qual


o homem é convocado pelo próprio ser negativado. Corresponder
(entsprechen) a esse chamado, tentar dar resposta à pergunta do
sentido do destinamento contencioso do ser, é um ter-que (müs-
sen) mais originário do que qualquer dever moral'". Esse ter-que
cumpre-se na medida em que o homem aprende a morar no espaço
da manifestação e, ao mesmo tempo, do ocultamento do ser. A res-
posta é dada na medida em que o homem edifica e pensa a partir
do e para o morar (1954, p. 162). Morar, edificar e pensar, esses
principais modos de responder ao chamado do ser, são também os
seus principais deveres na ética finitista do segundo Heideggert-,
No que segue, evocaremos alguns passos de Heidegger na
desconstrução do infinitismo para, na última secção, apreciar as vir-
tudes comparativas das versões da ética finitista, por ele propostas,
em relação às infinitistas.

2 O PRINCÍPIO DE IfUNDAMENTO

o infinitismo
das éticas tradicionais, assim como o das ontolo-
gias, é centrado no principio de fundamento: nihil est sine ratione
(nada é ou existe sem razão). A palavra latina ratio é traduzida não

11 Além de corresponder e correspondência, Nunes usa também reciprocar e reciprocidade


para entsperechen e Entsprechung de Heidegger (Nunes 1986, p. 216). Essa proposta sus-
cita reservas já que a relação do homem ao ser não é de diálogo e, sim, de obediência, o
que exclui a reciprocidade.

12 Levinas seguirá Heidegger no seu distanciamento do infinitismo tradicional. Não o fará,


no entanto, para reconhecer a precisão do tomar-chão na verdade do ser e sim a fim de
preparar o homem para o sacriftcio do ser. Retomando à tradição judaica, liberada com
a ajuda de Heideggerda tradição metaffsica infinitista, Levinas tentará elaborar uma ética
também Iinitista, mas independente de qualquer pensamento do ser, uma ética do servi-
ço ao próximo, traço vivo do Outro-que-o-ser (cf. Levinas 1974).
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somente como fundamento, mas também como razão e, ainda, co-


mo causa. De acordo com a segunda tradução, o princípio de fun-
damento é chamado de princípio de razão suficiente. De acordo
com a terceira, ele é conhecido como princípio de causalidade.
Uma outra versão latina do mesmo princípio, omne ens habet
rationem (todo ente tem causa), esclarece ser o ente aquele que
tem a razão ou o fundamento. Aqui ens, (ente), designa tudo o que
pode ser dito existir. O existente supremo, se admitido, é dito ter
razão ou.causa em si. Ele é causa sui (causa de si). Todos os outros
entes, desde os processos físicos até as ações humanas, têm razão
ou causa num outro ente o qual, por sua vez, é considerado como
sendo, em última instância, o ente supremo ou algo equivalente
(por exemplo, a série infinita kantiana de causas empíricas). Nesse
contexto, o princípio mencionado passa a rezar: nihil est sine causa
(nada é sem causa) ou nullum effectum esse absque causa (não exis-
te nenhum efeito sem causa).
O princípio de fundamento, essência do infinitismo metafísi-
co, tanto ético como ontológico, foi questionado por Heidegger,
desde o início da sua obra. Em Ser e Tempo (1927), Heidegger de-
senvolveu uma fenomenologia do existir humano cujo ponto cen-
tral é justamente o de mostrar que esse modo de existir, designado
como estar-aí (Dasein}, carece de fundamento. Como o estar-aí é,
ao mesmo tempo, o espaço de manifestação de todos os entes, se-
gue-se que a gestação (Aufgehen) do ente no seu todo também ca-
rece de razão suficiente ou de causa determinante. O ponto essen-
cial dessa fenomenologia não é a explicitação de conceitos básicos
de uma antropologia filosófica, mas a desconstrução do princípio de
fundamento mediante a discussão da negatividade interna ao es-
tar-aí, Com Ser e Tempo, pela primeira vez na história da filosofia
ocidental, o pensamento do não-ser e do não-agir passa a determi-
nar o horizonte do pensamento do ser e do agir.
O estar-aí existe, diz Heidegger, como projeto lançado. En-
quanto projeto ou existência no sentido estrito, o estar-aí deixa es-
tar, ele institui (stiftet) as possibilidades de manifestação do ente no
seu todo (inclusive de si mesmo, como ente concreto). Nesse senti-
do, ele é o fundamento soberano de toda possibilidade e de todo
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sentido (do a-fim-de-que, das Worumwillen). Enquanto lançado,


entretanto, o estar-aí nunca pode superar o fato de que o seu pro-
jetar (ec-sistir) carece de fundamento. Desse ponto de vista, ele é
um fundamento nulo (nichtig), que pode apenas assumir a sua nuli-
dade ou nadidade (Nichtigkeit) a título de projeto que, desde já,
tomou chão no mundo e se envolveu com as possibilidades munda-
nas (realizáveis no mundo) nas quais se enredou ou cresceu, e que
constituem a sua facticidade. É como esse projeto lançado, como
liberdade encarnada'", que o estar-aí-no-mundo põe fundações pa-
ra e legitima (begründet, ausweist) o entel", Isso possibilita que o
ente seja questionado, de diferentes maneiras, quanto ao seu por-
quê: por que assim e não de outro modo? Por que isso e não aqui-
lo? Por que algo e não antes o nada? Essa legitimação do ente é
igualmente nula (nichtig) na medida em que é sempre revogável e
também porque, escolhendo e deixando ser (realizando) umas das
possibilidades projetadas, o estar-aí terá deixado de escolher ou-
trasl>,

13 Sobre o caráter encarnado do projeto existencial, cf. a observação de Heidegger, de sa-


bor platônico, feita durante a disputa com Cassirer, em Davos (1929), de que, num certo
sentido, o homem existe "acorrentado num corpo e que, dessa maneira, ele se vê envol-
vido por vínculos com o ente, em meio ao qual se encontra, não no sentido de um espíri-
to que olha essa situação de cima para baixo, mas no sentido de que, lançado em meio do
ente..o estar-aí, por ser livre, irrompe no ente, irrupção que é sempre acontecente e, em
última instância, acidental" (Heidegger 1929a, 4. ed. 1973, p. 262). Sobre a disputa de
Davos, cf. a secção 5.

14 E. Stein traduz stiften por erigir e begriinden por fundamentar (Heidegger 1979, p. 120).

15 Em Ser e Tempo e outros escritos da primeira fase, Heidegger oferece uma interpretação
da finitude do ser no horizonte do tempo tridimensional do estar-ar. A bifurcação entre o
projeto e o lançamento será fundamentada na oposição entre o futuro e o passado de!
tempo-do-mundo, tridimensional. No nível mais fundamental ainda, a oposição entre o
sim e o não do poder-(sim)-estar-aí e o poder-não-estar-aí será remetida àquela entre
o ainda-sim-desde e o não-mais do passado-preteridade e do futuro-advento, êxtases do'
tempo originário do estar-ar. Para os fins do presente artigo, não é necessário entrar nes-
sa tentativa de redução da negatividade ontológica à negatividade temporal (não-mais,
ainda-não). De resto, o segundo Heidegger desistirá da interpretação temporal da finitu-
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o estar-aí como fundamento de possibilidades mundanas é,


necessariamente, um estar-aí-no-mundo. Estar-na-mundo, significa
sempre, também, morar no mundo, "demorar-se no mundo, ocupa-
do das coisas intramundanas e preocupado, solícito, para com os
outros". Mundo é a nossa morada de todos os dias, a pousada em
que acontecemos entre o nascimento e a morte. É a partir dele que
nós nos entendemos de início e no mais freqüente.
O instituir, o tomar-chão e o legitimar constituem o existir do
estar-aí como fundamento. Eu sou significa eu sou fundamento, eu
sou responsável. O estar-aí é a liberdade para o fundamento que
transcende o ente no seu todo (todos os entes intramundanos, bem
como as suas próprias possibilidades muda nas). Essa liberdade, essa
transcendência como estar-aí-no-mundo, é finita. O tomar-chão é
ultrapassado, e assim nadificado, pelo projetar. Este, por seu lado,
é desde sempre finitizado pela tomada-da-chão. A insuperável bi-
furcação em existencialidade e facticidade só pode oferecer uma
legitirnação finita. Portanto, o estar-aí é, como tal, o fundamento
finito dafinitude do enie'».
A finitização mútua do projeto e do tomar-chão (dafacticida-
de), não constitui toda a finitude do estar-aí, nem mesmo quando
lhe acrescentamos a finitude das legitimações particulares, imposta,
como dissemos, pelo particularismo definitório das escolhas. A na-
dificação (Nichtung) mais radical do projetar e do tomar-chão e,

de do ser e passará a pensar esta última a partir do Ereignis, como mostraremos. Pode-se
até dizer que foi a negatividade do tempo tridimensional, concebido como o horizonte
transcendental do sentido do ser, que ocultava a negatividade mais profunda do Ereignis,
a "quarta dimensão" (Heidegger 1969b, pp. 29, 31; tr. pp. 276, 277).

16 A idéia de fundamento bifurcado a partir de uma raiz comum encontra-se, também, em


Heidegger 1929a, onde ele tenta, sem êxito, mostrar que, em Kant, a imaginação trans-
cendental é o tronco comum dos dois ramos básicos do conhecimento: do entendimento
e da sensibilidade.
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por conseguinte, da legitimação do ente, decorre do fato de o es-


tar-aí-no-mundo ser transcendido pelo seu próprio e intransponível
ser-para-a-morte, isto é, ser-para-o-nada!". A projeção das possibi-
lidades mundanas é um poder ser já ultrapassado, desde sempre,
pela morte, pela possibilidade da impossibilidade, o único poder ser
irrealizável em princípio, no qual o estar-aí também já está lançado.
O traço geral do estar-aí é a transcendência de si mesmo como es-
tar-aí-no-mundo: a transcendência da transcendência. Todo proje-
tar, tomar-chão e legitimar está negativado pela única possibilidade
que não pode ser negativada: a de não-mais-estar-aí.
A possibilidade de não-mais-estar-aí não é nem mesmo um
projeto possível. Improjetável, ela recai sobre a vida do homem
como uma dívida (Schuld) que tem que ser assumida (übergenno-
men) sem papel passado, dívida impagável no entre o nascimento e
a morte e que só pode ser saldada na hora do Não-mais. Incon-
tornável e irremissível, a morte é a possibilidade mais desrealizado-
ra em nosso poder. Todo tomar-chão, pensar e agir é aberto e, ao
mesmo tempo, cingido pelo implacável círculo do impensável e do
não factível, pelo nada (p. 285): o estar-aí é uma liberdade para o
desenraizamento total. Ela é uma bifurcação não mais horizontal,
entre o mundo-projeto e o ente, mas também sim vertical, entre o
possibilitador poder-não-mais e o possibilitado poder-sim-ainda. A
primeira dessas bifurcações abre a não-identidade entre o ente e o
mundo e constitui a formulação inicial, ainda existencial, do concei-
to heideggeriano de diferença ontológica. A segunda introduz

17 É extremamente importante notar que, em Heidegger, a possibilidade da morte, a possibi-


lidade da impossibilidade, não deve ser interpretada no sentido antropológico, como uma
caracterfstica a mais do ser humano, mas como a negativaçào do ser pelo nada, como a in-
timidade entre o ser e o nada. o conceito de ser-para-a-morte apenas explícita esse fenô-
meno no exemplo do existir humano. A persistente incompreensão dessa problemática,
além de outras razões, fará com que Heidegger se afaste cada vez mais da análise existen-
cial do nada para introduzir, ao longo da sua obra, uma série de conceitos de negativida-
de, cada vez mais profundos, visando a dar conta do mesmo problema: a nadificação do
que é,
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o contraste entre o ente e o nada e inicia numa outra negatividade,


É só como tempo que Heidegger reconhecerá, com toda a clareza,
que o não nadificante (nichtend) do nada e o não nadificante da di-
ferença ontológica não são a mesma negatividade, embora se co-
pertençam num sentido que só ficará melhor explicitado no final da
sua obra'",
No seu Der Satz vom Grund (1957a), Heidegger volta a des-
construir o princípio de fundamento. Ele não parte mais do concei-
to existencial de transcedência, mas de um outro tipo de bifurcação
entre o ser e o ente, aberta e mantida pelo próprio ser. Não se trata
mais de diferença entre o mundo projetado pelo estar-aí eo ente
intrarnundano, mas da dobra (Zwiefalt) entre o ser, ele mesmo,
pensado como presença, e o ente que se apresenta (1959a, p. 135).
Dobra assinalada pelo duplo sentido, verbal e nominal, do particí-
pio presente ens: ente e sendo (Heidegger 1961, pp. 134, 174) e
que Heidegger denominará também de ruptura (Riss) e dilacera-
mento (Zerrissenheiti (ibid., p. 32; 1959a, p. 27). Diferentes, ser e
ente não são um, sem, contudo, serem dois.
Heidegger sustenta que o princípio de fundamento se consti-
tui no principal meio pelo qual a metafísica ocidental esquece o ser
como diferença ontológica entendida dessa maneira não existen-
cial. Depois de um longo período de incubação que começou com
Platão e Aristóteles, esse princípio foi anunciado pela primeira vez
por Leibniz, como o principium magnum. grande et nobilissi-
mum (1957a, pp. 100, 193), como o "princípio de todos os princí-
pios" (p. 21). A ratio suficiens, o fundamento própria e unicamente
suficiente, a summa ratio, " mais alta garantia para a ubíqua calcu-
labilidade, para o cálculo do universo, é Deus". Heidegger lembra a

18 os dois nãos foram explicitados, em separado. em dois artigos de Heidegger, publicados


em 1929. O primeiro, sobre a essência do fundamento (1929b), trabalha o não da dife-
rença ontol6gica, o segundo, Que é tnetaftsica (J929c), trata do não do nada. Mais tarde,
Heidegger admitirá que esses textos não estão à altura da tarefa que se propõem (Hei-
degger 1929b, 3~ed. 1949, p. 5; tr. p. 95). Sobre a questão da copertinência dos dois nãos
a urna negatividade mais originária, cf. a secção 10.
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nota de Leibniz de 1677, que diz: Cum Deus calculat, fit mundus.
Deus é comparável à máquina universal de cálculo, à máquina de
Turing, que só pensa computando e que resolve, dessa maneira, to-
dos os problemas do mundo. Mesmo depois da morte de Deus,
atestada por Nietzsche, na época de hoje, "o mundo permanece
calculado, pondo até mesmo os homens nos seus cálculos, na medi-
da em que tudo é contado segundo o princípio de razão suficiente"
(p.170).
Tendo chegado ao pleno desenvolvimento em Kant, o princí-
pio de fundamento passou a dominar o idealismo alemão e a sua
teoria do saber de si do espírito absoluto com a qual a filosofia che-
ga ao seu fim (Heidegger 1957a, p. 114). Na modernidade, a
exigência da total racionalização do ente, decorrente do princípio
de fundamento, torna-se imposição da calculabilidade total, cara do
ser na época da vontade de potência, inicialmente percebida por
Nietzsche (p. 115). A ciência físico-matemática, para a qual só exis-
te o que é computável, é apenas a expressão mais acabada dessa fa-
se final da metafísica, fase em que tudo é posto sob o controle da
única grande potência existente: o princípio de explicitação da
razão suficiente.
Heidegger chamará atenção, ainda, para a duplicidade de sen-
tido de ratio, entendida, por um lado, como razão e, por outro, co-
mo fundamento e causa. Essa bifurcação (Gabelung), que faz da ra-
tio romana uma forquilha (Zwiesel), remontaria ao sentido original
da ratio latina que não significa nem razão nem fundamento. Para
os romanos, a ratio pertence à linguagem dos mercadores e deriva
do verbo reor que quer dizer, em primeiro lugar, contar algo e as-
sim, tomar algo por algo, representar algo como algo. Em segundo
lugar, reor significa contar com e sobre algo representado como al-
go, supô-Ia como suporte (ibid., p. 167, 172, 174). O calcular dos
romanos significa tomar algo como base, como solo (Boden), isto é,
como fundamento, para efetuar algo. O calcular é um fazer funda-
mentado, uma prestação de contas (p. 168) e, por extensão, um
produzir (producere, hervorbnngens de eventos a partir de um fun- .
damento, uma causa, com e sobre a qual se pode contar justifica-
damente. Aqui. o cálculo ainda não é definido, como acontecerá na
50

modernidade européia, no domínio das representações submetidas


às regras de uma subjetividade transcendental.
Na filosofia grega o nome para o fundamento é lógos que per-
tence ao verbo légein. O significado corrente de légein é juntar
(sammeln), conjuntar (versammeln), assentar (legen), calcular (re-
chnen), ligar (verbinden). Légein significa tudo isso, mas tem um
significado ainda mais essencial, o do verbo dizer em português, que
deriva do latim dicete, proclamar solenemente. O lógos é enunciado
(Aussage) e gesta (Sage). Que significa dizer para os gregos? Trazer
à luz, o deixar aparecer sob esse ou aquele aspecto, mostrar o ente
numa cara, pôr numa figura. Légein pode significar tudo isso por-
que nomeia, mais fundamentalmente, a gestação (physis), o deixar
jazer, o deitar (Vorliegenlassen) que conjunta, assenta e guarda o
jacente (das Vorliegende). A gestação deixa que este se apresente a
si mesmo a partir de si mesmo, isto é, que tenha ser (Anwesen). As-
segura-lhe o jazimento na jazida. O lógos nomeia, assim, tanto o
surgimento (Aufgehen) e a apresentação (Anwesen) do ente como o
fundamento (Grundv em que tem jacência (Vorliegen). A gesta diz,
assim, da comunhão entre a gestação e a fundação!".
Nesse contexto, fundamentar, rationem reddere, não significa
prestar contas, calcular os haveres e os deveres, no sentido dos ro-
manos, nem, ainda menos, aduzir a razão ou causa suficiente, no
sentido dos modernos. Significa, antes, reconduzir, pela gesta, o en-
te no seu todo à sua jazida, ao solo (Boden), de onde foi gestado.

19 Nas alíneas acima, oferecemos uma série de sugestões ousadas de tradução de termos
heideggerianos. No restante do presente trabalho, faremos ocasionalmente o mesmo.
Não há como evitar de correr tais riscos. Entender Heidegger, significa aprender a falar
de maneira não rnetaffsica, a servir-se de modelos ônticos da linguagem natural, recorta-
da, toda ela, sobre a cara do ente, para falar sobre o que não tem cara e sobre cuja
existência não cabe nada afirmar (cf. Heidegger, 1960c, pp. 51, 54;tr. pp. 290). De resto,
a terminologia brasileira da maioria dos filósofos metaffsicos ainda está longe de ter sido
estabelecida. Claro está, que o trabalho de tradução, sempre delicado, não poderá ser le-
vado a cabo sem criar tensões nos campos semânticos das palavras portuguesas e, sobre-
tudo, sem revigorar os sentidos esquecidos de várias delas dando-lhes, em neologismos,
novas chances de vida. Algumas boas traduções de textos heideggerianos e, em particu-
lar, o excelente livro de Nunes sobre Heidegger (1986) prestaram-me ajuda preciosa.
51

Fundamentar algo significa enraizá-lo, dar-lhe suporte (Halt) e


proteção (Hut).
Se o jacente assim assentado e protegido está a céu aberto, a
gestação e a guarda do jacente não está à vista. A natureza (physis)
gosta de esconder-se, diz Heráclito (1957a, p. 113; cf 1954, p. 270).
O ser como jazimento unificador do ente em seu todo retrai-se a
favor do que foi gestado como causa, como princípio, como expli-
cação explicitada. Ao retrair-se, o ser transpõe (übersteigt), trans-
cende o ente que deixa jazer. O retraído torna-se desde então, um
não jacente, um não ente, o abismo (Ab-grundi do não gestado on-
de, segundo o princípio de fundamento, nada mais cresce e nada
mais se explica.
O ser não jacente difere do mero nada. O modelo para
pensá-lo positivamente é o brincar da criança real de que fala o
fragmento 52 de Heráclito. O brincar dessa criança não tem um
porquê (warumv: ela brinca enquanto (weil) brinca. O ser-abismo é
como esse brincar real: "O ser como fundante não tem nenhum
fundamento: como abismo IAb-glUndl ele faz aquela brincadeira
que nos proporciona o ser Ido ente/ e o fundamento Ido ente/ como
destinamento" (1957a, p. 188).
O jogo do ser tem o seu tempo e o seu espaço, ambos quadri-
partites. O tempo é quadridimensional por incluir, além das três
dimensões habituais, presente, passado e futuro, que formam a vas-
tidão (Weite) da entrega (reichen) do destinamento do ser, também
uma quarta dimensão. É a dimensão do recuo daquilo que propor-
ciona o próprio tempo tridimensional da entrega do ser. "O tempo
não é. Dá-se IEs gibt! o tempo. O dar que dá o tempo determina-se
a partir da proximidade que recusa e retém". O dar do tempo, diz
Heidegger, é um "entregar que ilumina e oculta", a saber, que
oculta "o dar do dar" (1969a, p. 16; tr. p. 265).
Quanto ao espaço do jogo, ele é, por assim dizer, quadrangu-
lar, por ser um quatro-em-um, uma quadrindade (Gevierts, também
chamada de mundo (Weit), e que se constitui da terra e do céu, dos
mortais e dos divinos-", O tempo-espaço do jogo da criança real
20 Talvez por influência francesa. Nunes (1986) traduz Geviert por quadripartite. Sobre o
jogo como metáfora do mundo, cf. Fink 1966.
52

não é uma estrutura inerte. O estado de coisas "tempo-espaço e


ser" é, ele mesmo, uma acontecência, uma integração ou, ainda, in-
teração (Ereignis)21. É do jogo do ser nesse mundo que advém o ser
como o destinamento (fundamento) infundado que desenha (zei-
chnet, gestaltet) as faces de todas as coisas presentes. .
Segundo certos textos, o jogo que deita o ser como destina-
mento não seria a rigor feito pelo ser: o ser estaria, ele mesmo, em
jogo no tempo-espaço (tempo-mundo). Heidegger mostra-se ten-
tado até.a abandonar, para a metaffsica, toda a problemática do ser
e a reconhecer que aquilo que vinha chamando de sentido do ser
era algo totalmente distinto, merecendo, por isso mesmo, um novo
nome (cf. Heidegger 1959a, p. 110). É assim que o pensamento do
ser do Heidegger tardio vai se transmutando em pensamento do
Ereignis, da inteiração do ser e do tempo-espaço (Gabe) (1969b, p.
20; tr. p. 268). Desde logo, não se pode mais falar, como até então
fazia o próprio Heidegger, em ser como Ereignis, mas em Ereignis
como doação (Gabe) do ser (no tempo-espaço).
Em Ser e Tempo, efinitude do ser era pensada ainda no inte-
rior de duas bifurcações (a horizontal, entre o projeto e o
lançamento, e a vertical, entre o estar-aí-no-mundo-como-proje-
to-lançado e o ser-para-a-morte), cujo sentido último era dado pelo
tempo. O defeito desse conceito de finitude é o de pressupor, ain-
da, a oposição, seja meramente formal (lógica), seja quantitativa,
entre o finito e o infinito, supondo, assim, o próprio infinito (1969c,
p. 58; tr. p.292-3). Essa é a razão por que, em seus Beitrdge zur Phi-
losophie, escritos nos anos trinta (1936-38), Heidegger afirma que
não se podia responder à questão de saber se o ser é finito ou infi-
nito nem pelo sim nem pelo não. A questão sobre o modo de
essenciação (Wesung) do ser precisa ser retirada do âmbito do dua-
lismo finito-infinito e recolocada a partir da diferença ontológica

21 E. Stein traduz Ereignis por acontecimeruo-apropriaçáo, cf. Heidegger 1979, p. 26711.


53

(1989, p. 268)22.Nesse contexto, dizer que o ser é finito equivale a


dizer que ele é um destinamento infundado que, não obstante, ges-
ta e funda o jacente manifesto no seu todo. A diferença entre o en-
te e o ser assinala também o sentido mais profundo da finitude do
ente: o de diferenciação ou separação da plenitude (die Fülle) do
ser.
Mais radicalmente ainda, a finitude do ser pode ser pensada a
partir do Ereignis que inteira o tempo-espaço e o ser e, ao mesmo
tempo, oculta o seu dar (1969c, p. 58; tr. p. 292-3). Com a pene-
tração do pensamento no Ereignis, advém, pela primeira vez, diz
Heidegger, "o modo de desocultamento próprio do Ereignis.
O Ereignis, a inteiração, é, nele mesmo, Enteignis, desinteiração".
Entregue no tempo-espaço por um dar que, ao inteirar, também
sempre desinteira, o ser é uma dádiva forçosamente questionável,
um contencioso insolúvel (das Strittige). Esse é o mais novo e mais
radical conceito de finitude em Heidegger. Ele implica, é claro, a
finitude do ser como destinamento e, por efeito cascata, na finitude
em todos os outros sentidos acima explicitados. O ser doado no
Ereignis é, por isso, sempre, como uma fruta da época, epocal e
nunca a última palavra. O homem aberto para o Ereignis sabe que,
em princípio, não pode contar com nenhum fundamentum incon-
cussum sobre fazer jazer o ente e deitar a sua morada. O esqueci-
mento desse sentido de finitude do ser é responsável pelo fato de a
história da meta física ser uma história do esquecimento progressivo
da finitude.
Nesse contexto, a finitude do ser não é mais referida à
bifurcação (qualquer que seja, entre o projeto e o lançamento,
entre o ser-para-a-morte e o estar-aí-no-mundo, entre o ser e o
ente, entre o ente e o nada, entre a gestação e a jazida) e sim à.
quadrifurcação. A retração e a desinteiração prevalecem no tempo

22 Preferimos essenciação e essenciar a essencialização e essencializar, sugeridos inicialrnen-


te por Carneiro Leão na tradução de Heidegger 1958, p. 283) e aceitos por Nunes
(1986), pelo fato de esses últimos termos ainda guardarem um sabor metaffsico.
54

quadridimensional do jogo, a quarta dimensão que propicia o


tempo das três dimensões da entrega do ser. Mas a dádiva do ser é
também finitizadapelo espaço dos quatro. O entre o céu e a terra, a
distância que separa os mortais dos divinos, também é medida da
finitude do ser doado na vastidão aberta da quadrindade. Habitar e
frutificar a terra sob o céu esperando pelos deuses e podendo a
morte, o incomensurável: esse é modo finito como o homem é
chamado a receber a doação do ser. Para ilustrar essa
correspondência, sempre contestável, em que é recebido o ser
quadrifurcado, Heidegger cita uma frase do seu amigo de casa, o
escritor regionalista J.P. Hebel: "Nós somos plantas - quer nos
agrade admitir isso ou não - com raízes que têm que /müssen/ subir
da terra para florescer no éter e poder trazer frutos" (Heidegger
1959b, p. 16). Como na antiga Grécia, aqui também o ser é
experimentado como uma gestação transiente. O jogo é o único
que permanece (das Bleibende), o único que se mantém o mesmo,
o único que é eterno.
A linguagem gauche usada por Heidegger para nos aproximar
da diferença entre o ser e o ente, bem como da inteiração
desinteiradora, faz entender por que o princípio de fundamento
não pode, desde o início da sua incubação, levar em conta o ser
como fundamento; põe às claras, ainda, por que, forçosamente, o
aprofundamento do esquecimento do ser como jazida do ente no
seu todo acompanha a expansão incontrolada dos sintomas de
explicitação calculadora de todo ente a partir do ente; faz ver, por
fim, por que o recordar do retraimento do ser passa, inevitavelmen-
te, por uma paragem (gegend) inóspita (unheimlich) e se expressa
numa gesta hermética do que foi silenciado na história da metafísi-
ca.
Aqui o nosso interesse é dirigido, sobretudo, à desconstrução
heideggeriana do princípio de fundamento na ética. Vemos, desde
já, que a recusa do infinitismo levará Heidegger a assentar o existir
humano não mais no solo firme de causas primeiras ou razões últi-
mas, mas no chão esquecido da jazimento unificador e retraído do
ser infundado. Num nada do ente. Claro está que o ser humano,
existindo dessa maneira, não poderá ter deveres categóricos a cum-
55

prir, nem ações absolutamente boas ou justas a executar. Não po-


derá, finalmente, mesmo lembrado do esquecido, livrar-se da dor
do dilaceramento que separa o fundado do seu fundamento.
Tentaremos preparar a compreensão do desconcertante mer-
gulho heideggeriano na pré-história da ética infinitista, iluminando
a questão do fundamento em Kant e a recepção que lhe foi reser-
vada por Heidegger.

3 O PRINCÍPIO DE FUNDAMENTO EM KANT

Dissemos que, segundo Heidegger, a filosofia transcendental


de Kant constituía uma etapa essencial da submissão do mundo ao
princípio de razão suficiente. A sua teoria das condições de possibi-
lidade, ou seja, da possibilitação (Etmôglichungy da natureza e da
liberdade, explicitada em termos das operações e faculdades do su-
jeito transcendental, não faz outra coisa do que colocar o ente no
seu todo sob o domínio da suficiência. As condições a priori da na-
tureza (objetividade) e da liberdade são a versão kantiana do
princípio de fundamento (1957a, pp. 126, 183).
Vejamos como isso pode ser entendido. Em Kant, todos os in-
teresses da razão podem ser resumidos em três perguntas: Que
posso saber?, Que devo fazer? e Que me é permitido esperar?
(Kant, 1787, p. 804s.). A primeira pergunta expressa o interesse da
razão teórica, a segunda e a terceira a da razão prática. Existe, com
efeito, uma conexão íntima entre elas, como se vê das suas formu-
lações alternativas: se eu [izer o que devo, o que me é então permi-
tido esperar? (ibid., p. 833) ou ainda: se me comportar de modo tal
que não me faça indigno da felicidade, ser-me-á permitido esperar,
mediante este comportamento, participar da felicidade? (p. 837)23.

23 Para Kant, as leis morais não poderiam ter o caráter de mandamentos capazes de deter-
minar a vontade pura, "se não conectassem a priori conseqüências adequadas com a sua
regra, e se não portassem consigo, pois, promessas e ameaças" (Kant 1787, p. 839). Essas
56

Quais são as respostas às perguntas acima? A da primeira per-


gunta diz que, efetivamente, o entendimento tem o poder de de-
terminar a natureza por meio de princípios a priori assim como por
meio das leis causais empíricas. Essa resposta não responde à se-
gunda pergunta sobre o que devo fazer.
A resposta à segunda pergunta diz que a razão se impõe como
o motivo da vontade pura, da liberdade (1788, p. 141). Mais preci-
samente, diz <)ueesse motivo, o único, é lei moral, com tudo o que
esta implica. E justamente pela lei que a razão torna-se prática, isto
é, causa determinante da vontade pura e da liberdade humana.
A vontade pura é a nossa capacidade apetitiva (Begehrungs-
vermõgens superior, qualidade que se deve ao fato de poder ser de-
terminada por uma lei oriunda da razão pura (1788, p. 41). Essa
capacidade, específica do homem enquanto ser racional, difere da
inferior, que compartilhamos com os seres não dotados de razão e
que consiste em impulsos (Aturiebes, inclinações (Neigungen), pen-
dores (Hlinge) ou necessidades (Bedürfnisse) sensíveis, obedecendo
a representações advindas da experiência. Ou seja, apetites que,
tanto quanto os seus motivos (fatos de experiência), são governa-
dos pelas leis naturais. Para Kant, a vida, em geral, não é outra coi-
sa do que a capacidade de um ente de agir em concordância com as
suas representações, a capacidade de ser, por intermédio de ações,
causa de objetos de suas representações. Em que medida a vida
humana, em especial, conta para a razão prática? Única e exclusi-
vamente enquanto as ações humanas ocorrem de acordo com as
máximas universais. O existir humano só interessa a título do agir

promessas são justamente aquelas que alimentam a nossa esperança na felicidade. De fa-
to, voltaremos sobre isso em seguida, o bem soberano thõchste 0111) da razão não é sim-
plesmente a vontade cuja ação causal é determinada pela lei moral. Tal vontade, santa, é
apenas o bem supremo (oberste Gutv. O bem soberano, máximo, é a vontade santa
acompanhada de felicidade sem sombra. Na idéia da razão pura, a felicidade e a eticida-
de são, arnbas, fins {Zwecke'y necessários e inseparáveis do agir moral (jbid., p. 837).
Aqui, a palavra fim não é usada no sentido de idéia do fim, própria da faculdade do juízo,
mas no sentido de objeto da vontade e da ação por esta desenvolvida.
57

causal racionalizável. O homem, só conta, enfim, enquanto obede-


ce ao princípio de razão suficiente.
A resposta à terceira pergunta diz que, caso obedeçamos à lei
moral, isto é, caso nos tornemos dignos de felicidade, é-nos permi-
tido esperar efetivamente obter a felicidade. De resto, observa Kant,
esperar não é outra coisa do que aguardar a felicidade (1787, p.
833).
Em resumo, o interesse da razão kantiana concerne ao ente
em geral no seu todo, isto é, à natureza e à liberdade. Por um lado,
a razão determina a natureza pelo saber e, por outro, motiva e con-
sola a vontade, por via do dever e pela promessa da felicidade. Em
ambos os casos, visa-se a implementar o princípio de razão suficien-
te. Através deste já fala a vontade de potência. De fato, em última
instância, todo o interesse da razão é, diz Kant, meramente prático
(1788, p. 200). O interesse teórico, o de favorecer a ampliação dos
nossos conhecimentos do mundo empírico, não é imediato, mas
está sempre condicionado pelas intenções do uso desses conheci-
mentos a serviço da realização do nosso querer (ibid., pp. 122n,
220).

4 A FINITUDE DO FUNDAMENTO EM KANT

A razão dá-se por satisfeita se o seu interesse em determinar a


natureza puder ser realizado dentro dos limites da experiência
possível. Ainda que venha a estabelecer verdades necessárias e uni-
versais, estas não transpõem a cesura entre o mundo fenomenal,
em princípio cognoscível, e o mundo noumenal, inacessível ao
olhar cognitivo, oposição que se constitui num dos aspectos essen-
ciais da finitude teórica do homem. Essa finitude é agravada pela
incongruência entre as duas legislações da razão: para a natureza e
para a liberdade. Com efeito, como conciliar, no todo do ente,
a causalidade da natureza com a da razão, isto é, a causalidade dos
eventos (empíricos) com a dos conceitos? Como pensar a coe-
xistência, num mesmo ente, o homem, de apetites inferiores, sub-
58

missos às leis teóricas da natureza (devido a nossa sensibilidade


empírica à dor e ao prazer) e os superiores, determinados (em vir-
tude de sensibilidade moral da nossa vontade pura) pela razão prá-
tica? Eis uma incompatibilidade que ameaça, apesar da validade
universal do princípio de fundamento, a própria unidade da razão,
constituindo-se, assim, em problema central não somente da teoria
ética mas da doutrina kantiana da razão em geral.
Esse problema meramente teórico tem contrapartida prática:
como conviver com as duas causalidades que acabamos de
mencionar? O pouco da casuística desenvolvida por Kant está
longe de dirimir as dúvidas práticas levantadas por essa pergunta.
Não obstante, é justamente no domínio da liberdade que a razão
entende poder sobrepujar, pelo menos em parte, a finitude
humana: ela acredita poder prometer a felicidade suprema à boa
vontade, a que obedece estritamente à lei moral. Em outras
palavras, a razão afiança a vitória da vontade santa sobre a dor e a
impermanência, dois aspectos fundamentais da finitude prática do
homem.
Ser feliz, diz Kant, é necessariamente objeto do desejo de um
ente racional e finito e, portanto, motivo inevitável da sua capaci-
dade apetitiva. Kant explica: "Pois, um tal ser não tem a posse ori-
ginária da satisfação com todo o seu existir /Dasein/, nem tampouco
da bem-aventurança /Seligkeit/, que pressuporia a consciência de
sua satisfação auto-suficiente consigo mesmo. Para esse ente, a sa-
tisfação é um problema imposto pela sua natureza finita, porque ele
é necessitado e essa necessidade concerne à matéria da sua capaci-
dade apetitiva, isto é, aquilo que se refere a um sentimento de pra-
zer e desprazer subjetivamente fundamental" (1788, p. 45, nossos
grifos). A finitude humana prática, aqui explicitada, é revelada,
num dos seus sentidos, pelos desprazeres e a transitoriedade do pra-
zer e, noutro, pela transitoriedade do existir. Em ambos os casos, a
finitude é conseqüência de mecanismos que obedecem à causalida-
de natural. O primeiro é o mecanismo fisiológico que possibilita a
afecção do psiquismo pelo mundo fenomenal, registrada na sensibi-
lidade empirica. O segundo é o mecanismo da morte, também
orgânico. Morrer, escreve Kant na Antropologia, parece ser "uma
59

reação meramente mecarnca da força vital /Lebenskraft/ e, tal-


vez, uma suave sensação de libertação gradual de toda dor"
(1978,24)24.
O desprazer e a impermanência do prazer não são os únicos
sinais sensíveis da finitude humana prática. Um outro é nossa
baixeza moral, nossa indignidade revelada pelo sentimento de dor
moral, de peso e de humilhação (1788, pp. 129, 137). Sentimento
produzido na sensibilidade moral da nossa vontade pelo desprezo
intelectual que a razão pura demonstra para com o nosso poder
apetitivo enquanto determinado pela causalidade natural. Em
Kant, os desprazeres não são meras negações do prazer,
representáveis por zero, mas sensações positivas, graduadas e
realmente opostas aos prazeres.
A finitude da morte não é registrada por sensações. Kant per-
gunta, até mesmo, se morrer é doloroso-c. Ele reconhece, entretan-
to, que todos os homens, mesmo os mais infelizes e os mais sábios,
sentem um medo natural diante da morte. Que medo é esse que
atinge mais do que o sofrimento e tira a paz dos melhores espíri-
tos? Que insatisfação é essa que, embora não consista em sen-
sações desprazerosas é mais aguda que estas últimas? Não se trata
de um pavor (Grauen) diante do morrer, adverte Kant. O que nos
apavora a todos é, no fundo, um pensamento: o de estarmos mortos

24 Num outro lugar, Kant diz: "O mesmo mecanismo pelo qual o animal e o homem vivem
e crescem traz-Ihes finalmente a morte, quando o crescimento está completado" (Citado
segundo Eisler-Lexikon, p. 535).

25 Entregue como era auto-análise, Fernando Pessoa não tinha as dúvidas de Kant sobre
ã

esse assunto: "Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha)
infância, se perca. É a fuga abstrata do tempo não a fuga concreta do tempo - que é
meu, que me dói ( ... ). É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente
coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha re-
cordação". (Obra, 11,p. 673, nosso grifo). O poeta do sentir puro, em oposição ao filóso-
fo da razão pura, pode aperceber-se da essencial idade da transitoriedade e reconhecer
nela a finitude fundamental do ente do seu todo.
60

num túmulo escuro ou num lugar parecido. Uma ilusão de pensa-


mento, que decorre da natureza do nosso discurso sobre nós para
nós mesmos. Na verdade, o pensamento eu não sou não pode existir
de modo algum. "Com efeito, se eu não sou, também não posso
tornar-me consciente de que não sou. Eu posso, sem dúvida, dizer
que não estou com saúde, ou coisas parecidas, isto é, pensar nega-
tivamente os predicados de mim mesmo (como ocorre com todos os
verbos); mas caio em contradição se, falando em primeira pessoa,
eu negar.o sujeito, pelo que este então se anula a si mesmo" (1798,
* 24)26.
A esses dois tipos de infelicidade, isto é, de finitude prática -
uma real e outra ilusória, uma dizível e outra indizível - Kant
contrapõe dois tipos de felicidade ou infinitude: a felicidade
sensível e a bem-aventurança, A natureza da felicidade do primeiro
tipo depende da sensibilidade estimulada. Relativamente à
sensibilidade empirica, ela é meramente patológica, consistindo na
satisfação positiva, por meio de objetos materiais, de todas as
inclinações ·e necessidades da nossa capacidade apetitiva inferior
(1787, p. 834)27. Com relação ao sentido moral, a felicidade,

26 Uma análise semelhante da consciência de morte encontra-se em Freud. Ele escreve:


"Além disso, a própria morte não é representável e tão logo fazemos a tentativa nesse
sentido, podemos notar que nós mesmos permanecemos como observadores. A escola
psicanalftica pode, assim, ousar a sentença: no fundo, ninguém acredita na própria morte
ou, o que vem ao mesmo: no inconsciente, cada um de nós está convencido da sua imor-
talidade". (Freud 1915, p. 49, nossos grifos).

27 Aqui, a satisfação consiste em prazeres, sensações de agrado comportando graus. Os


prazeres, tanto quanto os desprazeres, dependem de contexto e podem ser divididos em
diferentes tipos, tais como físicos, psíquicos, sociais, estes últimos gerados pela fome,
doença, pobreza e, mormente, guerras. A sensação de satisfação não é uma quantidade
absoluta, mas antes uma diferença, a saber, entre a soma dos prazeres e a soma dos des-
prazeres. Para que essas somas possam ser calculadas, é preciso que os prazeres e os
desprazeres sejam do mesmo tipo, comparáveis entre si, o que depende das circunstân-
cias individuais e sociais (Eisler-Lexikon, p. 211).
61

chamada também moral, está no "prazer de estarmos satisfeitos


mediante a consciência do nosso autocontrole (Selbstmachiv'ê'. A
felicidade sensível, tanto a patológica como a moral, aumenta não
apenas com a quantidade ou a qualidade de satisfações de todos os
tipos possíveis, mas também devido à duração destas. Duração da
satisfação, faz parte, em Kant, da própria definição da felicidade em
geral: ela implica, em todos os seus modos, a satisfação como um
estado, na medida em que somos conscientes da sua permanência
(Fortdauery ou não interrupção (1797, p. 40; 1788, p. 40)29.
A felicidade do segundo tipo, a bem-aventurança, implica to-
tal ausência de insatisfação, de qualquer espécie, e em duração infi-
nita do nosso existir. Trata-se da felicidade suprema, do bem-estar
completo (yollsüindiges Wohl), independente das condições do
mundo empírico, de um estado que não pode realizar-se nesta vida
e neste mundo, mas apenas na vida futura e num mundo moral, su-
pra-sensível. Haverá motivos que nos permitam esperar atingir tal
felicidade. A resposta kantiana é sim, e coincide com aquela dada à
pergunta que formula o terceiro interesse da razão. Ela diz, como
vimos, que caso nos tornemos dignos de felicidade pela obediência
à lei moral, é-nos permitido esperar obter a felicidade plena. Essa
promessa consola, ao mesmo tempo, dos dois tipos principais de in-
felicidade: a da insatisfação sensível, materialê", e a da transitorie-

28 o que torna essa felicidade possível é a unidade a priori de seus elementos, constituída
pela liberdade sob as leis gerais da vontade. Esta unidade é mesmo "a forma originária
da felicidade, que pode muito bem suportar a privação das coisas agradáveis e, por outro
lado, aceitar muitos males na vida sem a diminuição da satisfação, ou mesmo com o au-
mento desta" (Eisler-Lexikon, p. 215). O valor da virtude, ou seja, a constância na
obediência à Lei, não reside apenas no fato de ela ser a condição da felicidade. O seu
exercício é vivido ele mesmo como a fonte de auto-satisfação moral.

29 O ideal de felicidade como negação e alternativa sensível positiva da dor traumática pos-
sui uma plausibilidade imediata que só uma psicologia mais refinada e a crítica racional
podem questionar. Essa é a razão por que o hedonismo permanece uma das mais fortes,
senão a mais forte corrente da moral ocidental.

30 Essa insatisfação compreende. sublinho, não apenas o desprazer, mas também, a transi-
toriedade do prazer, tanto patológico como moral.
62

dade da vida. Promessa capital, que permite que nos consideremos


definitivamente elevados acima da nossa natureza frágil, e que nos
põe a caminho, não apenas da satisfação sem sombras, mas também
da salvação sem ameaças. Ela anuncia o duplo triunfo: sobre a fini-
tude do prazer e sobre finitude do existir. A moral kantiana é, a uma
vez, ética de satisfação e ética de salvação-".
Como pode a razão assegurar a conexão entre o agir moral e a
existência humana eterna e plenamente feliz? Como pode garantir
que seremos vitoriosos sobre os mecanismos naturais da dor e da
morte? Quanto à garantia de eternidade, em certas ocasiões, Kant
a estabelece por analogia. No caso dos seres vivos em geral, diz ele,
"a razão tem que necessariamente admitir, como princípio, que ne-
nhum órgão, nenhum poder, nenhum impulso, portanto, nada do
que pode encontrar-se neles é supérfluo ou desproporcional ao seu
uso, portanto, não conforme a um fim, mas que tudo é proporcio-
nado exatamente à sua destinação na vida". Ora, existe no homem
um poder, a lei moral, que ensina "a apreciar, mais do que qualquer
outra coisa, a simples consciência da retidão da intenção, mesmo na
falta de todas as vantagens e da própria miragem da fama póstuma"
e que faz com que o homem se sinta "interiormente chamado" a
fazer-se valer "como cidadão de um mundo melhor que possui na

31 Segundo Kant, a cessação do tempo sensível, momento em que também cessa toda mu-
dança, é um conceito revoltante para a nossa imaginação (1794, p. 512). Por isso, o "fim
do tempo" só pode ser pensado como passagem de um ente para o tempo inteligível. O
"fim do tempo da vida" significa o começo "da duração /Fortdauer/ ininterrupta do ho-
mem". Esta duração do existir humano "deve ser considerada como uma grandeza intei-
ramente incomparável com o tempo" (Kant 1794, pp. 495-6). A duração em questão é
chamada de duratio 110WIlC/lOII, isto é, duração meramente inteligível. Do tempo do exis-
tir humano após a morte, que somos obrigados a assumir, pela razão prática, não pode-
mos formar, portanto, nenhum conceito positivo, conceito com conteúdo, intuitivo. Ela é,
portanto, rigorosamente incognoscfvel.
63

idéia"32. Esse sentir, inspirado numa necessitação interna, não pode


ser supérfluo e despropositado. Temos aqui, conclui Kant, um "po-
deroso e jamais refutável argumento" que prova "uma continuação
necessária da nossa existência" (1787, pp. 425-6).
Em outros textos, Kant recorre ao procedimento de postu-
lação para estabelecer as duas garantias, a de imortalidade e a de
felicidade. Dessa maneira, a razão prática, que coage (zwingt) a
vontade a agir racionalmente, obriga-se a fazer dois postulados de
existência: o de vida futura eterna do homem, e o de um Ser onipo-
tente e bondoso. Assim, o interesse da razão em determinar a von-
tade humana é também interesse em que a alma exista para sempre
e de que Deus exista. O homem que diz querer ser justo também afir-
ma, enfatiza Kant: quero que Deus exista; quero eu mesmo existir
num mundo inteligível, além das condições do tempo (e do espa-
ço); quero, ademais, que a duração do meu existir seja infinita (en-
dlos) (1788, p. 259). A vontade santa é conceituabnente inseparâvel
da vontade de Deus e da própria imortalidade na felicidade. Deus é
o infinito supra-sensível em si; a imortalidade feliz é o infinito su-
pra-sensível em nós. A vontade santa é, portanto, a vontade da infi-
nitude, como Nietzsche pressentiu melhor do que qualquer outro.

32 A atitude moral (moralische Gesinnungv pede que, na hora da morte, o tempo empírico
da nosa vida seja tomado como um todo para o fim de prestação de contas pela vida que
temos levado. Que a conta deve ser fechada definitivamente e que ninguém pode esperar
poder repor o débito, essa não é uma tese dogmática da religião cristã, mas um princípio
usado pela razão prática para justificar ou condenar uma conduta de vida (1793, p. 86n).
Na hora da morte, a razão prática coloca todo homem face a face com o Juiz Supremo do
mundo para que ouça o Jufzo Final que lhe dará a salvação ou danação eterna (1794, p.
498).
64

A busca da santidade tem também um sentido para a espécie


humana como um todo. Em virtude da lei moral, a humanidade se
abre para um futuro, ainda neste mundo, presidido pelo ideal de
um reino da virtude ou reino da liberdade, ou seja, de um estado
ético, onde todos os homens seriam reunidos como cidadãos. Esse
estado, concebido não como unitário, mas na forma de uma
confederação eterna de estados nacionais (1793, p. 28), garantiria a
realização do principal objetivo da política: o fim das guerras. A
motivação para a socialização do tipo kantiano, note-se bem, não é
exclusiva nem mesmo primariamente moral. Na origem, ela é
patológica, isto é, forçada por sofrimentos decorrentes da violência
social (1795, p. 393). Desta maneira, a ética kantiana de satisfação
e de salvação estende-se numa ética de reconciliação, de integração
do homem numa totalidade não cósmica e sim social.
Kant admite que o seu conceito de uma república confedera-
tiva mundial, em condições de garantir a paz perpétua neste mun-
do, é uma forma de milenarismo (1793, p. 27). Adverte, entretanto,
que esse milenarismo é estritamente filosófico e totalmente distinto
da ilusão teológica dos tempos messiânicos e da chegada, no dia de
Juízo Final, de um Reino de Deus, em que se realizaria a completa
adequação à lei moral de todo o gênero humano e que seria, por
conseguinte, um reino de paz e de felicidade (p. 28). Em outras pa-
lavras, a ética de reconciliação de Kant não é uma ética de re-
denção da humanidade da injustiça e da infelicidade em geral, no
sentido judaico-cristão. Ela não é de supressão completa e definitiva
dos antagonismos sociais, mas uma ética de racionalização progres-
siva destes últimos. O tipo de comunhão que projeta não é uma fra-
ternidade na igualdade e felicidade, mas a socialidade insaciável
(ungesellige Geselligkeit, 1784, p. 392), que não faz desaparecer as
forças antagônicas, cuidando apenas do seu equilíbrio (1795, p. 64).
Por não fazer exigências à humanidade, mas tão somente ao
indivíduo, a moral kantiana tampouco faz promessas à espécie. A
comunidade dos santos num outro mundo não é um dos seus
assuntos centrais. Quanto à comunidade humana neste mundo, ela
só interessa na medida em que os seres humanos, através de
gerações, se moralizem permitindo que, por decorrência, a
65

sociedade se aproxime do ideal de uma totalidade moral, mas sem


garantias para a continuidade ou mesmo a irreversibilidade do
progresso. A ética kantiana de reconciliação não é, portanto, uma
ética de salvação da espécie numa totalidade comunitária. Longe
de ser uma ética de coletivização, ela pensa a questão da satisfação
e da salvação da coletividade a partir da satisfação e salvação do
indivíduo. Tanto é assim que a reconciliação no social nem satisfaz
plenamente nem salva, apenas alivia as insatisfações neste mundo e
nos torna mais dignos de salvação individual no outro.
Para muitos pós-kantianos, a vontade da eternidade
plenificada, traço essencial no ser do homem e de Deus em Kant,
passará a figurar como o traço essencial do ser, ele mesmo.
Schelling, por exemplo, escreverá: "Em última e mais alta instância,
não existe outro ser que o querer Idas Wollenl. O querer é o ser
originário e é unicamente sobre ele (o querer) que se aplicam
todos os predicados deste último (o ser originário): caráter
infundado /GlUndlosigkeitl, eternidade, independência do tempo,
autoafirmação. A filosofia toda só visa a encontrar a sua expressão
mais alta" (1954, p. 113). Aqui, o pensamento meta físico já está
perto do ponto mais alto da afirmação do fundamento: da vontade
de potência, a partir de onde se inicia a desconstrução do
fundamento praticada por Heidegger.

5 HEIDEGGER SOBRE A FINITUDE DO FUNDAMENTO EM


KANT

Em Ser e Tempo, Heidegger menciona Kant como o primeiro


e único pensador que avançou na direção da dimensão temporal da
finitude humana embora tivesse recuado antes de reconhecê-Ia
plenamente (1927, p. 23). As razões pelas quais Kant ficou na me-
tade do caminho seriam duas: a de ele não ter concebido o projeto
de uma ontologia do estar-aí (tendo ficado preso ao sentido carte-
66

siano de sum como mera presentidade, Vorhandenheit), e a de ter


se orientado pelo conceito vulgar do tempo (p. 24)33.
A posição heideggeriana sobre a finitude do fundamento em
Kant, explicitada na famosa disputa com Cassirer, em Davos, na
primavera de 1929, é ditada por esses resultados de Ser e Tempo.
Cassirer dirá que Kant, embora admita a finitude do existir do
homem, assinalada pela sensibilidade, afirma a sua capacidade
imanente de transcender a finitude para o mundo da forma, o reino
do espírito objetivo. O conceito do reino do infinito não é
meramente limitativo, mas designa, ao contrário, um oposto positivo
ao mundo da finitude: a totalidade, o preenchimento completo da
finitude. Esse preenchimento ocorre na medida em que o homem
transmuta o seu existir na forma, "isto é, na medida em que
transpõe toda vivência em si numa configuração objetiva, na
medida em que se objetiva". As verdades necessárias e universais
do entendimento, a lei moral universal, os juízos estéticos
objetivos, são a forma do absoluto que infinitiza as vivências
humanas nos domínios teórico, prático e do belo, respectivamente
(Heidegger 1929a, ed. 1974, p. 248 ss.). O homem, ainda que
incapaz de vencer definitivamente a finitude, pode, contudo, (esse
é o sentido fundamental da posição do idealismo filosófico),
libertar-se radicalmente da angústia como disposição afetiva
característica.
Heidegger responde que o homem é, de fato, um ser
distinguido pela transcendência, mas não no sentido do acesso a uma
rede de formas e sim no da irrupção no meio do ente como tal no
seu todo. Nessa chave originária, transcender designa abrir-se para
a nadidade (Nichtigkeit) do existir e não para as formas do espírito.

33 Talvez não seja exagerado dizer que Kant foi o primeiro filósofo que reconheceu limites
externos e internos dos princípios da filosofia em diferentes áreas e, ao mesmo tempo,
criou elementos de uma filosofia positiva da finitude. Pelo primeiro, ele pode ser visto
como continuador ou mesmo aprofundador do ceticismo. Pelo segundo, Kant figura co-
mo iniciador de uma problemática inteiramente nova, que encontrou em Heidegger o
seu maior expoente até o presente momento. Cf. Loparic 1992.
67

As verdades eternas,
a moralidade, a beleza objetiva, não são, no
terminus a quo, configurações do absoluto, mas explicitações da
acontecência do estar-aí, encobridoras da sua finitude. A
eternidade da verdade é uma modificação horizontal-linear do
tempo originário circular; a liberdade moralizada, o esquecimento
da finitude da liberdade conflituosa e dividida. Na ética kantiana, o
que conta não é tanto o que diz a lei, mas a função interna dessa lei
para o estar-aí, A questão não deve ser: que devo fazer?, mas: o
que significa essa lei e de que maneira ela é constitutiva para o
estar-aí e a personalidade? "Não se pode negar que aquilo que está
na lei ultrapassa a sensibilidade. Mas a questão é: qual é a estrutura
interna do estar-aí, ela é finita ou infinita?" (1929a, ed. 1973, p.
252). Finalmente, o caráter formal da beleza da obra de arte é uma
recusa do seu "sentido metafísico no interior da acontecência do
estar-aí". Quanto à angústia, ela pode, sim, ser afastada. Mas
quando isso ocorre o homem perde a possibilidade de se defrontar
com o nada. "Só se eu entender o nada ou a angústia", afirma
Heidegger, "estarei em condições de entender o ser. O ser é
incompreensível se o nada for incompreensível. Somente na
unidade da compreensão do ser e do nada pode surgir a pergunta
sobre o porquê". A libertação da angústia, prometida pelo
idealismo equivale à incapacitação para a verdadeira vida
filosóficaê'.

34 Ao falar da compreensão do nada, Heidegger, de certo, não está mais se movendo no


âmbito da filosofia de Kant. Para o chinês de Kônigsbetg, a problemática do nada tinha,
indubitavelrnente, um sabor místico oriental, não integrável ao pensamento do ser: "Daí
vem o sistema monstruoso de Laokiun sobre o bem supremo, que deve consistir no nada;
isto é, na consciência de se sentir engolido pelo abismo da divindade através da con-
fluência COIlJ esta e, portanto, através do aniquilamento da sua personalidade; e para ter
UIlJ pressentimento desse estado, os filósofos chineses se esforçam, em quartos escuros e
de olhos fechados, em pensar e sentir este nada". (Kant 1794, p. 514). Heidegger reco-'
nhecerá o parentesco entre a sua busca do sentido do ser e o caminho, o Tao, do pensa-
mento oriental (cf. Heidegger 1959a, p. 198). Ele tentará pensar o nada, mas não na es-
curidão. Ele o fará de olhos abertos, à luz do céu da Floresta Negra.
68

Resposta dura, sem dúvida, que revela bem até que ponto
Heidegger era tomado pelo problema da finitude. Nos anos que se
seguiram à publicação de Ser e Tempo, em que ficou clara a falta de
compreensão dos leitores para o seu projeto de análise temporal da
finitude do ser, Heidegger tentou, no livro intitulado Kant und das
Problem der Metaphysik (Kant e problema da metafísica) (1929a),
.encontrar, no texto de Kant, um refúgio e uma defesa da questão
da finitude do ser, que era a sua própria questão. Mais tarde, Hei-
degger admitirá que, na verdade, essa sua tentativa de interpretar
Kant a partir do Ser e Tempo introduz um modo de perguntar que
permanece-lhe estranho, embora condicionasse o de Kant35• Afir-
ma, ainda, que o recurso à filologia kantiana, domínio que possui
leis próprias, afastara-o da sua verdadeira questão: a desconstrução
do infinitismo. Parece-nos, não obstante, que os comentários, ainda
que invasivos, de Heidegger, sobre a finitude em Kant constituem,
ainda hoje, uma boa introdução à problemática da filosofia da fini-
tude em geral e, em especial, à ética.
A questão da [initude motiva, sustenta Heidegger no livro
citado, tanto a pergunta sobre o dever, como todas as perguntas
kantianas que expressam o interesse da razão. Ela reflete a
negatividade que habita o seu ser e que decorre da sua
transitoriedade. Um ente que coloca em questão um poder que é
seu e deseja determinar-lhe os limites, está se defrontando com o
não-poder. "Quem pergunta: que posso? Atesta com isso uma
finitude. Quem é movido, no seu interesse mais íntimo, por essa
pergunta, revela uma finitude no mais íntimo do seu ser". (1929a,
p. 195). Antes mesmo de Heidegger, Kant teria colocado a questão
da negatividade à frente do problema de dizer a positividade.
Sobre a relação entre o interesse pelo dever e a finitude, Hei-
degger escreve: "Quando se levantam perguntas sobre um dever, o
ente que faz essas perguntas está suspenso entre sim e não, sendo

35 Cf. o prefácio à 4~ edição de Kant und das Problem der Mctaphisik (Kant e o problema da
metaflsica), de 1973, p, XIII.
69

perseguido pelo que não deve. Um ente que tem interesses funda-
mentais num dever, sabe de si como quem ainda-não-cumpriu, e se
questiona sobre aquilo que possa ser o seu dever. Esse ainda-não
de um cumprimento ainda indeterminado é testemunha de que um
ente, cujo interesse se prende a um dever, é finito no seu próprio
fundamento". (Heidegger 1929a, p. 195-6, nossos grifas).
Além disso, aquele que indaga "sobre o que é permitido, per-
gunta-se por aquilo que pode e aquilo que não pode ser objeto de
esperança. Todo aguardar revela uma privação. Caso essa necessi-
dade surja do interesse íntimo da razão humana, ele a estará reve-
lando como essencialmente finita" (1929a, p. 196).
De onde provém a negatividade manifestada nas perguntas
pelos limites do saber, nas restrições do agir impostas pelo dever e
nas incertezas do esperar? Não da nossa sensibilidade, como em
Kant, mas do próprio ser do homem, ser que consiste no cuidado
(Sorge) para com o poder-ser-finito. Na sua essência, o homem é
finito: ele contém em si mesmo o seu fim como elemento constitu-
tivo, ele é para-o-seu-fim, isto é, sua morte. O ser-para-a-morte, nos-
sa possibilidade incontornávcl, atesta a finitude essencial do tempo
do existir humano. A Iinitude humana é o sinônimo da transitorie-
dade. A negatividade constitutiva do ser humano é temporal.

6 DESCONSTRUÇÃO EXISTENCIAL-ONTOLÓGICA DAS


ÉTICAS INFINITlSTAS

Para combater ou mesmo eliminar os desprazeres ea imper-


rnanência do contentamento, a transiência do existir, bem como o
antagonismo entre os homens, as éticas infinitistas aconselham
o agir de acordo com o dever. As de satisfação tratam de paliativos
do desprazer e da maximização (quantitativa e qualitativa) do pra~
zer, as de salvação, de práticas que prometem a imortalidade, as de
reconciliação, de procedimentos de socialização, integração e paci-
ficação.
Heidegger mostrou que todas as éticas de negação acional da
finitude usam () lôgos cnunciativo como fonte do dever, consideram
70

o lôgos como externo ao ser e não como uma força, uma formação
(Priigung), do ser ele mesmo e pressupõem a presentidade
(Vohandenhein como o sentido do ser.Esse último ponto revela um
parentesco próximo entre as éticas acionais da infinitude e a me-
tafísica. Esta tamhém interpreta o ser, segundo mostra Heidegger,
como presentidade. Por isso, a desconstrução (Abbau) de uma po-
derá ser exatamente paralela da outra. Mais ainda, a alternativa
à

heideggeriana para a metalfsica como teoria do ser-presentidade


conterá; também e necessariamente, uma alternativa Iinitista para
as éticas tradicionais. Desmontar a metafísica como teoria das faces
da presença do ser (faces visíveis para o olhar da razão), como teo-
ria esquecida do problema da presença como tal, é o mesmo que
desconstruir as éticas de realização de ações de satisfação, salvação
ou reconciliação numa totalidade cósmica ou social. O fundamento
último da comunidade entre a ética e a metafísica é a origem co-
mum e a mesma relação com a finitude. O motivo das duas é um só:
a vontade da infinitude.
Heidegger ofereceu duas maneiras de desmontar a determi-
nação do ser como presentidade, uma existencial-ontológica=, ex-
posta em Ser e Tempo, e outra destinamental (seinsgeschichtlich],
exposta a partir dos anos trinta. A primeira concebe a finitude a
partir das oposições internas ao existir humano e, em última instân-
cia, a partir da Iinitudc do horizonte temporal do existir humano. A
segunda introduz negatividades mais fortes: a da diferença ontoló-
gica e a do retraimento que doa o ser. Junto com o conceito de tini-
tude, Heidegger desconstruirá também os três elementos que ca-
racterizam a relação das éticas infinitistas com esta última, a saber,
a dor da Iinitude, o dever e o agir.
A metalfsica, diz Heidegger em Ser e Tempo, interpreta o ser
a partir do horizonte do presente (Gegenw01t), à luz das presen-
tações (velxegenwllrtigungen) possíveis do ente. Projetando o ser
sobre a série de instantes do presente, ordenada pelas relações de
sucessão e simultaneidade. esse esquecimento confere-lhe o senti-

36 Tradução do existenzial de Ileidegger. Nunes (1986) propõe existentivo.


71

do de presença constante (süíndige Anwesenheit) no tempo linear,


de presentidade.
É dentro do mesmo horizonte que as éticas infinitistas
interpretam o agir humano e o dever. Ao; de satisfação entendem o
agir como ministraçâo, na presentidade, dos paliativos da dor. As
de salvação e de reconciliação, ou pregam a realização de valores
ou a obediência ativa às regras. O estar-aí vale, diz Heidegger,
"como um ente de que a gente deve se ocupar no sentido de
'realizar' valores ou de cumprir normas" (1927, p. 293). Agir
moralmente significa tornar presente um predicado ou um estado
de coisas. Nos dois casos, o agir, ele mesmo, é pensado,
onticamente, a partir do horizonte das nossas ocupações
preocupadas e, ontologicamente, como mera presentidade (p. 293).
Os valores a realizar são interpretados como determinações
meramente presentes nas coisas também meramente presentes
(1927, p. 99). O mesmo vale para o bonum e ma/um tradicionais,
este último concebido como priva tio boni: ambos têm a sua origem
na ontologia da presentidade, As leis a cumprir, por sua vez, são
concebidas como regras da ocupação (com entes intramundanos)
preocupada (por outros) (besorgende FürsOIxe), isto é, de determi-
nação do curso de ações, entendidas como eventos do mundo, na
produção de efeitos meramente presentes (pp. 293, 294). As nor-
mas e regras de ação permitem computar (verrechnens as infrações
e calcular as recompensas (pp. 288, 293). Nesse contexto, a vida
aparece como um negócio (geschaft), como um empreendimento a
ser regulamentado e que tem que pagar as suas despesas (pp. 289,
294). Mesmo as leis morais de Kant, que estão longe do' domínio
das ocupações preocupadas, determinam o dever como uma culpa
por uma falta (Mangel) de algo meramente presente. Faltar signifi-
ca não estar dado no modo de presentidade. A falta, assinalada pe-
lo desprazer, patológico ou moral, é a não prescntidade daquilo
que deveria dar-se no tempo linear do mundo sensível (p. 283)37.

?7 A conexão essencial entre a ética e a metaffsica em termos do princípio de fundamento,


afirmada por Heidegger, já foi claramente explicitada por Kant ele mesmo. A esperallça
de felicidade neste mundo, diz Kant, utiliza o raciocínio causal exatamente análogo ao da
72

Heidegger não deixa dúvida: para ele, em Ser e Tempo, o agir


moral, prescrito pela ética tradicional, é um agir causal, isto é, do
mesmo tipo do agir técnico. Temos aqui uma das razões por que
Heidegger evita usar o termo ação e o substitui por ocupação preo-
cupada, expressão que designa o atuar humano livre do princípio
de causalidade. De nada adianta objetar, com Habermas, que as re-
gras do agir moral são dadas pela razão prática e não pela instru-
mentalê'', Heidegger responderá que, desde Kant, o tipo das leis
morais é o mesmo que o das leis da natureza; que a razão instru-
e
mental a razão prática são, no essencial, a mesma razão, definida
pela obediência ao princípio de fundamentoê". A assim chamada
razão ampliada, constituída pelo distanciamento critico do saber
meramente estratégico e explicitada por procedimentos comunitá-
rios em situações livres de dominação, a partir de contextos do

previsão. Ademais, a conquista do bem soberano necessário, que inclui a felicidade, exi-
ge, pelo menos neste mundo, conhecimentos que se fundamentam "em princípios
empíricos, pois de outro modo que não mediante a experiência, não posso saber quais as
inclinações existentes que pretendem ser satisfeitas nem quais as causas naturais que po-
dem afetar a sua satisfação". Em resumo, li metafísica da natureza faz um todo com a
metaffsica dos costumes. As duas respondem, em conjunto, à pergunta-guia da metaffsi-
ca: que é o ente? resposta: o ente é aquilo que é determinável pelos princípios do enten-
dimento (a natureza) ou pelos mandamentos da razão (a liberdade), de acordo com o
princípio de razão suficiente.

38 Nós discordamos, portanto, da afirmação de Seel de que Heidegger estaria propondo


uma "(falha) ética de racionalidade", Heidegger não propõe. nem pretende propor, me-
tarregras para a orientação racional sobre orientações racionais. Ele não o faz por en-
tender que tais regras necessariamente encobririam o fato de que, nem a recepção
da tradição nas condições da finitude do existir, nem a correspondência ao destinarnento
contencioso do ser, podem contar com o principio de razão suficiente. - Mórchen (1989,
p. 185,191-2) igualmente defende a idéia da unidade originária entre o pensamento hei-
deggeriano do ser como presença (An-lI'csen) e como morada (Au(ellll101t), por um lado,
e as questões éticas, por outro. Levinas (1992, p. 27) insistiní em dizer que, em Heideg-
ger, ser significa sempre a-ser. Ele não reconhece, entretanto, qualquer sentido ético à in-
triga do ser.

39 "O reino dos ~ins", diz Kant "só é possível por analogia com um reino da natureza; aque-
le, só segundo máximas, isto é, regras auto-impostas, este último só segundo leis das cau-
sas eficientes externas impostas" (1785, p. 84).
73

mundo da vida, é tão presentificante quanto a razão mutilada dos


positivistas. Ambas operam com o ente entendido no horizonte da
meta física da presentidade, acessível unicamente na representação.
Uma ética que conseguisse explicitar, representar, "máximas uni-
vocamente calculáveis" da ação encobriria, da mesma maneira
como o faz a técnica, a acontecência do agir humano no sentido
próprio (1927, p. 294)40.

7 ÉTICA DO MORAR NO MlJNDO-PI{OJETO

Muitos criticaram Heidegger por nunca ter proposto uma éti-


ca+'. Ser e Tempo, contém, entretanto, uma teoria do existir huma-
no que pode ser lida como uma ética. Não como uma ética da
eliminação da finitude caracterizada pelo desprazer, a transitorie-
dade e os conflitos, mas, pelo contrário, da sua aceitação in-

40 Um exemplo de como o pensar representacional pode encobrir o existir humano é dado


pela afirmação de Kant, referida acima, de que o nosso medo da morte repousa sobre a
ilusão de que o pensamento cu sou /1/01'/0 efetivamente existe. Kant parece nem ao me-
nos suspeitar a possibilidade de a nossa morte, o nosso ser-para-o-nada, ser-nos mais
próxima do que qualquer objeto representado no pensamento. - Note-se que há uma
grande diferença entre dizer que a razão pratica é presentificante (isto é, que comanda o
ente cuja entitude é interpretada como presentidade) e dizer que o modo de ser da li-
berdade, ela mesma, é também a presentidade. Sobre essa diferença, cf. a nota 57, bem
como a secção 10, sub fine.

41 A tese corrente de que Heidegger seria um adversário implacável de toda filosofia


prática é defendida, por exemplo, por Prauss (1988). O estudioso kantiano observa, de
maneira correta, que, segundo Heidegger, toda questão de auto-controle pertence hoje
necessariamente ao domínio do pensamento técnico. Ele erra quando conclui da! que
Heidegger não teria qualquer resposta para a questão de limitação ou finitização do
humano. Como veremos em seguida, em Ser e TCIII]'O, a limitação é estudada
explicitamente, mas não a tftulo de efeito da aplicação de máximas racionais
auto-impostas e, sim, como decorrência do próprio cuidar de si, a saber, do
querer-ter-a-consciência-da-culpa. O segundo Heidegger falará em receber instruções
(Zuweisungen y do ser e em querer o não querer (Heidegger 1959b, p. ~2).
74

condicional. Uma ética finitista, portanto, aquém do princípio de


fundamento, que desespera de todo dever absoluto e não conta
com o agir causal. Ética que não pergunta mais: que devo fazer pa-
ra ser digno de ser feliz? e sim: como deixar acontecer, estando-aí
no mundo, o que tem-que-serri-.
Cabe observar, antes de mais nada, que o conceito heidegge-
riano de ter-que-ser é a tradução existencial-ontológica, isto é, des-
construcional, do conceito metafísico do dever. Já em 1919, no
mais antigo curso seu que ficou conservado, Heidegger afirma, con-
tra a tentativa de Rickert de desligar o valer do ser, que a dadidade
originária da filosofia é a "dadidade do dever" (Sollensgegebenheit).
Hermann Mórchen, aluno de Heidegger, explica: "O dado, portan-
to, o que primariamenie é, é um dever/Sollen/, um ter-que-ser
/Zu-sein-haben/, um modo obrigatório de chegada e de advento. O
termo 'dadidade-dever' [Sollens-gegebenheul não é nada mais nada
menos do que a primeira versão do título 'Ser e Tempc'<",
O ter-que-ser é um ter-que-estar-aí-no-mundo. Eu sou signifi-
ca, em Sere Tempo, eu estou habitando, eu estou morando, eu estou
me demorando aí, no mundo, no mundo que eu mesmo abro e pro-
jeto. Esse demorar-se no Aí, na clareira (Lichtung) do mundo-pro-
jeto, não é um existir ocioso, um subsistir indiferente e inerte, mas

42 Em Loparic 1982, mostrei que a filosofia de Ser e Tempo era urna [enomenologia do agir,
sem discutir, entretanto, aspectos relativos a questões da ética. No presente artigo,
defendo um ponto de vista mais forte, a saber, de que a filosofia de Heidegger, tanto a de
Ser eTempo, como a da segunda fase. é, em si mesma, uma ética. Recentemente,
Gethmann (1988) e, com mais ênfase ainda. Seel (1989) avançaram na mesma direção,
embora com argumentos que nem sempre convergem com os meus, como farei ver em
seguida. Haar (1985) também fala em ética heideggeriana sem, entretanto, abordar o
assunto de frente.

43 Cf. Mórchenlvêv, p. 191. Conferir ainda as citações dos trechos do conde York, em Ser
e Tempo, apresentados como motivadores do empreendimento de Heidegger. York en-
tende que a alma de toda filosofia verdadeira. desde Platão e Aristóteles. é a pretensão
de ser prática e pedagógica. excluindo. contudo. a possibilidade de a filosofia, enquanto
ética, constituir-se como ciência racional (1927, p. 402).
75

um ter-que-se-ocupar do ente intramundano, preocupado e solícito


com os outros. O sentido pleno de eu sou é o fenômeno composto
do estar-aÍ-no-mundo-junto-das-coisas-com-e-a-fim-de-outros, eu-
jos elementos são todos cooriginários, irredutíveis. É essencial
notar aqui que o ocupar-se é um deixar ser, deixar surgir, manifes-
tar-se. Portanto, o exato oposto de qualquer intervenção violenta
no existir do ente. Da mesma maneira, o estar-com a-fim-de outros,
é sempre, na origem, um movimento de abertura de possibilidades
para o outro, um cuidar. De novo, o exato oposto do matar. A ética
do primeiro Heidegger é, portanto, uma ética do morar no mundo-
projeto, do abrir-se para o encontro.
O ter-que-ser (Zu-sein-haben) não nos é prescrito por uma lei
moral. Ele nos é imposto pelo nosso ser ele mesmo. Trata-se de
uma urgência (Not) que incide sobre nós como o peso (Last) de um
enigma, sem razão suficiente. O nosso ter-que-ser não obedece ao
princípio de fundamento. Ele não resulta dos desígnios de alguma
causa suprema (Deus). O estar-aí não é um ens creatum. Somos
lançados no mundo com essa carga, sem explicação possível. Como
acedemos a esse tipo tão extraordinário de dadidade? Pelo chama-
do da voz da consciência da culpa, ouvida no silêncio disposto para
a angústia. Voz que é do nosso cuidado para com o nosso ser, o es-
tar-aí, e que revela esse ser como dívida (Schuld), justamente, por-
tanto, como um ter-que-ser. Até não poder mais ser, até a morte. O
estar-aí é um ter-que-ser-aí-no-mundo transcendido, desde sempre,
no ter-que-ser-para-a-morte. Aqui, é importante lembrar, a morte,
a possibilidade da imposibilidade, é o nome existencial-ontológico
para o nada. O estar-aí é a transcendência do estar-aí para o nada+',

44 Levinas insiste em traduzir o ter-que-ser de Heidegger por conatus essendi, conação de


ser, de Spinoza. (cf., por exemplo, Levinas 1992, p. 24). A violência da tradução é óbvia.
O conatus significa, como diz o próprio Levinas, ulll.esforço de ser (ejfort d'être, Levinas
1991, p. to) ou, como diz o Aurélio, tendência a atuar, e não, como deveria, para poder
traduzir o ter-que-ser de Hcidegger, um peso a suportar. Ademais, em Spinoza, o conatus,
pelo qual cada coisa (res) busca perseverar no seu ser, nada mais é do que a sua essência
dada, a sua natureza determinada (Ethica, 11I. prop. 7). Ora, em Heidegger, o
ter-que-ser: J), não caracteriza cada coisa, mas apenas o existir humano, 2) niío se reduz
76

Assumir o ter-que-ser-até-a-morte é tudo salvo carr


(finalmente) sob uma medida. Agir por consciência da culpa é
necessariamente agir sem consciência moral (gewissensloss. sem
medida (masslos), transcender toda medida. Aqui, a transcendência
é sinônimo de liberdade que desvencilha o homem de todo
deterrninismo infinitista, seja do prazer, seja da natureza, seja da
lei. A voz da consciência da culpa suspende a vigência de todas as
instruções práticas. Ela não diz nada de positivo nem de negativo
sobre o .que fazer. Não porque não coubesse, racionalmente,
proceder a tais determinações no cotidiano, mas porque ela tem
um sentido ontológico totalmente diferente, além, ou melhor,
aquém da oposição corrente entre o correto e o incorreto. Ela
concerne ao próprio modo de existir do homem e não à escolha dos
cursos de ação (1927, p. 294). Na ética de Ser e Tempo, não há
prazeres a buscar, bens a realizar, normas a cumprir, mas um
chamamento a seguir, o do a-ser transiente que deixa ser (p. 273)45.

à essência dada ou natureza determinada, 3) pelo contrário. testemunha que o estar-aí


transcende toda essência. Ou seja, o ter-que-ser heideggeriano está [ora do alcance do
princípio de fundamento, o que obviamente não é o caso do conatus essendi spinoziano
que é urna decorrência desse princípio. A razão da tradução proposta por Levinas não
parece ser um mero engano. Trata-se, antes, da tentativa de cortar pela raiz qualquer
possibilidade de interpretação ética da ontologia fundamental de Heidegger.
Possibilidade plausível, entretanto, como espero poder mostrar aqui, e que alllellç:! a
principal tese da filosofia levinasiana, a de ser a ética, c não li ontologia, a filosofia
primeira. De resto, o próprio Heidegger, nos comentários sohre 11 sentença de
Anaxirnandro (1957b, pp. 296-343) ofereceu uma desconstrução do conceito de conatus
essendi, ainda que na sua forma pré-metaffsica. Cf. a secção 9.

45 Seel (1989) interpreta o conceito heideggeriano de transcendência de valores e normas


vigentes no sentido de distanciamento corretivo em relação a orientações do agir (pp.
245,266). ESSll interpretação permite-lhe criticar Ileidegger, com 11 ajuda de Haberrnas,
por tomar distância até mesmo da razão, como fonte de orientações corrigi das. Dessa
maneira, Seel deixa de lado o que há de essencial na transcendência heídeggeriana: o u/-
trapassamento da razão como o fundamento suficiente. Heidegger não propõe, como faz
Haberrnas, um melhor uso do princípio de razão suficiente. O ser-para-a-morte sim-
plesmente não permite mais o jogo fundacionista tradicional. Ele força um outro jogo: o
das escolhas radicalmente infundadas, embutidas, contudo, na tessitura da mundanidade
historlal. Para operar as correções das regras desse jogo, de nada adianta recorrer aos
77

Ao redefinir o conceito do dever, Heidegger também muda,


portanto, o do agir. Em Ser e Tempo, agir não significa mais produ-
zir efeitos. Significa, antes, deixar surgir o ente casual na situação
do momento (Augenblick). Coisa alguma requer, a rigor, ser feita
presente, ser produzida. Agir é, antes, implementar sentidos nadi-
ficáveis no Aí, semelhante ao brincar e ao fazer arte. Trata-se de
um agir por ter-que-agir, que não espera por resultados. De um agir
órfão da razão suficiente. De um agir apenas por culpa diante do
não ser. De um agir pelo agir, desapegado de todos os fundamentos
afetivos e racionais, às claras quanto a sua intransponível transiên-
cia46.
É só agindo assim, culpado diante do nada, que o homem po-
de ser responsável (verantwortlich) por tudo e para com todos.
Responsável, não em termos de valores e normas, já que o ser-pa-
ra-a-morte revelado na consciência da culpa desrealiza toda medi-
da, mas pelos valores e normas. Responsável no sentido de ser, ele
mesmo, a condição de possibilidade do moralmente bom e mau, isto

processos "comunais, culturais e políticos' (Seel 1989, p. 268). Em Heidegger, a raciona-


lidade intersubjetivarnente validada de Haberrnas é tão infundada e historial quanto a
racionalidade monol6gica de Kant. A razão que define o correto (das Richtige), por meio
de distanciamento articulado, não é, como sugere Seel, a verdadeira "forma do bem"
(F0171l des Guten, p. 269). Ela é, antes, a irnpossibilitação radical do bem originário: do
deixar ser o ente na ocupação preocupada. Num outro trabalho (cf, Loparic 1990b), ten-
tei mostrar que o processualismo de Habermas, por não oferecer regras efetivas de de-
cisão sobre as normas, ao mesmo tempo que profbe decisões monol6gicas sobre as mes-
mas, incorre no risco de favorecer o terror prático.

46 t, de se notar que o projetar heideggeriano dos sentidos instrumentais dos entes intra-
mundanos não permite, por si só, [abricar instrumentos, mas tão somente encontrá-los.
Para fabricar instrumentos é necessário considerar, além do para-que e o a-fim-do-que, o
aspecto do instrumento. Ora, i! aspectualidade é um traço ontol6gico que não existe'
(ainda) no domínio da mera instrurneutalidade e que pressupõe a constituição do domí-
nio di! presentidade, necessariamente posterior, segundo Ser e Tempo, ao da instrurnen-
talidade.
78

é, "da moralidade em geral e das suas formulações facticamente


possíveis" (p. 286)47. É só enquanto responsável no presente senti-
do existencial-ontológico que o homem pode fazer-se culpado no
sentido também moral (p. 282). Se não existisse constantemente
como culpado, ele poderia apenas tomar-se, ocasionalmente, falto-
so, por não satisfazer, volta e meia, às regras da ocupação preocu-
pada. A moralidade não pode, portanto, determinar o ser culpado,
porquanto ela mesma o pressupõe. O homem existe culpado antes
de existirem as normas, antes mesmo de ter feito qualquer coisa.
O ser-para-a-morte não é a condição de possibilidade do agir
no sentido de razão suficiente, definitivamente desalojada, mas no
sentido de instância possibiliiadora do estar-aí como ter-que-agir,
anteriormente a qualquer escolha objetal, de antes do princípio de
fundamento. A tradição, por seu lado, não fornece, por si só, ne-
nhuma obrigatoriedade, fornece apenas as "possibilidades herda-
das", as que constituem a facticidade do estar-aí e que permitem as
"formulações facticamente possíveis'" É verdade que Heidegger
chama a herança de possibilidades repetíveis de autoridade e, mes-
mo, de única autoridade do estar-aí (1927, p. 391). O estoque des-
sas possibilidades é, ainda, todo o bem do homem, no sentido de ser
ele o que possibilita as escolhas do curso do agir sob a instância su-
prema da morte. Esse bem não é algo a pegar ou largar, ele é mais
que o bem, é o próprio destino (Schicksal) do estar-aí, do qual este
nunca pode fugir (pp. 383-4). Entretanto, o fundamento último da
autoridade da tradição e da força do bem, isto é, do peso do passa-
do (des Vergangenen) e do primado da preteridade (Gewesenheit), é
o ser-para-a-morte (p. 386). É só porque "quebra a cara" na morte,

47 o conceito heideggeriano da transcendência como condição de possibilidade ou a priori


existente (1927, p. 50n), uma das suas descobertas fundamentais, é, por um lado, uma
reapropriação do conceito kantiano de a priori operacional efetivo (do esquematismo) e,
por outro lado, uma desconstrução do a priori kantiano meramente formal (por exemplo,
da a percepção transcendental).
79

que o estar-aí pode (e tem-que) envolver-se com a herança de es-


colhas objetais possíveis e ser responsável por ela. Ou seja, existir
como fundamento cindido, finito48•
Dada a herança, nem tudo é factível, mas apenas aquilo que é
possibilitado pela significância do mundo, isto é, pelas conexões
instrumentais e pela opinião pública, ambas mediatizadas pela
historicidade do mundo. A eticidade heideggeriana é, portanto, ao
mesmo tempo, autônoma, própria, no sentido de receber a sua
obrigatoriedade sempre exclusivamente do ter-que-ser culpado e
solitário, e heterônoma, imprópria, no sentido de que todo agir
aí-no-mundo tem-que submeter-se à razão instrumental e ao
domínio públco (Offentlichkeit). Agora vemos por que não procede
a freqüente objeção de decisionismo contra o primeiro Heidegger
(cf. Seel 1989, pp. 258, 264). Em primeiro lugar, não há
decisionismo nenhum em ter-culpa: a imputação da
responsabilidade com as escolhas é irrecusável. Eu não decido se
faço ou não faço escolhas. Eu sou condenado a fazê-Ias. Em

48 A finitude do ser humano é sistematicamente acentuada, no contexto das discussões


éticas, pelos pensadores orientais. Daisetz T. Suzuki, por exemplo, escreve: "Somos
todos finitos, nós não podemos viver fora do tempo e do espaço; enquanto criaturas da
terra, não temos como atingir o infinito, como poderíamos nós, então, livrar-nos das
limitações da existência? /.. ./ A salvação deve ser buscada no finito ele mesmo, não há
nada infinito à parte das coisas finitas; se você busca algo transcendente, isso o cortará
desse mundo de relatividade, o que é o mesmo que a sua aniquilação. Você não quer a
salvação às custas da sua própria existência. Sendo assim, beba e coma, e encontre o seu
caminho de liberdade nesse beber e comer. / .. ./ Que você entenda ou não, continue
assim mesmo, vivendo no finito, com o finito. /. . ./ Seja como for que você lute, o nirvana
deve ser buscado no meio do samsara (nascimento-e-morte)." (Suzuki 1956, pp. 14-15).
Williarn Barret, na introdução ao livro de que a citação acima foi tirada (p. XI), registra
um dado interessante. Um amigo de }-Ieidegger ter-lhe-ia confidenciado que, certo dia,
durante uma visita, encontrou l-Ieidegger lendo um dos livros de Suzuki, O filósofo
alemão teria dito: "Se entendo corretamente esse homem /Suzuki/, o que ele diz é o que
eu tentei dizer em todos os meus escritos." Sabe-se 'que Suzuki, enquanto estudante,
fazia parte, na companhia de Hajime Tanabe, do grupo em torno de Kitaro Nishida, do
qual surgiu a Escola de Kyoto, a mais prestigiosa escola de filosofia do Japão
contemporâneo e que recebeu forte influência do pensamento de Heidegger (cf. Tanabe
1986, introdução de Takeuchi Yashinori, p. XXXIV), Sobre as relações de I-Ieidegger
com os filósofos japoneses, cf.l-Ieidegger 1977.
80

segundo lugar, eu tampouco escolho de maneira arbitrária entre as


. possibilidades que herdei. A autoridade da tradição pode ser
desconstruída, mas não pode ser simplesmente ignorada. A
sua força provém, como acabamos de dizer, do próprio
ser-para-a-morte, incontestável. Algumas possibilidades têm-que
ser escolhidas, não está ditado quais, Bem entendido, o princípio de
razão suficiente não pode mais ser invocado para dirimir dúvidas.
Mas isso não significa que qualquer uma pode ser escolhida. Nem
tudo vale: certas possibilidades fazem autoridade. A objeção do
decisionismo imputa a Heidegger a tese de onipotência em relação
à escolha; em outras palavras, a negação lógica do princípio de
fundamento. Mas a posição de Heidegger é bem diferente. O
estar-aí é, em virtude do mesmo estar lançado, a um tempo,
possibilidade de propriedade e de impropriedade. Heidegger
rejeita, sim, o fundamento infinito, mas não o fundamento dividido,
composto de supremacia (übennacht) sobre o ente, que decorre da
liberdade para o nada, e de impotência (Ohnmacht) e abandono
(überlassenheit), em meio ao ente. É no abandono decidido à
ocupação preocupada, "como o qual o estar-aí tem-que ser", que
"se abre primeiramente, a cada momento, a conjuntura factual das
circunstâncias" (1927, p. 300).
A objeção simétrica de fatalismo também deve ser recusada: a
responsabilidade para com as possibilidades escolhidas e realizadas
é, Heidegger não deixa dúvidas, rigorosamente intransferível a
qualquer outra instância. Assim como não nega pura e simplesmen-
te o princípio clássico da razão suficiente, Heidegger tampouco o
afirma na forma das revoluções da roda rígida da fortuna. Ambas as
objeções, a do decisionismo arbitrário e a do fatalismo cego, igno-
ram a problemática de escolha dos cursos de ação em condições de
finitude: escolha simultaneamente livre e enraizada; problemática
que é a de uma ética situacional, iniciada e desenvolvida, ainda que
só muito parcialmente, por Heidegger em Ser e Tempo'".

49 Nunes fala em "genealogia heideggeriana' das "concepções morais" e em parto da


"consciência moral" no estar-ar (19R6, p. j 26, 130). Não estri claro se por "parto" Nuues
81

A ética situacional do morar no mundo-projeto inclui,


também, um elemento de intcrsubjetividade. Não se trata da
intersubjetividade capaz de dar a força às normas. Por certo, na
heteronomia, na impropriedade do cotidiano, o homem é um
estar-aí-com-os-outros e a-fim-de-outros que só sabe de si pelo que
a gente (das Man) pensa. Mas a intersubjetividade do domínio
público do cotidiano não determina a solicitude (Fürsorge) como
tal, no sentido próprio. Esta não consiste na prática de atos
assistenciais ou parecidos, baseados em normas consensuais-". A
solicitude, desenganada pelo ser-para-a-morte, não se ocupa das
necessidades concretas do outro, mas direta e imediatamente do
seu existir enquanto livre de todas as normas. Ela "ajuda o outro a
ficar transparente para si mesmo no seu cuidado e a se libertar para
este" (1927, p. 122). Só um homem esquecido de si pautará o seu
agir sobre os acordos "livremente consentidos". O homem
finitizado, assumindo o seu poder não-ser, cuidará em primeiro
lugar de deixar os outros também livres para a sua possibilidade
mais própria: "É unicamente do próprio ser-si-mesmo da
resolução /isto é, do ser-para-a-morte/ que se inicia o
ser-em-comum próprio, e não o de acordos ambíguos e de
confraternizações efusivas no impessoal e naquilo que se quer

entende "razão suficiente". Uma tal interpretação não se defenderia. Ela foi proposta,
de fato. por Gethmann (1988, p. 167), que afirma que o ser-para-a-morte é um
a-fim-de-si (isto é. uma relação a si mesmo Iundante de si mesmo) e, além disso, o
"fundamento" não apenas "necessário", mas "suficiente" da rnoralidade. Para começar,
o ser-para-a-morte não é um a-fim-de-si (das Worumwillen), pois esse existencial só se
refere a possibilidades mundanas do estar-aí. Ele é. antes, um a-fim-do-nada. O
ser-para-a-morte não é uma relação. vinculação, a si. mas, pelo contrário, urna
desvinculação de si, uma desrealização de si. Por isso mesmo, o ser-para-a-morte não
pode ser a raz»c10 suficiente de nenhuma norma do agir. Decerto, poder o não ser, o nada,
possibilita o estar-ai como ocupação preocupada, mas não a titulo de fundamento
positivo, determinante, e sim como lançamento, como abandono ao destino.

50 Heidegger ironiza, a respeito do J .eibniz, dizendo que este. ao descobrir o principio de


razão suficiente, tornou-se, também, o verdadeiro "inventor do seguro de vida" (1957a,
p.202).
82

empreender" (p. 298). Ser solícito significa cuidar do outro como


.acontecência finita, não como membro de um coletivo que obedece
a normas da razão>'.
Cuidar verdadeiramente do outro não significa, portanto, nem
racionalmente normatizá-lo, nem socializá-Ia. Tampouco quer
dizer inserir o outro numa história coletiva. O futuro aberto pelo
cuidado não promete um final salutar, apenas possibilita o agir na
situação presente. Para o Heidegger de Ser e Tempo, a esperança
na salvação, assim como a na redenção religiosa, é sinônimo de
envolvimento afetivo encobridor da finitude, uma tentativa da fuga
da inorte (1927, p. 424). Em oposição ao medo, que se relaciona
com o ma/um [uturum, a esperança é caracterizada como o
aguardar o bonum [uturum; na interpretação mais freqüente, o
prazer no lugar da dor. O decisivo aqui, diz Heidegger, não é tanto
o futuro, mas o sentido existencial da esperança. Todo aguardar
esperançoso inclui esperar-por-si. Quem espera está sempre
incluído no esperado, como aquele que, afinal, aliviado, terá se
conquistado (Sich-gewonnen-haben). O fato de a esperança aliviar
indica que, ela também, permanece referida ao peso do existir. O
sentimento de elevação, melhor, o sentimento que eleva, no

51 Segundo Gethmann, Heidegger teria podido derivar uma variante existencial do impera-
tivo categórico (1988, p. 167), isto é, regras intersubjetivamente obrigatórias de ação
moral e política, se tivesse explorado a fundo o fenômeno de a-fim-de-outros, embutido
no estar-com (Gethmann 1988, pp. 167, 169). Gethmann esquece, entretanto, que o exis-
tencial comunitário do a-fim-de-outros é definido, assim como o estar-com, no horizonte
do mundo cotidiano, ocupando, assim, um lugar no interior da estrutura do cuidado, não
sendo, portanto, um determinante dessa estrutura. Os fenômenos determinantes dá es-
trutura do cuidado são a morte e a culpa. Constitutivos tio cuidado como transcendência,
I .
isto é, de ultrapassamento da significância mundana panto horizonte do tempo estático
originário (revelado pelo irremissível e não cornpartilhável ter-que-ser-para-a-morte),
esses fenômenos não podem ser explicitados no horizonte da rnundanidade, Definitórios
do sentido do existir humano no seu todo, inclusive na sociedade, eles não podem ser so-
cializados. A ética heideggeriana do ter-que-estar-aí-no-mundo é, tanto quanto a ética
do imperativo categórico de Kant, uma ética do solus ipse (1927, p. 188) e, por esse moti-
vo, igualmente solitária e monológica.
83

sentido de Kant explicitado acima, só é ontologicamente possível


no interior da relação extático-existencial do estar-aí a si mesmo
como projeto (já, desde sempre) lançado (p. 345). Em outras
palavras, toda esperança é tão somente uma tentativa de tornar
sem efeito a nulidade do fundamento nulo que somos chamados a
ser e a assurnir=.
A esperança, entendida nesse sentido existencial-ontológico,
não abre nenhuma janela sobre um horizonte escatológico. O
éschaton do estar-aí, a possibilidade da impossibilidade, está dado
no seu ser-para-a-morte. Possibilidade que não espera para ser
realizada num futuro indefinido, ele já é presente, desde sempre.
No tempo da acontecência do estar-aí não há progresso. Só há
presentificações instantâneas de entes em situações, para que
estejam. A entitude (ser) do ente é o seu apresentar-se no presente
da situação-ê, A plenitude dos tempos é uma figura do
esquecimento do nada do mundo e do nosso estar-aí-no-mundo em
que estamos lançados, esquecimento possibilitado pelo uso da
presentidade como sentido do ser54•

52 Essa análise implicaque o ser-para-a-morte está além (aquém) do princípio de prazer no


sentido de Freud. As sensações de prazer e de desprazer, pressupõem o medo como en-
volvimento afetivo com as coisas ameaçadoras, portanto, justamente a disposição que fi-
ca snspensa na angústia (1927, p. 342). Em outras palavras, a "dor" da angústia não é um
"desprazer". O ser-para-a-morte não busca o prazer, nem foge do desprazer.

53 Usamos aqui o neologismo "entitude" como uma tentativa de tradução de Seiendheit


heideggeriana, que, por seu turno, traduz ousia dos gregos.

54 No budismo, encontramos um conceito de escatologia que mereceria ser comparado


com o de Heidegger. Daisetz T. Suzuki escreve: "A escatologia é algo que nunca é rea-
lizável e que, não obstante, se realiza 11 todo momento da nossa vida. Nós a vemos nos-
à

Si! frente, embora. na verdade, estejamos sempre dentro dela. Isso é uma ilusão a que

somos obrigados pelo nosso condicionamento, enquanto seres existentes no tempo, ou


melhor, enquanto 'processos' no tempo" (Suzukil969. p. 191).
84

8 DESCONSTRUÇÃO DESTlNAMENTAL DAS ÉTICAS IN-


FINITAS

Na Introdução à Metaítsica, Heidegger volta ao tema da


relação entre o dever e o ser. Agora, em 1935, a origem do
ter-que-ser não é mais 'pensada no interior da estrutura ontológica
do estar-aí, mas a partir da história dos destinamentos do ser. Nessa
história, o ser foi limitado desde quatro pontos de vista e, em
decorrência disso, contraposto ao devir, parecer, pensar e dever.
Assim circunscrito, o ser acabou recebendo a determinação
restritiva de mera presentidade (1958, pp. 72, 154; tr. pp. 154,287).
O projeto de Heidegger será o de mostrar que o devir, o parecer, o
pensar e o dever não são um nada, que esses quatro momentos de
alteridade ao ser também são, eles mesmos, e que, portanto, o
conceito tradicional do ser precisa ser ampliado para abranger,
como um círculo, todas essas oposições e para fundamentar tudo o
que é. Ele entende mostrar que a separação primeira e original não
é aquela entre o ser e o outro que o ser, mas aquela entre o ser e o
ente e que todos os outros dualismos só acontecem na medida em
que essa separação é esquecida (ibid., p. 156; tr. p. 292).
Odualismo entre o ser e o dever, bem como a vinculação
entre o dever e o pensar (lágos], aconteceu, diz Heidegger, em
Platão. Pia tão concebe o lógos como idéio. A idéia do Bem não é
apenas uma entre tantas outras: ela possibilita a manifestação do
ente na forma de idéia. O Bem é a imposição da idéia sobre o ente:
ser do ente deve ser desvelado como idéio. O Bem decreta: todo
ente há de ter uma face ideativa. Esse é o bem do ente:
apresentar-se através de uma idéia. Em oposição ao dever, o ser se
apresenta como um mero a-ser que ainda não roi realizado (p.
154), isto é, feito presente com a cara de uma idéia. As virtudes
aristotélicas, disposições estáveis que favorecem a realização do
té/os da nossa natureza essencial, continuam o mesmo
prescritivismo logocêntrico iniciado por Platão-",

55 Sobre a teoria das virtudes de Aristóteles, cf. o estimulante Maclntyre 1985.


85

Na modernidade, presenciamos a crise do ideal platônico,


bem como a das idéias aristotélicas da natureza essencial e do fé/os,
crise que já começou no helenismo (com o desgaste do conceito de
kósmos e a divisão de virtudes em estóicas e epicureas). Em
Hobbes, a moral torna-se decididamente física. Aphysis desaparece
como o sentido do ser e é substituída pela objetividade
representacional. Por conseguinte, os objetivos da ética passam a
ser vistos como meros efeitos de agentes causais. O que é
causalmente impossível não pode ser um dever. O que é
causalmente necessário não precisa ser objeto de um dever. A
moralidade do agir reduz-se à obediência ao determinismo da
natureza. É o fim da ética platônico-aristotélica e o ressurgimento
do hedonismo epicureu na forma do utilitarismo, ética típica da
modernidade=.
Kant lidera a reação. Nele, o imperativo categórico, a lei
moral, que expressa o dever, coage e comanda o ser no sentido de
natureza viva, impulsiva. O moralismo de Kant não significa,
portanto, a desontologização do viver. O seu formalismo é ainda
ontológico: a sua metafisica dos costumes continua na
presentidade-". Com o predomínio, no século XIX, do ente
caraterizado pelas leis da ciência, natural ou histórica, a lei moral

56 o principio treudiano de prazer afigura-se como sendo apenas uma adaptação


psicologizante do utilitarismo (Freud foi tradutor de Mill). O princfpio de realidade,
uma modificação do princípio de prazer, só acrescenta a dimensão do cálculo: o cálculo
dos prazeres. Hoje, depois de Freud, assistimos il substituição até mesmo dos
imperativos hedonistas pelo cálculo da vantagens. É o triunfo da presentidade persistente
sem sentido (deIllUllgslos) e sem dor (schmerzlosi, a época da des-moralização da vida.

57 A explicitação das reservas que tenho em relação il desconstrução destinamental,


proposta por Heidegger, da moral kantiana não pode ser feita no quadro do presente
artigo. Direi apenas o seguinte: se não há como negar que Kant submete, conforme
mostramos na secção 3, a denenninação do ente, no seu todo, ao principio de razão
suficiente, existem varias dúvidas quanto i\ tese desconstrucionista de Heidegger de que,
em Kant, o ser do ente no seu todo é concebido como presentidade. Uma dessas dúvidas
parte do problema kantiano da unidade da razão teórica e prática. Kant penso, por certo,
a liberdade com as mesmas categorias que a natureza. Nos dois casos, as leis de
determinação silo do mesmo tipo, o que significa, no essencial. que arnbas obedecem ao
86

kantiana foi progressivamente expulsa do lugar de comando sobre


a natureza impulsiva-". Em resposta, os éticos descobrem os
valores. Agora são os valores materiais, e não mais as leis [ormais
que passam a garantir controle do existir humano. São eles que
ó

devem ser realizados, isto é, tornados presentes, em nossas vidas e


na história. De novo, triunfa a presentidade como determinação do
ser (p. 151)59.
Esse processo de substituição dos valores antigos e da lei
moral culmina em Nietzsche. Nietzsche entende, diz Heidegger,

princípio de fundamento. Nem por isso Kant deixa de assinalar que, se essas leis servem
para determinar a liberdade enquanto boa, elas não podem se usadas para caracterizar a
liberdade enquanto existente. O modo de existir da liberdade boa permanece
indcterminado e indeterminável, desde o ponto de vista da representação [undante em
geral. Ora, se é assim, permanece igualmente em suspenso, em Kant, se a liberdade que
pertence ao "reino dos fins", da "graça" ou da "virtude", existe ou não existe no sentido
de presentidade que caracteriza o "reino da natureza". Por conseguinte, a desconstrução
de Kant, do ponto de vista heideggeriano, não pode, nem precisa, consistir na objeção de
ontologismo, na imputação da presentidade da liberdade. Ela terá, antes, parece-me, que
se concentrar na desconstrução do tipo de lei proposto por Kant para determinar essa
liberdade incompreensivel. A liberdade kantiaua pode ouvir a voz da razão e viver dela.
Mas, isso não quer dizer que ela seja incapaz de entender leis instruídas em outras
linguagens, por exemplo, numa gesta que desconhece o princípio de razão suficiente.
Essa observação talvez explique por que um Levinas, adversário decidido do
ontologismo, sente-se particularmente próximo da filosofia prática de Kant (Levinas
1991, pp. 20, 23) e por que recusa decididamente a redução heideggeriana do esperar
kantiano ao aguardar uma presentidade, para perguntar: ter esperança, isso não
significaria mais que ser? (Levinas 1992, p. 73). - Voltaremos sobre esse assunto na
secção 10.

58 Aqui pertence o evolucionisrno de Spencer e a teoria marxiana da cnaçao de


necessidades secundárias, bem como várias outras teorias do progresso e da
perfectibilidade do homem (cf. Pasmare 1970 e Nisbet 1985). Em vários casos (como em
Marx), trata-se de secularização da idéia bíblica do êxodo para a terra prometida (cf.
Lówith 1950 e Blumenberg 1974).

59 O.E. Moore (1903), além de Max Scheler e Nikolai Hartrnann, é um dos proponentes
mais destacados da ética dos valores. Ele os toma por propriedades objetivas inanalisáveis
e irredutfveis, seja aos predicados Iísicos (hedonistas, por exemplo), seja aos
supra-sensíveis (kantianos, por exemplo). Desde o ponto de vista de Heidegger,
entretanto, Moore permanece preso ao pensamento metaíísico, ao primado da presença.
87

que a tradição metafísica e ética do Ocidente é movida pela


vingança (Rache) contra o tempo e o seu já era. A busca dos
valores eternos e da lei moral era orientada pelo rancor contra a
transitoriedade e o transitório (Heidegger 1954. p. 116)60. No lugar
da permanência das idéias. o seu Zaratustra introduzirá a
permanência do devir. Em vez de huscar o permanente no eterno,
ele buscará o permanente na própria transitoriedade. A salvação
nietzscheana da vingança, observa Heidegger. não é, longe disso, a
libertação de todo querer. O que é negado é apenas a vontade que
nega o tempo. para que possa ser afirmada. como uma força ainda
maior. a vontade que diz sim ao tempo e ao transitório. A
meta física conhece o agora sempre igual e constante: a eternidade.
Em Nietzsche, o eterno retorno do igual toma o lugar do igual
constante (p. 109). A sua vitória sobre o rancor da vingança contra
o tempo reafirma, portanto, a interpretação do ser como
presentidade. Desfazer o passado pela repetição, essência da
modernidade, significa obter um sistema de replay maquinal para
tudo. "Impregnar o devir do caráter do ser - essa éa mais alta
vontade de potência" (p. 120).

9 ÉTICA no MORAR NO MUNDO-QUADRINDADE

Nos anos 30, Heidegger descobrirá que o modo de ser do


mundo moderno, aquele caracterizado pela vontade de potência
explicitada por Nietzsche, não pode ser interpretado como projeto
gerado a partir do ter-que-ser do estar-aí, A técnica moderna,

60 Urna outra maneira, também tradicional no Ocidente, de tornar sem efeito o passado é o
arrependimento. No contexto da fé cristã, a redenção 0",oo5l./IIg) do "tem sido" possui o
caráter de perdão do pecado. Essa maneira de desrealizar o passado está fechada para o
pensamento do ser (cf. Loparic 199()a, capo VI).
88

implernentação da vontade de potência, não repousa sobre uma


interpretação do sentido do ser no horizonte do tempo do existir
humano. Desde então, Heidegger começa a pensar o ter-que-ser
não mais como um projetar lançado e sim como um
ter-que-corresponder a uma interpelação, a interpelação da
verdade do ser.
Que significa dizer que o homem é interpelado pela verdade
do ser? Significa que o homem é chamado a, que ele tem-que
(musst), abrir-se ao desocultamento do ser como diferença
ontolágica, como diferenciação do ente em que se guarda. Não se
trata mais de diferença entre as possibilidades mundanas do
estar-aí, todas realizáveis em princípio, e a única possibilidade não
realizável, a possibilidade da impossibilidade. Trata-se, antes, como
dissemos acima (secção 2), da divisão entre o ser como presentar-se
e o ente que se presenta.
Como pode o homem responder a esse chamamento? O que
tem-que fazer para corresponder, se esse corresponder não é mais
projetar as possibilidades? Ou, como pergunta Heidegger, como se
essência (west) o ser-para a verdade do ser? Em primeiro lugar,
como um morar (wohnen). Heidegger não apenas retoma a sua tese
de Ser e Tempo de que eu sou significa eu tenho que morar (1954,
pp. 147, 161). No mundo da técnica, o homem desaprendeu como
manter-se na terra. Por isso, ele tem que (musst) (re)aprender a
morar: esse é o seu primeiro dever de mortal (p. 162). Aqui,
ter-que-morar não significa mais ter-que-estar-aí-no-mundo.
Significa ter que habitar a quadrindade, na vastidão (die Weite) do
mundo entre a terra e o céu, os mortais e os divinos. O traço
fundamental desse modo de morar é o resguardar (schonen):
poupar, preservar de danos e de ameaças, guardar. O resguardar
não consiste apenas em não agredir. Ele é algo positivo, é a
recondução de cada coisa à sua essência no sentido verbal, à sua
essenciação: pacificação consigo mesmo. Pacificação que é
abertura do campo, libertação.
O morar resguarda a quadrindade no seu todo. Ele salva a
terra da exploração desenfreada. Recebe o céu, deixando que o dia
seja dia e a noite noite, que os astros sigam os seus cursos, que os
89

tempos das estações frutifiquem. Aguarda os divinos, ao esperar


pelo inesperado e pelo salutarvt. Acompanha os mortais na morte,
para que seja uma morte boa. No salvar a terra, receber o céu,
aguardar os divinos, acompanhar os mortais inteira-se (ereignet
sich), diz Heidegger, o morar, como o resguardar dos quatro.
Resguardar quer dizer: proteger. (1954a, p. 151)62.
Para poder morar resguardando, o homem tem que edificar
(bauen), isto é, tem que cultivar (pjlegen und hegen) coisas que
crescem sozinhas e erigir (enichten) as que não crescem. Tal
edificar é meritório ("voU Verdienst"), mas não é fundamental='. No

61 Marion, filósofo próximo de Levinas, Derrida e Nemo, rejeita como "idólatra" o


conceito heideggeriano de divino como ente desocultado na quadrindade, cuja presC1Iça
(ser) é condicionada pela e na diferença ontológica (Marion 1980. p. 64·5; cf. Marion
1977, p. 305 ss.). A raiz dessa "nova idolatria" estaria no próprio conceito de ser como
desocultamento e retraimento: o "último ídolo" é o ser como "fcone do distanciamento"
(Marion 1977, p. 315). Para que se possa evitar a idolatria, teríamos que pensar o
distanciamento do ente enquanto presente e do ser enquanto doação, 11maneira bíblica,
como o "retraimento paterno" remetido 11 impensável "autoridade" do pai-amor.
Villela-Petit suspeita de "ilusória" a tentativa de pensar o amor fora di! questão do ser
(1980, p. 99). Nós diríamos que Marion peca, sobretudo, por ignorar a diferença. que
apontamos acima na nossa secção 2, SI/h fine, que existe entre o retraimento (EIltZllg),
característico da diferença ontológica e il desinteiração (F.l1lcignis) congeminada il
inteiração (Ereignis). A negatividade do retraimento é interna ao ser. O ser, ele mesmo é,
como bem diz Marion, o "ícone" do seu distanciarnento do ente. A negatividade da
desinteiração, a seu turno. não é interna ao ser. Ela é constitutiva do "mais alto jogo"
que doa o ser como diferença ontológica. Deixaremos em suspenso a questão de saber se
pode ser aceita a proposta de Marion de pensar o retraimento de maneira desvinculada
do ser, como "retraimento paterno". Caberia indagar, com efeito, se essa proposta não
se fia, demasiado, em metáforas ônticas provenientes de uma história presidida pela
vontade de redenção.

62 Poderia haver interesse em comparar o morar na quadrindade, no sentido de Heidegger,


aos deliciosos ritos de renovação cósmica praticados nas religiões orientais, por exemplo,
no taoísmo chinês (cf. Saso 1972).

63 () edificar não é nem um fabricar, no sentido de produção industrial, nem um produzir


no sentido da téchne grega. Esta última é apenas um deixar aparecer algo como presente
e não, como o edificar, um deixar ser que "con-diciona" a coisa na quadrindade, de
modo que esta, assim con-dicionada possa, de seu lado, "conjuntar e inteirar os quatro
no permanecer" (1954, p. 172).
90

sentido originário, edificar significa pensar e poetar (1954, p. 202).


.É poeticamente que o homem mora na terra, acena Heidegger,
lembrando Holderlin (p. 191). O resguardar originário e
fundamental não protege a coisa dada na quadrindade, mas a
quadrindade ela mesma. Proteger a quadrindade significa habitar o
entre (das Zwischen), a diferença (Unter-schied), que separa e une,
silenciosamente, o mundo e a coisa. O silêncio da diferença chama.
O seu dobre (Gelliut) é a linguagem. A linguagem é, na medida em
que se' inteira a separação mundo-coisa. Ela se essencia como
inteiração dessa diferença (1959a, p. 30). Por hospedar a diferença,
a linguagem é, anuncia Heidegger, a casa do ser (1947, p. 53; tr. p.
149). Ter que morar significa, assim, no sentido mais fundamental,
ter que habitar a linguagem que des-dohra a diferença entre o
mundo e a coisa e que, dessa maneira, acolhe o ser-separação. Com
essa nova versão da diferença ontológica, abre-se, também, a
possibilidade de uma ética da correspondência à interpelação do
ser-quadrifurcação, concebida como ética do morar na
quadrindade+.

64 o morar heídeggeriano é o modo de ser do homem irredutfvel 11intencionalidade da


consciência, tanto representacional como apetitiva. Por conseguinte, o morar enquanto
projetar e tomar-chão no mundo-projeto, em Ser e Tempo, ou enquanto resguardar e
edificar no mundo-quadrindade, do segundo Heidegger, não pode mais ser pensado
como uma relação do tipo sujeito-objeto, O suporte desse morar não é um sujeito
("sub-jacente") consciente, e o mundo habitado não é objeto ("ob-jacente") de
representações ou desejos. Com a morte da subjetividade transcendental kantiana
morreu também a objetalidade. Uma análoga "destruição" das relações objetais está
ocorrendo na teoria das doenças psíquicas. A psicanálide, desde Freud até Lacan,
concentrava-se sobre o desejo, interpretado a partir do conceito de pulsão objetal, e
seguia, tanto na teoria como na cura. os destinos dos seus vínculos objetais. Teorias mais
recentes, como a de Winnicott. põem em evidência modos de existir humanos em relação
à mãe-ambiente ("miíe-jacência") e não mais à mãe-objeto ("mãe-ob-jacente"), isto é,
modos mais fundamentais e anteriores formação do solo pulsional. Conseqüentemente,
â

essas teorias remetem as psicopatologias profundas aos problemas iniciais de inserção


no ambiente e não mais a perdas ou conflitos objetais. Esse paralelismo notável entre
desenvolvimentos dominantes na filosofia do século c i1S alternativas inovadoras na
teoria psicológica ainda não recebeu, parece-me, a devida atenção nos dois campos.
91

Em Ser e Tempo, a finitude da morte era vivida na angústia


que manifestava a culpa. A finitude da diferença ontológica não
inspira angústia. Ela se dá numa dor, também silenciosa. Seguindo
o poeta 'Georg Trakl, Heidegger a chamará de dor do umbral entre
o mundo e a coisa desdobrada (1959a, p. 27). O que manifesta essa
dor não é mais a culpa. O ser humano do umbral não é responsável
pelos desdobramentos do ser do ente no mesmo sentido em que o
estar-aí era responsável pelos seus projetos; ele não pode assumir o
destino (Schicksal) dos destinamentos (Geschicke) do ser. Apenas
é chamado a assisti-los: corresponder e resguardar. O jogo é do ser,
ele mesmo, ou melhor, daquilo que doa o ser e que é o dono da
acontecência. Aqui, o essenciar-se do homem é desculpabilizado (a
dívida passou a ser contada como dádiva), a fim de ser, tanto mais,
exposto à negatividade. Com efeito, às duas infelicidades kantianas,
reveladas pelas dores kaniianas, a dor traumática do desprazer e a
dor metafisica (ilusólia) da transitoriedade, vem juntar-se, aqui,
uma terceira infelicidade, a da separação do ser, desconhecida por
Kant, assim como a dor do umbral que a traduz. Na verdade,
entretanto, não se trata de uma infelicidade e, sim, de uma dádiva
irrecusável. Do mesmo modo como a separação particularizadora
que, por pertencer à essenciação do ser não pode ser ultrapassada
a não ser na morte, a dor do umbral, da origem quadrifurcada e não
afecção, também não pode ser anestesiada por qualquer ação
causal humana, seja técnica, seja moral; nem mesmo, cabe insistir,
por qualquer ação divina.
O outro do homem que mora na quadrindade é, em primeiro
lugar, o seu vizinho que reside na proximidade. Esse é o sentido
ético originário do próximo. A comunhão dos mortais não começa
pelo partilhamento de valores e normas; ela, antes, cessa quando
estes tornam-se o único fundamento do coexistir. A comunidade
institui-se no assentamento, na ocupação de sítios nas mesmas
paragens. O sentido inicial do coexistir é coabitar e significa
resguardar, cultivar, edificar, isto é, salvar a terra, receber o céu,
aguardar os divinos, acompanhar a morte, em comum. A comunhão
entre os homens, a mais elementar e concreta, tem a sua raiz na
quadrindade. Na origem, os homens são unidos como mortais
92

iniciados no mesmo jogo do "espelhamento inteirante" (das


ereignende Spiegeln) dos quatro. É um jogo que liga sem subjugar,
em que "cada um dos quatro confia no outro sustentado na dobra
da reunião apropriadora que a todos abraça". "Nenhum dos
quatro", acrescenta Heidegger, como se estivesse lembrado dos
seus comentários sobre a sentença de Anaximandro, "teima em
separar-se no particular. Na reunião, cada um dos quatro é antes
desinteirado do que lhe é próprio. Essa reunião é o
jogo-de-espelharnento Idas Spiegel-Spiell da quadrindade. Nele se
fia o desdobramento dos quatro" (1954, p. 178).
A comunhão entre os homens sustentada pela quadrindade
nunca poderá crescer numa comunidade de salvação. Embora
supere toda separação pelo particular, ela não suprime e, sim,
possibilita o solitário poder da morte. Dizer que os mortais podem
a morte significa dizer que eles são chamados para o santuário do
nada que guarda o segredo do ser (1954, p. 177). Isto é, para o
segredo do mais alto jogo, o da inteiração que desinteira, jogo livre
de qualquer arbitrariedade, embora sem regras comensuráveis pela
razão (1957a, p. 186-7; 1959c, p. 42). Nesse jogo, assim como na
morte, o homem entra necessariamente só. Os mortais habitam a
quadrindade desunidos pelo segredo do contencioso do ser. A
reconciliação final, assim como a salvação ou, ainda, redenção,
continua-lhes permanentemente vedada. O nosso próximo será,
por isso, sempre um estranho, um estrangeiro. Na proximidade e
estranheza do outro transparece a familiaridade e o segredo das
regras do jogo que deita o ser. Como próximo, ele tem que ser
assistido no coabitar. Enquanto estranho, ele não poderá ser
assistido, mas apenas acompanhado, no seu passar para o
incomensurável. Na quadrindade, o humanismo assistencial
permanece uma diretiva irrecusável do próprio ser. Mas perde o
status de horizonte intransponível do existir humano, tal como é
sugerido, por exemplo, pela ética de responsabilidade ilimitada
para com o outro, de Levinas, ou, ainda, pelos tradicionais ideais de
igualdade e Iraternidade das declarações dos direitos humanos. O
humanismo continua uma coisa boa e importante, mas deixa de ser
essencial, a saber, de concernir o homem enquanto mortal no
93

mundo dos quatro. E se torna perigoso quando se afirma essencial,


como é bastante bem ilustrado nos crimes contra a humanidade
cometidos em nome do socialismo, leia-se humanismo, real. A
comunhão entre os homens, sustentada pelo mundo quadrifurcado,
não tende para um. milenarista reino da liberdade, no sentido de
Kant. Para tanto, seria preciso que o ser doado na quadrindade
fosse limitado e encoberto pela representação do dever-ser, a lei
moral. Tampouco pode desenvolver-se numa coletividade solidária,
no sentido de Marx. Para tanto, seria necessário que o edificar
fosse esquecido no fabricar. Em Heidegger, o problema da justiça
social nunca é primitivo. A miséria do trabalhador importa. Mas ela
não tem a mesma urgência que a precisão de morar na verdade do
ser65.
Dissemos que, no sentido originário, ter-que morar significa
ter-que habitar a linguagem, a casa do ser, e que habitar a
linguagem é pensar poeticamente. O pensamento poético não
constrói a linguagem, é requisitado por ela. A linguagem nos é dada
para que possamos edificar, por meio das palavras. Que fazer (tun}
é esse? Certamente não um representar (vorstellen) no sentido da
metafísica. O pensamento metaffsico tem a particularidade de que
"os seus conceitos e aquilo que eles concebem permanece, num
sentido originário, o mesmo" (Heidegger 1959c, p. 23). Desde
Parrnênides, o pensamento ocidental é o pensamento da identidade

65 Houve quem quisesse ver no ser-para-o-nada de Heidegger o mascararnento da morte


pela fome ou pela guerra, "a única coisa que a sociedade fascista podia oferecer ao
povo" (Bloch 1985, p. 1364). Levinas, que introduz o seu próprio conceito do
ser-para-o-outro na continuação do ser-para-a-morte de Heidegger, faz notar que, em
Bloch, a angústia da morte provém exclusivamente do fato de morrermos antes-de
termos terminado a obra. Que obra? A de realização de um mundo ético de bem-estar e
de paz (Levinas 1992, pp. IOfl, 115). Bloch (na companhia de Marx e de muitos
pensadores contemporâneos) está, portanto, reapresentando a velha receita messiânica
do reino de Deus na termo já rejeitada por Kant no seu conceito de "socialidade
insociável". O "próximo estranho" de Heidegger pode ser tratado, parece-me, como
continuação e radicalização da crítica kanuana do milenarismo teológico judaico-cristão.
94

entre o pensar e o ser (1957c, p. 18). A expressão característica


desse pensamento é o enunciado (Aussage), concebido como
podendo ser verdadeiro ou falso, no sentido de correto, con-forme
ao seu objeto. No enunciado que visa à identidade, o pensamento
da diferença perece (1959c, p. 30).
Não se trata aqui de uma tentativa de ressuscitar o
nominalismo. Este permanece ainda preso à concepção
lógico-gramatical da linguagem e, de resto, perfeitamente
compatível com as pretensões da técnica (ibid., p. 25). Para que
possa vigorar, o pensamento da diferença tem que apreender um
dizer que não é o mesmo que o dito; um dizer que é, ao mesmo
tempo, um não dizer (1957c, p. 72; tr. p. 202). Um pensamento que
não quer mais enunciar, mas apenas acenar (winken), tem que
libertar-se da lógica proposicional. Mais radicalmente ainda, tem
que libertar-se da palavra inteira para poder ouvir o gestado na
palavra quebrada. "O quebrar-se da palavra é o próprio recuo /na
direção da origem/ no caminho do pensamento" (1959a, p. 216).
A reflexão heideggeriana sobre o dizer que se desdiz apóia-se
em dois versos de Stefan George: "Assim aprendi triste a renúncia/
Que não seja coisa alguma onde a palavra quebra'v=. Numa
esperiência dolorosa que o entristece, o poeta ouviu, comenta
Heidegger, um chamado: "Que uma coisa só seja onde é garantida
a palavra" (1959a, p. 232). Trata-se de um imperativo (p. 168) que,
à primeira vista, não faz mais do que restringir o ser das coisas à
disponibilidade da palavra. A palavra disponível é aquela que
concede o ser a tudo que existe, que proporciona a presença na
qual algo se apresenta como ente e pode, por conseguinte, vir a ser
reapresentado, isto é, representado (p. 227). Mas por que essa
restrição é vivida como renúncia (Verzicht)? Em que consiste esse
renunciar que precisa ser aprendido? Que foi que o imperativo
ensinou ao poeta? Ensinou-lhe, responde Heidegger, que uma

66 So lemt ich traurig den verzicht] Kein ding sei wo das wort gcbricht, Heidegger 1959a, pp.
163,220).
95

palavra que quebra "retoma ao impronunciado, lá de onde foi


gestada: ao dobre do silêncio, que, como gesta, move e aproxima as
regiões da quadrindade". O imperativo disse, assim, uma gesta
indizível (unsâgliche Sage), o segredo da palavra: "Um 'é' dá-se
onde a palavra quebra" (p. 216).
O poeta não enunciou esse segredo na forma de uma
proposição; ele disse a sua abdicação (Versagung) do dizer
proposicional. Mas o abdicar, ainda que não seja um enunciar,
continua sendo um anunciar. Ab-dicar não é emudecer; nele ainda
ressoa um dicere, um dizer, a saber: "Que não seja coisa alguma
onde a palavra quebra". O abdicar, o des-dizer, diz que a palavra
con-diciona a coisa, no sentido de con-dere, fundar, estabelecer,
instituir. Esse con-dicionar (Bedingnis) não pode ser dito da mesma
maneira como uma coisa pode ser dita, ele só pode ser des-dito. É
isso que faz o imperativo da renúncia. O seu não seja deixa ser "o
que e como a relação entre a palavra e a coisa é: nenhuma coisa é
sem a palavra" (p. 233). A abdicação é, portanto, ao mesmo tempo,
uma não abdicação "em que a renúncia se diz como aquela gesta
que agradece por tudo ao segredo da palavra", o segredo de ser a
palavra o con-dicionamento da coisa (p. 235, nossos grifos).
O poeta apreendeu, portanto, a se subtrair à pretensão
contida no poder representacional da palavra. Ficou sabendo que,
em última instância, a palavra é sempre particular, dialetal, nunca
elemento de uma linguagem universal sobre o universal. Que toda
palavra é quebrada, um significante aquém do significado. Foi
inteirado de que a palavra pode dizer tudo do ente, mas que nada
pode dizer, a não ser desdizendo-se, sobre o seu poder dizer o ente.
Que o mais alto dizer apenas acena em vez de identificar.
Curvou-se diante de um poder mais alto que o de trazer o presente
. na presenças".

67 o Ió~os dos pré-socráticos, lembra Hcidegger, tinha ainda () mesmo sentido bifurcado
que a palavra de George: o de gesta que mostra o ente, deitando o jacente na presença, e
que diz o sei; 11 presença do presente (Heidegger 1959a. p. 237).
96

A experiência de palavra quebrada é, ao mesmo tempo, o


aprendizado da quebra da razão representacional da filosofia
ocidental. Em virtude da diferença ontológica, o lógus filosófico
pode muito bem representar o ente e a entitude. Fica-lhe vedado,
entretanto, o poder de representar essa virtude ela mesma: uma
lição de finitude que ensina não haver texto universal capaz de dizer
tudo68.
O morar na quadrindade, enquanto pensamento poético
quebrado, não pode resultar, por conseguinte, num sistema teórico
abrangente, Ele tampouco pode oferecer regras seguras para o
agir. O pensar é um atuar que supera toda praxis. "O pensar
perpassa o fabricar e mesmo todo agir lhandelnl, não pela grandeza
de seus resultados nem pelas conseqüências de sua performance,
mas através da humildade Idas Geringel do seu perfazer
lvollbringent destituído de qualquer sucesso." (1947, 115; tr. p. 173).
O pensar traz à linguagem, em seu dizer, "apenas a palavra
pronunciada do ser" (1947, p. 116; tr. p. 173). Essa palavra chama,
como vimos, para o deixar ser. Mas ela não dá regras para gerar
efeitos. Ela se essencia enquanto abre caminhos.
O pensar poético, rememorativo, seria totalmente sem
medida, sem regras? Não. Mas estas não provêm dos artifícios
(Gemachte) da 'razão humana (p. 115; tr. p. 173), mas, como um
imperativo da renúncia, ouvido por George, vem do ser ele mesmo.
Tal conveniência do dizer com o ser é a primeira lei do pensar, "e
não as regras da lógica que apenas se tornam regras a partir da lei
do ser" (p. 118; tr. p. 175). A lei do ser é feita pelos destinarnentos
do ser. Um desses destinarnentos, decisivos para a história do
Ocidente, foi () da determinação da entitude do ente como idéias,
que aconteceu na obra de Piatão. As determinações da entitude
impostas pelos destinarnentos sucessivos não admitem, por parte

68 No primeiro capitulo de 1'110 Te King, Lao Tse diz: "Voie qu'on énonce/ N'est pas Ia
Voiel 110mqu'on prononce/ n'est pas le Nom. Ii Sans nom/ Fit apparaüre le Ciel Terre/
Nomrné/ Est Mere des Dix Mille êtres.' (1'110 Te King; ed. Desclée De Brouwer, 1972, tr.
de Claude Larre s.j.).
97

do homem, nenhuma forma de justificativa, como também estão


acima de todo tipo de crítica. O pensar poético é heterônomo, não
em relação à revelação da vontade de um ente infinito como na
tradição judaico-cristã, mas em relação a uma necessitação mais
antiga, que é a do destinos". O pensamento serve tão somente para
mediar, tornar audível, transmitir, o que nos é destinado. Estamos
confrontados com um pensamento hermético, no sentido
etimológico da palavra, não com um pensamento apofãntico, como
o do período clássico grego, nem tampouco hermenêutico. como o
dos leitores da Bíblia ou, menos ainda, critico, como o dos
modernos. Não se trata de manifestar o que pré-existe ou de
justificar o que quer que seja. Só há sentido em receber, na
obediência total à requisição da voz da presença 70.
Por requisitar o humano, a verdade do ser impõe-lhe um
ter-que-ser que pode ser entendido como ética originária (1947, p.
109; tr. p. 171). "Somente na medida em que o homem, ec-sistindo
na verdade do ser, a este pertence, podem vir do próprio ser as
diretivas IZuweisungen] quanto às ordens que se devem tornar lei e
regra. Dar diretivas significa em grego nêmein. O námos não é

69 Para muitos leitores, o retorno ao antigo, proposto por Heidegger, faz parte do
neopaganismo que grassava na época (cf. Habermas 1988, p. 186 e nota). Aqui devemos
ter em mente o fato de que o termo "pagão", derivado do latim paganus ("aldeão" ou,
ainda, "civil", em posição ao miles Christi, soldado cristão das legiões romanas) é uma
designação pejorativa dos inimigos do Deus verdadeiro e, por extensão, da verdade
revelada. Tudo indica que o antigo de Heidegger é de urna antigüidade muito mais alta
que o cristianismo, comparável àquela da "antiga natureza" de Alberto Caeiro.
Fernando Pessoa, de que se tem notícia ter pertencido ao Conselho Magistral do
Neopaganismo Português junto com o filósofo Dr. António Mora, observa que ninguém
pode ser neopagão, assim como a pedra não pode ser "ueopedra" ou a maçã "neomaçã".
"Tem o indivíduo que nascer pagão para ser pagão. Nascitur non fit, como o poeta, e,
afinal, como tudo o que é estável neste mundo." (Obra, III, p. 377). A evocação
heídeggeriana do antigo é tudo salvo urna manifestação de neofilia. Esse modo de "estar
por dentro" caracteriza, antes, a modernidade.
70 Sobre a diferença entre a compreensão hermética e hermenêutica do ser, cf. Heidegger
1959a, p. 121.
98

apenas lei, mas, mais originalmente, a diretiva encoberta na


destinação do ser. Só esta é capaz de jungir /velfügen/ o homem ao
ser. Só tal injunçâo /Fügung/ é capaz de sustentar e vincular." De
outra maneira, acrescenta Heidegger, "toda lei permanece apenas
uma maquinação /Machnschaft/ da razão humana" (pp. 114-5; tr. p.
173).
A ética originária do morar na quadrindade substitui a
oposição tradicional da ética meta física entre o mal e o bem pela
diferença entre o mau e o salutar", O salutar (das Hei/e) é o que
garante e dispensa sustentação e apoio (Hali) ao homem. Apoio
significa sítio (Ort) e proteção (Hut). É o pensar, que convem com
a destinação do ser, que conduz a ec-sistência para o âmbito onde
nasce o que é salutar: para a quadrindade: "É somente o ser", diz
Heidegger, "que concede os favores ao salutar e impulsiona a fúria
para a perdição" (Heidegger 1947, p. 114; tr. p. 172). Quanto ao
homem, ele é incapaz de se salvar pelas suas próprias forças, nem
mesmo pelo renovado esforço de racionalização (recurso à razão
ampliada, ou estratégias semelhantes) da agitação perseguidora.
Com o salutar, também se manifesta o mau (das Base). Este
não consiste na mera ruindade do agir humano, mas na maldade da
fúria (G11mm) (Heidegger 1947, 112; tr. p. 172) ou da agitação
desenfreada (zügellose Raserei). Assim como o bom, a agitação
furiosa só pode essenciar-se no seio do ser; só há fúria, porque o
próprio ser está em disputa (ist das Striuige). Heidegger conclui:
dá-se, essencia-se, um nadificar no próprio ser (p. 113; tr. p. 172). O
caráter questionável do ser é, portanto, sinal de uma negatividade.
Não se trata de negatividade relativa à negação lógica (Hegel).
Nem das negatividades materiais, como as de Marx (negação do
trabalho pelo capital) ou de Freud (recalque). Trata-se de uma
negação ao mesmo tempo pré-verbal e pré-ontológica, isto é,

71 Bem entendido, "salutar" aqui difere totalmente de "salvador" no sentido tradicional


daquilo que alivia o sofrimento, supera a transitoriedade ou redime do pecado.
99

situada aquém da entitude do ente. Negação mais radical do que


todas essas, que revela a intimidade entre o ser e o nada, e que faz
com que o pensamento do ser tenha que ser, também, o
pensamento do nada72. Negativação que explica por que esse
pensamento avança, forçosamente, até um retraimento (Entzug)
secreto e impensável; a que, permite, enfim, que se fale emftnitude
do sei:
O que é mau na fúria? O "rígido fechamento para a dimensão
do salutar", característico da nossa época (1947, p. 103; tr. p. 168)
que representa um perigo extremo para o homem e, ao mesmo
tempo, para a manifestação do ser ele mesmo (p. 59. tr., p. 151).
Esse fechamento consiste na administração total do ente doado na
quadrindade, no seu beneficiamento industrial, na devastação
furiosa, promovida pela técnica, que deve, sustenta Heidegger, ser
aproximada do rancor da vingança que, segundo Nietzsche, move a
metafísica, isto é, toda a filosofia e a cultura ocidentaf'ê. Desde

72 A nadidade do nada heideggeriano, que é a plenitude (Fiille) incomensurável oculta,


deve ser distinguida da niilitude do "mero nada' dos niilistas. Repetidas vezes,
Heidegger acentuou, contra os seus críticos, (cf., por exemplo, Bloch 1985/1938-47/, p.
119) que a sua posição nada tem a ver com o niilismo europeu dos séculos 19 e 20 e que
este último repousa no esquecimento do ser (Heidegger 1959d, p. 40). Note-se que os
pensadores orientais respondem com a mesma energia à objeção, freqüentemente
formulada no Ocidente, de que a sua busca do vazio seja uma forma do niilismo. Dizem
tratar-se de uma falta de compreensão do nada, característica do infinitismo da tradição
grega. É interessante ver Levinas, um pensador que se proclama da tradição judaica,
juntar-se a Heidegger e aos zen-budistas (Nishida, Suzuki) para afirmar que o nada,
assim como a morte, sempre desafiaram o pensamento ontológico ocidental (Levinas
1992, p. 79). Bergson, por exemplo, escreve: "A idéia do nada absoluto, entendida no
sentido de abolição de tudo, é urna idéia que se destrói a si mesma, uma pseudo-idéia,
uma simples palavra." (Bergson 1959, p. 734).

73 Já em Ser e Tempo, o ocupar-se preocupado impróprio foi caracterizado em termos que


prenunciam a fúria perseguidora, tais como "agitação desenfreada' (hemmungsloser
Betrieb), e queda no "redemoinho" (Wirbel] (1927, pp. 177,178). Trata-se de um não ser
que pode assumir as proporções do gigantesco, como fica ilustrado IHl arquitetura
contemporânea. Sobre o mau como o desenfreado, cf. ainda Heidegger 1959a, p. 60.
100

então, o mau não é uma mera privação do bom, ele é uma


positividade, que não deixa ser; uma negação que, não obstante, é a
mais concreta das concretudes. Em Heidegger, o contraste
pós-metafísico, derivado da diferença ontológica, entre o deixar ser
e o não deixar ser, entre a natureza no sentido de gestação e a
técnica substitui, como sendo o mais fundamental, a oposição
metafísica tradicional entre o bem e do mal, assim como os seus
equivalentes modernos, os dualismos entre o particular e o
universal, a sensibilidade e a razão, o trabalho e o capital, o id e o
superego.
A tradução e o comentário oferecidos por Heidegger da
sentença de Anaximandro, acrescentam um sabor pré-metafísico a
essa tentativa de compreensão pós-metafísica (compreensão que
não deve ser confundida com a pós-modema) do bom e do mau. O
que passa por mais antigo ditame do pensamento ocidental reza:
". .. ao longo da mantença; é que dispensam uns aos outros a
con-juntura bem como a vênia (ao convalescer) da
des-con-juntura"?". A mantença, comenta Heidegger, é o nome
grego mais antigo para o ser. O ser mantém o ente, no sentido de
usar, de fruir do ente, em que se inclui praesto habere, ter prestes o
ente como aquilo que está jazendo (das Vorliegende) no
desocultado. Manter significa, portanto, deixar apresentar-se algo
como presente, dar a mão ao, assistir (wahren] o presente.
Enquanto se apresenta, o ente tem a sua hora e vez, permanece
(verweilt}. Ele é um permanecente (das Je-Weilige) na mão do ser,
na jacência (das Vorliegen) con-junta com outros. Todo
permanecente teima, entretanto, em tornar-se permanente, em
desvencilhar-se da transiência. Insistindo em perdurar (beharren]

74 o texto da tradução de Heidegger é o seguinte: " ... entlang dem Braueh; gehõren
nárnlich lassen sie Fug somit auch Ruch eines dem anderen (irn Verwinden) des
Un-Fugs". (Heidegger 1957h, p. 342). E. Stein oferece a seguinte versão: " .. .'Segundo a
mantença; deixam pois ter lugar o acordo e assim também o cuidado, um para o outro
(no penetrar e assumir) do des-acordo.!" (Os pré-socráticos, Ed. Abril, p. 47).
101

cai na des-con-juntura (Un-Fuge). A des-con-juntura não é


injustiça, no sentido ético-metafísico da palavra. O mau é
ontológico, ele está no levante do permanecente des-con-juntado
contra a con-juntura. Éa usurpação da duração, o apossar-se da
presença. É a insistência em expulsar (abdrângen] dela o outro
ente. É não deixar ser, virar as costas ao ser, esquecer o ser como
apresentação'", E, no entanto, é o próprio ser, ele mesmo, que, ao
longo do uso do permanecente, faz com que este se recorde do ser,
que se vire para o ser, que volte a deixar ser. Isto é, que dispense ao
outro a con-junturano ser, a vênia de' ser, na convalescência da
dis-cou-juntura. Assim, o ente fica, de novo, a salvo. Graças a um
salvamento (Rettung) que se dá só na medida em que o ser foi às
últimas e que chegou o tempo certo da viragem (Kehre): a hora do
recordar o ser como fruição esquecida no mero perdurar,
esquecimento que saiu do próprio apresentar-se (a entitude) do
ente?",
Segundo Heidegger, o ser foi às últimas na época da técnica
que é a nossa. Somos nós que vivemos a escatologia do ser, a total
separação, disjuntura, entre o ente e o ser, acompanhada do

75 o mau gerado pela separação foi descrito por outros autores da antigüidade grega, por
exemplo, por Plotino: "O princípio do mau /nas almas/ é a audácia, a geração, a primeira
diferença e a vontade de serem de si mesmas. Alegradas da sua independência, usam a
espontaneidade do seu movimento para correr para o lado oposto de Deus; tendo
chegado ao ponto mais distante, ignoram até mesmo de que provêm dele." (Eneades, V.
1, 1).

76 Levinas se pergunta se Heidegger, apesar de tudo o que vinha ensinando sobre a


prioridade do pensamento de ser, não se teria deparado. aqui, com a "significação
originária da ética" (Levinas 1991, p. 187). A resposta é "sim" e "não". Sim, por tratar-se
de explicitação de um ter-que constitutivo do ser de todo ente relativamente a outro ente.
Não, por não tratar-se, como sugere Levinas logo em seguida, de responsabilidade por
uma "ofensa feita ao próximo pela 'boa consciência' de ser, feita já ao estrangeiro, ;l
viúva, ao órfão que, na face do próximo, me olham"; e ~im de um levante contra o ser ele
mesmo.
102

esquecimento dessa separação, isto é, do ocultamente da diferença


ontológica 77. De acordo com a sentença de Anaximandro (assim
como foi interpretada por Heidegger), teria chegado a hora de a
mantença do ente, o ser ele mesmo, lembrar-se de si própria. Na
medida em que estaríamos chamados a presenciar essa virada,
veríamos o ser tardio juntar-se ao e superar-se no matinal. A
constelação do ser-vontade-de-potência e do ser-mantença
marcaria, como a conjunção de dois astros, a época de despedida da
meta física78. A hora do último não será nem a do cumprimento de
um télos, nem a da aniquilação. Apenas a do retorno ao início, na
espera de um novo começo, na quadrindade. Iniciação ao poder
morrer/",
A ética originária de Heidegger não pede que ajamos de
acordo com a razão prática, ainda menos que fabriquemos coisas de
acordo com a razão teórica. Ela pede o desapego a todo agir causal.
Trata-se de substituir a pergunta que, na época da metafísica, era a
única urgente: que devemos fazer? pela interrogação: como temos
que (müsseni pensar? (Heidegger 1962, p. 40). Responderemos a
essa pergunta na medida em que passemos a atuar habitando
paragens da quadrindade, cultivando e edificando coisas, e
sobretudo, habitando poeticamente a linguagem. Esse é o nosso
dever, melhor, o nosso ter-que-ser, imposto não pelo lógos (este
quebra quando tenta dizer isso), mas pelo próprio ser. Temos que
cuidar da verdade do ser e não mais, como em Ser e Tempo, do

77 Sobre a escatologia do ser, cf. de Andia 1975. Seguindo a interpretação dominante, a


autora não atribui nenhum sentido ético ao fim da meta física (pp. 255, 260).
78 A metáfora "astrológica" de constelação do ser como instalação perseguidora (das
nachstellende Bestellen) do ente, por um lado, e do ser como mantença salvadora (der
rettende Brauch), pelo outro, foi usada várias vezes por Heidegger (cf. 1954, p. 41; 1957c,
p. 25, 1962, p. 46).
79 Existe, portanto, no segundo Heidegger, um conceito de esperança. Não se trata de
ressurgimento da esperança na vitória sobre a finitude, rejeitada, C0l110 vimos, em Ser e
Tempo. Trata-se de fiança no salvamento do ser.
103

nosso estar-aí. Não do ser no tempo-espaço, mas do ser enquanto


essencialmente questionável. Transcender a presença, recuar,
tornar-nos pobres de tudo para poder receber a presença: morar na
quadrindadeê".

10 O DESENCONTRO DAS ÉTICAS

Acreditamos ter mostrado, seguindo a trilha de Heidegger,


que o problema fundamental das éticas ocidentais é o dafinitude. O
homem se pergunta: que devo fazer", porque tem que se haver com
a finitude. A nossa análise mostrou que essa pergunta, básica nas
éticas tradicionais, é desesperadorarnente ambígua. Essas éticas
partem de diferentes fenômenos de Iinitude, assinalados por
diferentes tipos de dor. Estão em desacordo quanto aos cursos de
ação a seguir. Separam-nas diversos conceitos da natureza do

80 No hall hotel em que estive hospedado em Belém do Pará, durante o Ciclo de


conferências em que apresentei partes do presente texto, o grupo multinacional
Daimler-Benz organizou um painel publicitário que resume bem as pretensões
planetárias do agir técnico: "Com suas idéias polfticas, econômicas, culturais e sociais
em constante renovação, o homem mantém o mundo em movimento. As mudanças
acontecem num ritmo cada vez mais rápido. Para encarar o desafio Ilierausforderungt
que isso representa, é preciso apresentar concepções ií altura. Através das ampliações de
sua base empresarial, o grupo multinacional integrado de tecnologia Daimler-Benz está
bem preparado para isso. Todas as nossas atividades estão voltadas para um progresso
adequado ao meio ambiente. Para que tecnologia, economia e ecologia não mais
concorram entre si, mas que se completem". Lembrei-me então de uma história de
Chuang Tzu, intitulada "Dois Reis e o Não-forma". Ela termina assim: " 'Os homens'.
disseram I os dois reis, amigos do Não-Formal. 'têm sete aberturas para ver, ouvir.
comer, respirar. e assim por diante. Mas o Não-Forrna não tem aberturas. Vamos fazer
nele algumas aberturas.' depois disso, fizeram aberturas em Não-Forma, uma por dia,
em sete dias. Quando terminaram a sétima abertura, seu amigo estava morto. Disse Lao
Tan: 'Organizar é destruir' ... (Cf. uma tradução ligeiramente diferente em Merton1977,
pp.86-7).
104

dever. Divergem até mesmo quanto à questão de saber se devemos


negar ou aceitar a finitude, agir ou não agir diante dela.
Finalmente, não concordam sobre o sentido do ser e do não ser.
Essa constatação sugere que a questão da possibilidade de uma
ética não pode mais ser formulada como a determinação da ação
correta, por exemplo, como ação racional'".
. Uma coisa se diz finita por oposição a uma outra, não finita,
infinita. Na ética, são duas as oposições que tradicionalmente (em
Kant, por exemplo) definem a finitude: a primeira, entre a ausência
e a presença de propriedades que trazem satisfação, a segunda,
entre a transitoriedade e a permanência do existir de que cuidamos.
Entende-se, ainda, que o finito (a ausência, a transitoriedade) é
algo negativo'<. Negar o finito significa, portanto, negar uma
negação. Pelo princípio da dupla negação, o não finito é algo
positivo. Em Kant, o negativo do negativo é a felicidade eterna (da
boa vontade).
Munidas dessa lógica, as éticas infinitistas mais radicais
sustentam que é possível, em princípio, atingir efetivamente o não
finito. Como diz Cassirer, interpretando Kant, a negação do finito é
o "preenchimento do finito". Outras, menos radicais, dizem que o
infinito, mesmo que não possa ser alcançado, pode pelo menos ser
aproximado, ou seja, pode servir de ideal! regulador no esforço do
homem de se desenredar do Iinito. E, para viabilizar a opção pelo
não finito, todas prescrevem, como moralmente obrigatórios,
certos deveres para o agir supostamente capaz de realizá-lo ou de
aproximá-lo. A.,
éticas infinitistas são, por natureza, éticas do agir
por dever.

81 o esforço dos proponentes da ética do discurso em achar uma racional idade ampliada
como orientação geral para a vida humana no seu todo decorre de um encurtamento da
reflexão sobre o que está em questão nas éticas do silêncio.

82 Tradicionalmente, essa tese era interpretada no sentido de que o finito era o fIIS crcatutn
e, como tal, urna limitação, isto é, uma a negação, do ens originariurn, o seu criador
infinito.
105

Hoje, o agir de acordo com as exigências da ética de infinitude


transformou-se em agir técnico que visa à racionalização corretiva
total do planeta: na ca\culabilidade sem resto, combinada com a
decidibilidade de tudo, de acordo com o princípio de fundamento.
Estamos na época da urgência (Not) absoluta da suficiência
(Notlosigkeii), iniciada por Leibniz e Kant. Deslizar sem falta,
intransienternente, tendo dispensado a particularidade na
totalidade (das combinações possíveis do ente, manipuláveis, pela
razão teórica e consentidas pela razão prática, ambas
coletivizadas): esta armaçãoê> é o modo de ser básico perseguido
pelo infinitismo contemporâneo'".
A ética finitista de Heidegger, a única aqui considerada.ê> usa,
nas suas duas versões, uma negatividade de tipo diferente para
construir as oposições definitórias da finitude. Em conseqüência
disso, recomenda uma outra maneira para encará-Ia. A primeira e
fundamental dessas oposições é a entre o ser e o ente. Na verdade,
não se trata de uma oposição, já que o ser é o nada do ente e, como
tal, não se pode contra-pôr a este último, mas de um contraste, uma
diferença, a diferença ontológica, pensada ainda no interior da
análise existencial, e formulada como a diferença entre a nossa

83 Traduzimos por "armação" o termo heideggeriano Gcstell que nomeia o modo de ser do
ente Í18 época di! técnica.

84 !talo Calvino fez-se um porta-voz do mundo-combinatória. Em textos brilhantes, ele


celebra "a unidade de todas ilS coisas, animadas e inanimadas, a cornbinatória de figuras
elementares", e recomenda uma literatura infinitista que seria "a comunicação entre o
diverso pelo fato de ser diverso", escrita por seres que são, como todos nós, "uma'
cornhinatória de experiências. de informações de leituras, de imaginações", "uma
enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos", cf. Calvino 1991, pp. 33, 58,
138, et passim. Haberrnas, que valoriza i! "praxis literária" de Calvino por construir cada
texto "como fragmento de um texto universal, de um texto originário, que Ilào conhece
[romeiras, porque faz sair de si mesmo as dimensões de delimitação possíveis, o espaço e
o tempo" (Haberrnas 1989, p. 252; o grifo é nosso), é. por sua vez, o principal articulador
atual da razão coletivizada, conceito nostálgico do trabalho coletivizado.

85 Urna outra ética Iinitista é a ética do sacriflcio do ser, de l.evinas,


106

única possibilidade não realizável, a da impossibilidade de estar-aí,


e todas as nossas outras possibilidades realizáveis no mundo. Ou
seja, no conflito entre o não do poder-nãa-mais-estar-aí e o sim do
poder-estar-aí, o sim das manifestações ônticas, igualmente inscrito
no nosso poder ser. Mesmo sem aprofundar-se sobre o tipo de
negatividade aqui envolvida, Ser e Tempo deixa claro que ela não
poder ser expressa nem pela negação predicativa nem pela negação
proposicional. A linguagem que diz o não da diferença ontológica
não se dobra à legislação lógico-gramatical da linguagem ordinária.
Esse não não é acessível no domínio das operações do sujeito
transcendental. O falar que diz a diferença ontológica - é um
silenciar disposto para a angústia: a consciência da culpa fala única
e constantemente no modo do silêncio (1927, p. 273).
Qual é a relação entre o falar silencioso, capaz de dizer a
diferença ontológica, e o falar ordinário? O primeiro não articula
em palavras aquilo que diz: o poder-não-mais-estar-aí. Ele não
verbaliza. O linguajar cotidiano, pelo contrário, verbaliza o poder
estar-aí. Como o poder-não-mais-estar-aí é a condição de
possibilidade do poder estar-aí, o falar silencioso que diz a
possibilidade da impossibilidade é também condição, no mesmo
sentido, do falar que verbaliza as possibilidades mundanas: a
negatividade não verbal possibilita a negação verbal. As negações
lógicas, a predicativa ("não-P", onde "P" é um predicado) e a
proposicional ("não-p", onde "p" é uma proposição), tiram sua
força do não da diferença ontológica (do poder-não-mais estar-aí)
(cf. 1929c, p. 36; tr. p. 42). Por outro lado, qual. é a relação entre o
envolvimento afetivo, que revela a diferença ontológica, a angústia,
e os afetos do cotidiano? A angústia é uma recordação, uma
reminiscência, uma anamnese (para usar o termo platônico a que
remetem os heideggerianos) do negativo do poder-não e que foi
rechaçado (abgedrángt, 1927, p. 135). Todos os outros modos de se
envolver são constituídos sobre esse rechaço, entre eles os
sentimentos de esperança ou de medo, bem como os sentimentos
de prazer e desprazer, que se fundam neste último (p. 342). Todos
esses sentimentos encobrem e fazem esquecer o sentimento de
angústia. Em resumo, as negações verbais da linguagem ordinária,
107

bem como a afetividade do cotidiano, fundam-se, por rechaço e por


esquecimento, na negatividade ontológica do estar-aí, Trata-se, bem
entendido, de um fundamento infundado, nulo, mas, nem por isso
menos real ou concreto (pp. 128, 170)86.
No segundo Heidegger, a finitude continuará a ser pensada
em termos da diferença entre o ser e o ente, mas sem as conotações
antropológicas provindas da análise existencial. A negatividade
constitutiva dessa fissura será explicitada como sendo a do ser
enquanto presença contenciosa, nadificada, em si mesma. Como já
dissemos acima (secção 2, sub fine), Heidegger tenta, desde 1929,
pensar o não da cisão ontológica e o não do nada no ser ele mesmo
como pertencendo à mesma negatividade, mais profunda ainda.
Esta negatividade originária é a do Ereignis, isto é, da inteiração
desinteirante do ser e do ternpo-quadrindade, responsável pelo
contraste entre o ocultamento e o desocultamento do ser, contraste
último que é, simultaneamente, a instância suprema da finitude do
ser. A negatividade originária da diferença e da desinteiração é
anunciada, como vimos a partir do diálogo de Heidegger com
George, por um dizer que aprendeu a renunciar ao princípio de
identidade entre a palavra e o dito. A mesma não identidade é
presenciada numa dor, nomeada de dor do umbral, pelo poeta
Trakl. Como em Ser e Tempo, Heidegger sustentará, agora
também, que só podemos dizer o ente por meio da palavra plena e
envolvermo-nos com ele pelos temores e esperanças na medida em
que rompemos o silêncio e fugimos da dor da diferença originária.
Observamos que, nesse contexto, ainda vale a tese de que o
finito é o negativo, a saber, a negativação encobridora do 'nada ou
do ser-destinamento; com uma ressalva essencial: esse negativo é,

86 Essa interpretação da concepção hcidcggeriana da origem ontológica da negações


lógicas, predicativa e proposicional. bem como dos afetos cotidianos, pode ser
comparada A "derivação' oferecida por Fremi. das mesmas negações formais c dos
mesmos representantes afetivos manifestos, 11 partir de "moções pulsionais" esquecidas
pelo "recalque" (Vcrdrallgullg),
108

ao mesmo tempo, o uruco posrtivo. O finito recebe, agora sem


segundos pensamentos, o seu sentido enigmático adivinhado já
algumas vezes na filosofia ocidental, o de realidade ex nihilo.
Realidade nula e vazia, pela sua origem; realidade única, pois o
ente finito, ao ocultar, guarda o ser. Observamos, ainda, que a tese
de que o não finito é algo real ou positivo não vale mais. A lei da
dupla negação não se aplica à negatividade heideggeriana que
define a finitude do ente e do ser87.
A .ética finitista de Heidegger não opta pelo finito, como
fazem os niilistas, por ser este, justamente, nulo e vazio. Ela
tarnpouco opta pelo infinito, por este não ser algo positivo. A sua
atitude é a de recordar ao homem que a escolha entre o finito e o
infinito é uma ilusão metafísica ou, como diz Heidegger, um
esquecimento da negatividade do ser. Ao mesmo tempo, ela chama
para o morar na transcendência, no entre o ser e o ente, no
mundo-projeto ou, mais tardiamente, no mundo-quadrindante, A
transcendência do finito para o espaço de sua possibilitação não
completa, nem corrige, nem suplernenta, o Iinito; ela não nega nem
afirma o in-finito. A transcendência deixar estar o que está na hora
para que esteja. Ela protegeê'',

87 Heidegger sustenta que 11 linguagem ordinária não é, em si. metaffsica e, sim, ôntica, mas
que foi, ao longo da história do Ocidente, interpretada à maneira da metaffsica (1969, p.
55; tr. p. 291).

88 Neste ponto, também, o pensamento de I Ieidegger pllrece aproximar-se do oriental.


Enquanto o Ocidente busca a salvação da finitude na infinitude, o Oriente busca a
salvação da Iinitude na negação do dualismo, melhor, na firmação do não dualismo entre
o finito e o infinito. O advaitismo budista, diz Suzuki, não é a mesma coisa que o
monismo. Dizer que a realidade "não é dois não é o mesmo que dizer que é um. É tanto
sim como não, embora não seja nem um nem outro" (cf. Suzuki 1962, p. 429). No
Oriente, a infinitude é, via de regra, associada ãsérie potencialmente infinita de
reencarnações, isto é, própria causa do sofrimento.
à Enquanto o Ocidente busca a
salvação da finitude, o Oriente caminha em direção simetricamente oposta:
desvencilhar-se da infinitudc.
109

Muitas vezes, objetou-se a Heidegger ter-se ele ocupado


sobretudo da morte necessária e, ainda por cima, da própria, e não,
como faz o homem ético, da morte injusta dos outros; da angústia e
da tíor do destino, sem convalescença possível, e não, como faz o
homem responsável, do sofrimento físico ou causado pela violência
social, ambos em princípio remediáveis (cf. Morchen 1989, p. 188;
Levinas 1991, p. 109-11l)89. Por certo, para Heidegger, o problema
da injustiça social, assim como a dor do injustiçado, não são
fenômenos primitivos. A questão de injustiça só pode ser
levantada, segundo os filósofos da modernidade, no interior do
contrato social fundado seja nos interesses seja na razão; portanto,
no esquecimento da solidão essencial do poder a morte. Da mesma
forma,a dor da injustiça só pode ser vivida em comunidades
organizadas. Logo, no esquecimento da dor de separação vivida no
estado de natureza. Desse modo, a queixa, intelectual ou afetiva, de
injustiça social, constitui-se, necessariamente, em algo explicável
causalmente, isto é, sobre o princípio de fundamento. Ela substitui,
num horizonte fundado no ocultamento, o lamento da dor
originária. Trata-se de mais um exemplo do caso geral: as oposições
tradicionais que definem a finitude, inclusive aquela entre injustiça
e justiça, são derivadas, todas elas, da mesma fonte: da diferença
ontológica e, em última instância, da inteiração desinteirante.
Ademais, a derivação procede sempre da mesma maneira, a saber,
pelo esquecimento, cuja forma consumada é o princípio de razão
suficiente. Em resumo, Heidegger não propõe um novo tipo de
fundação, ele procede a uma desconstrução do próprio
empreendimento fundacionalista. A anarnnese da origem não
reedita o fundamentalismo ontológico e ético da metafísica
ocidental. Ela não conduz a um princípio supremo existente, ao fim

89 A atitude de Adorno é outra: ele simplesmente desqualifica o discurso heideggeriano


relativo ao ser-para-a-morte como "jargão sobre autenticidade" digno de um "professor
do ginasial", mera continuação do falatório inconsistente da impotente classe média
alemã.
110

dos conflitos, ao fim do ter-que-ser. A-cósmica e a-social, como a


da gnose, a anamnese heideggeriana apenas abre o caminho de
uma plenitude da qual não sabe dizer nem que existe, nem que não
existe.
Creio ter ficado claro, agora, por que a ética de Heidegger
não se decide pelo lado positivo (do infinito) contra o lado
negativo (do finito) das alternativas definitórias da finitude
tradicional e por que propõe, no lugar, a convalescença
(Verwindungv dessas alternativas. O homem ético, no sentido de
Heídegger, não busca o prazer, fugindo da dor. Nem tampouco,
como fazem os perversos, insiste na dor contra o prazer. Ele não dá
preferência à eternidade contra a transitoriedade. Ele escolhe,
antes, transcender o prazer e o desprazer, a vida e a morte, para
deixar que aconteça o jogo onde esses e todos os outros dualismos
(entre a teoria e a prática, o bem e o mal, o otimismo e o
pessimismo, a atividade e a passividade, além de muitos outros)
possam ser disputados. A transcendência não o põe na presença de
algo transcendente, positivo e salvífico. Ela apenas o faz caminhar
no entre, em que o positivo contencioso se desdohra do nada?",
Agora está explicado, também, por que a ética de Heidegger não
oferece regras para dirigir os cursos da ação moral, destinada a
corrigir ou suprimir o finito: ela é uma ética do morar e não do agir.
As regras das éticas acionais só fazem sentido num jogo em que
é possível vencer o finito. Tendo desconstruído tal possibilidade,
Heidegger recordará a urgência de que se aceite a finitude na
transcendência e limitar-se-á a prestar ajuda para que se possa
exercer a finitude. Pela mesma razão, ele desconstruirá
também todas as éticas baseadas na racionalização do agir, seja

90 Em Unterwegs zur Sprache [Caminhando em direção da linguagetn], Heidegger escreve:


"Talvez se oculte na palavra 'caminho', tao, o segredo dos segredos do dizer que pensa
/ ... l:" (Heidegger J959it, p. 198). Sabemos que, no perlodo de 1946/47, Heidegger
dedicara-se à tentativa de traduzir o 1'00 Te King de 1--<10 Tse (Ott 1988, p. 326).
111

estratégico, seja, comunicativo, no sentido de Habermas. A ética do


morar não é uma ética do dever e do agir, porque ela não é uma
ética do poder?'.
Heidegger está plenamente consciente da impossibilidade de
se viver uma vida moderna sem os recursos oferecidos pela técnica
e sem as normas da ética baseadas em razão prática. Ele sabe que o
recuo à quadrindade (Gevierty não pode nem deve desarmar a
armação (Gestell) da técnica: "Para nós todos, as instalações, os
aparelhos e as máquinas do mundo da técnica são hoje
indispensáveis, para alguns mais, para outros menos. Seria tolo ir
cegamente de encontro ao mundo da técnica. Seria míope querer
condenar o mundo da técnica como obra do diabo. Nós
dependemos de objetos técnicos: eles até mesmo lançam-nos
desafios de melhoramentos crescentes". (Heidegger 1959b, p. 24).
A técnica não deve ser aniquilada, "caso ela mesma não o faça"
(1957c, p. 33). Como, então, temos que pensar a relação entre o
mundo-quadrindade e o mundo da técnica? Numa ocasião,
Heidegger sugere que podemos dizer sim ao uso inevitável dos
objetos da técnica e, ao mesmo tempo, dizer não impedindo esses
objetos de monopolizarem a nossa atenção e de "entortarem,

91 /\ discussão do desencontro entre as éticas infinitistas e finitistas pode ser enriquecida


pelas observações de Fernando Pessoa sobre as três respostas iI dor da transitoriedade.
Chamou-as, conforme os seus proponentes mais tradicionais, de grega, cristã. e budista.
As duas primeiras negam, ocasionalmente, a transitoriedade. A terceira a aceita, sem
intervir. NiI resposta Krega, a transitoriedade não é negada diretamente, ela é aliviada nos
seus efeitos. A~ tentativas nesse sentido são guiadas por ideais que. na origem, eram os
de equilíbrio e de harmonia. NIl resposta cristã, o ideal orientador é o da vida eterna, no
outro mundo, "em que não h~ mudança nem cessação". Prega-se, como em Kant. o agir
de acordo com a lei, no CIlSO da lei divina, pela recompensa numa vida eterna feliz. Em
oposição às ocidentais, a resposta budista não nutre nenhuma esperança em aperfeiçoar a
impermanência ou em encontrar um real não transitório. i\ SUIl estratégia não é a de
contestar a transitoriedade do existente, mas a de questionar 11 existência do transitório,
Os ideais gregos e cristãos implicam deveres para o agir que deve produzir efeitos que
diminuam a imperfeição e aumentem ou mesmo realizem 11 perfeição. O ideal budista
responde i\ imperfeição pelo não agir. (Cf. F. Pessoa, Obra, 11, pp. 1239-1246 c
125 1-1257).
112

confundirem e, por fim, devastarem o nosso ser". Heidegger


contesta que essa nova relação seja ambígüa e duvidosa. Pelo
contrário, diz ele, "ela se torna maravilhosamente simples e calma.
Assim procedendo, nós deixamos que os objetos técnicos entrem
no nosso mundo cotidiano e que saiam dele, isto é, repousem em si
como coisas que não são algo absoluto, mas que continuam
remetidas a algo mais alto. Gostaria de designar essa atitude do
'sim' e 'não', simultâneos ao mundo técnico, como abandonar-se às
coisas com serenidade /Gelassenheit zu den dingenl" (1959b, pp.
24-25). Aqui, a serenidade tem o sentido positivo de entrega e não
o negativo de "rejeição do egoísmo pecaminoso e do sacr.ifício da
vontade própria a favor da vontade divina" (p. 36).
Há textos em que Heidegger se mostrá menos sereno diante
do impasse. "Física com responsabilidade", diz ele em Unterwegs
zur Sprache, é, sem dúvida, um programa "bom e importante para a
crise atual". "Mas esse programa continua praticando uma dupla
contabilidade, por detrás da qual se esconde uma quebra não
curável nem pelo lado da ciência, nem pelo lado da moral - se é
que pode ser superada de algum modo" (1959a, p. 210, nossos
grifos). Os problemas de uma ética de responsabilidade no mundo
da técnica são diferentes da ética do mundo da técnica. Esta última
se satisfaz em estabelecer regras racionais para a segurança no uso
da tecnologia, por exemplo, regras que restringem o uso da energia
atômica aos fins pacíficos. Essa concepção de responsabilidade é
um meio termo pelo qual, sustenta Heidegger, "o mundo técnico
preserva, e com maior razão ainda, o seu predomínio meta físico"
(1957c, p. 33). Presos a essa concepção. "ficamos fortalecidos na
opinião de que a técnica é um assunto do ser humano. Dessa
maneira, deixamos de ouvir o desafio do ser que fala na essência da
técnica". (ibid., p. 26). A responsabilidade principal e, de fato, a
única, é justamente a de resistir ao desafio de fabricar. Urge
resguardar em vez de fabricar. Se é verdade que a técnica não
precisa, nem mesmo deve, ser desmantelada (1969b, pp. 25; tr. p.
270-1), é tamhém certo que ela tem que perder o poder sobre o
desocultamento do ser, porque este poder escraviza o homem e
ameaça a sua essência. De alguma maneira, o fabricar tem que ser
113

dominado. Como poderá acontecer isso?92 O fato é que o nosso


desapego não tira o poder das coisas. Heidegger sabe disso: "Pode
acontecer que o domínio da meta física se fortaleça, a saber, na
forma da técnica moderna e dos desenvolvimentos desenfreados
incontáveis. Pode também ser que tudo o que resultar do caminho
do retorno seja apenas utilizado e elaborado, ao seu modo, pela
metafísica permanecente" (1957c, p. 71).
A questão é mais grave do que pode parecer. Deixar que os
objetos da técnica entrem no nosso mundo cotidiano, isto é, usar os
objetos da técnica rião é o mesmo que [abricá-los. A pergunta é:
como é possível, simultaneamente, resguardar poeticamente e ins-
talar (bestellen) tecnicamente a coisa? Trata-se da unidade do ser
na época da técnica, da unidade da cabeça de Jano da armação, ca-
beça bifronte que, olhando para trás, só enxerga o ser como ar-
mação e, olhando para a frente, já antevê o ser como dádiva do vul-
to do Ereignis (1969c, p. 57; tr. p. 292). Tudo indica que Heidegger
se deu por vencido pela enormidade do desafio. Aqui também, um
paralelo com Kant pode ser esclarecedor. O sistema kantiano de-
para-se com o difícil problema da unidade da razão teórica e práti-
ca93. Por um lado, Kant determina a natureza e a liberdade pelas
mesmas categorias e pelo mesmo tipo de lei. Ele insiste em dizer,
entretanto, que, nem por isso é-nos permitido afirmar que a natu-

92 Poderíamos especular sobre a maneira como Heidegger trataria a questão de saber se a


medicina era simplesmente uma técnica, isto é, mera decorrência da vontade de poder e
se ela também deve ser desconstrufda. Levinas objetou que o sofrimento do outro era
simplesmente "inassumível" e que toda civilização superior é chamada a aliviar a dor,
bem como a alimentar o homem (Levinas 1991,pp. 109-110). A dor do outro não
tem-que ser, diz Levinas, ela não deve ser, acrescenta ele, entendendo esse não dever
como uma obediência ao Outro-que-o-ser. Para a exposição do conceito levinasiano de
dever como obediência que não deixa ser, que sacrifica o ser, cf., por exemplo, Levinas
1991e 1992.
93 Cf, a nota 57, acima, secção 8.
114

reza e a liberdade existem no mesmo sentido da palavra existir (a-


quele da segunda categoria da qualidade )94. No caso da natureza,
tanto o seu modo de existir como o modo de funcionar são deter-
minados pelas representações a priori da razão pura. No caso da li-
berdade, os dois aspectos se separam. Só o modo de funcionar, mas
não o modo de existir da liberdade pode ser determinado por cate-
gorias. Este último permanece sem especificação desde o ponto de
vista da representação em geral: prova incontestável da finitude da
razão'" .. Dado esse paralelo, a diferença entre Heidegger e Kant
pode ser assim fraseada: enquanto Heidegger remete a finitude do
pensar (correspondencial) à finitude do ser, Kant restringe-se à crí-
tica interna das pretensões infinitistas do pensar (representacio-
nal).
A quebra de que fala Heidegger, e para a qual não vê cura,
cinde a cultura ocidental no seu todo. Não há mediação nenhuma
entre ser como presentidade e ser como dádiva, assim como não
havia mediação entre o existir da natureza e o existir da liberdade.
Não há como alojar o logos representacional na casa do ser sem
que isso se torne uma invasão de território, assim como a lei natural
devia restringir as suas exigências legisladoras ao domínio dos pro-
cessos naturais. O mundo da técnica e o mundo-quadrindade são
tão incomunicáveis quanto eram o reino da natureza e o reino da

94 A maneira mais comum de formular o problema da unidade da razão é a de perguntar


sobre a possibilidade de compatibilização e unificação entre a legislação da razão teórica
e da razão prática.

95 Agora é fácil entender como é possível criticar a ética do discurso (que só se interessa
pelo tipo de determinação da liberdade, no caso, pela sua coletivízaçâo) e ainda trabalhar
com Kant (que se abriu, o primeiro entre os filósofos, ao problema da indeterminação
do modo de existir da liberdade). Aqui nós divergimos, até um certo ponto, da
explicítação heideggeriana do sentido do ser em Kant, oferecida em Heidegger, 1963. É
importante notar que, nesse texto, Heidegger, mais preocupado em se distanciar do que
em apreciar as dimensões do pensamento kantiano, restringe a sua análise à primeira
Critica e deixa totalmente de lado a questão do modo de existir da liberdade,
desenvolvida nos escritos de Kant sobre a razão prática.
115

liherdade. Diante desse quadro, o diagnóstico, temido desde há


muito tempo pelos pós-kantianos apesar dos esforços de Hegel em
restabelecer a totalidade do ser e da representação, não pode mais
ser evitado: a cultura do Ocidente sofre de esquizofrenia progressi-
va, sem perspectivas de restabelecimento. Não se trata mais, como
em Kant, apenas de cisão entre os momentos da razão. A finitude,
agora, é definida também como ruptura entre a razão e a não
razão: cada uma põe em questão a outra. Precisar-se-ia de me-
diação que, para ser racional, deveria admitir um outro que a razão.
Logo, desdizer-se como racional. De mediação que, para ser salu-
tar, terá que compor com a técnica. Logo, expor-nos ao perigo ex-
tremo. A ética do morar de Heidegger não pode nem incorporar
nem desfazer as regras da fabricação do ente. Ela não conta para
tanto com outros e mais altos poderes. De resto, ela nem luta, lar-
ga. O seu primeiro passo é o de se destituir de todo poder, até
mesmo do poder da argumentação racional. A idéia da crítica da
metaffsica, na qual Kant ainda depositava as esperanças da razão, é
tão estranha a Heidegger como a da fundamentação da metafísica.
Que pode, então, a sua ética várias vezes finita, ética que não pode
nem satisfazer, nem salvar, nem reconciliar? Pode pôr a caminho
por onde advém o que salva. Pois "tudo é caminho", diz Heidegger
(1959a, p. 198).

Nota: As obras são citadas, via de regra, em edições originais. Na medida do possível,
são levadas em conta as traduções brasileiras que consideramos de qualidade. Estas nem
sempre coincidem com as nossas. Quando o contexto permite, as referências são indicadas
apenas pela página.
116

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