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A beira do Caminho

Mais de um ano se passou desde que a observei dormir pela ultima vez, o
final não deixou a desejar quanto ao drama ou ao teor bucólico, passei meu ultimo
aniversário no quarto sozinho, de frente para o retrato de meu melhor amigo
falecido. Depois de bêbado dancei e ri e contei piadas com ele, como se estivesse
aqui, e para mim parecia estar, não era como uma sombra requintada a quem
invocamos nas mesas de bar ou nos momentos de nostalgia, era quase como se
realmente pudesse sentir a sua voz rouca estralando em meus ouvidos e o gosto do
vinho barato e do cigarro após uma semana exaustiva, como era anos atrás.
Próximo a este dia, quando já havíamos nos despedido eu e ela, dirigia meu carro
em uma ladeira, a qual nas madrugadas sempre atravessávamos juntos, cortando a
cidade voltando do bar no qual nos invadimos os mundos a primeira vez. Diferente
das outras vezes não estava escuro ou amanhecendo, mas anoitecendo, minha vida
era um turbilhão desenfreado de pequenos absurdos, eu nunca havia estado tão
sozinho assim, mas decidi ligar o rádio, e por ironia o mesmo decidiu tocar-me
“sentado a beira do caminho”, sim a mesma que marcou tantas gerações passadas,
a clássica voz mansa de Erasmo Carlos cantando: “Carros, caminhões, poeira,
estrada, tudo, tudo, tudo se confunde em minha mente. Minha sombra me
acompanha e vê que eu estou morrendo lentamente”... Estiquei-me o coro que
seguravam os lábios e sorri como quem maquiavelicamente ri a própria conquista.

A melodia me remetia tantas memórias, o cheiro do alho e dos pequenos


salgadinhos, o cheiro úmido do chão de cimento batido das budegas na beira da
estrada, onde meu pai sempre parava para tomar uma doze de cachaça e seguir
viagem, e eu podia prover de um prazer raro e que na época não me parecia tão
místico quanto parece agora. Sentar em uma mesa só com homens adultos e sem
crianças, e ser tratado como um deles, enquanto apreciava uma Coca-Cola gelada
no casco de vidro. Pode parecer fútil, mas para os meus olhos de criança aquela
sensação de segurança mesmo estando longe de casa, era de uma magia
insondável. Depois voltávamos para o fusca e seguíamos pela estrada em silêncio,
quando percebia que eu estava entediado, ele me fazia cócegas repentinas e então
começava a puxar assunto, sobre o colégio e a vida. Era muito pequeno, deveria ter
meus 7 ou 8 anos, mas gravava tudo com os olhos alavancados, ele ria de meu jeito
e dizia, “Ei olhos de bila, pra que esse olhão todo” ? Eu me emburrava, então o
silêncio reinava de novo, e pouco depois mais cócegas. Eu gostava daquela
sensação do fusca azul empoeirado, do cheiro da estrada, talvez fosse isto que me
alavancasse os olhos, como quem quer sair para fora, como quem deseja tanto algo
que assusta e causa certo desconforto a quem esta perto, como um cão faminto
salivando próximo a quem almoça.

Segui dirigindo pela ladeira, e pude sentir a melodia construindo


minunciosamente todas estas memórias, muito mais rápido do que os pneus do
carro aos 60 por hora. Então os últimos raios de sol cruzaram o vidro, baixei o
protetor de vista para conseguir ver a estrada, era horário de final de tarde,
dezenas de carros indo e vindo para todos os lados, toda aquela pressa, toda aquela
rotina, fez com que me sentisse ainda mais distante. A poeira subia do asfalto e
despia os raios em formas, como se fosse fumaça, olhei fixamente para a curva já
próxima e acelerei. Naquele momento algo mágico me aconteceu, a partida, a dor,
tudo parecia querer dobrar aquela curva, tudo parecia querer encontrar seu lugar,
no entanto não encontraram, nem sequer a dobraram, não naquele dia.

Os dias passaram, então aos poucos a cicatriz foi criando casca e os pontos
simbólicos que costuravam a carne foram um a um sendo tirados pelos pequenos
encontros raros na faculdade. Finalmente chegou o dia em que pude vê-la sem que
a atmosfera ao nosso redor se tornasse uma amostra grátis de Chernobyl. Por
aqueles dias conheci algumas mulheres nas encruzilhadas noturnas, dormi com
algumas delas, uma em especial era muito divertida e sempre sorridente, de um
carisma impecável. Os seus traços asiáticos lembravam uma tailandesa, caminhava
fluída como uma serpente nadando, com aquela energia sagitariana, que contagiava
quem estivesse perto. Já no primeiro encontro agimos com uma intimidade tão
espontânea que parecia que nos conhecíamos há anos, e todos os meus amigos
pelos 4 bares que passamos, fizeram perguntas deduzindo isto. No entanto uma
tristeza tão forte quanto o seu sorriso, surgia todas as vezes que calava, isto me
atraia de certa maneira. Mal sabia eu que ambos erámos animais feridos buscando
coisas distintas em circuitos completamente opostos. Logo que começamos a
dormir juntos sentimos uma química daquelas que acontece uma só, ou poucas
vezes na vida, e tem como pré-requisito a completa ausência de projeções futuras,
não é como paquerar e ver alguém, ou mesmo pensar sobre como aquela pessoa e
você poderiam combinar e ficariam bem juntos, ou a fantasia de uma aproximação
lenta e repleta de carências escondidas. É uma surpresa incontrolável, tão veloz
como um guepardo, simplesmente acontece, se aproxima tão sorrateiramente que
quando suas garras estão sobre a presa nada mais pode tirá-las. É um verdadeiro
tesão felino. E assim foi durante dois ou três meses, até simplesmente da mesma
forma com que chegou se extinguir, não houve discussões, cobranças, nada, apenas
um belo dia após algumas semanas sem se ver ela me chamou na madrugada,
estávamos ambos bêbados na cidade vizinha a minha, mas cada um em uma ponta
da espada, então fui até lá. Transamos, e dormimos, mas não foi como das outras
vezes, tinha um ar de despedida silenciosa, ninguém falou nada, não dissemos
adeus, apenas desci a escada apertada de seu pequeno apartamento, fui até a
bodega da esquina comprei uma Coca-Cola que não era de vidro, entrei no carro e
nunca mais voltei.

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