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Título: Segredos do passado

Autor: Phyllis Taylor Pianka


Título original: The lark's nest
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1995
Publicação original: 1992
Gênero: Romance Histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida

SEGREDOS DO PASSADO
Phyllis Taylor Pianka

Yvette Cordé encantava com sua voz celestial a todos que a ouviam.
Embora fosse uma criada, podia freqüentar as festas da aristocracia.
Mas, na verdade, um grande mistério pairava sobre seu passado.
De onde viera ou quem eram seus pais ninguém sabia. Porém,
quando o visconde Andrew Waverly apostou com seus amigos que
em um mês saberia tudo sobre ela, nem de longe imaginava o quanto
este envolvimento iria mudar de modo definitivo sua vida...

CAPITULO I

A condessa está chegando! Millie Dawkins corria pelos corredores da mansão, espalhando a notícia. Fredericks,
o mordomo, fitou-a por cima do ombro, censurando a falta de classe da moça. Com certeza, Millie iria ouvir um
longo sermão logo mais.
— Vocês a ouviram, senhoras. Não é hora de ficarem aí sentadas;
é hora de trabalhar. Sra. Grover, depois quero dar-lhe uma palavrinha sobre a poeira no lustre do salão principal...
A sra. Grover fez uma careta de insatisfação quando o mordomo se retirou.
— Uma palavrinha, pois sim! Aposto que vou ter que ouvi-lo durante horas! Vamos, menina — disse a Yvette —,
você sabe que tem que trabalhar dobrado para compensar as horas que passa, cantando.
— Sim, sra. Grover. A festa no Haverford Hall é amanhã, sra. Grover. Espero que não tenha esquecido que
preciso praticar minha voz com o sr. Clarke, amanhã pela manhã.
A governanta suspirou.
— Já é a terceira festa este mês. Está parecendo que passa mais tempo cantando do que trabalhando, mocinha.
Deste jeito, lady Emily vai acabar despedindo-a.
Yvette sorriu. Sabia bem que aquilo era muito pouco provável, já que havia sido a própria lady Emily que
havia divulgado seu talento.
Ela interrompeu os pensamentos. O perigo que um dia ela teria de enfrentar, pairava como uma constante
ameaça em sua consciência. Algum dia, alguém acabaria descobrindo a verdadeira Yvette Cordé e o segredo
que ela guardava consigo, teria de ser revelado.
A moça cerrou os lábios. Tinha consciência de que havia muitos homens interessados nela. Alguns até lhe
propuseram casamento, mas ela não mostrara nenhum interesse.
Yvette deu uma última polida na mesa e estava prestes a se abaixar para limpar os pés da mesinha, quando viu
lady Emily se aproximando pelo corredor. Lady Emily, estava com mais de sete meses de gravidez. Yvette
sorriu, ao vê-la se aproximar.
— A senhora está bem, milady? Posso ajudá-la em alguma coisa?
Emily encostou-se um instante contra a parede e respirou fundo.
— Obrigada, Yvette, mas só parei um pouco para respirar. Acho que subi a escada um pouco rápido. Espero
que não tenha esquecido que seu pianista vai estar aqui amanhã, para ensaiar as músicas para a festa dos
Wescott.
— Não, não esqueci, milady. O vestido dourado de brocado ficou perfeito depois dos ajustes que fizemos. Só
lamento a senhora não poder estar lá comigo. Sinto-me bem mais confiante quando a vejo sentada na platéia.
Emily ajeitou o xale sobre os ombros.
—Eu bem que gostaria de ir, Yvette, mas não posso arriscar a saúde do meu bebê. — Ela sorriu: — Além
disso, o que as pessoas iriam dizer se me vissem ir a uma festa nestas condições?
Lady Emily sentou-se em uma cadeira, fazendo o largo vestido azul, espalhar-se à sua volta. Levando a mão
ao bolso, pegou uma caixa comprida de veludo.
—Yvette, gostaria que eu lhe emprestasse uma jóia para usar na festa?
— Oh, milady, não posso aceitar uma coisa dessas — respondeu ela, quando a dama abriu a caixa, revelando
um lindo colar de topázio. — Oh... Mas o que lorde Berrington iria dizer?
— James já me deu consentimento para emprestá-lo. Você tem que estar muito bonita. Ouvi dizer que lorde
Bancroft vai comparecer à festa.
Yvette ficou séria:
—A mãe dele não vai gostar nada disso. Ela não me pareceu nem um pouco satisfeita quando viu o filho me
oferecer um copo de refresco, na festa dos Vancostain.
— Lady Bancroft é uma esnobe, Yvette. Entretanto, dizem que o passado da família dela não é assim tão
"nobre" quanto ela clama. Use o colar, minha querida. Ficará muito bonita e se sentirá como uma princesa.
— Merci, milady. A senhora e lady Margaret são muito generosas comigo. Por falar nisso, ela o marido
pretendem ficar muito tempo aqui na mansão?
—Eu e James tentaremos mantê-los aqui pelo menos até o nascimento do bebê, mas tudo depende dos
negócios do sr. Harrington.
—Estamos todos ansiosos para revê-la. Lady Margaret sempre me faz rir. Espero que ela não tenha mudado.
Emily riu:
—A única pessoa que conseguiria domesticá-la, seria o sr. Harrington, mas ainda assim acho difícil que ele
tenha conseguido realizar a proeza. Oh! O bebê deve estar tentando me dizer que está na hora de descansar um
pouco.
Yvette agradeceu mais uma vez pelo colar e colocou a caixa no bolso do uniforme. Mal podia esperar para
ver como ele ficaria com o vestido dourado.
Um olhar de Fredericks, que havia acabado de subir a escada, trouxe-a de volta à realidade, fazendo-a
concentrar-se no serviço no mesmo instante.
A condessa Margaret e o sr. Harrington chegaram à noite. Pela primeira vez, após semanas de quietude, á
mansão voltou a se encher de risos e alegria. Lady Margaret tinha o dom de animar todos a sua volta.
Yvette havia acabado de arrumar a biblioteca quando lady Margaret aproximou-se dela, com seus cachos
grisalhos balançando em torno do rosto.
—Ah, aí está você, minha querida! James me contou que causou uma verdadeira surpresa na sociedade. Estão
dizendo que o duque de York andou perguntando a seu respeito. Pelo visto, logo será convidada para cantar no
palácio.
Yvette ficou tensa.
—O duque andou fazendo perguntas a meu respeito? Que tipo de perguntas, milady?
— Oh, minha querida, eu não quis assustá-la. Só quis que soubesse que todos estão muito surpresos com seu
talento e querem que você cante em suas festas, só isso. Yvette, não acha que está na hora de deixar este serviço
de lado e mudar-se para sua própria casa?
—Mas uma casa é muita coisa, milady. Não sei se eu teria coragem de assumir um compromisso destes...
—Tolice, menina! É claro que pode assumir. Se eu tivesse sua voz e seu rostinho, já seria a nova sensação da
Europa!
A festa dos Wescott aconteceu na noite seguinte. Para surpresa de Yvette, o próprio lorde Wescott foi buscá-la
em uma luxuosa carruagem. Mesmo discretamente, o conde não deixou passar despercebido seu interesse pela
jovem.
— Lembre-se que a primeira dança será minha, mademoiselle — disse ele, a certa altura do caminho.
— Desculpe, milorde, mas não costumo participar das festas nas quais vou cantar.
— Mas pelo que me lembro a senhorita dançou com lorde Bancroft na festa dos Vancostain, algumas noites
atrás.
— Lorde Bancroft foi muito insistente.
— Como eu também serei.
Ele beijou-lhe a mão, no momento em que a carruagem parava em frente à mansão.
O suntuoso salão de baile refletia o brilho dos enormes lustres de cristal.
Ao ver toda aquela magnificência, Yvette sentiu uma repentina onda de excitação. Mais que a emoção de
cantar para tantas pessoas, a perspectiva de rever Andrew Waverly, visconde de Bancroft, estava deixando-a muito
ansiosa. Esperava encontrar-se com ele depois de cantar Andrew tinha o poder de perturbá-la completamente.
Enquanto os outros homens tentavam conquistá-la, enchendo-a de elogios, lorde Bancroft vivia provocando-a,
tática que a mantinha sempre alerta.
Ainda assim, Yvette não pôde deixar de percorrer os olhos pelo salão para ver se conseguia localizá-lo. De
repente, sentiu alguém tocar-lhe o ombro.
Quando se virou para ver quem era, conteve a respiração.
—Oh, é o senhor, lorde Bancroft. Eu deveria ter adivinhado.
Andrew Bancroft era um homem muito atraente, com lábios firmes, bem-delineados. Os cabelos castanho-
escuros e ligeiramente encaracolados, deixavam-no com aparência de menino, quando alguns fios caíam-lhe
sobre a testa.
— Isso quer dizer que já me esperava? Se assim for, mademoiselle, ficarei ainda mais satisfeito por tê-la
encontrado em meio a tanta gente.
— Não se anime tanto, lorde Bancroft. Já não ouviu dizer que não se pode medir a quantidade de chuva
simplesmente olhando as nuvens?
— Por acaso isto significa que está prevendo alguma tempestade adiante?
— Não. Nunca tento antecipar o futuro.
— Oh, que pena. Pois para mim o passado não significa nada. O presente depende daquilo que estiver à mão e
o futuro é sinônimo de desafio.
Os lábios de Yvette curvaram-se num sorriso.
— E qual é seu desafio?
— No momento certo você saberá qual é. Um pouco de suspense é sempre mais emocionante, não acha?
— Talvez, mas suspense demais pode acabar estragando a surpresa.
— Tenho certeza que minha surpresa não irá decepcioná-la.
— É mesmo? E posso saber por quê?
Bancroft cruzou os braços enquanto pensava numa resposta. Sem dúvida, Yvette era muito diferente das
mocinhas inconseqüentes que viviam querendo ser cortejadas por ele. Yvette Cordé tinha voz de rouxinol e rosto
de anjo. Mas por baixo daquela aparência corajosa, Bancroft sabia que se escondia uma mulher romântica e
sonhadora.
— Estou esperando, milorde. Por que a surpresa não me decepcionará?
— No momento certo você saberá por quê. Agora, se me permite dizer, sua presença tornou a festa ainda mais
agradável. Para mim, ela não havia realmente começado até a senhorita chegar.
— E muito gentil, milorde. Porém, cheguei na hora certa para o que vim fazer na festa.
— Já perdeu a maioria das danças.
— Estou aqui para divertir os convidados, milorde, não para me divertir.
— Tolice. É uma convidada, tanto quanto os outros.
— Ambos sabemos que isso não é verdade.
— Então farei com que seja. Os músicos estão quase terminando de tocar a quadrilha, com certeza, a próxima
dança será a gavota. Quer me dar o prazer de ser meu par?
Pelo canto dos olhos, Yvette viu a mãe de Andrew observando-os com atenção.
— Desculpe, milorde, mas não posso aceitar seu convite.
Ela fez menção de se retirar, mas Andrew segurou-a pelo pulso.
— Tem que aceitar, mademoiselle. Não sou um menino qualquer de recados para ser dispensado dessa
maneira.
Yvette olhou significativamente para a mão que segurava seu pulso.
— Nem tampouco é o cavalheiro que eu pensei que fosse. Solte-me, por gentileza.
Ele soltou-a no mesmo instante.
— Desculpe-me. Aceita ser meu par na próxima valsa, então?
Yvette ficou aliviada ao ver que os músicos estavam terminando a música. Fez um sinal para a anfitriã, que a
procurava em meio aos convidados.
— Receio que a resposta seja a mesma, lorde Bancroft. Vou cantar agora. Com licença.
— Tenha certeza que não irei desistir, mademoiselle Cordé. Lembre-se que a próxima valsa será minha.
O sr. Reginald Clarke já estava sentado ao piano. O vozerio ainda persistia pelo salão e lady Wéscott mostrou-
se preocupada por não estar conseguindo o silêncio necessário para apresentar Yvette.
— Não se preocupe, milady — disse o sr. Clarke, levantando a tampa do piano.
Como o pianista previra, os acordes iniciais de uma ópera popular conseguiram chamar a atenção dos
convidados.
— Meus caros amigos, há muitos anos eu não recebia tantas pessoas queridas em minha casa. Agradeço a
presença de todos. Agora quero apresentar a bela jovem que é a razão de muitos de vocês estarem aqui esta
noite. Senhoras e senhores, mademoiselle Yvette Cordé!
Yvette ficou de pé em meio a uma salva de palmas. Após um ligeiro aceno para a anfitriã, subiu ao palco e se
posicionou ao lado do piano. O sr. Clarke arqueou uma sobrancelha, gesto com o qual sempre lembrava Yvette
de que ela deveria sorrir e manter uma postura ereta. Em seguida, começou a tocar a primeira canção.
Andrew ficou observando-a, a um canto da platéia. Queria que Yvette fosse bem-sucedida, não pela mera
satisfação de conquistá-la depois que ela estivesse famosa, mas por admirá-la profundamerte. Afinal, não era
todo dia que uma dama passava de simples cri£da a uma talentosa cantora. Vendo-a como uma rainha, no
palco, admirou ainda mais sua beleza e a segurança com que utilizava a voz, detalhe que indicava uma carreira
muito promissora.
A intensidade de seu olhar fez com que ela o fitasse. Devagar, como que impelida por uma força invisível,
Yvette virou a cabeça na direção de Andrew. O encontro de olhares foi inevitável. Apesar de não perder uma só
palavra da letra da música, Andrew sabia que toda sua atenção estava concentrada nele.
"Não há razão para apreensões", pensou ele, tentando relaxar. Voltou a concentrar-se na canção e mais uma
vez se viu encantado com aquela magnífica voz. Andrew estava tão imerso em pensamentos que só notou que a
música havia terminado quando ouviu a explosão dos aplausos.
Yvette agradeceu com uma elegante mesura e fez menção de se retirar do palco. No último instante, porém,
voltou e falou algo ao pianista. Erguendo a mão, pediu silêncio à platéia.
—Merci. Agora quero cantar para vocês uma canção francesa
que aprendi na infância, quando morava em Lyons.
Yvette continuou falando, mas Andrew não pôde mais prestar atenção, pois sentiu alguém tocar em seu ombro.
Ao virar-se, viu que se tratava da sra. Harrington, "a condessa", como todos a chamavam.
— Lorde Bancroft, por gentileza. Eu gostaria de lhe falar um momento sobre nossa amiga.
— Será que não poderia esperar até o final da apresentação, senhora?
— Receio que o assunto seja meio urgente, milorde.
— Está bem, então.
Margaret o conduziu até um corredor lateral.
Yvette continuou cantando, mas era como se estivesse afastada de si mesma, observando de longe o que
estava se passando fora do salão. Não conseguia deixar de lado a apreensão que por vezes lhe dominava o
espírito. Algo lhe dizia que, um dia, alguém que a conhecera no passado a reencontraria e a reconheceria.
Seguiram-se várias canções até o término da apresentação. Lady Wescott mostrou-se radiante.
—Oh, estou encantada com o sucesso de minha festa! Será que não poderia cantar ao menos mais uma
canção, minha querida?
O sr. Clarke levantou-se do piano e se aproximou.
— Peço que nos desculpe, milady, mas o acordo inicial era de apenas três canções e, como a senhora mesma
pôde ver, Yvette cantou bem mais que três. Ela está cansada.
—Venha comigo — disse Margaret, puxando-a pelo braço. — Há uma sala ali adiante onde poderemos
conversar a sós.
Depois de entrarem na sala, Margaret fechou a porta atrás de si.
—Lady Wescott me pediu para lhe entregar o pagamento pela noite de hoje. Confira, querida. Por certo esta não
deve ser a quantia correta.
A moça riu:
— A senhora já contou?
— Claro que sim! Tive minhas razões.
Yvette conferiu a quantia.
— Está correta, milady. Meu pagamento seria este mesmo. O sr. Clarke sempre recebe separado.
— Exatamente como pensei. Minha querida, ouça-me: não aceite mais nenhum convite até que tenhamos
investigado isso direito. É inconcebível! Estão tratando-a como uma mera criada!
Yvette riu:
— Mas eu sou uma criada, milady. Esta quantia é mais que...
— Não quero ouvir mais nada sobre este assunto esta noite. Conversaremos amanhã. Avisei lady Wescott que eu e
Harrington levaríamos você para casa. Estaremos prontos para partir dentro de meia hora. Oh, sim, e amanhã você e
eu iremos ver uma casa que está à venda.
— Uma casa?! Mas eu não posso comprar uma casa, milady!
— Não se preocupe, querida. Iremos ver a casa e pronto.
Dizendo isso, Margaret abriu a porta e saiu.
Yvette saiu quase em seguida, ainda atordoada com toda aquela confusão de dinheiro e casa para comprar. Assim
que adentrou o salão, a primeira pessoa que viu foi lorde Bancroft, encostado contra uma coluna de mármore,
esperando-a. Ao vê-la, ele sorriu e aproximou-se.
— Mademoiselle, a próxima dança é nossa.
CAPÍTULO II

Antes que Yvette pudesse recusar, Andrew fez um sinal para os músicos, que começaram a tocar a Valsa dos
Enamorados. Tomou a mão delae ao perceber que Yvette hesitava, fitou-a, surpreso.
— Não vai recusar meu convite, vai?
Vendo a inveja estampada no rosto das jovens que os observavam, Yvette sentiu-se envaidecida. Tudo que miis
queria era valsar pelo salão nos braços de Andrew. Pensando bem, por que recusar algo que desejava tanto?
Abaixou o olhar um instante e voltou a fitá-lo nos olhos.
— Recusar, milorde? Fiquei sabendo que ninguém consegue lhe recusar nada...
Bancroft riu:
— Então lhe disseram a verdade, madzmoiselle. Espero que se lembre disso no futuro.
Ele a conduziu até o meio do salão e tomou-a nos braços. Quando começaram a valsar, alguns poucos casais
decidiram unir-se a eles, visto que a valsa ainda não era uma dança muito aceita entre os mais puritanos.
Apesar de Andrew manter uma boa distância entre ambos, Yvette sabia no íntimo que, se a circunstância
fossediferente, ele a estreitaria nos braços até que não restasse nenhuma distância entre eles. O pensamento a fez
errar o passo e ela sentiu a mão de Andrew segurar a sua com mais firmeza.
— Desculpe.
— Não há do que se desculpar. A senhorita dança como uma fada em meus braços.
Yvette sorriu.
— E muito gentil, lorde Bancroft, mas também como uma fada logo vou desaparecer: lady Margaret e o sr.
Harringtcn estão esperando para me levar para casa.
— E vai me negar o prazer de acompanhá-la?
—Sem uma dama de companhia? — perguntou ela. — Não pode ser. Ambos sabemos que isso seria motivo
para mexericos.
Rodopiaram mais uma vez, antes que ele voltasse a falar:
—Desde quando preocupa-se com mexericos? A ienhorita não é uma dessas mocinhas da sociedade que
precisam ce uma dama de companhia para lhes vigiar os passos.
Yvette parou no mesmo instante. Felizmente, Andrew conseguiu equilibrar-se a tempo de não cair sobre ela.
—E o fato de eu não ser uma dessas "mocinhas ca sociedade" lhe dá o direito de me tratar com menos
respeito?
— Desculpe-me. Eu não quis dizer isso. Será que podemos continuar a dançar, antes de criarmos uma cena?
Sem responder nada, Yvette empertigou-se nos braças dele e voltou ao ritmo. Andrew ficou espantado ao ver
como o olhar dela podia mudar de carinhoso para frio em questão de sejundos.
—Assim é melhor. Não qms desrespeitá-la. Preío muito sua amizade e não quero perdê-la.
—Então sugiro que pare de alisar a palma da minha mão com o dedo. — A voz dela saiu tão fria quanto o
olhar.
Ele respirou fundo.
— Desculpe-me mais uma vez. Foi um gesto inconscfente. Quando eu falei há pouco, quis apenas dizer que uma
mulher ccmo você não precisa se submeter a todas essas tolices sociais impostas às moças em geral. Já é famosa o
suficiente para lutar por sua indepeidência.
— Está enganado, milorde. Sou tão famosa quanto uma governanta ou cozinheira eficiente. Sei bem da minha
posição de criada. Sendo assim, o senhor seria mais prudente se voltasse suas atenções para uma outra pessoa.
— Veremos — disse Andrew, sorrindo com ambigüiiade. — Oh, é uma pena, mas a valsa terminou. Apenas
seu receie de nos tornarmos fonte de mexericos é que me impede de lhe pedirque também dance a próxima valsa
comigo — declarou ele. — Aí vera a condessa. Obrigada, mademoiselle. Nos veremos amanhã.
Yvette inclnou a cabeça de leve.
— Admito que apreciei a valsa, lorde Bancroft. Contudo, receio que um encontro amanhã esteja fora de
cogitação.
— Veremos — respondeu ele.
Cumprimentou a condessa com uma ligeira mesura e se retirou. Lady Margaret deu um risinho.
— Muito arrogante, não acha? — comentou a condessa. — Este jeito imponen e me faz lembrar James
quando era garoto.
Yvette surpreendeu-se:
— Lorde B;rrington? Desculpe-me, milady, mas acho difícil imaginar lorde Berrington sendo arrogante.
— Pois aciedite-me: ele era arrogante e até muito convencido. Precisou de uma mulher firme para colocá-lo
em seu devido lugar,
— Lady Etiily?
— Sim. Veja-os agora: formam o casal mais feliz que já vi! — Ela abriu o leque, escondendo o rosto
parcialmente por trás dele. — Poderia faíer o mesmo com lorde Bancroft...
Yvette corcu.
— Por certa a senhora deve estar brincando. Esqueceu que sou uma criada? Lorde Bancroft nunca se
interessaria por mim.
— Às vezes um grande amor faz as pessoas fazerem coisas das quais nunca pensariam ser capazes, minha
querida.
Yvette corou ainda mais. Percorreu o olhar pelo salão até pousá-lo sobre o atraerte cavalheiro que se destacava
em meio aos demais. Como era de tsperar, lorde Bancroft estava cercado por um grupo de moças enfeitadas
com vestidos rodados e laçarotes nos cabelos. Para Yvette, mais pareciam um bando de pombas arrulhando ao
mesmo tempo. Andrew levantou a cabeça por um momento e seus olhares se encentraram. Mesmo estando do
outro lado do salão, Yvette sentiu toda t intensidade do desafio que havia naquele olhar. Só conseguiu voltar à
realidade quando sentiu a mão da condessa em seu braço, aviíando-a de que estava na hora de partir.
Na manhã seguinte, Yvette estava concentrada em seus afazeres quando foi interrompida por Fredericks. A
voz dele saiu mais seca que de costume quando dirigiu-se à moça:
— Se madtmoiselle não se importar em deixar seus afazeres, lady Emily deieja lhe falar.
Yvette olhou para a moldura da lareira que ainda faltava ser limpa.
— Mas ainda não terminei...
— Terminar? Terminar, você disse? Pois pelo que me parece você nem ao menos começou! Vá, vá logo, antes
que eu perca a calma.
Yvette ajeitou o uniforme.
— Sinto muito, eu...
Lady Emily mostrou-se delicada como sempre, demonstrando todo seu incentivo à carreira de Yvette e ao fato
de ela mudar-se para uma casa dela própria.
Lady Margaret resolveu intervir quando viu que a moça relutava em aceitar a idéia.
—Coragem, menina! Você sabe que se algo não der certo as pessoas desta casa estarão sempre de braços abertos
para recebê-la de volta.
A moça abaixou os olhos, tentando conter o riso.
—Duvido que Fredericks concordaria com minha volta, mas mesmo assim agradeço a gentileza, lady
Margaret.
As outras duas também riram. Ficou acertado que assim que Yvette conseguisse encontrar uma casa, seus dias
de trabalho na mansão dos Berrington estariam terminados.
—Agora vá até seu quarto e vista algo mais apropriado para sairmos — avisou-a lady Margaret. — Estou
morrendo de curiosidade para ver uma casa que está à venda em St. John's Wood.
Yvette parou no meio do caminho até a porta.
— Mon Dieul Milady, não poderei pagar uma casa em St. John's Wood!
— Tolice! Precisa vê-la primeiro, antes de emitir qualquer opinião. A casa fica em um bairro elegante, mas o
preço que o proprietário está cobrando é um verdadeiro milagre.
Yvette concordou mas, ainda assim, sentiu-se muito apreensiva.
Não demorou muito para a carruagem chegar em St. John's Wood, uma parte desconhecida da cidade para
Yvette. Observava as casas imponentes com uma sensação de inquietude, até sentir a mão de lady Margaret
sobre a sua.
—Bem, ali está ela — disse a senhora, apontando uma bonita
casa toda cercada de árvores.
As altas janelas de vidro eram quase totalmente encobertas pelos galhos frondosos de alguns carvalhos.
Depois do portão de ferro trabalhado havia uma pequena trilha que conduzia à entradaprincipal. Yvette adorou a
casa assim que a viu.
— E tão bonita... Tão elegante!
A condessa riu:
—E muito velha também. Pensei que a construção fosse mais nova. Pensando bem, acho que seria melhor
deixá-la de ado.
— Não, milady, é perfeita! Só precisa de alguns pequenos reparos. Será que podemos olhar o interior?
— Como quiser. Mas lembre-se que não quero que fique em uma casa caindo aos pedaços. É importante para
sua carreira que o lugar onde vá morar cause boa impressão.
Yvette desceu da carruagem e empurrou o portão, indo até a entrada principal. Ficou surpresa ao ver que a
porta estava apenas encostada.
— Há alguém lá dentro — disse a lady Margaret, que \inha logo atrás.
— É, parece que sim. Deve ser o proprietário. Ele disse que nos encontraria aqui. Vamos dar uma olhada no
interior ou será que já decidiu aceitar o negócio mesmo sem ver toda a casa?
— Será que sou tão transparente assim? — ela responceu, rindo.
As duas entraram na casa. Yvette andou por um corredor até a sala principal. Os móveis estavam cobertos,
protegidos da poeira. Duas grandes portas mantinham o ambiente isolado do restante da casa. De repente, elas
se abriram. Yvette sobressaltou-se ao ver a silhueta de um homem alto.
— Senhoras, bem-vindas a Waverly Lodge.
No mesmo instante, Yvette reconheceu aquela voz profunda, com um tom arrogante.
— Ah, lorde Bancroft — respondeu a condessa, sem demonstrar surpresa. — Ainda bem que veio.
Yvette voltou-se para ela:
— A senhora sabia que ele viria? Não me diga que ele é o proprietário?
— Sim, é ele. Mas eu não lhe disse? Oh, a minha cabeça de vento!
Yvette lançou-lhe um olhar de censura, mas a condessa fez que não tinha visto e dirigiu-se a lorde Bancroft:
—Eu e Yvette ficamos um pouco decepcionadas com a condição da casa. Pensamos que estivesse mais
conservada.
O visconde sorriu, irônico.
— É mesmo, condessa? Pois eu poderia jurar que ouvi made-moiselle Cordé referir-se a ela com bastante
entusiasmo, antes de eu aparecer.
— A casa é maior do que eu imaginava — comentou Yvette, tentando contornar a situação.
— O jardim está um horror e além disso há móveis demais por aqui.
— Bem, a mobília pertence a minha mãe — explicou Andrew —, vou mandar que retirem algumas peças da
casa e as que ficarem poderão ser usadas.
— Não creio que poderei ficar com a casa — ressaltou Yvette.
— O preço está bem abaixo do valor real — comentou Andrew. —Além disso, poderá me pagar em três
parcelas.
Ele se aproximou de Yvette e quando ambos se olharam foi como se estivessem sozinhos na sala.
—E então, srta. Cordé, aceita a proposta? — perguntou Andrew, por fim.
Yvette olhou para a condessa que balançou a cabeça afirmativamente por trás do visconde.
— Eu... Sim, milorde, aceito a proposta.
Ele assentiu, estendendo a mâjp. Yvette hesitou um instante antes de também estender a mão, fechando o
negócio. O contato provocou-lhe um delicioso arrepio, mas Yvette desvencilhou-se quase no mesmo instante,
apesar da relutância de Andrew em soltar sua mão.
— Negócio fechado — declarou ele. — Pedirei ao meu advogado que providencie os documentos o mais
rápido possível.
— Aproveite e peça a ele que envie os documentos ao meu advogado, antes de Yvette assiná-los — interferiu
a condessa.
Lorde Bancroft sorriu, surpreso. Observou quando Yvette abriu a porta da sacada que dava o jardim. A luz do
sol pousada sobre o rosto delicado, tornava seu perfil ainda mais belo. A voz de Andrew não saiu tão firme
quanto ele esperava, quando disse:
— Gostaria de ver o restante da casa? Pode acabar se arrependendo se depois encontrar algo que não a agrade.
— De maneira alguma! — exclamou Yvette, unindo as mãos. — A casa ficará perfeita, depois que
forem feitos alguns reparos e uma boa limpeza. Quando enviará os empregados para começarem o trabalho?
— Emprega-los? — indagou Andrew, confuso. — Espera que eu mande meus enprejados para limparem sua casa?
— Claro que sim — respondeu ela, calma. — Não espera que eu limpe sozinla toca esta casa e o jardim, espera?
— E para uso que servem os criados. A senhorita, mais que ninguém, deveria saler disso.
Somente quado fercebeu o olhar indignado das duas é que Andrew se deu conta d: que havia sido indelicado.
—Desculpem-me; senhoras. Eu quis me referir aos empregados que vocês irão :ontntar. Lamento não haver me
expressado bem.
As duas o dharam com ar de desdém. Andrew empertigou-se, sem jeito.
— Uma vez que c erro foi de minha parte, claro que concordarei com seu pedido. Os empregados estarão aqui em dois
dias, para começarem a linpezi.
— E é claro que c senhor estará aqui para orientá-los, não é? — insinuou lady Nargaet, com um sorriso.
Lorde Bancnft arjueou a sobrancelha e voltou-se para Yvette.
—Espero que a :enhorita também esteja aqui para me dizer o que deseja ser leito.
— Tentarei arranjar algum tempo para vir aqui, milorde. Afinal, não posso esquecer qu< ainda sou empregada de lorde e
lady Berrington.
— De qualq aer rraneira, não começaremos o trabalho sem sua supervisão. — I voltando-se para a condessa: —
Também vai nos honrar com sua presença, milady?
— Receio que nãc, lorde Bancroft. Meu marido e eu temos uma série de coisas para providenciar antes de nossa partida
para a índia.
— Oh, que pena...— murmurou Andrew, mal conseguindo disfarçar o contentamento. — Mas a vida é assim mesmo,
condessa: cheia de desapoatamentos. — Ele foi até uma porta lateral que dava para um amplo corredjr. —Mademoiselle,
permite que eu lhe mostre o restante de sua casa?
— Minha casi! Mal consigo acreditar que isto esteja acontecendo!
Andrew aprorimou-se dela.
— Pode parecer estranho, mas eu também mal consigo acreditar.
Os dois saíram da sala, seguidos por lady Margaret, que os observava com olhos brilhantes e um sorriso de
contentamento.
CAPITULO III

A notícia de que Yvette havia comprado Waverly Lodge espalhou-se pela mansão dos Berrington em muito
menos tempo do que ela demorara para tomar a decisão.
Lady Emily, que ultimamente passava a maior parte do tempo repousando no quarto, convocou a condessa e
Yvette logo na manhã seguinte, para que acertassem alguns detalhes.
—Você vai precisar de uma dama de companhia, para evitar que as pessoas comecem a fazer mexericos.
— Oh, eu não havia pensado nisso!
— E também de uma cozinheira,;um mordomo, uma governanta e um jardineiro.
— Não poderei pagar tantos empregados!
— Tolice, menina. É claro que poderá pagar. Se deseja mesmo se estabelecer socialmente precisa ir se
acostumando. Será mais fácil do que pensa, acredite-me. Meu marido está convencido de que logo você será a
grande sensação de Londres e ele é a pessoa que melhor sabe julgar o talento de uma pessoa. Depois de mim, é
claro.
Yvette começou a rir, mas viu que lady Margaret falava sério. Tentou disfarçar, substituindo o riso por uma
leve tossida. Notando seu embaraço, lady Emily mudou de assunto:
— O mais importante agora é encontrar uma dama de companhia. Uma mulher respeitável que saiba se portar
no meio social e que não seja rígida demais.
— Dora Middlesworth!
Lady Emily fitou-a com surpresa.
—Mas, Margaret! Não é lady Dora, a dama que tem fama de aventureira?
—Ora, isso é tolice de gente atrasada! Só porque Dora ficou viúva quitro vezes em dez anos? Pois fique
sabendo, Emily, que o
que se diz por até que todos se foram com um sorriso nos lábios. Dora ainda nem chegou aos trinta. E jovem e
não tem motivo para viver ene ausurada só porque é viúva. Até mesmo as mulheres gostam da companhia de a.
Falarei com ela hoje mesmo.
Lady Imily percebeu a expressão de espanto no rosto de Yvette.
— Oh,desculpe, querida. Estamos fazendo planos sem consultá-la.
— Não há problema, milady. Sei que desejam apenas o melhor para mim
Emily e Margaret sorriram para ela com ar maternal e Yvette retribuiu-lhes com um sorriso de sincero
agradecimento.
Ao chegar em Waverly Lodge. Yvette sentiu um indescritível orgulho, ao avistar a casa que agora seria sua.
Se ao menos seus pais estivessem vivos e pudessem ver o quanto ela progredira desde aquele dia terrível em
Paris...
Estava pensativa, dirigindo-se à entrada, quando um ruído interrompeu-lhe os pensamentos. Logo percebeu
que se tratava de uma chave girando na fechadura.
Lorde Bancroft abriu a porta justamente no momento em que ela pretendia entrar.
— Oh, ainda bem que chegou, srta. Cordé. Já veio para ficar?
— Sim. Esta será a primeira noite que passarei em minha nova casa. O senhor não deveria estar aqui, lorde
Bancroft. Minha dama de companhia ainda não chegou.
Andrew fitou-a por um instante, com um sorriso insinuando-se nos lábios.Dama de companhia, pois sim! Sem
dúvida Yvette estava brincando, apesar ie não haver nenhum sinal de riso em seu rosto. Estava belíssima,
trajando um vestido lilás bem solto. Algumas me-chas negras havian se soltado do penteado e emolduravam o
rosto delicado, tornando o ainda mais belo.
— Desculpe ter /indo sem avisar, srta. Cordé, mas é que de repente resolvi vernear se a senhorita precisa abastecer
a despensa ou de minha ajuda para alguma coisa. Sem uma carruagem ou criados para...
— Obrigada, milorde, mas não estou precisando de nada. Minha governanta e o resiante dos criados chegarão
ainda hoje.
Andrew cruzou os braços e tamborilou os dedos na manga do casaco.
— Desculpe-me a indiscrição, mademoiselle, mas está sozinha?
— Como?
Andrew hesitou, procurando as palavras certas.
— O que estou querendo dizer é se a senhorita tem alguém para protegê-la.
— Bem, como eu disse há pouco, minha dama de companhia e os criados chegarão ainda hoje.
Andrew percebeu um brilho de insinuação nos olhos dela e cruzou as mãos nas costas, irritado. Ela o estava
provocando!
— Há um homem na casa para protegê-la?
— Se eu precisasse de proteção, não recorreria à de um homem, lorde Bancroft. E, a propósito, como ousou ir
entrando assim na minha casa?
Ele bateu no bolso do casaco, provocando um tilintar de chaves.
— Não se esqueça que tenho a chave, minha cara. Afinal, antes de ser sua, a casa era minha. Além disso, ela
só será realmente sua quando a senhorita me pagar a última das três parcelas.
— Tem razão, mas isso não lhe dá o direito de...
Yvette foi interrompida pçlo som de uma batida à porta.
— Deve ser minha dama de companhia, lady Dora Middlesworth — disse ela.
— Lady Middlesworth? Aquela devoradora de homens vai ser sua dama de companhia?
Yvette lançou-lhe um olhar frio.
— Não vejo nada que possa impedi-la de ser minha dama de companhia. Ela vem de família nobre; o pai dela
era marquês. Agora, se me der licença, irei recebê-la.
Dizendo isso, fez sinal para que Andrew saísse do caminho. Ele a deteve pelo braço.
— Yvette, você deve estar brincando. Esta mulher enterrou três maridos nos últimos dez anos!
— Quatro.
Ele arregalou os olhos:
— Quatro anos?!
— Não. Quatro maridos. Quer me soltar, por gentileza?
Ele soltou-a com um resmungo de impaciência.
— É compreensível que queira mudar de vida, mas ter Dora Middlesworth como dama de companhia é como
aliar-se a uma...
— Amiga?
— "Amiga" não era bem a palavra que eu tinha em mente. Há cortesães menos mal-afamadas que ela naquele
bordel atrás do Co-vent Garden.
—Dora não é uma cortesã. Ela... ela simplesmente gosta de ter um homem a seu lado e, sob a bênção da
Igreja, devo dizer.
Ouviram outra batida, desta vez mais enérgica. Yvette abriu a porta, deixando entrar uma mulher jovem e
bonita, trajando vestido verde de veludo e chapéu com plumas sobre os cabelos ruivos, encaracolados.
—Meu Deus! — exclamou ela. — Margaret disse que você era jovem, mas não pensei que fosse tanto. Oh,
querida, você fala inglês, não fala? Eu deveria ter perguntado isso a Margaret, mas tudo aconteceu tão rápido...
Yvette sorriu:
—A senhora deve ser lady Dora. Muito prazer, sou Yvette Cordé. Não vai entrar?
Lady Dora deu um risinho.
—Receio ter trazido bagagem demais. O cocheiro já colocou a maior parte perto do portão.
Ela olhou para Andrew e fez sinal em direção à porta, antes de acrescentar:
— Poderia fazer a gentileza de carregá-las para mim?
Andrew a observou por um instante. Dora não era o que ele esperava. Era até muito simpática e bonita para
uma mulher que com menos de trinta anos que já se casara quatro vezes.
— Sim, milorde — pediu Yvette —, leve a bagagem de lady Dora para o quarto dela, por gentileza.
— Como quiser, mademoiselle.
Quando o visconde se retirou, Yvette voltou-se para Dora.
— Este é lorde Bancroft — explicou ela. — A casa era dele antes de eu comprá-la.
— Eu o reconheci assim que o vi. Ele é um dos que ocupam o topo da lista. Aqui na cidade não existe
nenhuma mulher com menos de quarenta anos que não conheça aquele rosto.
— Lista?
— Sim, a lista dos melhores pretendentes, é claro.
Dora postou-se bem diante de Yvette, colocando a mão nos quadris.
— Bem, agora vamos dar uma boa olhada em você. Dê uma voltinha, vamos.
Yvette sentiu-se como um inseto sendo examinado por um pesquisador. Dora assentiu, fazendo as plumas do
chapéu balançarem.
— Nada mal, nada mal. O único detalhe que não me agrada muito é a cor de seus cabelos, são muito negros,
não acha? Bem, mas um bom cabeleireiro poderá dar um jeito nisso. Espero que tenha um guarda-roupa
decente.
— É meio limitado, lady Dora.
— Não importa, mudaremos tudo.
Lorde Bancroft, já na terceira viagem até o portão, abriu a porta com o pé, carregando um grande baú.
— O que a senhora trouxe dentro deste baú, lady Dora? Uma cama?
Yvette o fuzilou com o olhar pela indelicadeza, mas Dora apenas sorriu.
—Não, milorde. Meus maridos sempre tiveram condições de comprar uma cama.
Andrew enrubesceu. Yvette fechou a porta com mais força que o necessário. '
—Se o baú estiver pesado demais, coloque-o ao pé da escada, lorde Bancroft — ela sugeriu. — Com certeza,
minha governanta e o cocheiro conseguirão carregá-lo.
Andrew olhou-a por um momento. Ergueu mais o baú e começou a subir a escada que dava para os quartos.
— Em que quarto ela vai ficar?
— Na suíte dourada. Terceira porta à esquerda.
— Eu sei onde é. Já morei aqui, lembra-se?
Yvette olhou para lady Dora e esta deu uma piscadela.
—Ele é um tanto genioso, não acha, querida? — comentou Dora. — Bem, mas não importa. Os homens
temperamentais são mais interessantes. Quanto à minha interferência, não precisa se preocupar, não vou
atrapalhar o romance.
— Desculpe, mas não estou entendendo, lady Dora. Que romance? A dama apontou a escada com a mão
enluvada.
— Refiro-me ao visconde, é claro. Está mais que evidente que ele está apaixonado por você. Margaret já havia
me avisado e acabei de comprovar o fato com meus próprios olhos.
No momento em que Yvette ia dizer que aquilo era um absurdo, lorde Bancroft voltou.
—Já terminei, mademoiselle, exceto por aquele cesto de vime cheio de gatos, que, na minha opinião, deve ser
levado para o estábulo.
Dora levou a mão ao peito, chocada.
— Estábulo? Nunca! Meus meninos sempre ficam comigo!
— Mas na minha casa eles não vão ficar circulando por aí — replicou o visconde.
— Perdoe-me, milorde, mas tenho a impressão de que agora esta casa pertence à srta. Cordé.
— Apenas parcialmente.
—Então tenha a gentileza de me dizer quais partes pertencem a ela. O chão? As paredes?
O modo furioso como Yvette o olhou fez Andrew dar um passo atrás.
—Escute aqui, lorde Bancroft, não vou permitir que venha me dar ordens ou às pessoas que irão morar
comigo nesta casa. O que eu fizer ou deixar de fazer não é da sua conta.
—E sim, enquanto o nome de minha família permanecer na placa de entrada da casa.
— Isto pode ser facilmente remediado: arranca-se aplaca e pronto!
— Chega! Chega! — bradou ele.
Sem dizer mais nada, saiu, deixando a porta escancarada.
Dora sorriu, com uma expressão de quem havia adorado o confronto. Seguiu-o até o portão de entrada e
pegou o cesto. Quando entrou, ainda sorria.
— Muito bem, mademoisellel Você o terá em suas mãos muito em breve, isto é, se é que já não o tem.
— Duvido muito que ele apareça por aqui novamente.
— Oh, minha querida, você é ainda muito ingênua. Lady Margaret me disse que você gosta de gatos. Ainda
bem, caso contrário eu não poderia vir morar com você.
Ela abriu a tampa do cesto revelando quatro gatinhos rechonchu-dos que foram logo saindo.
— Minha nossa! Eles devem comer um bocado de ratos.
Dora balançou a cabeça:
—Nunca tocaram em um sequer. Meus meninos gostam de creme e, uma vez ou outra, de um pedaço de
sardinha ou arenque, na hora do lanche. Bem, agora mostre-me onde fica o quarto. Estou louca para conhecer o
restante da casa.
Yvette sorriu, sentindo que gostaria muito da alegre companhia de Dora Middlesworth.
As duas foram muito bem recebidas na próxima festa. Yvette não foi tratada como uma mera cantora,
contratada para divertir os convidados, mas sim como uma convidada ilustre.
— Não espere o mesmo tratamento de todas as famílias da cidade. A maioria ainda me vê apenas como "uma
criada que sabe cantar direitinho". — Ela sorriu: — Não posso reclamar, pois é a verdade. Felizmente, eles me
pagam muito melhor pelo meu serviço de cantora do que pelo serviço de criada.
— Eles lhe pagam? Oh, minha querida, não*me diga que você aceita estipêndios?
— Claro que aceito! Como acha que consegui comprar aquela casa?
— Pensei que tivesse sido um presente do visconde.
— Lorde Bancroft? Está enganada, lady Dora. Nunca aceitei, nem pretendo aceitar, favores de homem algum.
— Oh, céus, que desperdício. Isso cria outra dificuldade. Não pode continuar aceitando pagamento por suas
apresentações. E muito... muito comercial. Se seus anfitriões a "presenteassem" com jóias, casacos de pele ou outras
coisas do gênero, a história seria bem diferente.
— Diferente, mas um tanto arriscada, não acha?
— É você mesma que cuida das questões financeiras?
— Não. É o sr. Clarke, meu pianista. Depois que recebe o pagamento, ele separa a parte dele e, em seguida,
entrega a minha.
— Entendo. Sendo assim, será melhor ter uma conversinha com ele...
Yvette receava ter dificuldade para conviver com os criados, mas teve uma agradável surpresa. Jarvis Campbell,
o mordomo, e Clara Campbell, a cozinheira, era um casal que acompanhava Dora há muito tempo e Maggie
McGee, uma jovem irlandesa que trabalhava como camareira de Dora desde o terceiro casamento, formavam uma
equipe eficiente e organizada.
Dora só levou dois dias para descobrir que o sr. Clarke, o pianista, estava roubando dinheiro dos pagamentos.
Felizmente, Dora já havia conseguido contratar outro pianista.
Mademoiselle Yvette Cordé estava ficando mais famosa a cada dia. Ela cruzou os braços, com um sorriso
insinuando-se nos lábios. Seus sonhos estavam começando a se realizar... Logo aquela casa seria sua, só sua.
Isso, pelo menos, já realizaria grande parte do sonho.
Do lado de fora do portão, lorde Bancroft observava a casa através da janela da carruagem, enquanto fumava
um charuto. Com uma careta de desgosto pela má qualidade do charuto, amassou-o contra o pequeno cinzeiro
que havia no interior do veículo. Nem ele mesmo conseguia entender por que havia aceitado a caixa de charutos
de Greebers. Aquele patife! Não passava de um grande trapaceiro no jogo. Mas logo teria sua revanche. A
aposta já estava registrada nos livros do White's, e a cada dia sua vantagem estava aumentando.
Distraído, observou a placa de metal com o nome "Waverly Lodge", presa ao muro de pedras, ao lado do
portão, imaginando que agora era apenas uma questão de tempo até que as coisas se ajustassem...
Podia até imaginar o futuro: Yvette aceitaria sua proteção e ele seria invejado por grande parte dos homens
de Londres. Passearia com ela pelo Hyde Park no faetonte preto e dourado de Greebers, que ele ganharia como
prêmio da aposta se conseguisse conquistá-la. E o mais importante: Yvette seria sua e de mais ninguém.

CAPÍTULO IV

Nos dias que se seguiram, Yvette mal conseguiu se concentrar nos ensaios. O sr. Armbruster, o novo pianista,
não podia comparecer todos os dias porque também trabalhava em outro emprego. Nos dias em que ele não podia
comparecer, lady Dora acompanhava Yvette ao piano, apesar de seu talento para a música deixar muito a
desejar.
Yvette havia acabado de ensaiar uma canção e caminhou até a janela da sala de música, notou uma
carruagem parada diante da entrada principal. Os cavalos negros moviam-se com impaciência, como se
estivessem cansados de permanecer na mesma posição. Ela sentiu um frio no estômago. Chamou lady Dora à
janela.
— Reconhece aquela carruagem, milady? E a terceira vez que a vejo parada ali.
— Não tenho nem idéia de quem possa ser, mas não deve ser nada. A carruagem é luxuosa e os cavalos são
belíssimos. Deve ser algum admirador.
— Mas ninguém, além dos Berrington e de lorde Bancroft, sabe que comprei esta casa. E pouco provável que
seja um de meus admiradores.
Lady Dora olhou-a, surpresa.
— Eu quis me referir aos meus admiradores, querida, não aos seus — disse ela.
— Oh, desculpe. Não pensei que... Bem, afinal, faz apenas um ano que perdeu seu marido...
Dora lançou-lhe um olhar direto.
— Foi Reginald quem morreu, querida, não eu. Tenho certeza que ele não iria gostar de me ver lamentando a
morte dele para sempre. Seria melhor mandarmos um dos criados ir ver quem é? Talvez seja alguém
importante.
— Não! Seja lá quem for irá embora logo e, como você mesma disse, não parece haver perigo.
— Todavia, não deixa de ser curioso, não acha?
Cerca de uma hora depois, lorde Bancroft chegou, sem se anunciar, como sempre. Lady Dora estava no banho e
demoraria um pouco até poder fazer companhia a Yvette. Mesmo assim, a moça resolveu receber o visconde.
Conseguira dispensá-lo duas vezes durante a semana, pedindo ao mordomo que dissesse que ela havia saído.
Desta vez, porém, não havia como escapar. Decidida a recebê-lo, foi até o quarto, jogou um xale sobre os
ombros e começou a descer as escadas.
— Tudo bem, Jarvis, pode acompanhar lorde Bancroft à biblioteca. Andrew ergueu a vista.
— Oh, aí está a senhorita, afinal.
— Há algum negócio urgente que queira tratar comigo? — indagou ela, fingindo não haver notado a ironia.
— Chame como quiser o motivo de eu ter vindo aqui, mas saiba de uma coisa, srta. Cordé: detesto ser
passado para trás.
O mordomo fitou-o com altivez e fez um sinal na direção do corredor.
— A biblioteca é por aqui, milorde.
—• Eu sei o caminho, meu caro. Esta casa é minha.
Yvette ficou indignada com a arrogância de Andrew. Antes de segui-lo, pediu à governanta que
providenciasse um pouco de licor de damasco e os servisse na biblioteca. "Talvez a bebida amenize o mau
humor dele", pensou ela.
Quando entrou na biblioteca, encontrou-o de pé, diante da lareira acesa. Estava de costas para ela e Yvette
aproveitou a oportunidade para observá-lo melhor. Sua presença imponente enchia o ambiente de um
magnetismo especial. O casaco vermelho-escuro de corte impecável, formava um elegante conjunto com a calça
e sapatos pretos. Os cabelos castanhos, finos e ligeiramente encaracolados, tinham um corte que lhe assentava
muito bem. Dora tinha razão: era difícil para qualquer mulher ignorar um homem daqueles.
— Lorde Bancroft...
Ele virou-se:
— Não ouvi quando entrou.
— Mas pode ter certeza que todos os vizinhos devem ter escutado a sua entrada aqui em casa.
— Esta farsa tem que acabar hoje.
— Farsa? Não sei o que está querendo insinuar.
Andrew sentiu o rosto esquentar e não pelo calor da lareira. Aquela mulher era mesmo um desafio. Só Deus
sabia o esforço que ele estava fazendo para não tomá-la nos braços e beijá-la com ardor. Mais parecia uma
rainha, indescritivelmente bela e desejável com um vestido simples e o xale jogado sobre os ombros.
— Antes de continuarmos a conversar, quero lhe dizer que lamento muito o fato de o senhor continuar se
proclamando o dono da minha casa.
— Sua casa? Isto aqui está longe de ser sua casa!
— O que está querendo dizer? Ela será assim que eu completar os dois pagamentos restantes. Lembre-se que
isto consta no contrato assinado pelo senhor.
Os olhos de Andrew adquiriram um brilho perigoso.
—Um contrato que só cobre os itens fundamentais, é claro, já que meu senso de cavalheirismo não me
permitiu colocar no papel os detalhes mais íntimos de nosso acordo.
Yvette riu, balançando a cabeça.
—Que tolice é esta? Não concordei com nada que não estivesse no contrato.
Andrew empalideceu.
—Não pense que sou tolo, senhorita. Foi somente em consideração à sua sensibilidade e inteligência que
preferi não mencionar os detalhes do acordo.
— Sendo assim, sugiro que os mencione agora.
O riso desapareceu por completo do rosto de Yvette.
Andrew respirou fundo e caminhou até a janela. Ficou em silêncio durante algum tempo, depois voltou-se para
ela. Apesar do brilho de indignação que havia nos olhos dela, Yvette estava mais linda que nunca, fato que
dificultou ainda mais sua concentração. O que estava acontecendo, afinal? Ela não era a primeira de suas
conquistas. Nunca tivera dificuldade em saber o que esperar de uma dama e em definir o que ela deveria esperar
da parte dele. Esperar da parte dele?
— E isso! Acha que não foi generosc de minha parte começar a lhe fornecer uma pensão desde o início? Peço
desculpas, ma petite.
Dizendo isso, levou a mão ao bolso e retirou uma pequena bolsa de dinheiro, que colocou sobre a mesa.
Yvette ficou parada, sem saber como reagir. O visconde sorriu:
— Vamos, pegue. Se quiser, terá outra quantia igual a esta dentro de uma semana.
Se não estivesse tão furiosa, Yvette teriarido da expressão ingênua do rosto dele. Porém, não era iora de rr.
Como Andrew ousava pensar que ela aceitaria se tomar sua amante? Sem dúvida, a sugestão estava mais que
evidente.
Ela pegou a bolsa o encarou
— Então é isto o que pensa de mim? Uma quantia deveras insignificante, não acha?
Lorde Bancroft lançou-lhe um olhar de triunfo.
— De maneira alguma, mademoiselle! São moedas de ouro! Eu não seria indelicado a ponto de lhe ofere:er
uma quantia insignificante.
— Pois as evidências provarr o contraio, milorde. Sua sugestão é um grande insulto. Como ousa pensar que
eu aceitaria me tomar sua... sua concubina!
— Não precisei pensar. Por que acha que aceitei vender minha casa por um preço ínfimo? Acha que viva
desperdiçando dinheiro, sem esperar nada em troca?
— E, ouvi dizer que o senhor realmente aprecia "desperdiçar dinheiro" nas mesas de jogo doWhite's!
— Quando aposto, os lances fão altos e tenho por princípio nunca perder. Todavia, o que fizemos rião foi uma
aposta, srta. Cordé, mas um acordo comercial.
— Certo. Foi exatamente o cue pense. Pensei que o senhor estivesse disposto a vender a casa por uma quantia
ínfima simplesmente porque não queria mais assumir a responsabilidade de mantê-la.
— A casa vale muito mais do que a senhorita pagará por ela.
— Então ficarei em débito com o senhor para sempre. O que estou querendo dizer é que sere eternamente
grata por sua generosidade. Mas nunca concordarei em me tornar sua amante. Isto nunca me passou pela cabeça.
Um sorriso irônico insinuou-se nos lábios de Andrew.
Aquele sorriso deixou Yvette irritada.
— Devido às circunstâncias, irei perdoá-lo pelo erro que cometeu ao julgar meu caráter, desde que nunca mais
toque no assunto. Agora, é melhor o senhor ir embora.
Segurando a bolsa na palma da mão, acrescentou:
— Quero lhe dizer mais uma coisinha, lorde Bancroft, uma vez que está evidente que o senhor nunca irá
descobrir por si mesmo:
não me julgue pelos padrões das outras mulheres com as quais se envolveu. Valho muito mais. Assim "dizendo,
deixou a mochila de dinheiro cair aos pés dele. Andrew abaixou-se devagar para pegá-la. Em seguida, num
gesto impulsivo, segurou-a pelos ombros e beijou-a nos lábios.

CAPÍTULO V

— Como ousa! — gritou Yvette, afastando-o. Ela ia esbofeteá-lo, mas Andrew segurou-a pelos pulsos,
imobilizando-a. Seus olhares se encontraram com uma fúria que demonstrava que nenhum dos dois aceitaria ser
derrotado.
—Solte-me! — mandou ela. — Recuso-me a ser tratada como uma... uma qualquer!
— Eu nunca a rebaixaria, mademoiselle. Só quis lhe oferecer uma boa quantia em dinheiro, além de minha
proteção. Lembre-se também que já lhe dei uma casa, com a escritura no seu nome.
— Me deu uma casa? Ora, esta casa não foi nenhum presente, milorde! Eu a adquiri como resultado de uma
transação comercial. Agora, solte minhas mãos.
Andrew fitou-a por um instante. Antes que Yvette pudesse protestar, ele levou as mãos dela aos lábios,
beijando uma palma de cada vez.
Para Yvette, a sensação de ter os lábios dele em sua pele, deixou-a com as pernas trêmulas. Porém, antes que
acabasse perdendo a noção das coisas, conseguiu reunir forças suficientes para afastá-lo.
— O senhor deve ser louco, lorde Bancroft! Se Dora estivesse aqui, nunca permitiria que o senhor se desse a estas
liberdades! Agora vá embora, por gentileza, antes que eu tenha que chamar o mordomo.
—Não irei embora, a menos que admita que sabia muito bem o que estava implícito no acordo, quando
concordei em passar a casa para o seu nome.
— Eu não sabia de nada. Vá embora, por favor. — Ela apontou a porta.
— Não. — Andrew teimou.
Com um olhar furioso, Yvette correu até a lareira e pegou o atiçador, segurando-o como uma arma.
— Se não sair agora mesmo, não me responsabilizarei por meus atos! — avisou, fazendo menção de acertá-lo
na cabeça.
Em vez de tomar o objeto da mão dela, como era óbvio que ele conseguiria com facilidade, Andrew começou
a rir.
— Está bem — disse ele. — Venceu este round, senhorita. Vou embora, mas fique sabendo que a disputa
ainda não terminou.
— Vai chover canivetes no dia em que eu concordar em me tornar sua amante!
Andrew andou até a porta. Yvette o seguiu de perto, empunhando o atiçador. No último instante, ele se virou
e apontou o dedo bem diante do nariz dela.
— Lembre-se, sita. Cordé, que amanhã estarei aqui às sete em ponto, para levá-la ao sarau dos Crampton.
O atiçador bateu contra a porta, no momento em que ele a fechou atrás de si. Yvette se virou e viu Jarvis
entrando na sala.
— Atiçando a madeira da porta, mademoisellel — indagou ele.
— Não, eu...
Quando ela notou o brilho de divertimento nos olhos do mordomo, abaixou-se e pegou o objeto.
— Não, Jarvis, só estava arrumando o atiçador.
— Sim, senhorita. Quer que eu dispense lorde Bancroft, da próxima vez que ele insistir em vê-la?
— Não, Jarvis. Não será necessário. Duvido que lorde Bancroft crie mais algum tipo de aborrecimento. No
fundo, ele é inofensivo.
— Como quiser, senhorita.
O mordomo inclinou a cabeça de leve e se retirou.
"Inofensivo, pois sim!", pensou ela, subindo as escadas. Ainda podia sentir nas palmas das mãos a pressão
dos lábios dele. Apesar de ter sido um beijo inocente, conseguira afetá-la mais que o normal. Andrew Waverly
era um homem muito atraente, e pior: tinha consciência disso. Não era à toa que a maioria das mulheres da
cidade queriam conquistá-lo. Pensativa, jogou a ponta do xale sobre o ombro, num gesto determinado. Olhou para
a sala, do alto da escada. Ainda bem que a casa estava em seu nome. Pelo menos por enquanto, estaria em
segurança.
Lady Dora estava pronta para ir às compras, quando Yvette passou pelo quarto dela. Num impulso, a moça
ofereceu-se para acompanhá-la.
As lojas estavam apinhadas naquela tarde e a seleção dos artigos mais difícil que de costume. Nenhum vestido
conseguia agradar Yvette. Quando não era o fato de serem enfeitados demais, era a cor que não lhe agradava ou
o tamanho que não lhe servia.
Após terem visitado boa parte das lojas e butiques, as duas resolveram parar em uma loja de chocolates.
— Estou vendo alguns amigos meus lá dentro — disse Dora, olhando através da vitrine.
A loja também estava bem movimentada. O que mais surpreendeu Yvette foi o fato de quase todos os presentes
conhecerem lady Dora. Quando conseguiram encontrar lugares disponíveis, foram logo cercadas por várias
pessoas. Dora fez as apresentações:
— Esta é minha cunhada, Candide Hamilton, minha outra cunhada, Charlotte Kinkaid e meu cunhado, sir
Peter Kinkaid. Aquele é meu sobrinho, Horace Jepson e aquele ali é Oscar Davidell, um grande amigo de meu
terceiro marido.
Yvette foi cumprimentando um por um.
— Meu Deus, lady Dora! Não sabia que sua família era tão grande assim — comentou ela.
Todos riram. Candide Hamilton fitou-a com seus bondosos olhos castanhos e disse:
— Se Dora reunisse os parentes que possui de seus vários casamentos, não haveria espaço suficiente para
todos nem no Covent Garden!
Dora assentiu:
— E verdade, minha querida. E eu não esqueceria nenhum deles. Meus quatro maridos tiveram a sorte de
pertencer a ótimas famílias. Se com o próximo também for assim, sem dúvida, poderei me considerar uma
mulher de sorte.
Todos inclinaram-se um pouco, com uma expressão de suspense estampada em cada rosto. Oscar Davidell
alisou o bigode e foi o primeiro a se manifestar:
— Aha! Então quer dizer que já tem alguém em vista? Posso saber qual será sua próxima vítima, Dora,
querida?
Ela arqueou as sobrancelhas.
—Vítima? Ora, vamos, Oscar! Que tolice! Você sabe muito bem que todos meus maridos morreram felizes por
haverem me conhecido. Mas, respondendo à sua pergunta, confesso que não tenho tido muito tempo para escolher
o felizardo. Estive fora de circulação por quase um ano, mas, graças à sita. Cordé, estou finalmente de volta à
sociedade. Oh, e por falar nisso, quero convidá-los para uma pequena reunião que daremos na quinta-feira à noite.
Yvette e eu passaremos a realizar reuniões semanalmente, agora que terminamos todos os detalhes da mudança.
Contamos com a presença de todos, não é, Yvette?
A moça não conseguiu responder nada mas, pelo visto, todos entenderam seu silêncio como uma confirmação,
pois antes de partirem, prometeram comparecer à reunião.
Dora e Yvette foram a mais duas lojas, depois de deixarem a loja de chocolates. Durante as visitas, Dora fez
questão de convidar mais uma dúzia de pessoas para o sarau da quinta-feira. Quando, por fim, chegaram em
casa, viram alguns homens carregando uma cristaleira para fora da casa.
—- O que está acontecendo aqui? — perguntou Dora. — Você mandou que levassem a cristaleira embora?
— Não — respondeu Dora. — Isto está me parecendo coisa de lorde Bancroft.
— Ótimo. Agora não precisaremos mais nos preocupar em desocupar o salão para nosso sarau.
O mordomo apressou-se em ir ajudá-las com os inúmeros pacotes e sacolas. Jarvis parecia pouco à vontade,
olhando furtivamente para Yvette e para a casa.
— O que foi, Jarvis? — indagou Yvette. — Levaram mais alguma coisa?
— Sim, mademoiselle. Gostaria de não ter de lhe dizer...
— Dizer o quê?
Sem esperar pela resposta, Yvette correu para a casa, seguida por Dora e Jarvis. Quando abriu a porta, parou,
estupefata. Todos os móveis haviam sido levados.
— Pas possible! — Sua voz ecoou na sala vazia. — Ele levou tudo! — Voltou-se para o mordomo, com as
mãos na cintura: — Ele também levou todos os móveis dos outros cômodos?
— Não, senhorita. Lorde Bancroft deixou alguns cômodos intactos: a cozinha, a biblioteca, a sala de jantar e os
quartos.
Dora arqueou a sobrancelha:
—Ele não mexeu nos quartos? Estaria ele tentando lhe dizer alguma coisa, minha querida?
— Il me le payera cher!
Jarvis percebeu a fúria do olhar dela e, discretamente, retirou-se para a cozinha. Dora colocou o braço sobre
os ombros de Yvette.
—Tudo bem, querida, nós o faremos pagar por isso. Não se preocupe, daremos um jeito.
— Não poderei comprar móveis novos — disse Yvette, desesperançada.
—O que é meu é seu, quando o que está em jogo é manter as aparências. — Dora ressaltou. — Tenho
condições de comprar o que for necessário.
—É muita gentileza sua, mas não posso permitir que faça uma coisa dessas. Precisará de seu dinheiro algum
dia.
— Besteira! Ainda tenho muito para gastar. Além do mais, tenho intenção de me casar antes que minhas
heranças acabem. Desta vez, quero arrumar um velho abastado. Se bem que, se um jovem lorde aparecesse em
minha vida, tenho certeza que não conseguiria resistir.
Apesar da situação, Yvette não pôde deixar de rir.
— Sei que está só tentando me animar, lady Dora.
A viúva surpreendeu-se:
—De maneira alguma. Estou apenas falando a verdade. Bem, mas agora precisamos decidir o que faremos.
— Pretendo dizer umas poucas e boas a lorde Bancroft.
— E deixá-lo pensando que ganhou esse round! Não seja ingênua! Quando ele vier nos pegar para o sarau dos
Crampton, aja como se não tivesse acontecido nada.
— E onde ele ficará enquanto estiver nos esperando?
— Na sala de visitas, é claro. Onde mais?
Yvette fitou-a com ar divertido. Aos poucos, um sorriso insinuou-se em seus lábios.
—Claro, é uma excelente idéia. Farei questão de demorar mais
tempo que o necessário para me aprontar...
Dora também riu:
— De fato, será uma longa espera...
— Lady Dora, você não acha que amanhã às seis e meia será um horário perfeito para as criadas encerarem o
chão da sala de visitas? Uma camada dupla de cera ficaria perfeito.
— Mas a cera não secará a tempo de... Oh, sim. Estou entendendo...
— Ótimo. Vou agora mesmo avisar as criadas.
No meio da noite, Yvette lembrou com pesar que o piano também havia sido levado. Apesar de ser antigo, o
instrumento era importantíssimo para seus ensaios. Como se não bastasse, ainda havia o sarau que Dora
marcara para a quinta-feira. O mais sensato a fazer seria avisar os convidados de que a reunião seria cancelada.
Ela suspirou. Com algum esforço, conseguiu afastar os pensamentos. O mais importante no momento era a
apresentação na casa dos Crampton. Depois pensaria em uma maneira de remediar os problemas que o destino
estava fazendo questão de colocar em suas mãos.
No dia seguinte, Yvette teve uma agradável surpresa quando se aprontava para o sarau. Pedira à camareira que
retirasse seu vestido verde do guarda-roupa e, pouco depois, Maggie apareceu, trazendo o vestido vermelho de
veludo e cetim, que Yvette admirara tanto nas compras do dia anterior.
— O que é isso? De onde veio esse vestido?
Maggie sorriu:
— Foi lady Dora, mademoiselle. Ela pediu que eu escondesse o vestido até o momento de a senhorita se vestir
para a apresentação.
— Mas não posso aceitar um presente tão caro!
—Se não aceitar irá magoá-la, senhorita. Conheço bem lady Dora e sei que ela não ficaria nem um pouco
satisfeita se recusasse o presente.
— É um lindo vestido, não acha, Maggie?
— E lindo, mas ainda temos que pentear seus cabelos, srta. Cordé.
—Oh, desculpe. Sei que já é tarde. Creio que não terei escolha a não ser vesti-lo.
— Todos temos que fazer sacrifícios de vez em quando, senhorita.
Yvette fitou-a com ar divertido.
— Maggie, você tem convivido demais com lady Dora. Já está até começando a falar como ela!
A carruagem de lorde Bancroft parou em frente à casa um minuto antes das sete. Andrew olhou com orgulho
para a placa com o nome da propriedade de sua família e lembrou-se de dizer a Jarvis que a polisse diariamente.
Riu consigo mesmo. Esta noite seria memorável. Daria qualquer coisa para ter visto a expressão daquelas duas
quando haviam encontrado a casa praticamente vazia. Até que enfim conseguira vencer um round. Precisava agir
e ganhar terreno nos próximos dias, caso contrário, seu prestígio no White's diminuiria vertiginosamente.
Tirou o relógio do bolso e abriu a tampa. "Aha, sete em ponto". Esta noite seria decisiva. Ficara sabendo que
Yvette e Dora ofereceriam um sarau na quinta-feira. Seu plano transcorria muito bem. O dono da loja de
produtos alimentícios onde elas costumavam fazer compras prometera-lhe, após receber certa quantia, é claro, não
vender nada para as duas até o final do mês. Andrew as teria em suas mãos de uma maneira bem mais fácil do
que imaginara.
Jarvis abriu a porta da carruagem, com sua costumeira eficiência.
— Boa noite, milorde.
— Boa noite, Jarvis. As senhoras estão me esperando.
— Sim, milorde. Vou informá-las de que o senhor chegou. Poderia esperar na sala de visitas, por gentileza?
Creio que o senhor conhece o caminho. — Ele indicou a porta. — Quer que lhe sirvam alguma bebida?
— Não, obrigado.
O mordomo começou a subir as escadas.em direção aos quartos.
Andrew esfregou as mãos para afastar o frio e abriu a porta da sala de visitas. "Uma lareira acesa é uma
bênção em uma noite fria como esta", pensou ele.
Para divertimento de Andrew, o aposento estava vazio. Do lado oposto da sala, o calor da lareira estava quase
se extinguindo e ele achou melhor ir atiçar as chamas. Mal havia dado alguns passos, quando percebeu porque o
chão estava mais brilhoso que o normal: havia sido encerado com um tipo de cera pegajosa. A cada passo que
dava, parecia que os sapatos iam sair de seus pés. Andrew parou no meio da sala, com as pernas afastadas, sem
saber se deveria ir em frente ou voltar. Respirou fundo. Yvette ia pagar caro pela provocação.
A intuição disse-lhe que as duas ainda demorariam um bom tempo para descer. Se voltasse para o corredor de
entrada passaria frio. Ali, pelo menos, poderia aquecer-se um pouco. Não adiantava mais reclamar agora que o
estrago já havia sido feito em seus sapatos, sem mencionar o chão de sua casa.
Com cuidado, levantou um pé de cada vez e franziu o cenho ao colocá-los de volta no chão. Estratégia. Era
disso que precisava. "Pense, homem!", disse para si mesmo. Se trocar de sapato: será o mesmo que dizer que ela
venceu o round. A melhor estratégia seria fingir que nada havia acontecido.
Parecia que já havia se passado uma hora quando lady Dora e Yvette apareceram. Dora estava muito bonita
trajando um vestido verde com detalhes dourados e os cabelos presos no alto da :abeça.
— Oh, aí está o senhor, lorde Bancroft. Que bom revê-lo.
Ela o cumprimentou, tendo o cuidado de manter-se do ado de fora da porta.
Andrew viu que Yvette estava logo atrás dela. Com cautela, firmou os pés no chão e ficou parado.
—Boa noite, senhoras. Gostariam de se aquecer um pouco diante da lareira?
Yvette levou a mão ao cabelo, ajeitando um cacho.
—Não, obrigada, milorde. Creio que demoramos muito com nossa toilette. Estamos um pouco atrasados.
Dora meneou a cabeça.
— Vamos, lorde Bancroft? ' Andrew respirou fundo.
— Como quiserem, senhoras.
Quando ele começou a andar, os sapatos produziram i_m som esquisito que ecoou pela sala. Lady Dora e
Yvette sentiran que a única maneira de evitar o riso seria não olharem uma para a outra e encaminharem-se o
mais rápido possível para a porta da frente.

CAPÍTULO VI

Andrew logo se conscientizou de que encontrava-se em considerável desvantagem ao tentar desafiar Yvette e
lady Dora.
Assim que as duas entraram na carruagem, ele disse algo para o cocheiro. Yvette ia olhar pela janela para ver
o que estava atrasando a partida, mas antes de fazê-lo, lorde Bancroft abriu a portinhola e entrou.
— Algo errado, milorde? — perguntou Dora, ajeitando o xale sobre os ombros. — Não temos muito tempo
disponível, como sabe.
Mesmo através da pouca iluminação que havia dentro do veículo, Yvette pôde ver o sorriso charmoso que ele
lançou a Dora.
— Eu sei, lady Dora. Não se preocupe, tenho tudo sob controle.
— É mesmo? Espero sinceramente que tenha razão, milorde.
Havia uma insinuação de divertimento por trás das palavras. As duas se entreolharam por um breve instante.
Andrew cerrou os dentes, jurando para si mesmo que se vingaria daquelas provocações.
Vinte minutos depois, chegavam ao Crampton Pavilion, uma das mais belas e imponentes mansões da cidade.
O mordomo os recebeu e os anunciou do alto da escada que dava para o salão de festas.
No momento cm que Andrew adiantou-se para conduzir as duas até o salão, seu sapato grudou no elegante
capacho Moorish, colocado no alto da escada. Rapidamente, pisou no capacho com o outro pé, numa tentativa de
desgrudar o primeiro mas, para seu azar, ficou com os dois pés grudados.
Andrew ficou furioso. Yvette e Dora tentavam, em vão, conter o riso, enquanto o pobre mordomo não sabia o
que fazer para contornar a situação. Quando parecia evidente que Andrew não conseguiria se livrar do capacho,
Dora olhou para Yvette e arqueou uma sobrancelha:
— Devemos, minha querida?
— Creio que não haverá problemas — respondeu Yvette, com uma irônica inclinação de cabeça.
Sob o olhar atônito de lorde Bancroft, as duas se posicionaram uma de cada lado dele sobre o capacho. O
peso extra permitiu que ele conseguisse desgrudar os sapatos. Saiu andando em meio às risadas discretas de
alguns convidados, provocadas pelo barulho esquisito que os sapatos faziam a cada passo que ele dava. Sentiu a
irritação aumentar ainda mais, quando foi cercado por um grupo de mães que o viam como "o melhor candidato a
genro de toda Londres".
Yvette começou a circular pelo salão, observaftdo os casais rodopiando elegantemente, ao som de um
quarteto de cordas. O ambiente brilhava com os reflexos das jóias e dos candelabros de cristal. Elegantes vestidos
de cetim, veludo e renda criavam um bonito colorido, em contraste com a sobriedade dos trajes masculinos.
Depois de algum tempo, seus olhos observaram os casais com mais atenção, à procura de lorde Bancroft.
Ficou surpresa ao ver que ele não estava dançando. Dora apareceu de repente e parecendo adivinhar os
pensamentos da moça, disse:
— Duvido muito que ele se arrisque a dançar. A menos que troque os sapatos, caso contrário, o som que eles
farão com certeza será mais alto que o da orquestra.
Yvette riu:
— Que maldade nós fizemos.
— Tolice! Foi ele mesmo que provocou. — Dora afastou-se um pouco e observando-a melhor, disse: — Você
está adorável, querida! Esta cor é perfeita para o seu tom de pele. Estranho... — ela tornou-se pensativa — ...a cor
parece deixar seus cabelos mais castanhos que negros... — Deu de ombros. — Bem, não importa. Falei com o
sr. Armbruster e ele concordou em cuidar de você até o final da apresentação. Enquanto isso, vou circular por aí
— insinuou ela, agitando os longos cílios. — Faz tempo que não freqüento o mercado de casamentos para ver o
que está à venda. — Deu uma pequena pirueta. — Diga-me: estou apresentável?
— Está linda, lady Dora. Mas cuidado para não acabar ficando noiva antes do fim da noite!
A viúva abriu o leque diante do rosto e fitou Yvette por cima da borda.
— Idéia interessante...
Yvette riu, observando Dora se afastar com seu andar gracioso. Após um instante, ela própria afofou a saia,
ajeitou os cabelos e o pingente que adornava o decote do vestido.
O salão ficou em completo silêncio, quando lady Crampton subiu ao palco. Era como se todos estivessem
esperando aquele momento, o que, de fato, não deixava de ser verdade. De onde estava, Yvette viu Dora de
braço dado com o embaixador sueco, rindo com charme de algo que ele dissera. Após uma breve introdução,
lady Crampton levou a mão ao peito e disse:
— Mademoiselle Cordé dará início à apresentação desta noite.
Seguiu-se um murmúrio de aprovação. Yvette sorriu e fez sinal para que o sr. Armbruster começasse a tocar. A
introdução foi longa o suficiente para permitir que ela percorresse a vista pelo salão à procura de lorde Bancroft.
Contudo, não conseguiu vê-lo em lugar algum. Será que ele havia ficado tão zangado que decidira ir embora?
Não, não era provável. Andrew tinha alguns defeitos, mas dificilmente perdia o senso de humor. Todavia...
onde estaria ele?
Apesar da pouca concentração, Yvette conseguiu cantar com êxito a primeira canção. No momento em que
agradecia os aplausos, viu lorde Bancroft entrar no salão de braço dado com uma jovenzinha, que trajava um
delicado vestido branco. A moça o segurava pelo braço como se Andrew fosse propriedade sua. E ela estava
sem dama de companhia! "Oh, Andrew não passa mesmo de um aventureiro atrevido!", pensou ela.
Ao se dar conta de que o sr. Armbruster já havia repetido a introdução da outra música pela segunda vez,
Yvette sentiu o rosto corar. Arriscou um olhar para o pianista e o leve franzido que viu na testa dele foi
suficiente para manter sua concentração pelo restante da apresentação.
Ao final, os aplausos foram generosos e teriam feito Yvette ficar no palco por muito mais tempo, não fosse o
sinal que o sr. Armbruster fez, indicando que não haveria mais nenhuma canção. Quando os dois se retiraram do
palco e dirigiram-se a uma ante-sala, Yvette sentiu que alguém a observava. Virou-se e viu lorde Bancroft en-
costado contra o umbral da porta. Dessa vez estava sozinho.
—Meus cumprimentos, mademoiselle Yvette. Cada vez que a ouço cantar fico mais encantado com a beleza
de sua voz.
— Não pensei que apreciasse este tipo de entretenimento, milorde.
Andrew arqueou a sobrancelha:
—Tirou esta conclusão quando estava me observando e se perdeu no início da música?
Yvette enrubesceu.
— Por certo que não. Naquele momento eu estava apenas tentando... respirar um pouco.
— Não creio que haja alguma diferença.
—O senhor é muito convencido, lorde Bancroft. Agora, se me dá licença, vou voltar ao salão.
Ela fez menção de passar pela porta, mas Andrew a impediu de sair.
— Permite que eu a acompanhe? — indagou ele, oferecendo-lhe o braço.
Vendo que não tinha escolha, Yvette pousou a mão enluvada sobre o braço dele.
—Por favor, não se prenda por minha causa — ela disse, quando entraram no salão. — Se quiser, pode voltar a
desfrutar a companhia das mocinhas da festa. Já estou comprometida para a próxima dança. — Ela riu: — Quanto
ao senhor, creio que seria mais aconselhável sentar-se em algum lugar do que se arriscar a dançar.
Andrew fitou-a, indignado.
— Está querendo insinuar alguma coisa?
—Imagine! Todos sabem que o senhor é um exímio dançarino, fato com o qual concordo plenamente. Esta
noite, porém, o som de seus sapatos provavelmente superaria o da orquestra.
— Tem certeza? — Andrew provocou-a.
Sem que Yvette esperasse, ele enlaçou-a pela cintura e fez sinal para os músicos, que começaram a tocar uma
alegre valsa vienense.
— Mademoisellel Yvette sobressaltou-se:
— Não posso! Já prometi esta dança ao sr. Lindsey!
— O sr. Lindsey teve que partir um pouco mais cedo. Pediu-me para lhe transmitir suas desculpas.
Dizendo isso, ele começou a valsar, conduzindo-a com elegância pelo salão.
—O senhor é mesmo muito atrevido, milorde. O que fez ao sr. Lindsey?
—Nada. Apenas comentei que achava interessante o fato de calçarmos o mesmo número de sapatos...
Yvette olhou para o chão no mesmo instante.
— Céus! Roubou os sapatos dele!
— "Negociei", é o termo certo. E ele ficou até muito satisfeito em rre ceder os sapatos, após eu o haver
lembrado de algumas coisinhas.
— Então o senhor o ameaçou?
— De certa forma, fui obrigado. Mas ele foi esperto: me entregou logo cs sapatos, sem muita discussão.
Andrew se aproximou um pouco mais no momento de realizar uma pirueta mais elaborada.
— Porém, o sacrifício valeu a pena... — comentou ele, com um sorris».
— O senhor o subornou?
— Bem... digamos que sim. — Ele estreitou-a mais. — Mas não me olle como se eu fosse um chantagista sem
princípios. O dinheiro que díi a ele irá sustentá-lo por uns seis meses. Não entendo como lorde Crampton pôde
convidar um pobretão daqueles para a festa.
Andrew se deu conta tarde demais de que havia dito uma besteira. Rezou para que ela não o julgasse mal.
Yvette, porém, nem ouviu direitc o comentário. Tinha a atenção voltada para o lado oposto do salão, onde um
criado uniformizado tentava desajeitadamente equilibrar i bandeja em uma mão.
Nã« era a primeira vez que Andrew notava o olhar atento com que Y/ette observava um estranho. Sentiu-se
intrigado. O que chamava i atenção dela, afinal? Seria a largura dos ombros? O olhar? Ou seria alguma outra
coisa? Inalou a suave essência do perfume que ela estiva usando: uma mistura de lavanda e rosas. O desejo que o
invadiu o fez convencer-se de que precisava saber tudo sobre ela.
Yvette tinha certeza de que já tinha visto aquele homem antes. Mas onde? Teria sido no baile dos Whyteside?
Não. Havia sido antes disso. Ela o surpreendera observando-a com atenção e o homem desviara a vista
rapidamente. De repente, sentiu a mão de Andrew apertai a sua. Surpresa, ergueu os olhos para ele.
— Assim está melhor — disse ele, sorrindo. — Segundo as boas maneiras, sua atenção deve estar voltada
para mim, enquanto dançamos.
— Minhas desculpas, lorde Bancroft, mas não se deve esperar que uma mera criada saiba regras de boas
maneiras. Ou será que já se esqueceu que até bem pouco tempo eu era apenas uma criada "pobretona"?
— Então você ouviu meu infeliz comentário, afinal Perdoe-me pela indelicadeza, Yvette. Em nenhum
momento quis compará-la ao infeliz que me vendeu os sapatos. Os rumores que circulam por aí a respeito dele
são dos mais escabrosos.
— Por acaso, não conhece os que circulam a meu respeito? Que sou filha de ciganos e filha ilegítima de um
marinheiro?
Andrew riu.
—São apenas mexericos. Mulheres bonitas sempre acabam sendo alvo de comentários. O que importa para
mim é o que vejo com meus próprios olhos. E o que vejo, minha querida, são a beleza e austeridade de uma
rainha unidas à voz de um anjo.
Yvette fingiu ignorar o elogio.
—Não quero ser alvo de mais mexericos, milorde. Peço-lhe que solte minha mão. A música já terminou.
A expressão de espanto que surgiu no rosto de Andrew a fez sorrir.
— O fato de eu haver dançado apenas uma música, devido às condições dos meus sapatos, fez com que eu
quisesse prolongar nossa dança por mais tempo. — Ele soltou-a e fez uma ligeira mesura. — Agradeço a
encantadora companhia, senhorita. Permite que eu a acompanhe até sua dama de companhia?
— Sim, obrigada.
Os dois encontraram Dora conversando com o conde de Vassey, um jovem atraente e muito simpático. Os
quatro passavam a conversar sobre assuntos triviais. A noite teria sido perfeita, não fosse a apreensão que Yvette
estava sentindo. Olhava constantemente por cima do ombro, à procura do estranho que parecia estar vigiando-a
mas, pelo visto, ele havia sumido após a valsa.
No caminho de volta, enquanto a carruagem percorria as ruas escuras, Andrew inclinou-se para a frente,
apoiando os cotovelos nas pernas.
—Senhoras, gostaria de lhes agradecer pela honra de haverem permitido que eu as acompanhasse ao sarau.
Dora ajeitou o xale, agasalhando-se melhor.
—Espero que compareça ao nosso sarau na quinta-feira, lorde Bancroft.
—Eu não o perderia por nada desse mundo. Isto é, se tiverem certeza de que a casa ficará pronta a tempo. —
Ele provocou.
Lembrando-se dos cômodos vazios, Yvette retrucou:
— Asseguro-lhe que haverá lugar para todos, lorde Bancroft.
— Eu me referi ao estado do chão, mademoiselle. Seria lamentável se a cera não secasse a tempo.
— Não se preocupe. Sei muito bem como administrar os afazeres de minha própria casa.
— Claro. Ainda assim, prefiro ficar de olho em meu investimento. Está lembrada de que o segundo pagamento
deverá ocorrer dentro de uma semana?
Dora tocou no braço dele.
—Como poderíamos esquecer? Não se preocupe, o dinheiro estará
em suas mãos no dia certo.
Foi impossível não perceber a expressão de desapontamento no rosto dele. Yvette lançou um olhar
significativo para Dora, que dizia mais do que qualquer palavra.
Quando chegaram em Waverly Lodge, Andrew deixou implícito que aceitaria um convite para entrar, mas
Yvette o dispensou, com a desculpa de que ela e Dora estavam cansadas e desejavam se recolher logo.
Mais tarde, enquanto as duas conversavam na biblioteca, Yvette confrontou a viúva.
—Lady Dora, qual foi sua intenção ao dizer a lorde Bancroft que o dinheiro estaria nas mãos dele no dia
certo? Se eu usar o dinheiro que me resta não sobrará nada e me recuso a aceitar seu dinheiro.
— Tolice! Não tenho intenção de lhe dar o dinheiro, porém, se realmente precisar, sabe que pode contar
comigo. — Dora riu e espalhou o conteúdo da bolsa sobre a mesa. — Voilà! Por acaso já viu algo tão
lindamente vulgar?
Yvette arregalou os olhos:
— Esmeraldas?! São verdadeiras? — indagou a moça, levantando o pesado bracelete de ouro adornado com três
esmeraldas; as maiores que ela já tinha visto.
— Verdadeiras? Espero que sim. O bracelete foi uma adorável homenagem de lorde e lady Crampton à sua
bela voz.
— Quanta generosidade da parte deles.
— Sim, apesar de sabermos que esta verdadeira "peça de museu" é exótica demais para ser usada.
— E, tem razão. É uma jóia muito esquisita. Quanto acha que conseguiremos por ela?
— Bem, se a vendermos como está não conseguiremos muito. Porém, conheço um joalheiro que pode lapidar
as esmeraldas e transformar um bracelete em três colares que nos renderão muito mais. Amanhã, farei com que
ele nos adiante o suficiente para pagarmos lorde Bancroft.
—E os móveis? — Yvette perguntou. — É tarde demais para dizer aos convidados que o sarau foi cancelado.
— Deixe isto comigo. Se não tivermos cadeiras, os convidados poderão dançar, em vez de sentarem. Talvez
possamos contratar um mestre de cerimônias para ensinar a eles os passos da reel.
Yvette ia protestar, mas percebeu que Dora não estava falando sério.
—Você é mesmo impossível— ralhou ela, rindo. — Não temos dinheiro para contratar músicos e lorde
Bancroft mandou levar o piano junto com os móveis.
A viúva deu de ombros.
— Amanhã haverá tempo suficiente para pensarmos nisso.
Chamou os gatos, que apareceram de repente, saindo detrás dos móveis e das cortinas.
— Vamos, meninos. Está na hora da sonequinha. — Antes de sair, voltou-se para Yvette: — Não se preocupe.
Amanhã irei a Bond Street e verei o que podem oferecer pela jóia.
Yvette estava cansada demais para responder. Apenas sorriu e seguiu Dora escada acima, rumo ao quarto.

CAPITULO VII

Yverte acordou de repente, durante a madrugada. Não soube dizer se estava sonhando ou ouvindo um barulho
real, mas teve a impressão de ouvir cascos de cavalo indo em direção ao portão dos empregados. Esperou que a
camareira ou algum outro criado viesse chamá-la, caso estivesse acontecendo algo errado, mas como ninguém
apareceu, voltou a adormecer.
Logo que desceu para o desjejum, pela manhã, ficou sabendo de um novo problema. Jarvis e a esposa
dirigiram-se a ela com relutância.
— Com licença, sita. Cordé — disse Jarvis, ajustando o casaco, nervoso. — Precisamos lhe falar.
Yvette pousou a xícara no pires com cuidado.
— Sim, Jarvis. O que é?
— Bem, senhorita, eu e minha esposa estamos de partida.
Yvette olhou-o, atônita:
—Vocês vão embora? Não acredito! Mas qual é o problema? Alguém lhes ofereceu um emprego melhor?
—Não, senhorita. A verdade é que conseguimos comprar uma casinha que almejávamos há muito tempo, em
Yorkshire.
—Foi uma compra meio repentina, não foi? Lady Dora sabe? Afinal, era ela quem os pagava antes de virem
para cá.
— E, foi repentino mesmo. Mas é que eu e minha mulher estamos ficando velhos... Pensamos bem e não
pudemos recusar a oferta.
Yvette estreitou o olhar.
—Não puderam recusar a oferta? Então alguém pagou a casa para vocês?
—É... Pagou, senhorita, mas prometi não falar nada. Partiremos ainda hoje.
—Tão rápido? — Yvette espantou-se. — Não vão esperar nem um dia pelo menos?
—Aceitamos a proposta sob esta condição. O proprietário não quer que a casa fique vazia.
—Entendo. Espero que consigam explicar tudo isso a lady Dora.
A viúva entrou na sala de jantar, espalhando uma nuvem de essência de lavanda em torno de si.
— Explicar o quê? Yvette ficou de pé.
— Jarvis e Clara vão morar em uma casa em Yorkshire.
— Não acredito! Diga que não é verdade, Jarvis. Não podem nos deixar na hora em que mais estamos
precisando de vocês! O sarau será amanhã à noite!
— Sinto muito, milady. Partiremos hoje à tarde.
— E posso saber quem lhes ofereceu uma proposta melhor?
Yvette respondeu por eles:
— Jarvis não quis me dizer, mas aposto que lorde Bancroft está por trás disso.
O mordomo empalideceu:
— Não, senhorita — disse, sem muita convicção. — Lorde Bancroft não tem nada a ver com isso.
— Está certo. Então diga-me o nome do cavalheiro que veio até aqui, pouco antes do amanhecer, e entrou pelo
portão dos empregados.
— Foi um mensageiro, srta. Cordé — respondeu Clara, com sua costumeira calma. — Foi ele quem nos
trouxe a notícia e isso é tudo que sabemos.
Dora ia questioná-los, mas concluiu que não adiantaria insistir. Dispensou-os com um gesto de mão.
— Há alguma coisa estranha nesta história — disse ela, sentando à mesa e servindo-se de uma xícara de chá.
Yvette também se sentou.
— Tenho certeza que foi lorde Bancroft. Certeza absoluta.
— Claro — Dora concordou. — Quem mais poderia jogar tão baixo? — Ela riu: — A menos, é claro, que
tenha sido a mãe dele. Alicia Waverly está louca para tirar você do caminho. Percebeu como ela a estava
olhando como um abutre, ontem à noite, quando você estava cantando?
— Não, eu não a vi. Mas por que ela iria querer me prejudicar?
— Não seja ingênua, menina! Está claro que ela teme um namoro entre você e Andrew. — Ela inclinou-se para
a frente e tocou a mão da amiga. — Não se sinta ofendida, querida, mas lady Bancroft é o tipo de mulher que
preza a linhagem da família. Para ela, será a morte se Andrew resolver se casar com uma moça que ela não
aprove.
— Casamento não é algo que passa pela cabeça dele; muito menos pela minha, milady.
— Mas deveria! Andrew é um ótimo partido. E se não tiver um herdeiro para o título, o nome da família estará
acabado. Acredite-me: lorde Bancroft estará casado dentro de pouco tempo, quer queira ou não.
— Não acredito que ele se deixe levar pela vontade da mãe.
— Oh, querida, quando o que está em jogo é a herança de um título, tudo é válido. Ele fará todo o possível
para conservar o nome da família. Portanto, siga meu conselho e defenda seus interesses com empenho.
— Está querendo dizer que devo tentar conquistá-lo?
—E por que não? Se não arrumar um bom pretendente pode acabar solteirona, ou pior: sem ninguém para
aquecer sua cama.
— Minha cama já é quente o suficiente, obrigada.
—Hmmph! — fungou Dora. — Só ela não quer enxergar, meu Deus!
— Sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesma e de meus sentimentos, milady. Desde o dia em que...
— Ela interrompeu-se, de repente.
Dora encarou-a, curiosa.
— O que ia dizer?
— Desde... o dia em que saí da França — completou ela.
Dora fez uma expressão de quem não acreditara muito na resposta.
— Algum dia, Yvette, gostaria muito que me contasse sobre seu passado.
A moça ficou de pé num impulso.
— Outro dia, talvez. No momento, o mais importante é pensarmos em como arranjaremos outro mordomo e
outra cozinheira a tempo de nos ajudarem no sarau.
— Impossível — respondeu Dora. — Pode ser que demore dias, talvez semanas, para arranjarmos outros.
— Sendo assim, teremos que fazer os preparativos sozinhas. Mas primeiro preciso fazer uma coisinha...
Yvette virou-se de súbito e encaminhou-se para a cozinha. Vinte minutos depois, voltou segurando um martelo
e uma espátula. Sem dizer nada, foi direto ao portão principal.
Mais tarde, ainda pela manhã, Andrew estacionou a carruagem, que ele próprio estava conduzindo, em frente
à entrada de Waverly Lodge. Assobiava uma canção num tom alegre, quando parou abruptamente, ao ver Yvette
utilizando um martelo próximo ao portão, com grande energia.
Desceu da carruagem no mesmo instante e correu até ela.
— Pare agora mesmo! O que está fazendo? Ficou maluca?
Ela voltou-se para ele com um sorriso irônico.
— Bom dia, lorde Bancroft. Se veio aqui para receber o segundo pagamento, acho melhor voltar mais tarde.
Andrew adiantou-se e tomou o martelo da mão dela.
— Por Deus! Agora é tarde; já conseguiu. Não é uma dama, srta, Cordé! — bradou ele, irritado.
— Sacré bleu! — exclamou ela, entregando a placa com o nome da família. — Mil desculpas, mijorde, mas
foi difícil removê-la. Acabei quebrando um pedacinho. .
Andrew olhou para a placa.
— Um pedacinho? A senhorita quase a quebrou no meio!
— É, acho que tem razão. A espátula escapou da minha mão. Pensei em deixar a tarefa para o senhor, mas
achei que não iria aceitar.
— Não iria mesmo!
Andrew olhava da placa para o lugar onde ela havia estado no muro. Yvette não tinha idéia do que aquela
placa significava tanto para ele. Por um breve momento, foi invadida por um sentimento de culpa, mas não
durou muito. Furioso, o visconde jogou o que restava da placa no chão e voltou para a carruagem.
— Vai se arrepender de ter feito isso, mademoiselle! Se o pagamento não estiver em minhas mãos até a tarde,
mandarei que a despejem o quanto antes!
Ele chicoteou o cavalo e fez a carruagem partir, deixando uma nuvem de poeira atrás de si.
Yvette reteve o fôlego. Nunca vira Andrew tão nervoso. Nem tão atraente. Compreendeu aquele olhar de
fúria, afinal, ela era francesa. A intuição dizia-lhe que toda aquela irritação não era dirigida apenas ao que ela
havia feito, mas também ao fato de ele não estar obtendo êxito em outros detalhes. Se era realmente o que o
estava perturbando, então ficaria irritado por um longo tempo, porque ela não estava nem um pouco disposta a
sucumbir aos caprichos dele.
Talvez agora ele a deixasse em paz de uma vez. Apesar de dizer isso para si mesma, Yvette sabia que no fundo
não era o que desejava. Andrew partira há menos de um minuto e ela já estava sentindo falta dele. Quando
estava por perto havia uma atmosfera especial no ar. De qualquer maneira, teria oportunidade de revê-lo quando
ele voltasse à tarde, para receber o dinheiro.

Para desapontamento de Yvette, o sr. Umbarton, advogado de Andrew, foi receber o dinheiro. Tratava-se de
um homem baixo, ligeiramente obeso, com um bigode pontudo que se mexia quando ele falava. O terno gasto
comprovava o boato de que ele era sovina ao extremo. E o fato de haver contado o dinheiro três vezes, antes de
entregar o recibo, serviu para Yvette confirmar o fato.
— Por que lorde Bancroft não veio receber o pagamento? — perguntou ela.
— O visconde estava um pouco mal-humorado, mademoiselle. Talvez devido a uma indigestão ou algo do
gênero.
— Talvez. Aceita uma xícara de chá, sr. Umbarton? Ou um cálice de licor?
Ele ia aceitar, mas ao ver o olhar repreensivo de Dora, voltou atrás.
— Não, obrigado. Ainda tenho vários clientes para visitar e estou com um pouco de pressa.
Dora apoiou as mãos na mesa e resolveu intervir:
— Sr. Umbarton, seja sincero: foi lorde Bancroft quem ofereceu outra proposta aos meus criados?
O homem ficou aturdido por um instante, mas conseguiu responder com voz indiferente:
— Prefiro não confirmar nem desmentir sua pergunta, milady.
— Eu sabia! — Dora exclamou, irritada. — Por gentileza, se já terminou o que tinha a fazer, creio que está na
hora de se retirar
— completou, seca.
O advogado despediu-se no mesmo instante e saiu. Yvette guardou o recibo em um envelope, dizendo:
— Eu tinha quase certeza que Andrew havia subornado Jarvis e a esposa, mas ainda assim negava-me a
acreditar. Agora, porém, parece não haver mais dúvidas.
— Lorde Bancroft fará qualquer coisa para conseguir seu intento — comentou Dora. — Ele sabe que
pretendemos realizar um sarau na quinta-feira. Pelo visto, quer nos ver rastejar até ele e está usando uma
estratégia muito baixa para isso.
— Então não podemos permitir que ele vença!
— Bem que eu gostaria de derrotá-lo, Yvette, mas será quase impossível, sem a ajuda de uma cozinheira e de
um mordomo. O mordomo seria fácil arrumar, mas a cozinheira...
— Pensei em servirmos apenas vinho e alguns petiscos franceses — sugeriu Yvette.
— Petiscos franceses? Você deve estar brincando! Quem iria fazê-los?
— Eu sei cozinhar, lady Dora. Nosso chefe de cozinha ensinou... Quero dizer, no lugar onde tíabalhei, quando
morava em Paris, aprendi a cozinhar.
Dora fitou-a com olhar curioso.
— E mesmo? Está bem, então é isso que faremos. Vou ver se consigo algumas cadeiras para a sala de estar.
Enquanto isso, comece a providenciar as receitas.
— Mas não será de bom-tom sair sozinha, lady Dora.
— Tolice! Apesar de ainda ser jovem, não tenho mais idade para andar por aí escoltada por uma dama de
companhia. E por falar nisso, já está na hora de parar de me chamar de lady Dora. Faz com que eu me sinta
muito velha. Afinal, a diferença de idade entre nós deve ser de uns cinco ou seis anos apenas.
Yvette conteve o riso. "Cinco ou seis anos, pois sim! Dora deve ser uns dez anos mais velha que eu", pensou
ela.
Já fazia umas três horas que Dora havia saído, quando Yvette começou a ficar preocupada. Assim que
terminou de preparar uma porção de massa, correu até o andar de cima para falar com a camareira da amiga.
Maggie, contudo, também não tinha notícia alguma de Dora.
Algum tempo depois, enquanto Yvette preparava outra porção de massa, Maggie apareceu na cozinha.
—Com licença, srta. Cordé. O novo mordomo e a esposa estão esperando no corredor de entrada. Não soube
para onde levá-los, já que não há cadeiras em cômodo algum, exceto na biblioteca.
— Novo mordomo? Foi isso mesmo que ele disse, Maggie?
— Sim, e a nova cozinheira veio também.
— Hmm, Dora deve tê-los contratado na cidade e mandado que viessem o quanto antes. Não pensei que ela
fosse conseguir outros empregados tão rápido. Muito bem. Mande-os para a biblioteca, Maggie. Irei vê-los assim
que terminar de preparar essa massa.
Quinze minutos depois, quando Yvette entrou na biblioteca, os novos empregados ficaram de pé.
— Boa tarde. — Ela os cumprimentou. — Sou mademoiselle Cordé. E vocês são?...
— Douglas McMasters, mademoiselle. E esta é minha esposa, Mary. E um prazer vir trabalhar para a
senhoríta.
—Muito bem. Já sabem as condições e as consideram satisfatórias?
— Sim, senhoríta.
Yvette observou com discrição a postura dele,_ os cabelos bem penteados, as unhas muito bem aparadas.
Douglas era o protótipo do que um mordomo deveria ser. Mary era uma mulher de feições delicadas, com olhos
azuis que transmitiam sinceridade. Yvette respirou fundo e disse:
—Receberemos alguns convidados para um sarau, amanhã à noite. Poderiam começar a trabalhar amanhã
bem cedo?
Mary McMasters levou a mão ao queixo e sorriu.
— Gostaríamos de começar hoje mesmo, senhoríta. Já trouxemos nossa bagagem conosco.
—Hoje? Ora, mas isso é maravilhoso! Acompanhem-me, por gentileza, vou lhes mostrar o quarto onde
ficarão.
Só depois de deixá-los no quarto para que esvaziassem as malas, foi que Yvette se deu conta de que não havia
perguntado nada sobre °s antecedentes dos dois, mas com certeza Dora já havia feito isso ao contratá-los. De
fato, era bom demais para ser verdade, que eles houvessem aparecido bem a tempo.
Quando Dora finalmente chegou em casa, McMasters a recebeu à porta, trajando o novo uniforme. Enquanto
descia as escadas para se encontrar com ela, Yvette ouviu Dora instruir o mordomo para que pegasse os
embrulhos que estavam na carruagem. Estava toda sorridente quando viu a moça se aproximar.
— Sua espertinha! — exclamou Dora. — No fundo, foi você quem mais esteve ocupada, não foi?
— Ahn? Está se referindo aos petiscos, suponho. Bem, preparei uma quantidade suficiente para um exército.
As duas dirigiram-se à biblioteca. Chegando lá, Dora foi direto se sentar. Yvette lhe serviu um cálice de licor.
— Dora, você merece um prêmio pelo que fez. Os McMasters são realmente muito eficientes.
A viúva esticou as pernas diante do corpo.
— Sim, parece que são mesmo — concordou ela. — Onde conseguiu encontrá-los?
— Eu? Ora, pensei que você os havia contratado!
— Pelo contrário. Fui a duas agências e não consegui absolutamente nada.
— Mas não é possível! Então de onde vieram?
— Devem ter sido enviados por algum dos amigos com os quais comentei sobre nossa situação. Mas não
importa, se forem eficientes e de confiança, estaremos salvas, pelo menos por enquanto. Pelo que vi do
mordomo, ele já conta com minha inteira aprovação: tem um belo par de pernas.
Yvette riu:
— A esposa dele deve achar o mesmo. — Ela tornou-se séria:
— Conseguiu encontrar as cadeiras para que nossos convidados possam sentar, amanhã à noite?
Dora ficou de pé num impulso.
— Mais ou menos. Tive uma idéia que funcionará bem. Falarei sobre isso depois; primeiro vou descansar um
pouco no quarto. Estou me sentindo como se tivesse percorrido Londres de ponta a ponta! Não se preocupe,
Yvette, nossa festa será um sucesso!
Antes que a moça pudesse fazer algum comentário, Dora já havia saído. Pouco depois, Yvette também deixou a
biblioteca. McMasters a encontrou no corredor, do lado de fora, e perguntou a ela o que deveria fazer com todos
os embrulhos que havia tirado da carruagerr.
— O que há nos embrulhos? — Yvette indagou.
— Não tenho a mínima idéia, senhorita, mas parece se tratar cfc roupas ou coisa do gênero.
Curiosa, Yvette pegou uma caixa e levantou a tampa, onde s; via o emblema da butique gravado com letras
douradas. A moçi soltou um gritinho ao ver uma enorme quantidade de sedas coloridas e outros tecidos mais
exóticos, distribuídos pelas outras caixas.
— Mas o que é isso? — perguntou ela, confusa.
— E há mais três grandes pacotes, senhorita. Pelo que deduzi são tapetes. Tapetes turcos.
— Sacré bleu! — sussurrou Yvette, encostando-se contra ura pilar.
O que Dora estaria tramando? "Dora Middlesworth, agora você passou dos limites!", pensou ela.

CAPÍTULO VIII

Yvette levou menos de dez segundos para galgar as escadas e bater à porta do quarto da amiga.
—Dora, preciso falar com você.
— Agora não, querida. Preciso descansar um pouco; meus pés estão me matando. Por que não vai descansar
um pouco também? Mandarei Maggie lhe servir chá de camomila.
Ela percebeu que não adiantaria insistir.
Mal havia entrado no quarto quando Maggie apareceu, carregando uma bandeja com o chá. Uma xícara foi
suficiente para fazê-la relaxar. Adormeceu assim quer encostou a cabeça no travesseiro.
Cerca de três horas depois ela despertou, surpresa por haver dormido tanto. Foi ao quarto de Dora e encontrou
a camareira arrumando a cama.
—Onde está Dora, Maggie? Não me diga que ela saiu novamente.
—Não sei, senhorita. Mas, há uma hora, vi o novo mordomo e dois carregadores levando algumas caixas
para a sala de visitas.
—Obrigada, Maggie.
Algo estava acontecendo, algo que Dora estava relutando em lhe dizer. Decidida, Yvette encaminhou-se para a
sala de visitas. Podia esperar tudo, menos o que viu quando abriu a porta.
A sala ampla, que havia estado vazia até uma hora atrás, agora parecia um cenário das Mil e uma noites.
Vários metros de seda presos aos lustres esticavam-se ao longo do teto. A leve brisa que entrava pelas janelas,
fazia a seda ondular, lembrando um céu repleto de nuvens coloridas. O movimento, por sua vez, fazia tilintar
vários sininhos escondidos estrategicamente em meio ao tecido. O som era tão suave que por um momento
Yvette pensou haver sido produto de sua imaginação.
Dezenas de tapetes turcos espalhavam-se pelo chão, em meio a enormes almofadões. Completando o cenário,
algumas mesinhas laqueadas haviam sido dispostas próximas dos almofadões e sobre elas, globos
multicoloridos, iluminados por velas colocadas em seu interior.
—Mon Dieu!
—É você, Yvette? — A voz de Dora soou, vinda de trás de algumas plantas. — Não fique aí parada;
aproxime-se mais. Não está encantador?
Yvette respirou fundo.
—Encantador? Escandaloso é a palavra mais apropriada.
— Exatamente. Era isso que eu tinha me mente. Lembra um harém, não acha? Apenas um pouco mais chie,
eu diria.
— Dora, detesto ser estraga-prazeres, mas não acha esta decoração um pouco bizarra?
— "Bizarra" é uma palavra ótima para defini-la. Garanto-lhe que toda Londres estará comentando nosso sarau,
depois da quinta-feira.
—O problema é: o que estarão falando? Não sei se é certo nos exponnos tanto apenas para nos promovermos
socialmente.
—Confie em mim, querida. Iremos abalar as estruturas da alta sociedade londrina. E com muito bom-gosto,
devo acrescentar.
—Será que todos interpretarão nossa intenção de modo positivo?
— Deus meu! Por acaso pensa que iremos promover algum bacanal?
—Confesso que o pensamento me veio à mente.
— Se não fosse minha amiga, eu me sentiria ofendida com sua insinuação, Yvette. Pelo que já conhece de
mim, deveria ter notado que, apesar de excêntrica, sei muito bem os limites daquilo que faço. Ofereceremos um
sarau aos membros da alta sociedade tão bem quanto qualquer intelectual de renome.
— Não foi minha intenção ofendê-la, Dora. Sei que não faria nada que comprometesse deliberadamente nossa
reputação. Só estou imaginando se não foi um pouco longe demais.
— Os convidados irão adorar! E se tivermos a sorte de que no meio deles esteja algum pretendente charmoso
e rico, então nosso investimento terá realmente valido a pena.
— Onde conseguiu tudo... ahn, como posso dizer...
— "Tesouro", você quer dizer. Veio direto do Raza Dey, um navio turco pertencente ao irmão do meu terceiro
marido. Fui visitá-lo e quando vi os almofadões concluí que minhas preces haviam sido atendidas. E isso —
começou ela, pegando uma pesada bandeja —, dará o toque final.
— Velas?
— Mais que simples velas, querida. Espere um pouco.
Dora colocou a bandeja sobre uma das mesinhas e acendeu um dos pavios. Logo uma agradável fragrância de
cravo misturada com perfume de flores se propagou pelo ambiente.
— Incenso!
— Isto mesmo. Dará o toque final à decoração.
— Algo me diz que deveríamos adiar a festa...
— Tolice! Você sabe que isso é impossível. Além do mais, será o grande evento da temporada!
— Isto se alguém decidir ficar...
— Não precisa se preocupar. Encontrei Peter Treadway na casa de chá, quando parei para descansar durante
as compras e ele prometeu que viria e traria sua flauta.
— É mesmo? Oh, estou impressionada.
— Garanto que ele também trará os amigos. Espero que haja petiscos suficientes.
— Não haverá, se continuar convidando mais gente. Dora lançou-lhe um olhar curioso.
— Lorde Bancroft esteve por aqui?
— Não. Do modo como ficou furioso por eu haver retirado a placa do portão, duvido muito que ele vá
aparecer.
— Pois aposto que ele não perderá a festa por nada deste mundo. A não ser que a mãe dele resolva interferir.
Todavia, não creio que ele a informe de todos os seus passos. Acredite em mim, Yvette: ele estará aqui.
— Veremos!
Na noite do dia seguinte, Yvette ouviu a primeira carruagem parar em frente à casa, quinze minutos antes do
horário marcado para o sarau. Maggie abriu ligeiramente a porta do quarto de Yvette.
— Milady pediu que eu viesse ajudá-la a arrumar os cabelos, senhorita.
— Obrigada, Maggie. Não precisa se incomodar, estou acostumada a me arrumar sozinha. Pode avisar lady
Dora que descerei em poucos minutos.
Enquanto descia as escadas, Yvette viu que Dora já estava recebendo os convidados. Com o vestido alaranjado
que estava usando, mais parecia uma dançarina árabe. Yvette quase soltou uma gargalhada quando viu que
Dora havia prendido a bainha do vestido nos tornozelos e sininhos nos sapatos dourados de cetim.
As horas que se seguiram foram divididas entre apuros e euforias. Pela quantidade de convidados, quase toda a
cidade ficara sabendo sobre a festa. Após o espanto inicial com que todos adentravam o ambiente, logo entravam
no espírito da festa e se descontraíam. A certa altura, Dora aproximou-se de Yvette, colocando um petisco na boca
— Cuidado, querida — avisou ela. — Eu disse a todos que os petiscos foram fornecidos por uma confeitaria
francesa. Mais chic do que dizer que foram feitos em nossa cozinha, não acha?
Yvette riu:
—Eu deveria ter imaginado que você faria isso. É uma pena que eu já tenha dito para algumas pessoas que
fui eu mesma quem os preparou.
—Que fiasco! Você é honesta demais para o meu gosto. Viu lorde Bancroft por aí?
— Não. Está vendo? Eu estava certa. Duvido que ele volte a esta casa, enquanto estivermos aqui.
— Tolice! Ele deve estar atrasado, só isso. Por mais que estivesse otimista, não pensei que viesse tanta gente.
Andei espalhando que receberemos convidados todas as quinta-feiras, para reuniões informais.
—Todas as quintas?!
No momento em que ia censurar a loucura da amiga, um dos convidados a interrompeu:
—Mademoiselle Cordé, cante algo para nós.
O pedido foi seguido por vários outros, mas Yvette viu-se obrigada a recusar.
—Seria um prazer cantar para vocês, mas, como podem ver, estou sem piano.
Um murmúrio de desapontamento ecoou pela sala.
— Contudo, talvez eu possa convencer o sr. Treadway a tocar mais algumas canções com sua flauta.
Ele concordou com um sorriso e logo se pôs a tocar para os convidados.
— Que pena. A senhorita desapontou a todos. — Uma profunda voz masculina soou atrás dela.
— Lamento, mas é que... Oh, é o senhor, lorde Bancroft.
— Pensou que eu não viria à sua festa?
— Tal pensamento nem me passou pela cabeça.
Andrew deixou claro, através do olhar, que não acreditara no que ela dissera.
— Venha comigo
Apesar de não querer acompanhá-lo, Yvette percebeu que não teria muita escolha.
— Onde está me levando?
— Para o sótão.
—Não acredito que tenha coragem de ser indelicado a este ponto!
Andrew ignorou o protesto. Só voltou a falar quando alcançaram a escadinha que levava ao sótão da casa.
—Cuidado com o vestido — avisou. — Há muita poeira por aqui.
— É, estou notando. Por que me trouxe aqui, afinal? Por acaso está pensando em levar mais alguma relíquia
que tenha sido esquecida na primeira "limpeza" que fez na casa?
Ele sorriu, irônico:
— Espere e verá.
Dizendo isso, abriu uma portinhola.e fez sinal para que Yvette entrasse. Próximo a uma pilha de livros, ele
encontrou um alaúde. Um bonito instrumento em forma de pêra, com a parte de trás abobadada. Andrew ajustou
as cravelhas e dedilhou as cordas.
— É um belo instrumento, milorde, mas não entendo qual o significado disso.
— Sabe tocar?
— Não. O único instrumento com o qual posso contar é minha própria voz.
— O que já é mais que suficiente. Acha que conseguiria cantar, sendo acompanhada pelo alaúde?
— Creio que sim. Dependendo, é claro, do talento de quem o tocasse.
— Fico feliz em ouvi-la dizer isso. Por gentileza, mademoiselle.
— Quer dizer que me trouxe aqui só para isso? Andrew riu:
— Achou que eu tivesse alguma outra coisa em mente?
— Oh, mas que infame!
Andrew a deteve no meio do caminho de volta à sala. Segurando-a pelo braço, declarou:
—Penso constantemente em você, Yvette, desde o primeiro dia em que a vi cantar. Naquele instante,
convenci-me de que havia sido enfeitiçado por sua voz de sereia. Esta noite, quando todos tiverem ido embora,
quero lhe falar sobre nós.
Ela ergueu o rosto, fitando-o nos olhos.
— O senhor já sabe minha opinião a respeito deste assunto. Peço-lhe que não volte a mencioná-lo. Duvido que
possamos vir a ser mais que simples amigos, lorde Bancroft, ou mesmo deixar de sermos inimigos.
— Não me considero seu inimigo. Mas uma coisa eu lhe garanto: em breve nos tornaremos mais, muito mais
que amigos.
A intensidade daquela afirmação fez o coração de Yvette disparar. Sem que ela esperasse, ele a beijou.
Quando, por fim, ela abriu os olhos, viu um brilho de triunfo nos olhos azuis.
—Está vendo, mademoiselle! Não nascemos para nos tornarmos apenas bons amigos.
Ela segurou a saia e encarou-o com fúria.
— O senhor é desprezível, lorde Bancroft! Um galanteador convencido e atrevido! Não é nem de longe o
cavalheiro que finge ser!
— Isso pouco importa. O importante é que sempre consigo aquilo que quero e, no momento, o que mais quero
é você, Yvette.
— "No momento"... Perdoe-me por não me sentir lisonjeada, mi-lorde. Não pretendo ser alvo dos afetos de um
homem apenas "por um momento".
As palavras foram ditas num tom seco, mas Andrew sabia que ela não estava tão furiosa quanto estava
querendo aparentar. No fundo, Yvette apreciava aquelas discussões tanto quanto ele. Tempo, pensou ele. Tempo
era a palavra-chave para conseguir tê-la para si.
Quando Yvette se afastou, lorde Whitlow, segurando um copo de vinho em uma mão e um prato de petiscos
na outra, saudou o visconde com um sorriso afetado.
— Oh, como vai, Andrew? Estava no sótão, trocando uns beijinhos com nossa bela dama de cabelos negros?
Talvez eu devesse ter apóstado em você.
— Veja lá como fala, Percy. Guarde seus comentários para o White's. Agi como um grande tolo ao concordar
com aquela aposta.
— Está com medo de perder seu cavalo preferido? Não se desespere: ainda tem quase um mês para tentar
conquistar os afetos da linda dama. Pelo visto, Greebers não terá muitas chances de derrotá-lo. Aquele faetonte já
é praticamente seu.
Andrew empalideceu. A aposta que começara como uma brincadeira acabara tornando-se mais séria que o
desejado. Perder seu cavalo preferido ou ganhar o faetonte de Greebers já não significava nada, agora que
conhecia Yvette. Ela o fascinara mais do que qualquer outra mulher. Queria tê-la para si, só isso.
Antes porém, precisava se acostumar ao temperamento dela. Se Yvette ficasse sabendo sobre a aposta, faria
qualquer coisa para se vingar dele. Num ímpeto, seguiu adiante, sem se despedir de Whi-tlow.
Tentando esquecer a aposta fatídica, sentou-se em uma almofada e dedilhou as cordas do alaúde.Logo se
formou um círculo de pessoas em torno dele.
— Toque alguma coisa, lorde Bancroft — pediu uma mulher.
Andrew dedilhou as cordas mais uma vez e disse:
— Mademoiselle Cordé aceitaria me acompanhar?
Ele sorriu, sabendo de antemão que ela não recusaria o pedido diante dos convidados.
Yvette abriu caminho em meio às pessoas, aproximando-se com visível relutância.
— O que gostaria de tocar, milorde?
— Que tal: O patrão e a serviçaP. Tenho certeza que a conhece. Ele dedilhou as cordas do alaúde, iniciando a
melodia popular. Yvette sentiu o rosto corar.
— Não conheço esta música, lorde Bancroft.
—Claro que conhece. Eu a ouvi cantando três dias atrás. Começa assim:
"Em um dia de abril, sob o reluzente sol matinal,
Um cavalheiro conheceu uma bela serviçal..."
Yvette conhecia a canção sobre uma inocente criada que conhecia um cavalheiro ê ficava tão apaixonada que
tornava-se escrava dele por espontânea vontade. Ela sabia também que lorde Bancroft havia escolhido aquela
canção só para embaraçá-la.
— Sim, agora me lembro — disse ela, forçando um sorriso. — Depois poderíamos tentar aquela sobre a
moça simples que rejeitou um nobre arrogante. Paixão e orgulho, se não estou enganada.
Andrew levou dois dedos à testa, numa irônica saudação e começou a tocar a primeira música. Yvette entrou
depois da pequena introdução e sua voz foi adquirindo mais sentimento à medida que foi ganhando mais
confiança.
Andrew era um músico exímio, Yvette foi obrigada a admitir. Os convidados adoraram vê-los juntos e se
empolgavam mais a cada canção.
Pouco depois, Andrew e Yvette descansavam um pouco, quando lorde Dandridge, um cavalheiro conhecido
por suas brincadeiras, bateu palmas, chamando a atenção de todos.
— Silêncio, por favor. Quero propor um brinde à nossa anfitriã, mademoiselle Yvette Cordé, que está nos
oferecendo a melhor festa da temporada!
Seguiu-se uma salva de palmas que durou até Yvette ficar de pé para agradecer.
Lorde Dandridge continuou:
— Um brinde também a lady Dora Middlesworth, cuja beleza e vivacidade representam um desafio — ele
piscou —, ou mesmo um convite... aos pretendentes de Londres.
Dora não demonstrou embaraço algum pelo comentário. Sorrindo, pediu a Dandridge que prosseguisse.
— E, por último, brindemos a lorde Bancroft. Que ele entre para a história do White's como o maior
vencedor de apostas!
Um burburinho começou a soar pela sala. Yvette notou que Andrew ficou com o rosto corado e bebeu o
vinho de um só gole.
O olhar que lhe lançou foi suficiente para deixá-la perturbada pelo resto da noite. Algo lhe dizia que ela tinha
alguma coisa a ver com aquela aposta. Mas o que seria?

CAPITULO IX

Os dias que se seguiram ao sarau foram muito corridos. Foi durante uma das festas, na Melbourne House, que a
mãe de Andrew chamou-a de lado e disse que gostaria que Yvette cantasse em uma festa que ela iria oferecer.
— Será uma festa ao ar livre. Para inaugurar o jardim que o sr. Nash remodelou. Claro que será uma festa
reservada apenas às pessoas mais importantes da sociedade. E uma pena que seus amigos não possam
comparecer. Também lamento que seus antigos patrões não possam ir, uma vez flue lady Emily está prestes a
dar à luz. Mas tenho certeza que encontrará alguém para conversar.
Yvette sorriu da insinuação.
—- Fazer novas amizades nunca foi tarefa difícil para mim, lady Bancroft. De fato, seu filho já se ofereceu
para me fazer companhia, no caso de eu e lady Dora aceitarmos comparecer à sua festa.
— Mas eu não estava pensando em incluir lady Dora na minha lista de convidados.
— Bem, se não estiver pensando em convidá-la, lamento, mas não poderei aceitar o convite. Lady Dora é uma
amiga muito querida, além de minha dama de companhia. Espero que entenda.
— Eu não tinha idéia de que... a senhorita precisasse de uma dama de companhia. Mas está bem, farei com-
que ambas recebam convites. Quanto deseja receber como pagamento?
Dora, que estivera observando, a certa distância, apareceu de repente ao lado de Yvette.
— Não pude deixar de ouvir seu convite, milady — disse ela. — Por certo não espera que mademoiselle
Cordé aceite um mero pagamento em dinheiro, não é? Francamente, querida, considero isto um verdadeiro
insulto! Não pode aceitar uma coisa destas!
Yvette não sabia o que responder. O rosto corado de lady Bancroft tornou-se branco. O silêncio, constrangedor.
Yvette, aflita, procurava algo para dizer, mas logo reconheceu um brilho de esperteza nos olhos de Dora o que a
fez sentir-se mais segura.
—Eu... Eu tenho certeza que lady Bancroft não teve intenção de me ofender, Dora. Para mim, será um prazer
atender ao convite.
— Mas sua agenda está praticamente completa! — protestou Dora. — Ontem mesmo, fui obrigada a recusar
um convite do barão von Wilhousen, devido à falta de datas disponíveis. — Voltou-se para a viscondessa com
um sorriso forçado: — Tenho certeza que milady entenderá. Afinal, há tantos outros artistas competentes hoje
em dia!
— Ambas sabemos que no momento nenhum artista se compara a mademoiselle Cordé — replicou a
viscondessa, que a esta altura já havia tirado as luvas com impaciência. — Peço que me desculpem se provoquei
algum faux pas.
— Aceitamos suas desculpas, milady — respondeu Dora. — Agora, se nos der licença, creio que seu filho está
nos aguardando do outro lado do salão.
Quando as duas se encontravam a uma boa distância da viscondessa, Yvette dirigiu-se a Dora com
indignação:
— Francamente, Dora! Estou muito desapontada com você! Pensei haver deixado bem claro que pretendia
aceitar o convite!
— Como uma mera criada? Uma serviçal contratada para distrair os hóspedes da viscondessa, enquanto ela
exibe para todos os luxos que a riqueza lhe proporciona? Tenha um pouco de orgulho, Yvette! Acredite-me: logo
ela vai implorar para que você a perdoe. Ou melhor... vai mandar que o filho a convença. Amanhã mesmo, se minha
intuição não estiver errada. E garanto-lhe que o "pagamento" que ela irá oferecer será suficiente para pagarmos a
última prestação da casa.
Dias depois Yvette não estava tão confiante quanto Dora, pois não haviam tido sinal de lorde Bancroft, quando
McMasters, o mordomo, se aproximou:
—Com licença, mademoiselle. Lorde Bancroft acaba de chegar acompanhado de dois carregadores.
Yvette virou-se no mesmo instante, espantada.
—Sacré bleu! Ele veio para levar o restante do; móveis! — disse, pegando o atiçador e remexendo as brasas
na lireira.
Andrew entrou na sala, de repente. Uma mecha dos cabelos castanhos estava caída sobre sua testa, deixando-o
com uma inocente aparência de garoto. O olhar, no entanto, refletia o mesmo brilho arrogante de sempre.
— Espero que não esteja com intenção de utilizar este atiçador, mademoiselle.
—Saberá a resposta muito em breve, se se atrever a tocar em algum dos móveis.
Ele sorriu, abrindo os braços.
—Será que pareço tão ameaçador? Diga a ela, lacy Dora. Diga o quanto está enganada a meu respeito.
Dora aproximou-se de Yvette e pegou o atiçador das mãos dela.
—Olhe para ele, Yvette — disse ela, com um brilho de ironia no olhar. — Como é possível duvidar de sua
inocência?
—Ele parece tão inocente quanto Napoleão, em Austerlitz. O que deseja, lorde Bancroft?
—Apenas um minuto de seu tempo. Poderia me acompanhar à sala de entrada, por gentileza?
—Não vejo por que deveria... Oh, está bem.
Ele inclinou a cabeça de leve e ficou de lado para que ela fosse na frente.
—Lady Dora, gostaria de nos acompanhar? — Andrew a convidou.
—Nem a Guarda Real conseguiria me deter neste instante! — exclamou a viúva, também saindo.
Yvette foi a primeira a entrar na sala. Surpreendeu-se ao ver um móvel enorme, coberto por um pano branco.
—O que é isso, milorde? Trouxe algum "cavalo de Tróia" para cá?
—Veja por si mesma.
—Um piano! — Yvette exclamou.
Correu até o instrumento e deslizou a mão pela superfície espelhada de mogno.
—É lindo! Mas não estou entendendo. Por quê?...
— Uma bela voz merece ser acompanhada por um bom instrumento. Sei que a senhorita tem tido dificuldade
para ;nsaiar, desde que perdeu o piano.
—Eu não o perdi, milorde. O senhor o tirou de mim.
— Bem, agora isso já não importa. De qualquer maneira, o outro estava velho e precisava ser substituído.
O olhar frio de Yvette foi de encontro ao de Andrew, quando ela declarou:
—Espero que esta demonstração de generosidade não tenha nada a ver com o fato de sua mãe querer que eu
cante na festa que ela irá oferecer.
Andrew ficou em silêncio por um momento, mas Yvette sabia como ele era perito na arte de dissimular. Por
isso, não ficou surpresa quando ele a fitou com olhar inocente e respondeu:
— Isto nem me passou pela cabeça! A decisão de cantar ou não na festa de minha mãe será inteiramente sua.
Espero, contudo, que qualquer que seja a decisão, nossa amizade não seja afetada. — Ele riu: — Claro que uma
recusa de sua parte iria diminuir meu prestígio com minha mãe.
—Então não nega que a viscondessa tenha lhe pedido para interceder por ela?
Ele pôs a mão sobre a dela. Em seus olhos havia um ar de desafio que também se refletiu na voz, quando
respondeu:
—Claro que ela me pediu. Mas somente esta tarde. Comprei o piano pela manhã; é um presente meu para
você, Yvette.
Dora decidiu intervir, antes que Yvette resolvesse recusar o presente:
—Desculpe minha intromissão Yvette mas, como sua dama de companhia, sinto-me na obrigação de aconselhá-la
a aceitar o presente de lorde Bancroft. — E voltando-se para o visconde: — Milorde, espero que não deixe de tocar o
alaúde, mesmo que agora tenhamos o piano. Nossos convidados ficaram encantados com seu talento.
— É muito gentil, lady Dora — ele agradeceu.
Yvette uniu as mãos.
— Por favor, perdoe-me por haver tirado conclusões precipitadas. Todavia, mesmo prezando sua generosidade,
não posso aceitar um presente tão caro, milorde. Não seria correto.
— Besteira! — discordou ele. — Lady Dora já deu seu consentimento. Se não aceitar, ficarei muito magoado.
Por favor, aceite o presente como prova de minha profunda estima.
O olhar de ambos se encontrou e nenhum deles conseguiu desviá-lo. Foi como se o tempo parasse naquele
instante. Yvette precisou de toda sua força de vontade para despertar do magnetismo daquele olhar. Sentou-se na
banqueta do piano e correu os dedos pelo teclado.
—Gostaria de haver aprendido a tocar melhor.
— Sua bela voz e seu talento para cantar já são deveras suficientes, minha querida — comentou ele. — Onde
quer que o piano seja colocado?
—No salão principal. Entre as duas sacadas.
— Uma bela escolha. Pedirei aos carregadores que o levem para lá.
Dizendo isso, Andrew fez um sinal para que o mordomo chamasse os homens.
—Yvette e eu iremos tomar o chá da tarde — comentou Dora. — Por que não fica para nos acompanhar,
milorde?
Andrew hesitou e olhou para Yvette, à procura de uma confirmação.
—Por favor, fique — pediu ela. — Aceite meu convite como um pedido de desculpas por havê-lo julgado
mal.
— Não me peça desculpas, por favor — pediu ele. — Se o fizer, serei obrigado a confessar que nem sempre fui
tão bem-intencionado como hoje.
—Sei muito bem disso, lorde Bancroft.
Ficou de pé e passou por ele, encaminhando-se para a biblioteca. Antes de chegar à porta, vpltou-se para ele:
— Se melhorar seu prestígio com sua mãe, diga a ela que aceito com prazer o convite para cantar na
inauguração do novo jardim.
— Excelente! Tenho certeza que ela ficará muito contente com a notícia. Será uma grande festa. As pessoas
mais importantes da sociedade londrina já confirmaram suas presenças.
—Sua mãe fez questão de deixar isto bem claro.
Dora colocou um pé à frente e agitou a saia, numa cômica imitação de um passo de minueto.
—Será a festa mais excitante do ano! — exclamou ela. — Podem ter certeza disso.
O novo piano animou ainda mais os sarausdas quintas-feiras. Não que Andrew não fosse solicitado para tocar
o alaúde, já que pelo menos uma música executada por ele e Yvette tomou-se o riguer das reuniões.
Por acasião do terceiro sarau, lady Margaret e o marido puderam comparecer, após haverem retomado de uma
viagem pelo norte do país, onde foram comprar nov«s artigos para a butique. A certa altura da festa, lady
Margaret pixou Yvette de lado:
—Quem diria que você con:eguiria tanto em tão pouco tempo, não é, querida? A casa está adorável e a
decoração da sala de visitas então, nem se fala! Você sabe o que estão dizendo por aí, não sabe?
Yvette sorriu:
—Fiquei com receio de ler os jornais depois do primeiro sarau que eu e Dora oferecemos. Sei que vou me
arrepender por haver perguntado, mas o que estão disendo por aí, milady?
— Que você é a coisa mais excitante que aconteceu em Londres, desde o episódio em que a duqu:sa fugiu
com o instrutor de dança.
—Não deixa de ser um elo|io estranho, mas não tão ofensivo como eu esperava.
— Mas não é tudo, querida. Est io todos querendo saber mais detalhes a seu respeito: de onde veio, queri eram
seus pais e por que veio para este país. Você é um verdadeiro mistério, sabia? Já ouvi boatos até de que é a filha
ilegítima do famoso cantor francês, Massina.
Yvette tomou-se tensa.
— Não é verdade, milady. Como também é falso o boato de que meu pai era o marinheiro Jean-Pierre Cordé.
—E mesmo?
A curiosidade de lady Margaret ficou mais que evidente, mas Yvette teve receio de contar maisdetalhes.
Respirou aliviada, quando viu lorde Bancroft se aproximar.
—Como vai, lady Margarete E um prazer revê-la.
— O senhor também parece ótimo, lorde Bancroft. Tocou divinamente há pouco, quando se apresentou com
Yvette. Vocês formam um belo par.
—Obrigado, milady. Há semanas que tento convencer a srta. Cordé disso.
Yvette lançou-lhe um olhar de censura, mas foi interrompida pela aproximação de McMasters.
—Com licença. Trago um recado para lady Margaret — disse o mordomo, entregando um envelope à
dama.
Margaret colocou os óculos c abriu o envelope.
—Boas novas! Lady Emily deu à luz um menino! Preciso ir vê-la agora mesmo!
Poucos depois, o sr. Harrington e lady Margaret deixaram a festa.
Yvette e Andrew os acompanharam até a porta e quando se preparavam para voltar para a sala, lorde Coddington
se aproximou de Yvette.
—Srta. Cordé — disse ele, com uma elegante mesura —, há dias que espero uma oportunidade de lhe falar a
sós.
—Pode falar, lorde Coddington. Quer se sentar?
Andrew olhou com ar desconfiado para o atraente cavalheiro de meia-idade.
— Como vai, Percival? Como vão suas quatro filhasl — A ênfase na voz de Andrew foi evidente.
—Vão bem, obrigado, Andrew.
Yvette percebeu que Coddington estava pouco à vontade e achou melhor dispensar Andrew.
—Lorde Bancroft, poderia fazer a gentileza de verificar se a tigela de ponche já está vazia?
Andrew olhou para ambos com expressão de quem não havia gostado da insinuação.
— Com licença — ele disse e foi andando em direção à mesa.
Yvette voltou a atenção para o cavalheiro alto e ligeiramente calvo, sentado a seu lado.
— E então, lorde Coddington?... Ele sorriu, nervoso.
— O que tenho a dizer, deve ser dito de uma só vez. — Parece tratar-se de um assunto sério, milorde.
— De fato. A senhorita já deve ter notado o quanto nossas conversas significam para mim. Ouso dizer que
desde que a senhorita começou a se destacar no meio social, não tenho tido pensamentos para mais ninguém...
— Também gosto de conversar com o senhor, milorde, mas isso não significa...
— Eu nunca lhe pediria algo que comprometesse seu nome, ma-demoiselle. Só o que quero é ter o direito de
cortejá-la, até que, num futuro próximo, eu possa pedir sua mão em casamento.
Yvette empalideceu. Aquilo era a última coisa que ela esperava ouvir de lorde Coddington. Afastou-se,
sentando-se na ponta do banco.
— Honra-me o seu pedido, milorde, e quero que saiba que sua amizade representa muito para mim. Porém,
devo lhe dizer que o casamento está fora de meus planos.
Ele sorriu de leve.
— Não vou desistir facilmente, minha querida. A senhorita daria uma bela marquesa. Eu a faria muito feliz.
— Sinto muito, lorde Coddington, mas preciso voltar para o salão. — Ela tocou a mão dele. — Espero que isto
não afete nossa amizade. Prometo que não comentarei nossa conversa nem mesmo com lady Dora. Agora, se me
der licença, preciso dar atenção aos convidados.
Yvette voltou para a festa, tentando manter uma expressão de calma no rosto.
Lorde Bancroft a alcançou assim que ela entrou no salão.
—Por que demorou tanto? Todos a estão procurando.
—Por quê? Aconteceu algo de errado?
— Ainda não — respondeu ele, com olhar enciumado. — Quero saber o que Coddington tinha a lhe dizer, que
exigia tanta privacidade.
—Nada importante. O marquês queria apenas me parabenizar pelo sucesso da festa.
—E mesmo? Então, por que ele está andando de um lado para outro, feito um cão perdido?
—Não tenho a mínima idéia.
—Olhe só para ele. Seu nervosismo está tão evidente que está chamando atenção.
—E, parece que sim...
De repente, uma onda de expectativa tomou conta do ambiente. Lorde Coddington subiu em uma pequena
plataforma e bateu palmas, para chamar a atenção de todos.
—Senhores, senhoras, atenção por favor. Tenho algo a lhes comunicar.
A sala caiu num completo silêncio. Ele hesitou, como que procurando as palavras certas. Fosse ou não sua
intenção, o fato é que aquele instante de hesitação aumentou ainda mais a curiosidade de todos. Finalmente, o
marquês declarou:
—Tenho o prazer de lhes comunicar que acabo de pedir a mão de mademoiselle Yvette Cordé em casamento!
Um murmúrio de surpresa ecoou pela sala. Yvette arregalou os olhos, incrédula. Ele não podia ter feito
aquilo!
Andrew olhou-a. Seus olhos procuravam uma resposta para suas dúvidas, mas não conseguiram ver nada.
Yvette continuava atônita, sem saber o que dizer.
—Não é o que está pensando, milorde...
Andrew praguejou algo muito indelicado para os ouvidos de uma dama e saiu da festa, enfurecido.

CAPÍTULO X

Quando o tumulto cedeu lugar a um burburinho de comentários, Dora abriu caminho em meio às pessoas e se
aproximou de Yvette.
— Você ficou maluca? Não posso deixá-la sozinha por dez minutos, sem que se meta em apuros?
—Não foi minha culpa — explicou ela. — Deixei bem claro para lorde Coddington que não aceitaria a
proposta de casamento, mas ele não me deu ouvidos. Oh, Dora! O que vou fazer agora?
— Fazer? A escolha é sua, a menos que eleja lorde Coddington como juiz da questão. Levando em conta a
ascensão social e a segurança financeira, seria até muito bom se você se tornasse uma marquesa. Por outro lado,
se o marquês definitivamente não é o seu tipo, então será melhor esclarecer a situação antes que a festa termine.
Seria desastroso se a notícia se espalhasse por aí. Maldição! Onde está lorde Bancroft? Se isso chegar aos
ouvidos dele...
—Já chegou. Ele foi embora assim que ouviu a notícia.
— Homens! Bem, mas não importa. Ele acabará sabendo a verdade. Agora o mais importante que você tem a
fazer é subir naquela plataforma e dizer a todos que Coddington é um mentiroso.
—Não posso fazer isso, Dora! Arruinaria a reputação do marquês!
—Seria uma boa lição para aquele ganso velho! Então pense em outra solução e bem rápido!
Dora sorriu com amabilidade, ao tocar no braço de um atraente cavalheiro.
—Charles, querido, poderia abrir caminho para nós? Mademoiselle vai falar.
Quando alcançaram a plataforma, Yvette sentiu um frio no estômago.
— Meus amigos, poderiam fazer um instante de silêncio, por favor? — E, abaixando a voz, Dora disse a
Yvette: — Se não arrumar logo alguma coisa para falar, direi a todos que Coddington mentiu.
— Não pode fazer isso! — Dando um passo à frente, finalmente falou: — Parece que muitos dentre vocês
adoram desafios. Senti-me lisonjeada com a brincadeira, mas como bom amigo meu que é, lorde Coddington
seria o primeiro a admitir que um casamento entre nós seria uma grande piada. Espero que nenhum de vocês
tenha acreditado na história nem por um instante.
Seguiu-se um murmúrio de comentários paralelos. Yvette prosseguiu:
— Era preciso um homem de coragem para aceitar o desafio proposto por uma pessoa, cujo nome é melhor
que permaneça no anonimato. Ao anunciar nosso suposto noivado, lorde Coddington venceu a aposta. E não
apenas isso, meus amigos, ele também doou metade da quantia que recebeu para um orfanato. Sua generosidade
foi realmente notável.
Houve um instante de silêncio. De súbito, uma pessoa no final do salão começou a rir, o que indicou que a
história de Yvette havia sido aceita. Pouco depois, todos riam com prazer. Lorde Coddington, que estivera todo o
tempo a um canto da sala, sorriu de leve e cumprimentou Yvette com uma ligeira inclinação de cabeça.
Dora segurou-a pelo braço.
— Você acabou de jogar fora uma verdadeira fortuna. Mas isso pouco importa, ma chérie. Você é jovem
demais para dispensar certos prazeres do casamento.
Yvette corou, não apenas pelo que a amiga havia dito, mas também pela súbita imagem de Andrew que lhe
veio à mente. Os ombros largos... olhar intenso... Onde estaria ele?
Felizmente, Yvette conseguiu superar o tumulto daquela noite. O dia seguinte, em vez de sair, preferiu ficar
em casa, vasculhando as caixas de livros que encontrara no sótão.
Um dos volumes, em particular, chamou sua atenção. Tratava-se de um livro de capa dura, que parecia ser
um diário, envelhecido pelo tempo. Deveria ter pertencido a algum dos membros da família de Andrew.
Curiosa, tirou-o da caixa, juntamente com vários papéis e levou tudo para seu quarto a fim de examinar melhor
depois.
A única distração de Yvette nos sete dias em que ficou sem ver Andrew, foram os momentos que passou na
mansão dos Berrington. O bebê, chamado James, tornara-se o centro das atenções na casa. Até mesmo
Fredericks acabou deixando a formalidade de lado, para segurá-lo por um instante, enquanto a babá pegava mais
fraldas no quarto.
Yvette, por sua vez, foi tomada por uma indescritível sensação de carinho, quando segurou o bebê nos
braços. Olhando para aquele bebezinho, aconchegado junto ao seu seio, sentiu, pela primeira vez na vida,
vontade de ter sua própria família.
Abordou o assunto com Dora, na noite do mesmo dia, quando ambas se reuniram para conversar no quarto de
Yvette, após o jantar.
— Dora, alguma vez já lamentou o fato de não ter tido filhos?
— Até agora não. Mas ainda sou jovem; pode ser que acabe mudando de idéia. Dão muito trabalho para o
meu gosto. Sempre chorando e sujando fraldas! Até a época em que ficam crescidos o suficiente para namorar e
casar com alguém que também não saiba cuidar nem do próprio nariz. Quanta tolice! — Ela voltou-se para
Yvette: — Pelo brilho que eijtou vendo em seus olhos, você deve ter ido à mansão dos Berrington e ter sido
acometida pela "síndrome do instinto maternal" — Dora brincou.
— É, acho que sim.
— Que pena, se tivesse aceitado a proposta de lorde Coddington, já teria quatro filhas prontinhas. E o melhor:
nenhuma delas em idade de sujar fraldas.
Yvette riu alto:
— Oh, Dora, nunca sei quando está falando sério! Você é mesmo impossível!
— Esta casa está precisando de um pouco de animação. Parece que faz um século que Andrew viajou! Não
teve mais notícias dele?
— Não. Teremos de ir em nossa própria carruagem à festa de lady Bancroft, amanhã. Não podemos esperar
que ele apareça para nos acompanhar.
— Azar dele. Com a nata da sociedade londrina presente naquela festa, talvez você encontre algum cavalheiro
que o supere.
— A última coisa que quero é um outro homem em minha vida. Estou mais preocupada em como conseguir o
dinheiro para pagar a última prestação da casa.
—Bem, se você quiser, posso lhe fazer um empréstimo.
— Não. Preciso arrumar o dinheiro por conta própria. Caso contrário, nunca considerarei esta casa realmente
minha.
— Não se aflija. O pagamento de lady Bancroft ajudará a eliminar uma boa parte da dívida. — Ela abriu o
guarda-roupa de Yvette. — Ah, Maggie já terminou de bordar seu vestido com as pérolas. Sem dúvida, é o
vestido mais bonito que você já teve. Belíssimo! Já era mesmo tempo de você usar algo mais ousado. Se isso
não chamar a atenção de Andrew, nada mais chamará.
—Isto se ele comparecer à festa. Ouvi dizer que pretende ir para a índia.
—Não acredito. Vi bem o brilho dos olhos dele quando olhava para você. Ele não sairia da Inglaterra sem
antes procurá-la.
— Gostaria de poder acreditar nisso, mas sei que estaria sendo tola se o fizesse. Ainda assim, obrigada por
tentar me animar, Dora.
—Que nada! Amigas são para estas coisas!
Na noite do dia seguinte, enquanto chegavam à mansão dos Bancroft, Yvette duvidou que Andrew chegasse a
ver seu vestido. Como havia imaginado, ele não aparecera para buscá-las para a festa. Yvette suspirou ao
cumprimentar a anfitriã.
— Algum problema, srta. Cordé?
Ela forçou um sorriso:
— Não, milady. Estou muito bem, obrigada. Permita que eu a cumprimente pela beleza de sua casa. A
senhora tem uma bela coleção de tapetes persas.
— Estão na família há anos. Andrew já deve ter comentado que podemos traçar a árvore genealógica de nossa
família em muitas gerações.
— Nunca conversamos sobre estas coisas, mas todos sabem de sua ligação com a família real, milady.
Lady Bancroft sorriu, radiante:
— Uma ligação remota, é claro, mas autêntica. Vejo que seu acompanhante já tomou seu lugar ao piano. Pedi
que colocassem o palco no meio do jardim, que foi reformado por John Nash, como sabe. Bem, acho melhor a
senhorita cantar as duas primeiras canções logo após a inauguração e outras duas depois da dança ao ar livre.
Depois disso, a senhorita e lady Dora não precisam se sentir obrigadas a permanecer na festa. Sei como estas
apresentações devem ser cansativas para vocês.
Dora estreitou o olhar, com ar de quem estava prestes a explodir.
—A senhora é, sem dúvida, a anfitriã mais gentil do mundo, lady Bancroft — disse ela, irônica. — Não
conheço ninguém, incluindo a duquesa de Heatherwood, que é famosa por suas boas maneiras, que chegue ao
ponto de dizer a um convidado a hora certa de ele se retirar da festa.
Lady Bancroft sorriu, mas logo tornou-se séria, ao entender a indireta.
— A senhora tem uma tendência a interpretar mal minha intenções, lady Dora.
— Acha mesmo? Estranho, porque a senhora sempre faz questão de deixar suas intenções muito claras.
Yvette resolveu intervir, antes que o confronto entre as duas chegasse a extremos.
—Com licença, lady Bancroft. Eu e lady Dora vamos ver se o pianista já está preparado para a apresentação.
A viscondessa inclinou a cabeça de leve, dispensando-as. Yvette pegou Dora pelo braço e a levou para o
outro lado do jardim.
—Que mulher insuportável! Deve usar uma vassoura como veículo em vez de uma carruagem!
Yvette conteve o riso.
— Eu estava morrendo de vontade de perguntar a ela se Andrew já retornou, mas não quis lhe dar esta
satisfação.
—Foi uma atitude sensata. Mas sei uma maneira de descobrirmos.
—Como? Diga logo, Dora.
—Espere um pouco.
Lady Dora foi até uma escrivaninha, no interior da casa. Yvette a seguiu, mesmo sem estar entendendo coisa
alguma. Viu Dora pegar uma folha em branco e, com a pena, escrever algumas palavras, antes de dobrar o papel
ao meio. Em seguida, fez sinal para um criado.
—Por gentileza, entregue esta mensagem a lorde Bancroft. É urgente e só pode ser entregue a ele.
—Agora mesmo, senhora
Yvette ficou observando ele se afastar. Por fim, voltou-se para a amiga:
—Esplêndido, Dora! O que escreveu no bilhete?
—Que havia um recado urgente para ele.
—Oh, Dora! O que dirá se ele vier procurá-la?
—Qualquer coisa, querida. Além do mais, se ele aparecer, não será a mim que irá procurar. Assinei seu
nome.
—Você o quê?! Não podia ter feito isso!
—Fiz e faria novamente, Pare de agir feito criança, Yvette. Se quer mesmo o homem, precisa aprender a
lutar como um!
— Alguém deveria ter me prevenido a seu respeito. Pensei que sua função fosse me manter afastada de
problemas e não fazer com que eu me metesse neles!
—Tolice! Um pouquinho de problema não faz mal a ninguém. Agora, pare de choramingar. Está começando
a chamar atenção.
As duas voltaram para o jardim e começaram a circular entre os convidados.
—Está vendo-o em algum lugar, Dora?
—Não. Nem ele nem o criado. Estranho ele não haver trazido a resposta. Oh, aí vem ele!
O criado conseguira localizá-las e abria caminho em meio às pessoas.
—Senhora, lamento mas não foi possível efttregar sua mensagem.
—Isso significa que lorde Bancroft ainda não voltou? Quando esperam que ele volte?
—Realmente não sei, senhora. Deseja mais alguma coisa?
—Não, obrigada.
Todavia, não tiveram que esperar muito para o momento da apresentação. Logo os criados começaram a
convocar as pessoas a se reunirem no centro do jardim. Lady Bancroft subiu ao palco, preparando-se para fazer
sua introdução. Felizmente, suas palavras foram breves e assim que ela terminou a apresentação, Yvette subiu ao
palco. O sr. Armbruster, parecendo muito à vontade, inclinou a cabeça para ela, indicando que começaria a tocar
as primeiras notas da canção.
Yvette respirou fundo. Sorriu, olhando para a platéia, e no mesmo instante sentiu o fôlego sumir: lá estava
Andrew, encostado contra uma coluna de mármore, fitando-a com aquele olhar intenso. Ele não se moveu, nem
deu indicação de que sabia que ela o havia visto. Contudo, mesmo a certa distância, Yvette podia sentir que ele
estava muito consciente da presença dela.
Andrew sentiu o sangue correr mais rápido em suas veias. Não esperava que o fato de revê-la o deixasse tão
afetado. Yvette estava deslumbrante com aquele vestido branco todo bordado com pérolas. A mão enluvada,
repousava com graça sobre o piano. Era estranho, mas ela tinha todas as características de uma dama refinada,
pertencente à nobreza.
Uma semana no interior havia sido suficiente para amenizar a chama que lhe queimava a alma, mas bastara
vê-la ali naquele palco, para a chama voltar a arder com mais intensidade que antes. Ansiava por senti-la
novamente em seus braços. Beijá-la com ardor... Em silêncio, amaldiçoou o sangue nobre que corria em suas
veias. Tinha um dever para com a família e não podia fugir disso.
Yvette havia mudado desde que ele partira. Qual o motivo daquele olhar angustiado? A música que ela estava
cantando descrevia um triste lamento que repercutiu fundo em sua alma. "Talvez na de todos", concluiu ele,
observando os rostos das pessoas.
Ao final da canção, a platéia estava comovida demais para se manifestar imediatamente. Quando, por fim,
começaram a aplaudir, foi como se não quisessem despertar do encanto daquele momento.
Andrew conhecia bem aquele tipo de emoção. Convivera com ela durante uma semana. Para o bem da
carreira de Yvette, ele não podia permitir que ela terminasse a apresentação daquela maneira melancólica. Num
impulso, subiu em um degrau na base da coluna de mármore e gritou:
— Mademoiselle, agora cante algo alegre, em homenagem aos amantes felizes!
O olhar de ambos se encontrou por sobre a platéia. Yvette hesitou um instante e assentiu. A platéia mostrou
aprovação com aplausos. Quando terminou de cantar e recebia os aplausos finais, Yvette se deu conta de que
Andrew a salvara de um fiasco. Terminar a apresentação com uma canção triste, teria sido um erro, Lady
Bancroft subiu ao palco para cumprimentá-la.
— Esplêndido, mademoiselle\ Por favor, fique mais um pouco no palco enquanto faço outro comunicado. —
E, voltando-se para a platéia: — Amigos, sei o quanto todos apreciam o talento da srta. Cordé. Por isso, resolvi
presenteá-la com uma pequena... — ela sorriu, sugerindo exatamente o contrário — ... amostra de nossa admi-
ração.
Um criado entregou-lhe um objeto retangular, coberto por um pano. Lady Bancroft prosseguiu:
—Trata-se de uma valiosa pintura de Bernard Chevalier que pertence à nossa família há anos. Dizem que foi
um presente do próprio Chevalier a meu avô. — Ela retirou o pano que cobria o quadro. — Como podem ver é
a mesma pintura que temos mantido na sala de visitas, durante os últimos vinte e cinco anos. Ninguém melhor
para recebê-lo de presente do que mademoiselle Cordé.
Sem saber muito bem como agir, Yvette pegou o quadro com mãos trêmulas e balbuciou algumas palavras
de agradecimento à anfitriã.
Lady Dora pegou o quadro das mãos de Yvette e o segurou por um instante, permitindo que as pessoas a sua
volta admirassem a pintura. Quando pôde falar com Yvette mais reservadamente, tinha os olhos arregalados de
admiração.
—Eu não lhe disse que a mãe de Andrew seria generosa? Com a venda desse quadro, poderemos pagar a
última prestação da casa e ainda sobrará dinheiro!
— Mon Dieu... — lamentou Yvette. — Gostaria que assim fosse, Dora. Infelizmente, o quadro é falso.

CAPITULO XI

— E falso? Como pode saber uma coisa destas?


—Porque o original está na casa de meu pai, em Lyons, há pelo menos uns vinte anos.
Ao dar-se conta do que dissera, Yvette sobressaltou-se, levando a mão à boca.
—Não brinque com isso, Yvette.
Dora parecia mais preocupada com o fato de a pintura ser falsa do que com a revelação da amiga.
—Não consigo entender... Há algo de errado nesta história.
—Fale baixo. Ninguém deve saber. Aliás, eu nem deveria ter comentado isso.
—Tolice! Se é mesmo verdade, o melhor a fazer é contar para todos de uma vez e dar uma boa lição naquela
esnobe.
Yvette pousou a mão com firmeza no braço de Dora.
—Faça o que estou lhe pedindo só uma vez, por favor. Não quero embaraçar a mãe de Andrew. Agora sorria!
— completou ela, quando viu Andrew se aproximando!
Foi mais fácil falar do que fazer. Dora ainda estava muito indignada. O máximo que conseguiu fazer foi
agitar o leque diante do rosto. Yvette esboçou um sorriso.
Andrew cumprimentou-as e levou Yvette para o jardim.
— Meus cumprimentos pela apresentação, mademoiselle. Conseguiu encantar minha mãe, com sua bela voz.
Não imagina o quanto ela preza aquele Chevalier.
— Se a agradei, então sinto que cumpri minha obrigação. — Yvette abaixou o olhar por um instante e voltou
a encará-lo: —Lorde Bancroft, gostaria de lhe agradecer por haver pedido que eu cantasse uma canção mais
alegre.
— Ora, não foi nada. Fiquei sabendo da boa notícia de que a senhorita não está noiva de lorde Coddington.
É verdade. Aquilo foi um engano da parte dele.
Eu deveria ter imaginado. Foi tolice de minha parte sair do sarau sem ouvir a sua versão da história.
— Sim, foi.
Andrew ficou surpreso, mas acabou rindo.
— Reconheço que a culpa foi minha. Onde vai colocar o quadro? Ela desviou o olhar.
—Ainda não sei. Depois pensarei em um lugar apropriado.
—Sobre a lareira, na biblioteca, seria um lugar perfeito.
—Pensarei na sugestão.

—Gostaria de visitá-la amanhã, Yvette. Poderíamos passear de carruagem. Os prados estão belíssimos e os
riachos com as águas mais límpidas que nunca.
—Dora não gosta de passear no campo. Não poderei ir, se ela se recusar a me acompanhar.
—Prometo que ela não o fará: convidarei Charles Willingsly para ir conosco.
Yvette riu:
—É, acho que funcionará. O que sabe a respeito dele, Andrew?
—O que sei sobre Willingsly? Não muito.'Primeiro, está mais que evidente que está apaixonado por Dora.
Ele pertence a uma família tradicional. Estão dizendo por aí que ele pretende seguir a carreira do pai e ingressar
na política.
—Fato que levará a família a não aceitar Dora.
—Mas a decisão depende dele.
—Você quer dizer que se ele a amar realmente, não permitirá que as regras sociais afetem o relacionamento
deles?
Andrew hesitou. Só agora dera-se conta de que a situação de Charles era bem parecida com a sua.
— Sim, mademoiselle, foi isso mesmo o que eu quis dizer. Porém, há algo que precisa entender.
—O quê?
— No meu caso é diferente. O título já me pertence por direito. Eu a amo desesperadamente, Yvette, e me
casaria com você agora mesmo, não fosse as obrigações que tenho para com ele. Toda minha vida fui ensinado
que deveria me casar de maneira apropriada. Todos os viscondes que me antecederam tiveram que sacrificar
muitos de seus desejos pessoais em favor da descendência da família.
— Eu nunca lhe pediria para sacrificar o nome de sua família, Andrew. Nem correria o risco de não poder
oferecer a meus filhos uma família que não fosse completa.
Andrew voltou a fitá-la e tomou as mãos dela entre as suas.
— Minha querida, não vê o que isto está fazendo conosco?
— Como poderia não ver? Contudo, está evidente que nenhum de nós tem muita escolha. Por favor, vamos
deixar este assunto de lado. Há pessoas nos olhando.
— Poderemos conversar amanhã, então?
— Sinto muito, Andrew, mas não poderá ser. Talvez seja melhor não nos encontrarmos até que tenhamos
refletido melhor.
O visconde levou as mãos aos ombros dela.
— Não fuja mais de mim, Yvette. Já fiquei longe de você por muito tempo.
Ela cobriu as mãos dele com as suas por um momento.
— Receio que teremos de aprender a conviver com isso, mon ami.
— Não. Não deixarei que isso aconteça.
— Com licença, Andrew. Dora está vindo em nossa direção.
Ele a soltou com relutância.
— Permite que eu a leve para casa? O quadro pode atrair atenções indesejadas...
—Obrigada, mas o cocheiro será suficiente para nos defender.
—Até amanhã, então.
—Não, Andrew. Vou receber visitas amanhã.
—Mas ainda há pouco você demonstrou que queria sair para passear comigo.
— É que esqueci que os Berrington marcaram uma visita à minha casa.
—Poderei esperar até que eles partam.
— Não, Andrew. Pedirei ao mordomo que não o receba.
Dora os abordou antes que ele tivesse chance de protestar. Sem dizer mais nada, Andrew olhou de uma para
outra e se afastou.
— O que aconteceu? — indagou Dora. — Pensei que ele fosse beijá-la- Eu não teria censurado um ou dois
beijinhos, mas achei melhor vir avisá-los que lady Bancroft os estava observando com olhar atento.
— Não é o que está pensando, Dora. Por favor, não quero mais falar sobre isso.
— Como quiser. Agora venha comigo. Sei de pelo menos quatro cavalheiros que aceitariam até matar só para
escreverem seus nomes no seu cartão de danças.
Mas para Ivette a festa estava acabada.
Quando, por fim, chegou em casa, o ambiente lhe pareceu estranhamente vazio, após o barulho e a agitação
da festa.
Dora jogou-se na cama, feliz por estar prestes a conquistar um novo pretendente.
— Agora, conte-me tudo sobre a história da pintura. Aliás, a história que mais me interessa é a sua. Está em
tempo de desvendarmos o grande mistério de Yvette Cordé.
— Não há mais nada além do que eu já disse. Sei que o quadro é falso porque o original ficou na casa de meu
pai durante anos.
— E o que seu pai era?
— Ele... era fazendeiro.
— E onde ele está agora?
A voz de Yvette tornou-se um sussurro:
— Morto. Foi executado por um dos generais de Napoleão.
— Oh, querida, sinto muito. E sua mãe?
— Também morreu. Fugimos para a Inglaterra para evitar que fôssemos presas. Minha mãe adoeceu durante a
fuga e acabou morrendo alguns meses depois.
Dora a abraçou.
— Perdoe-me, Yvette. Não tive intenção de despertar lembranças tristes.
— São lembranças antigas, mas ainda muito dolorosas para mim. Prefiro não falar mais sobre isso.
— Claro. Há algo que eu possa fazer?...
— Não, exceto por um pedido que quero lhe fazer: não comente com ninguém, por razões pessoais.
— Mas não entendo por que...
— Prometa-me, Dora.
— Está bem, eu prometo.
— Merci.
Yvette despediu-se e foi para seu próprio quarto. Depois de se preparar para dormir, percebeu que não
conseguiria adormecer. Sentou na cama, acendeu um vela e pegou os volumes antigos que havia encontrado no
sótão. Abrindo o primeiro deles, descobriu vários desenhos da casa. As observações, feitas nas margens,
pareciam ter sido feitas pelo pai de Andrew.
O volume seguinte era uma espécie de diário, cujas páginas estavam amareladas pelo tempo. Yvette passou a
mão pelo papel, imaginando quem poderia tê-lo escrito, mas as primeiras páginas estavam grudadas.
Foi até a escrivaninha e pegou a espátula de abrir envelopes. Após separar os papéis com cuidado, leu na
segunda página: "Diário pertencente a Archibald Wolgren".
— Mon Dieu. O que é isso?
Archibald Wolgren. Aquele nome lhe provocou um arrepio na espinha, trazendo à tona lembranças que
preferia esquecer. Archibald Wolgren fora o homem que seu pai matara em um duelo; o homem cujo cunhado
jurara encontrar seu pai e vingar-se dele e da família até que nenhum deles perrhanecesse vivo.
"Mas o que este diário está fazendo aqui?". Seu respeito pela privacidade alheia impediu-a por um instante
de tentar ler o diário de outra pessoa. Entretanto, a situação era muito séria.
Nos minutos que se seguiram, passou a ler o diário. Archibald Wolgren era um primo distante de Andrew.
Isso explicava por que seu diário se encontrava no sótão da casa que pertencera à família de Andrew. Ela sabia
que Wolgren acusara seu pai de haver desviado dinheiro da companhia de embarcações. Fora ele quem o
desafiara para um duelo que resultar na morte de Wolgren. E a morte daquele homem e o desaparecimento do
dinheiro forçara seu pai a fugir da Inglaterra.
O dinheiro nunca mais fora encontrado. Yvette conhecera muito bem o caráter do pai para saber que ele nunca
roubara coisa alguma.
"Mas, afinal, onde foi parar aquele dinheiro?", pensou ela, segurando o rosto entre as mãos. Há muito que
aquela questão a atormentava. Se a verdade sobre seu passado fosse revelada, Andrew não levaria muito tempo
para deduzir que ela pertencia a uma família nobre. Francesa, é claro, mas nobre, de qualquer maneira.
Durante o desjejum, Dora apareceu toda radiante, trajando um vestido florido em tons de rosa e laranja que
combinava com a cor avermelhada de seus cabelos. Sentou-se diante de Yvette, servindo-se de uma xícara de chá.
— Agora quero que me conte tudo — disse ela. — Como sua família conseguiu o quadro original, e como
sabe que ele era mesmo o original. Sei que deve ser doloroso falar sobre isso mas, por outro lado, creio que é
exatamente do que está precisando. Já manteve segredo por muito tempo, Yvette.
—Oh, céus. Eu não deveria ter comentado sobre a pintura.
— Tolice! Se o que diz é mesmo verdade, seria muito embaraçoso quando fôssemos tentar vender o quadro. —
Ela riu: — A vida seria tão mais simples se pudéssemos "falsificar" alguns detalhes dela, de vez em quando!
Bem, mas conte-me. Prometo que não direi a ninguém.
Yvette não pôde deixar de rir da insistência de Dora.
—Não há muito o que contar — disse. — Meu pai era amigo de Bernard Chevalier. O pintor morou algum
tempo em Lyons e costumava nos visitar com freqüência. Um dia, um crítico de arte viu alguns quadros de
Chevalier e o convidou para expor seus trabalhos em Paris. Chevalier aceitou e deu aquele, quadro a meu pai
no dia em que partiu para Paris.
—Entendo. É verdade, então. O original não poderia estar na casa de lorde Bancroft por todos estes anos. O
que temos aqui não passa de uma mera cópia.
— Uma cópia muito boa — completou Yvette. — Duvido que alguém acharia que não se trata do original.
Apesar disso, claro que eu nunca tentaria vendê-lo como um Chevalier genuíno.
— Nem eu, agora que sei a verdade. Por acaso já pensou no que faremos para pagar a última prestação da casa?
Contávamos com o lucro desta apresentação, lembra-se?
Yvette apoiou os cotovelos sobre a mesa e o queixo sobre as mãos.
—Não tenho pensado em outra coisa. Resolvi vender meu jogo de porcelanas a lady Sedgeburry. Não
conseguirei vendê-lo pelo valor real mas talvez Andrew aceite apenas uma parte do dinheiro enquanto tento
arrumar o restante.
— É improvável. Está claro que ele está usando o dinheiro como uma arma para conseguir o que quer.
— Não acredito nisso, Dora. Ontem ele disse que se casaria comigo se não fosse pelas obrigações de seu
título de nobreza.
— E você acreditou nele?
— Sim. Os sete dias que Andrew passou no interior surtiram algum efeito nele. Dava para ver no rosto dele?
— Agora que mencionou, sim, notei, mas não acredito que Andrew aceite ir contra a tradição familiar.
— E, será mesmo muito difícil que isto aconteça.
Dora hesitou e, por fim, impacientou-se:
—Escute aqui, não acha que vale a pena lutar por ele? Você o ama, Yvette! Posso ver em seus olhos quando
fala dele! E o mais importante é que ele também a ama. Será que não há um meio de mudar esta situação?
—Se eu quisesse, poderia convencê-lo a se casar comigo, mas não o quero desta maneira. Por isso é que
decidi não permitir que ele venha me ver.
— Uma medida um tanto drástica porém, necessária, sob as atuais circunstâncias. Se está mesmo disposta a
abrir mão dele, sugiro que se deixe ser cortejada por algum cavalheiro que seja menos apegado aos laços
familiares.
— Por favor, Dora, não aceite nenhum noivado por mim. Já tenho problemas suficientes para me preocupar no
momento.
—Está um pouco abatida, querida.
— Então preciso melhorar minha aparência. Lady Emily e lady Margaret vão passar por aqui para nos
mostrar o bebê.
— Não pense que me engana com esta história de compromissos! Tenho certeza que há mais detalhes que não
me contou a respeito de seu passado. Ainda acho que deveríamos conversar mais.
Yvette encostou a cadeira de encontro à mesa.
—Você não disse que Charles viria visitá-la esta tarde? Está lembrada que me disse ontem que irão se
encontrar com os pais dele, no Hyde Park?
Dora pulou da cadeira.
—Deus meu! Preciso escolher um vestido bem especial! Que horas são?
Cerca de duas horas depois, lorde Bancroft parou diante da casa e entregou as rédeas de seu novo puro-
sangue ao jovem cavalariço, que inspecionou o animal com olhar surpreso.
— Bonito cavalo, miiorde. O senhor vendeu o outro?
Andrew tornou-se sério.
— Não, Timothy. Você sabe que eu nunca venderia Capitão. A verdade é que o perdi em uma aposta no
White's.
— Minha nossa! Que azar, miiorde!
—E, realmente foi um grande azar. O nome deste aqui é Falcão.
O jovem acariciou o focinho do cavalo.
— Bonito nome. Cavalos com nome de pássaro costumam ser mais velozes. Devo deixá-lo aqui ou levá-lo para
o estábulo, miiorde?
— Pode levá-lo para o estábulo, Timothy. Pretendo me demorar um pouco. Aquela é a carruagem de lorde
Berrington? — indagou ele, apontando o landau parado mais adiante.
— Sim. Lady Emily e lady Margaret chegaram há uma hora mais ou menos.
— Está bem, obrigado.
A conversa que tivera com Ivette durante a festa em sua casa, não saía de sua mente. Se ele fosse um homem
mais decidido, teria pedido Yvette em casamento naquele mesmo instante. Em vez disso, fizera a tolice de dizer
que a amava e que a queria, mas que o casamento estava fora de questão. Iria perdê-la se não tomasse cuidado.
O pensamento deixou-o ainda mais aflito. Com um suspiro, bateu à porta. O mordomo apareceu quase
imediatamente.
— Bom dia, McMasters. Diga a mademoiselle que desejo falar com ela na biblioteca.
— Minhas desculpas, miiorde, mas a srta. Cordé me pediu para dizer que não o receberia.
— As ordens dela não me dizem respeito; sou o dono desta casa!
— Sinto muito, miiorde. Mademoiselle deixou a ordem bem clara.
— Faça o que estou mandando, McMasters. Lembre-se de que fui eu quem lhe conseguiu o emprego. Você e
sua mulher não passavam de atores famintos quando os contratei.
— Eu lhe sou grato, lorde Bancroft, mas Mary e eu somos felizes aqui. A srta. Cordé sabe que foi o senhor
quem nos enviou, desde o primeiro dia e não nos hostilizou nenhuma vez.
— Vocês contaram a ela? Eu avisei para não dizerem nada!
— Não foi preciso que disséssemos, milorde. Ela deduziu por si mesma, mas disse que em consideração à
nossa eficiência, não utilizaria isso contra nós. E uma mulher muita fina, apesar de ser francesa.
Andrew estava a ponto de perder o pouco de paciência que lhe restava.
— Saia da minha frente, seu traidor!
O barulho da discussão chegou até a sala de visitas, onde Yvette recebia as convidadas. Ao ouvir aquela
algazarra, ela ficou de pé, segurando o pequeno James nos braços.
— Com licença, miladies. Vou ver o que está acontecendo.
Dora riu:
— Deve ser Maggie tendo outra briga com os gatos. Quer que eu vá em seu lugar?
Yvette balançou à cabeça.
— Não, pode deixar comigo. Lady Emily, importa-se se eu o levar comigo? Não vou demorar.
Lady Emily concordou com um sorriso.
Andrew já estava na fhetade do corredor de entrada quando viu Yvette se aproximar trazendo o bebê nos
braços. Ele parou no mesmo instante, boquiaberto.
Sempre a considerara belíssima, mas aquela visão o fez lembrar uma madona serena e maternal iluminada
por uma aura de graciosidade que trouxe lágrimas aos seus olhos.

CAPITULO XII

— Andrew? O que está fazendo aqui? Eu avisei que não iria passear com você.
—Pensei que fosse mudar de opinião. Permita-me dizer que está encantadora com o bebê nos braços.
—Merci. Agora, se me der licença, estou com visitas.
Andrew aproximou-se o suficiente para sentir a agradável essência de lavanda que Yvette estava usando.
Acariciou o queixo do bebê. O pequeno James deu um risinho e puxou uma mecha dos cabelos de Yvette
com a mãozinha gorducha. Ela riu:
—Veja só o que você fez, menininho — brincou. — Desmanchou meu penteado!
O bebê sorriu. Yvette tentou ajeitar o cabelo com ele no colo, mas não conseguiu. Num impulso, pediu a
Andrew que o segurasse por um instante. O visconde tornou-se tenso.
—Pode segurá-lo, Andrew. O bebê não vai se quebrar.
—E que é tão pequeno...
—Na verdade, é até bem crescidinho para a idade que tem. Veja só como ele tem os olhos do pai.
—E o sorriso da mãe.
Yvette sorriu, ajeitando os cabelos.
—Está gostando de segurá-lo?
—Creio que eu acabaria me acostumando.
Ela estendeu os braços e pegou o bebê de volta.
— Yvette, preciso falar com você.
—Não creio que tenhamos mais alguma coisa a dizer um ao outro.
— O sentimento que existe entre nós é muito forte para se extinguir assim, sem mais nem menos.
—Andrew, eu não...
—Não vou deixá-la dizer não. E muito importante para mim.
—E posso saber por quê? Por acaso está participando de outra aposta no White's?
Andrew empalideceu.
—Então você sabe...
—E há alguém em Londres que não saiba?
— Aquilo foi uma tolice. Eu ainda não a conhecia quando aceitei a aposta. Arrependi-me depois, mas já era
tarde demais para reparar o erro.
—Perdeu seu cavalo?
—Sim.
—Ótimo.
—E sempre tão vingativa?
— Geralmente, não, mas no seu caso estou satisfeita que tenha tomado uma lição.
Yvette ergueu o dedo para que o bebê o pegasse e se distraísse.
—Tomado uma lição? Não tenho feito outra coisa desde que a conheci! Você me afetou de tal maneira que
já não sei mais o que fazer!
—Sinto muito, não tive intenção...
Dora apareceu do lado de fora da sala de visitas.
—Está tudo bem, Yvette? Oh, bom dia, lorde Bancroft. Que surpresa agradável!
—Como vai, lady Dora? Fiquei sabendo que lady Emily está aqui.
—Está sim. Gostaria de se juntar a nós? Vou pedir que nos sirvam chá.
— Venha, milorde. Tenho certeza que lady Emily e lady Margaret ficarão contentes em vê-lo.
—Obrigado. O prazer será meu.
Andrew lançou um olhar de triunfo para Yvette, que passou por ele com o queixo erguido, tentando manter a
altivez.
Pouco tempo depois as visitas partiram e Yvette e Dora ficaram em companhia de Andrew. Foram para a
biblioteca e, a certa altura, Dora olhou para a saia e disse em voz alta:
—Oh, como sou descuidada! Derramei licor na saia! — Ela fitou os dois, fingindo inocência. — Com licença,
mas preciso trocar o vestido.
— É uma pena, milady. Espero que consiga tirar a mancha. Yvette olhou para a mancha do vestido.
— Claro que conseguirá. A mancha é minúscula. Dora sorriu:
— Uma mancha é uma mancha. Foi um prazer revê-lo, Andrew.
—Pensei que nunca fôssemos ficar sozinhos. Há tantas coisas que quero lhe dizer...
— Então é melhor começar logo. Não poderá ficar muito tempo. Estou esperando outra visita.
—Posso saber quem é?
—Não, não pode.
—Sendo assim, esperarei até que ele chegue e o expulsarei a pontapés.
— Não seja grosseiro. Estou esperando lady Sedgeburry, que virá comprar meu jogo de porcelanas.
—Aquele do guarda-louças da sala de jantar?
— Exatamente. Preciso de dinheiro para pagar a última prestação da casa.
— Estou surpreso por não ter tentado vender o quadro que minha mãe lhe deu.
— Cheguei a pensar nisso, mas conseguirei mais dinheiro vendendo as porcelanas.
Só então ela percebeu o que havia dito. Andrew voltou-se para ela, surpreso.
—O que está querendo dizer? Aquele é um Bernard Chevalier!
Aliás, porque não o pendurou sobre a lareira, como eu lhe sugeri, em vez de deixá-lo no chão, encostado à
parede?
Yvette impacientou-se:
— Não tenho intenção de pendurá-lo em lugar algum. Não queria lhe dizer isso, mas aquele quadro é falso.
—O quê? É impossível! Posso jurar que é o mesmo quadro que está em nossa família há quase vinte e cinco
anos.
— Pode até ser, milorde, mas ainda assim o quadro é falso. Mon-sieur Chevalier era amigo de meu pai e deu a
pintura de presente a ele. O quadro ficou em nossa casa por vários anos.
— Acho pouco provável...
— Alguma vez menti para você, Andrew?
— Não. Por que não disse nada quando minha mãe lhe deu o quadro?
— O que eu teria lucrado com isso?
— Sei que vocês duas não se dão muito bem. E você precisa do dinheiro que ganha com as apresentações.
Deveria ter preferido o pagamento.
— Mas a que preço? Sua mãe se orgulha muito das coisas que possui. Além disso, também há outras razões.
— Quais?
— Prefiro mantê-las em segredo.
Andrew segurou-a pelos ombros.
— Não consigo entendê-la, Yvette. Quando penso que finalmente estou conseguindo conhecê-la, você muda de
repente e me confunde ainda mais. Mas você tem razão em uma coisa: minha mãe teria ficado desolada se
soubesse que o quadro é falso. Seu gesto foi louvável, ainda mais levando-se em conta o comportamento dela
em relação a você.
— Posso entender a lealdade dela para com a família.
— Mas eu não, minha guerida.
Andrew inclinou-se e a beijou. Surpresa, Yvette não tentou afastá-lo. A força do corpo de Andrew junto ao
seu, unido à gentileza dos lábios dele, deixaram-na sem ação.
Ele passou a beijá-la no rosto, na testa, nos olhos... Depois uniu os lábios aos dela mais uma vez, num beijo
longo e intenso.
Yvette só despertou para a realidade quando sentiu Sinbad, um dos gatos de Dora, esfregando-se contra sua
perna.
— Não, Andrew — disse, tentando afastá-lo. — Não podemos. Não está certo.
— Como não está? Por acaso é errado buscar a felicidade?
— Por favor, vá embora, antes que seja tarde demais.
Ela abaixou e pegou o gato, segurando-o de. encontro ao seio, defensivamente.
— Preciso de algum tempo para pensar, Andrew.
— Está bem, como quiser. Posso voltar à noite?
— Sim, Andrew. Venha me ver esta noite.
A promessa que havia por trás daquelas palavras, afetou-o de tal modo que Andrew teve que pôr as mãos para
trás. Foi a única maneira de impedir que elas a tocassem mais uma vez.
—E o quadro? O que pretende fazer com ele?
—Pode ficar com ele, se quiser. Não há necessidade de dizer à sua mãe que é falso. Talvez consiga pensar
em uma boa desculpa para que eu possa devolvê-lo.
— Está bem. Quanto à prestação da casa, pode considerar a dívida saudada. A casa é toda sua, de agora em
diante.
— Não quero! Sei que sua intenção é ser generoso, mas não posso aceitar isso. Em breve, terei dinheiro
suficiente para lhe pagar.
—O que farei com você, minha querida?
Andrew chegou às sete em ponto. Estava muito bem vestido, como sempre, mas Yvette notou um pouco de
nervosismo no rosto dele.
Ela ainda não tinha idéia de como contaria sua decisão a ele. Dizer tudo de uma só vez seria ir longe demais.
Melhor seria esperar o momento certo. Quase pulou da cadeira, quando Andrew aproximou-se de repente e
segurou sua mão.
—Obrigada por haver permitido que eu viesse. Sei o quanto você se preocupa com as aparências, mas por
vezes os sentimentos tornam-se profundos demais para serem compartilhados na presença de uma terceira
pessoa.
Yvette riu, nervosa.
—Lady Dora tem sido uma grande amiga, desde que saí da casa dos Berrington. Porém, reconheço que às
vezes ela se excede um
pouco em seu papel de dama de companhia.
Andrew soltou a mão dela e recostou-se no espaldar da cadeira. Sem desviar os olhos dos dela, disse:
— Tem idéia do que fez à minha vida, desde que a conheci? A verdade é que não consigo encontrar palavras
para descrever meus sentimentos em relação a você. Fico completamente perdido, se tento fazê-lo.
— Acho difícil imaginar que isso possa lhe acontecer — comentou ela, rindo. E mudando de assunto: —
Devolveu o quadro à sua mãe?
—Sim. Eu disse a ela que não havia gostado da idéia de me desfazer do Chevalier e que você havia
concordado em devolvê-lo, ainda que com certa relutância.
— Ótimo. Espero que ela tenha aceitado a história.
— Pelo visto, sim. Dentro de poucos dias você receberá um colar destituído de qualquer vínculo afetivo. É
muito valioso e espero que sirva para pagar suas dívidas, incluindo a prestação da casa, que tanto insiste em
pagar.
— Quando isso acontecer, não terá mais motivo para me visitar. Está tão ansioso assim para deixar de me
ver?
— Sabe muito bem que não. Mas é o que você deseja, não é? Não ter compromissos com ninguém?
— Esta é uma das coisas que desejo.
— Ah, então há outras?
Ele esperou pela resposta, mas Yvette permaneceu em silêncio. Andrew prosseguiu:
— Deixe-me adivinhar: você quer uma bela carruagem, jóias, uma sombrinha azul enfeitada com rosas de
seda e um casaco de pele com chapéu combinando.
— Pare de brincar. Sabe que não ligo para estas coisas.
— Então, o que é que mais quer, Yvette?
A resposta era fácil: ela queria ter uma família. Todavia, sabia que no momento era impossível. Mas já havia
tomado uma decisão. Não haveria como v.oltar atrás. Ficou de pé e foi até uma caixinha de música, deixada
sobre uma mesinha de canto.
— Não é uma pergunta fácil de ser respondida.
— Será que é por que tem outra coisa em mente, além das que mencionei?
— Pode ser. Coisas como: o que usar na apresentação em Marlborough House, o que fazer no sarau da
quinta-feira...
Ele riu:
— Já vi que não passei nem perto do que pensei que você tivesse imaginado.
— Não? — respondeu Yvette, abrindo a tampa da caixinha de música.
No mesmo instante, o casalzinho que havia no interior da caixa começou a rodopiar ao som de uma valsa.
Andrew ficou de pé e aproximou-se de Yvette, tomando-lhe a mão.
— Por outro lado, talvez você saiba o que eu estava pensando, mas esteja relutando em admitir. Aceita dançar
comigo, mademoiselle?
Sorrindo, Yvette aceitou o convite com uma leve inclinação de cabeça. Logo viu-se envolvida pelos braços de
Andrew e pela magia da dança.
No momento em que a música terminou, continuaram abraçados. Andrew foi o primeiro a quebrar o silêncio:
— Por que será que sempre que dançamos a música termina tão
rápido?
Yvette sorriu:
— Mais um pouco e você não teria fôlego para continuar, Andrew.
— A música tem pouco a ver com minha respiração alterada,-como você bem sabe.
— Não me diga que é a primeira vez que você dança com uma francesa, na privacidade da casa dela?
Andrew beijou-a na testa.
— É a primeira vez que danço com você. Quero dizer, danço realmente, sem estar sob o olhar de centenas de
pessoas.
— Hmmm. Acho que cometemos nosso primeiro atentado às regras sociais ao ficarmos sozinhos na
biblioteca. Talvez tenha sido um erro de minha parte. Isso não o preocupa, Andrew?
— Somente se preocupá-la também. Estou surpreso que Dora ainda não tenha aparecido por aqui.
— Ela foi jantar com Charles e a família dele.
— E mesmo? Então deve ter havido uma mudança súbita de planos, caso contrário ela estaria aqui, servindo
de dama de companhia.
— Não.
— Não? Está querendo dizer que já sabia que Dora ia sair quando concordou que eu viesse?
— Sim.
— Yvette...
— Sim, Andrew.
— Yvette, não brinque comigo. Houve um tempo em que eu gostava das provocações que fazíamos um ao
outro. Não importava quem saísse ganhando ou perdendo. Mas agora é diferente: troca de palavras já não é
suficiente para mim.
— Não estou brincando. Se me perguntar, descobrirá que estou disposta a aceitar sua proposta.
— O quê?
— Não finja que não entendeu. Por que está surpreso, afinal? Você mesmo me disse uma vez que não estava
acostumado a perder. Pois bem, lorde Bancroft, o senhor venceu.
— Não. Não acredito em você. Deve estar pondo em prática algum tipo de jogo; só que ainda não me disse as
regras, mademoi-selle.
Yvette segurou o rosto dele entre as mãos.
— Acredite-me, Andrew. A questão é simples: não quero perdê-lo. E se a única maneira de conseguir for me
tornando sua amante, aceito o desafio.
— Faria isso, mesmo conhecendo as conseqüências?
— Sei que poderá se tornar apenas um relacionamento passageiro. Mas eu lhe juro: quando se casar, como eu
sei que o fará, estará tudo acabado entre nós. Não suportaria manter um relacionamento com o marido de outra
mulher. Há mais uma condição: quero que venha à minha casa como meu convidado e não como protetor. Não
aceitarei nada de você. Nada, exceto sua afeição.
— Afeição? Como ousa chamar o que sinto por você de afeição? Será que não imagina o tormento pelo qual
passei enquanto estive fora da cidade? Eu a amo, Yvette. Mais que tudo. Mais que minha própria vida.
— Assim como eu te amo, Andrew. Gostaria de poder amenizar a dor que nossa separação irá nos causar.
— Não pode haver separação, Yvette. Case-se comigo. Torne-se minha esposa de verdade.
Yvette ficou olhando-o, sem saber o que dizer. Andrew a pedira em casamento e estava sendo sincero.
Contudo, estava surpresa demais para conseguir responder de imediato.
Ele entendeu aquele silêncio como uma aceitação e abraçou-a com força. O beijo que trocaram foi intenso,
ardente, como se naquele momento nada fosse capaz de separá-los.
— Não, Andrew. Desculpe se o provoquei. Não posso. Simplesmente não posso.
— Não pode? Claro, meu amor. Perdoe minha precipitação. Entendo que queira esperar até que estejamos
casados.
— O que eu quis dizer é que não posso me casar com você.
— Não pode se casar comigo? Não acredito! Por quê? É minha mãe, não é? Está com receio que ela me
convença a desistir quando souber da notícia. Confie em mim, meu amor. Minha mãe acabará concordando
quando perceber que estou decidido.
—Não, Andrew. O problema não é sua mãe; sou eu. É quem sou, quem fui. Por favor, não me peça
explicações agora.
Ele hesitou um instante, antes de responder:
—Está bem, não vou lhe fazer perguntas. Mas mantenho minha proposta: quero me casar com você.
Andrew andou em direção à porta e voltou-se para ela:
— E minha resposta é não, Yvette. Não quero tê-la como amante. Quero que pense na minha proposta de
casamento, antes de tomar uma decisão. Não iremos nos encontrar até o dia da apresentação em Marlborough
House. Até lá, espero que já tenha tomado uma decisão.
—Mas eu...
Não houve tempo para Yvette terminar o que ia dizer. Andrew já havia fechado a porta atrás de si.

CAPITULO XIII

Após a súbita partida de Andréw, Yvette foi para o quarto era cedo para dormir e Dora ainda não havia voltado.
Yvette ouviu um ruído vindo da porta entreaberta e viu Ulysses e Odysseus entrando no quarto. Sentou na cama e
brincou um pouco com os gatinhos, tentando se distrair. Algum tempo depois, cansou da brincadeira e achou
melhor ler um pouco. Esticou o braço e pegou o último romance de Jane Austen, sobre a mesinha de cabeceira.
Pouco depois, o som de papéis se rasgando a fez lembrar do diário do sr. Wolgren.
— Não, não, seus traquinas! — ralhou ela, tomando o diário dos gatos. — Vejam só o que fizeram! Rasgaram
a parte de trás do diário!
Ao examinar o rasgo, descobriu uma abertura na capa do diário.
— O que será isso?
Havia vários papéis enfiados na capa do livro. Yvette retirou-os com cuidado e foi espalhando-os sobre a
cama. Ulysses agarrou um deles, mas Yvette conseguiu tomá-lo dele. Em seguida, ela segurou o papel contra a
luz da vela.
Em princípio parecia uma série de números, mas logo Yvette notou que se tratava de recibos de dívidas,
algumas delas bem altas. Em todos os recibos havia a assinatura de Archibald Wolgren.
Yvette colocou os gatos no chão e reuniu todos os recibos.
— Agora vamos ver se o que estou pensando é verdade...
Ansiosa, pegou uma folha em branco e uma pena e começou a fazer a soma de todas as dívidas. A conta era
longa e o nervosismo a fez errar por duas vezes, mas quando terminou a conta, a quantia foi exatamente a
que esperava. A mesma que Wolgren acusara seu pai de haver roubado da Companhia Poole de
Embarcações.
Yvette conteve as lágrimas. Aquele dilema demorara anos, custara a vida de sua família, assim como a fortuna
que possuíam e quase destruíra sua chance de ser feliz. Entretanto, ali estava: a prova que precisava para limpar
o nome de seu pai. Cada recibo tinha uma data e todas elas coincidiam com os dias em que Wolgren o acusara
de roubo.
Tanto seu pai quanto Wolgren haviam pago aquela dívida com suas próprias vidas. Não era justo que aquele
assunto continuasse sem solução.
Fazia três dias que Andrew havia feito a proposta de casamento, quando Yvette recebeu um embrulho,
levado por um mensageiro especial.
Ela e Dora estavam tomando o chá da tarde, quando McMasters apareceu com o embrulho.
— O mensageiro disse quem o enviou?
— Não, senhorita. Disse apenas que havia um cartão dentro da caixa.
— Abra logo, Yvette! — pediu Dora, impaciente. — Adoro surpresas!
Yvette desamarrou o laço de veludo azul e rasgou o papel. Dentro da caixa retangular havia um colar e um par
de brincos com brilhantes, opalas e pérolas misturados numa exótica combinação. Yvette tirou o colar da caixa e
o segurou contra o vestido.
Dora mostrou-se impressionada:
— E meio exagerado, mas deve valer uma fortuna! Isto é, se as pedras forem verdadeiras. Vamos, leia o
cartão.
Yvette abriu o envelope e leu alto:

"Minha cara mademoiselle Cordé,


Meu filho me contou sobre sua gentileza ao aceitar devolver o quadro de Bernard Chevalier. Eu não sabia
que Andrew era tão apegado ao quadro. Em retribuição, quero que aceite o presente que lhe envio.
Sinceramente, lady Bancroft"

Quando Yvette viu a expressão no rosto de Dora, seu próprio sorriso tomou-se surpreso.
— Por que está tão surpresa, Dora? As jóias são verdadeiras.
— Quando devolveu o quadro para lorde Bancroft? Não me diga que ele esteve aqui quando saí para jantar
com a família de Charles?
A moça corou.
— Asseguro-lhe que não aconteceu nada de mais. Se quer saber, Andrew me pediu em casamento.
— Não diga!
— Sim, é verdade. Sei que não entenderá, mas fui obrigada a recusar.
— Ah, não. Você deve estar louca! Não acredito que tenha recusado, depois de todo trabalho que tive para
unir vocês! Bem, mas conhecendo-a como conheço, sei que deve ter tido uma boa razão para ter feito isso,
querida. Talvez esteja na hora de termos aquela conversinha sobre seu passado.
— Está bem. Mais cedo ou mais tarde a história terá mesmo de vir à tona.
Yvette só conseguiu terminar de contar a história uma hora depois. Dora ficou surpresa demais para emitir
qualquer comentário.
— Meu pai foi morto por um dos generais de Napoleão, por ter sido confundido com um espião inglês.
Algum tempo depois, eu e minha mãe conseguimos voltar para a Inglaterra em um navio cargueiro.
Infelizmente, ela ficou doente durante a viagem e morreu dez meses depois.
— Foi por isso que foi trabalhar como criada na mansão dos Berrington?
— Sim. O cunhado do homem que morreu no duelo com meu pai jurou que me encontraria e me forçaria a
devolver o dinheiro roubado. Dinheiro que foi roubado pelo sr. Wolgren, para cobrir dívidas de jogo.
— Por que não o denuncia à polícia?
— Não tenho como provar as ameaças dele. A carta que ele nos enviou foi perdida durante nossa viagem de
volta à Inglaterra. Nem tenho certeza do nome dele ou mesmo de sua aparência.
— Ele ainda não tentou encontrá-la?
— Não sei. Diversas vezes, tive a impressão de estar sendo seguida, mas não sei dizer se era apenas minha
imaginação.
— Como deve ter sofrido, querida. Vou falar com alguns amigos meus; com os recibos que encontrou
poderemos limpar o nome de seu pai.
— Ainda não, Dora. Será melhor começarmos depois da apresentação em Marlborough House.
— Está certo. Mas saiba que pode contar comigo, amiga.
— Sim, eu sei, Dora.
Lorde Bancroft chegou na hora marcada para levá-las a Marlborough House.
O salão de baile já estava repleto de convidados quando chegaram. Charles postou-se ao lado de Dora assim
que ouviu o nome dela ser anunciado.
Yvette dirigiu-se a Andrew:
— Estou muito grata por haver nos trazido ao baile mas, por favor, não se sinta obrigado a me fazer
companhia. Dora está perto o suficiente para manter as aparências.
Andrew pegou a mão dela e colocou-a em seu braço.
— Não sairei do seu lado. A menos que tenha esquecido, espero uma resposta sua esta noite.
— Andrew, por favor, não torne as coisas mais difíceis do que já estão sendo para mim.
Ao notar que estavam sendo observados, Yvette forçou um sorriso. Pelo canto dos olhos, viu que se tratava de
um homem de aparência esquisita. Ele aproximou-se dos dois, sem tirar os olhos do rosto dela.
Yvette prendeu a respiração. Seria aquele o homem que a estava perseguindo?
Andrew notou que ela estava amedrontada.
— O que foi, Yvette?
— Nada. Eu... Eu preciso de um pouco de ar.
A esta altura o homem já estava diante dela. Ele cumprimentou-a com uma mesura.
— Mademoiselle. Seria uma grande honra para mim, se me permitisse assinar seu cartão de danças.
Andrew interviu:
— Lamento, mas o cartão de mademoiselle já está completo.
— Eu... Eu sinto muito.
Quando o homem se retirou, ela voltou-se para Andrew:
— Acabou de dizer uma grande mentira! Nem comecei a preencher meu cartão!
— Não será preciso preenchê-lo: suas danças já estão todas reservadas.
Tomando a mão dela com elegância, conduziu-a à pista de danças.
—Há algo que precisa saber antes de se encontrar com minha mãe, esta noite.
—Ela está aqui?
—Está. Preciso lhe dizer que contei a ela sobre o quadro.
—Andrew! Por que fez isso? Ela deve ter ficado arrasada.
—Nem tanto. Também contei a ela que quero me casar com você.
Yvette olhou para ele, incrédula.
—Não deveria ter feito isso. Decidi recusar seu pedido.
—Não aceitarei sua recusa. Estamos destinados a ficar juntos.
—E sua família? E as normas rígidas que o título exige de você?
— Tudo é passível de mudança, querida. Se eu não tivesse certeza de seu amor por mim, não me arriscaria
dessa maneira mas, Yvette, eu sei que me ama tanto quanto eu a amo.
Ela permaneceu em silêncio, fingindo estar concentrada nos passos da dança.
— Diga alguma coisa — pediu ele.
Yvette ergueu os olhos para ele.
— Sim, Andrew, eu o amo. Mas há algo que preciso lhe dizer antes de irmos mais longe.
— Nada do que disser mudará minha decisão, meu amor. Prefere conversar em um lugar mais reservado?
— Sim. No jardim.
Andrew arqueou a sobrancelha.
— Eu ia sugerir isso, mas pensei que...
— Tem razão. Primeiro preciso avisar Dora.
— Está bem.
Encontraram Dora e Charles conversando animadamente, perto da porta que dava para o jardim.
— Dora, se importaria de nos acompanhar até o jardim? Preciso falar com lorde Bancroft em um lugar mais
reservado.
Dora assentiu. Os quatro saíram para o jardim.
Dora e Charles sentaram-se em outro banco, a certa distância. Andrew sentou-se ao lado de Yvette e tentou
tomar-lhe as mãos, mas ela não permitiu.
— Não, Andrew. Está sendo difícil para mim. Por favor, não me distraia. Você me disse uma vez que não sabia
nada a meu respeito...
— Isso já não importa, Yvette.
— Não, Andrew. Preciso lhe dizer quem sou. Meu nome verdadeiro é...
— Mademoiselle Yvette Bouvier? — disse uma voz rouca de homem, próxima a eles.
Yvette sobressaltou-se e ficou de pé. A expressão de seu rosto era de puro medo.
O homem estava bêbado, pelo modo como estava apoiado em um dos pilares do jardim. Andrew postou-se
diante dele.
— Escute aqui, meu amigo, esta é a srta. Cordé. Deve tê-la confundido com alguém.
— Quem é você? Por que esteve me seguindo?
— Meu nome é Clifford Waxton. Meu cunhado era Archibald Wolgren, o homem de quem seu pai roubou dez
mil libras e depois matou, com a desculpa de um duelo.
Yvette passou a mão pela testa e tentou manter a voz firme, quando disse:
— Está enganado, monsieur.
— Não, não estou. Por acaso, nega que é Yvette Bouvier?
Ela olhou Andrew por um instante e respondeu:
— É verdade, sou Yvette Bouvier. Mas meu pai era inocente; tenho provas.
— Mentirosa!
O homem avançou na direção de Yvette, com a intenção de agredi-la. Assustada, Yvette perdeu o equilíbrio e
teria caído, não fosse Andrew tê-la segurado a tempo. Contudo, seus cabelos acabaram se molhando na água do
chafariz.
O tumulto chamou a atenção de vários curiosos, que se aproximaram para ver Andrew enfrentar o estranho.
Dora correu até Yvette. Assim que olhou para o rosto da moça, soltou um gritinho.
— Santo Deus! O que é isso na sua testa? Sangue?
— Acho que não. Meus cabelos! O que vou fazer agora?
Três mordomos apareceram para segurar Waxton, que continuava a esbravejar e dizer obscenidades.
—Terá que devolver o dinheiro que seu pai roubou!
Os mordomos o levaram para longe, até que a polícia chegasse para prendê-lo.
Yvette começou a enxugar o rosto com um lenço de renda.
—Oh, Andrew, sinto muito causar-lhe tanto embaraço...
—Esqueça. Precisamos levá-la para dentro.
Yvette não deu ouvidos ao que ele dissera e começou a dar explicações:
— Meu pai nunca roubou dinheiro algum. Wolgren extorquiu o dinheiro da companhia e, para encobrir o
crime, acusou meu pai. Ele pensou que conseguiria esconder o crime matando meu pai em um duelo, mas foi
ele quem acabou sendo morto.
—Oh, minha querida, eu não sabia... Tente não pensar nisso agora. O mais importante é sua segurança.
Precisamos tirá-la daqui.
Dizendo isso, guiou-a em direção à casa.
Um dos convidados adiantou-se e abordou Yvette:
— É verdade, mademoiselle? É mesmo a filha de Antoine Bouvier?
—Sim. Meu pai era um nobre francês, filho de Comte Calvert de Lyons.
—Então era isto que a estava preocupando? Por que não me contou antes? Mulheres! O que faremos agora?
Devo levá-la para casa?
—De maneira alguma! Ela não pode passar por aquele salão com o rosto todo manchado de tintura!
Viram uma pessoa abrindo caminho em meio aos curiosos.
—Esperem um pouco. Sei como resolver esse problema.
—Mamãe! — exclamou Andrew, espantado.
Lady Bancroft tirou o delicado xale dourado dos ombros e cobriu os cabelos de Yvette.
—Isto servirá até pensarmos em uma solução melhor. Venham comigo.
Dora e Yvette seguiram-na por uma entrada lateral e entraram em um quarto onde já havia uma bacia com
água quente.
—É muita gentileza sua, lady Bancroft.
—Eu não podia permitir que meu filho fizesse parte desta... comédia.
—Sinto muito. Peço desculpas por qualquer embaraço que eu tenha causado à senhora e à sua família,
milady.
— E um pouco tarde para se desculpar, não acha?
Dora interviu:
—Mas que discussão tola! Se Yvette fosse uma criada fingindo ser da nobreza, aí sim haveria motivo para
embaraços.
Lady Bancroft fitou Dora por um instante.
— Tem razão. Bem, mas primeiro vamos dar um jeito neste cabelo. O que é isto, srta. Cordé? Pintou os
cabelos?
—Sim, eu...
Dora bateu palmas de contentamento.
— Maravilhoso! Quer dizer que você é loira! Oh, Yvette, deveria ter me contado! Sempre achei que a cor de
seus cabelos não combinava com seu rosto. Acho melhor avisarmos a duquesa que sua apresentação não será
possível.
— Nada disso — discordou a viscondessa. — A srta. Cordé usará um turbante para se apresentar. Por que não
usa meu xale, que combina com a cor do vestido?
—Ótima idéia! — exclamou Dora.
Yvette olhou para lady Bancroft, tentando imaginar o motivo daquela mudança súbita.
—Por que está sendo tão gentil comigo, milady?
— Estou começando a me dar conta de que talvez eu a tenha julgado mal. Quando Andréw me contou o que
você fez para resguardar o nome de minha família no caso daquele quadro falso, concluí que havia algo mais
em você, além de um rosto bonito e de uma bela voz. Gostaria que soubesse que eu já havia concordado com
seu casamento com Andrew, antes mesmo de saber que você descendia de família nobre.
—Eu... Eu não sei o que dizer, milady.
—Não diga nada. Dentro de um ou dois dias quero que vá me visitar. Preciso saber mais detalhes sobre sua
família.
Dora estreitou os olhos:
—E por falar nisso, lady Bancroft, também estamos curiosas para saber mais detalhes sobre sua família.
Archibald Wolgren, que roubou o dinheiro da companhia de embarcações, não era seu primo?
A viscondessa empalideceu. Yvette achou melhor intervir:
—Por favor, vamos deixar o assunto para depois. Preciso que me ajudem a arrumar o turbante.
Felizmente, as duas resolveram fazer uma trégua e passaram a ajudar Yvette a se aprontar para a
apresentação.
Do lado de fora, Andrew esperava, impaciente. Ainda estava muito confuso com toda aquela história.
Estava distraído com seus pensamentos, quando ouviu um murmúrio de vozes. Virou-se no mesmo instante. A
última coisa que esperava ver era sua mãe, Yvette e Dora de braços dados, rindo alto. Lady Bancroft veio até
ele.
— Ora, Andrew, não fique aí parado com a boca aberta. Yvette sorriu para ele.
— Creio que lhe prometi a próxima dança, milorde. Andrew fez uma mesura e ofereceu o braço a ela.
— Será um grande prazer, mademoiselle Bouvier.
Quando começaram a dançar ao som da valsa, Andrew foi o primeiro a falar:
— O que aconteceu? Mal reconheci minha mãe, quando a vi há pouco.
— Eu explico depois.
— É, creio que há muito a ser explicado.
— Perdoe-me por não haver confiado em você, Andrew. Mas é que senti que minha vida dependia disso.
— Perdoá-la? Não sei se devo... — O ar de riso nos olhos dele desmentiu o tom sério das palavras. — Só
tenho certeza de uma coisa: levarei muito tempo para conhecê-la por completo. — Ele riu: — E para ensiná-la
a me amar tanto quanto eu a amo.
Yvette fitou-o com os olhos marejados de lágrimas. Demonstrou a felicidade que estava sentindo no sorriso
cheio de promessas com o qual presenteou Andrew.
— As lições já começaram há muito tempo, meu amor...

FIM

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