Você está na página 1de 270

1

Stephen Play

ERAS
Livro 2
Caminho
1ª edição

Exemplar de cortesia ao leitor


Não pode ser comercializado
3
Editora Americana
Florianópolis

2015
Copyright © 2015 por Stephen Play

Este livro eletrônico é uma cortesia da Editora Americana aos leitores, que estão autorizados a copiar e
compartilhar o documento no formato PDF. Não é permitida a adaptação, a alteração e/ou o uso comercial
de parte ou do todo, sob qualquer meio existente. Todos os direitos autorais são reservados.

Projeto gráfico e diagramação: Beatriz Electra Maia


Revisão: Bárbara Eleonora Merope
Capa: Bárbara Eleonora Merope

2015

Todos os direitos autorais reservados à


Editora Americana
Florianópolis, SC
Telefone: 48 4052.9492
www.editoraamericana.com.br
contato@editoraamericana.com.br
5
As etapas evolutivas de todos nós, independentemente das crenças que temos – ou não –, são invariáveis para
cada Era planetária. As etapas que vigem atualmente nos foram mostradas pelo Cristo Jesus em sua efêmera
passagem pelo Mundo Material. Breve em tempo, limitada em espaço, mas grandiosa em suas consequências. Seus
ensinamentos, exemplificados na vida humilde do carpinteiro até a morte no madeiro ultrajante, tornaram-se os
guias seguros da Humanidade, invariáveis e precisos, apesar de corrompidos. Estes ensinamentos tornam-se
sabedoria, quando vivenciados integralmente.
Christian Joaquim de Assis, o protagonista da série ERAS, oriundo das Plêiades, viveu a etapa evolutiva da
6
Instrução no livro 1 – Despertar. As sete etapas que iniciam a seguir, no capítulo um do livro 2 – Caminho, foram
distribuídas em 33 capítulos. São elas Tentações, Lava-pés, Flagelação, Coroação de Espinhos, Morte Mística,
Sepultamento e Ressurreição. Estágios obrigatórios na jornada de todos nós, inarredáveis e compulsórios, são,
todavia, proteláveis. A opção do adiamento é a combinação nociva de ignorância e comodismo, porque larga é a
porta e espaçoso o caminho que conduz à destruição.1
O Caminho exemplificado pelo Cristo e relatado neste livro na trajetória de Christian é um caminho possível
e contemporâneo. Procurei ser fiel à realidade que conheço, ao passado que vivi e ao futuro que desejo intensamente.
Stephen Play, Florianópolis, 21/12/2015

1
Citação de Mateus 7:13, O Novo Testamento, tradução de Haroldo Dutra Dias, FEB
Ainda não estou pronto. Apesar de ter pleno conhecimento de toda a trajetória que percorri, neste e em
outros mundos, ainda não sou consciência unificada no Quarto Globo. Sei meu nome; sei quem sou e a
que vim. A jornada que trilhei com meu irmão Kuius fez com que minhas memórias fossem totalmente
restabelecidas. Sou Equ-Mupou de Taygeta, do Complexo Pleiadiano.
Fui voluntário numa missão de auxílio ao Quarto Globo deste sistema solar, o planeta chamado
Terra; eu e mais onze estamos aqui. Nascemos de mulheres e crescemos entre nossos irmãos humanos,
como qualquer um deles. Nem mesmo nós sabíamos desta condição: estávamos latentes. Apenas eu fui
7
despertado por Kuius; os outros ainda vivem como humanos normais – ou foram perdidos.
Minha tarefa será ajudá-los, assim como eu fui.
Não sei exatamente o que terei pela frente. Recordo apenas das palavras de Kuius, e são elas que me
impulsionam na densidade da matéria terrestre. Ele disse, quando nos separamos: “Tu sempre terás a
ajuda necessária.”
Acredito e sigo o Caminho.
O telefone tocou cedo, enquanto Christian terminava o preparo de seu desjejum; lavou as mãos e atendeu:
 Alô.
 Christian, bom dia – falou uma voz feminina com sotaque estrangeiro.  É Stefanie; podemos
falar?
A imagem da ex-chefe veio de imediato à mente de Christian. A diretora, de origem suíça, gerenciava
o Club Pax Itaparica, onde Christian trabalhara por um longo período; fora demitido após envolver-se
com hóspedes do luxuoso resort de praia. Stefanie fora modelo e atriz antes de dedicar-se à hotelaria.
8
Estava nos seus 41 anos de idade, mas aparentava muito menos; era admirada tanto pela beleza e elegância
quanto por sua eficiente administração à frente do empreendimento. Atuava com mão-de-ferro e
obstinação; era conhecida por sempre conseguir o que queria, e também pelo temor que despertava nos
subalternos.
 Bom dia, dona Stefanie – respondeu Christian, algo surpreso.  Sim, podemos falar.
 Chame-me apenas Stefanie, está bem? – disse ela com o sotaque carregado, mas com dicção
perfeita.
 Certo... Posso ajudá-la?
 Sim. Quero falar com você. Tenho uma proposta e gostaria de apresentá-la hoje pela manhã: dez
horas na gerência do resort está bem para você?
O modo direto e objetivo da diretora era às vezes confundido com aspereza no trato com as pessoas,
principalmente quando os interlocutores eram naturais da região; não era o caso de Christian.
 Posso confirmar com você às oito? Estou trabalhando e preciso da autorização de meu chefe.
 Aguardo sua ligação, Christian. Anote o número de meu telefone pessoal, por favor – e desligou,
após dizer um número de celular.
Christian continuou cortando suas frutas e, agora, remoendo qual o assunto que haveria entre eles.
Sua saída daquele trabalho não fora exatamente amigável. Ele recebera advertências até ser finalmente
demitido por justa causa. Também se perguntava o porquê desta ligação justamente naquele momento.
Sabia que teria as respostas até o final do dia.
O patrão de Christian no mercadinho, o Sr. Gomes, não colocou empecilhos para o compromisso;
9
Christian confirmou com a diretora e, pouco depois, já estava a caminho do local.
Era surpreendente para ele o novo olhar que tinha após a integração de todas as memórias de sua
existência. Saber exatamente quem era e qual sua missão fazia toda a diferença. Christian saboreava a
paisagem e agradecia internamente pelos acontecimentos recentes. Ao mesmo tempo em que admirava a
vida naquele planeta, tão vasta e bela, ele sabia que mudanças viriam e deveria preparar-se para elas.
Entrou pela recepção do belo resort e cumprimentou uma ex-colega que o recebeu. Tudo estava
como em suas lembranças: algumas caras novas vestindo o uniforme de trabalho, cartazes de eventos e
promoções; AOs e ACs – os amáveis organizadores e colaboradores, no jargão do estabelecimento –
movimentavam-se de forma rápida e urgente, mas sempre ordenada. Christian sempre admirara aquele
método organizacional, que avaliava simples e eficiente.
Aguardou por dez minutos na antessala do escritório de Stefanie; havia revistas, café e água
disponíveis, mas ele preferiu apenas esperar. A secretária era conhecida sua apenas de vista; anotava
coisas numa agenda, encaminhava ligações e entrava e saía da sala da diretora; tinha um ar de empáfia
presente no semblante juvenil e não dedicou mais que um “bom dia” protocolar a Christian. Ela abriu a
porta e falou:
 A senhora Stefanie vai recebê-lo agora – ao que Christian levantou-se e entrou.
 Christian! Bom dia novamente. – saudou-o efusivamente, levantando-se e cumprimentando-o com
um beijo na face.  Sente-se, por favor – disse apontando uma confortável cadeira em couro defronte à
grande mesa de mogno brasileiro.
 Em que posso ajudá-la, Stefanie? – falou Christian sem preâmbulos.
10
Toda aquela situação lhe era incômoda – principalmente por ser inesperada e, até o momento, ilógica.
Queria entrar logo no assunto e voltar ao seu trabalho.
 Gosto de pessoas objetivas, Christian; ponto para você.
 E para o que estou somando pontos?
 Tenho uma proposta a lhe fazer; irrecusável, diga-se de passagem – afirmou, sorrindo e confiante.
 Deixe que eu avalie isto, Stefanie. Qual a proposta?
 Quero que volte a trabalhar conosco, Christian, numa função de muita responsabilidade. Chefe de
Serviço do Club Pax Itaparica.
Christian teve um pequeno choque com a surpreendente proposta: o Chefe de Serviço era o segundo
na hierarquia do resort, subordinado apenas à diretora – Stefanie. Resumindo, era a pessoa que
administrava todo o complexo, o braço executivo da diretoria. A mulher continuou:
 O cargo está vago e eu estou sobrecarregada, Christian. Pensamos em você.
 Não entendo, Stefanie... Eu era um simples AC de manutenção. Agora você me oferece o maior
cargo depois do seu.
Stefanie retirou uma pasta da gaveta superior da mesa e abriu-a; era o dossiê de Christian. Ela
começou a recitar as partes principais da carreira profissional dele:
 Graduação em Administração na Universidade Federal do Rio Grande do Sul... Especialização em
gestão empresarial na FURG, de Rio Grande... MBA Executivo na Fundação Getúlio Vargas... Estágio
11
remunerado no Googleplex, em Mountain View, Califórnia... Professor-convidado da Universidade de
Stanford... Estes locais são próximos, não?
 Sim – assentiu –, muito próximos.
 O que aconteceu, Christian? Um início de carreira tão promissor... Sei que conseguir estágios nesta
empresa não é fácil: Google?! Uau!, conheço pessoas que dariam um dedo para trabalhar lá. Dar aulas
em Stanford também não fica para trás. E aí você desiste e vem trabalhar como faz-tudo na Bahia... O
que aconteceu?
 Nada demais. Aquele materialismo levado ao extremo me sufocava... Percebi que uma sociedade
que tem como objetivo consumir sempre mais, acabará consumindo a si própria.
 E resolveu desistir de tudo...
 Resolvi mudar, Stefanie. Na época eu não tinha certeza de nada, apenas que aquele não era meu
caminho.
 E agora, já encontrou seu caminho?
Christian conteve-se; a conversa seguia numa direção que extrapolava uma simples entrevista de
emprego.
 Continuo buscando, Stefanie – tergiversou –, continuo buscando.
 Você é altamente capacitado para o cargo; já tem experiência conosco, conhece a estrutura e as
pessoas. Confio em você e quero que trabalhe conosco – finalizou, imperativa.
Christian observava a mulher e não podia deixar de admirá-la: reunia as melhores características de
cada sexo. Usava sua beleza e sua capacidade de sedução – sua feminilidade – quando necessitava. As
12
situações que precisavam de ação efetiva, firmeza e objetividade eram contempladas com um
comportamento quase masculino. Um equilíbrio quase perfeito das polaridades. Uma chamada telefônica
interrompeu seus pensamentos. Stefanie atendeu, falando para a secretária:
 Sim, mande entrar.
A porta se abriu e uma linda jovem entrou, caminhando como uma modelo na passarela. Era esguia
e elegante, com longos cabelos loiros e lisos; os olhos claros e os traços delicados conferiam um aspecto
misterioso ao seu rosto.
 Michèle, venha conhecer nosso futuro Chefe de Serviço – disse Stefanie, aproveitando para
pressionar um pouco mais.  Christian, esta é Michèle, minha filha.
Ele levantou-se e os dois se cumprimentaram com um breve sorriso; o perfume cândido e floral da
garota penetrou nas narinas de Christian, causando um pequeno abalo nos instintos físicos, que ele
rapidamente controlou.
 Ela não é linda, Christian? – perguntou com um típico orgulho maternal.  Mostre o seu book para
ele, querida – sugeriu, vendo que o livro com o ensaio fotográfico estava em suas mãos.
Michèle entregou o volume para Christian e chamou sua mãe para uma conversa privada, junto à
grande janela do gabinete, onde ele não poderia ouvi-las. Christian começou a folhear o livro
distraidamente, pensando que tudo aquilo estava ficando sem sentido, uma perda de tempo. Prendeu a
respiração ao ver as primeiras fotos: o ensaio era sensual, com a garota vestindo apenas um minúsculo
biquíni. Folheou mais algumas páginas; a parte de cima do biquíni desapareceu; algumas páginas a mais
13
e a calcinha sumiu, até que a menina aparece nua nas últimas fotos.
Christian fechou o livro com vagar e sentiu-se corar; as mulheres ainda conversavam sobre viagens
e roupas, sem dar atenção a ele. Colocou discretamente o calhamaço sobre a mesa e aguardou
pacientemente.
A conversa terminou e a menina saiu sem despedir-se, aparentemente zangada com alguma coisa.
Stefanie voltou para a mesa, o semblante a mostrar contrariedade.
 Desculpe-me, Christian, deveres de mãe – falou enquanto sentava.
 Não há problema.
 Michèle vai morar em Nova Iorque com mais três modelos e estamos organizando sua viagem.
 Qual a idade dela, Stefanie?
 Dezesseis.
 E você não tem receio de que Michèle seja muito jovem para morar tão longe com algumas garotas?
 Haverá uma tutora paga pela agência que irá morar com elas. Este mercado é assim mesmo,
Christian: as meninas começam muito cedo e com dezoito, vinte anos já são produtos obsoletos.
Christian não argumentou, mas achou estranha a escolha das palavras que a mulher fez para definir
a carreira pretendida pela filha. Ela continuou:
 Vamos fazer o seguinte, Christian: eu estou na minha hora para massagem e sauna; você me
acompanha e continuamos nossa conversa.
Ela disse isto, levantou-se, pegou sua bolsa LV e encaminhou-se para a porta. Christian sequer pôde
aceitar ou negar; percebeu que não era um convite, mas uma ordem. Stefanie fazia jus a sua fama.
14
Caminharam juntos até o SPA onde eram realizadas as terapias e práticas relaxantes para os hóspedes
enquanto Stefanie distribuía ordens e fazia reprimendas quando percebia algo fora do lugar. Os antigos
colegas de trabalho olhavam para Christian com sobrancelhas erguidas, surpresos em vê-lo caminhando
dois passos atrás da diretora.
Entraram juntos na ala mais exclusiva do SPA. Stefanie deu algumas ordens e logo uma atendente
trouxe-lhes roupões, toalhas e chinelos, indicando as cabines de banho que estavam vagas. Christian
tomou uma ducha rápida e vestiu o roupão; quando saiu já havia uma moça o esperando; ela o levou até
uma maca de massagens que ficava em frente a uma grande janela de vidro, com vista para a praia; na
maca ao lado um massagista com traços chineses trabalhava no corpo de Stefanie; eles eram os únicos
naquele ambiente, visivelmente preparado para hóspedes VIP.
A massagista que atenderia Christian entrou na sala; era uma mulher também de origem oriental. Ela
cumprimentou-o com um breve sorriso artificial e ajudou-o a tirar o roupão; Christian ficou em pé,
vestindo apenas sandálias Havaianas brancas, sem saber exatamente o que deveria fazer.
 Deitar na maca – comandou a massagista, com sotaque carregado –; barriga prá baixo.
Ele obedeceu, constrangido; deitou-se e a mulher colocou uma toalha branca que cobriu seu corpo
da cintura até as canelas, como estava Stefanie – que observava tudo com olhar impassível. A massagista
começou seu trabalho e encaixou o rosto de Christian no orifício estofado da maca. Naquela posição ele
conseguia enxergar apenas os pés da maca, da massagista e o piso impecavelmente brilhante do lugar.
Ouviu a voz de Stefanie, que pareceu não ter cerimônias em discutir a proposta na frente dos orientais:
 Preciso de dedicação absoluta à função, Christian, 24 horas por dia, sete dias por semana; você irá
15
morar aqui no resort, numa suíte exclusiva; um veículo funcional estará sempre à sua disposição – uma
Mercedes ML 63. Alimentação, combustível e guarda-roupa por conta do Club Pax.
Christian gemia baixinho enquanto a mulher pressionava tendões e músculos das suas costas; tentava
prestar atenção nas palavras de Stefanie, que parecia estar sempre trabalhando, até em momentos de
relaxamento como aquele; não falou nada e, depois de um gemido mais forte, a diretora continuou:
 O salário é variável de acordo com o faturamento de Itaparica – disse, referindo-se à unidade
baiana do resort, que contava com várias espalhadas pelo mundo.  Você receberá um fixo de R$
10.000,00 em carteira, mais um extra para despesas de R$ 5.000,00. A parte variável vai de R$ 4.500,00
na baixa temporada até R$ 15.000,00 na alta; é pago mediante nota fiscal de serviços – e isto significa
que você terá de constituir uma empresa para receber.
Christian fazia as contas daquela bolada toda; nunca tivera remuneração semelhante em sua vida
profissional. Carro. O melhor automóvel que tivera fora um VW Gol 94; ela estava lhe oferecendo um
carro de sonhos, que poucos tinham oportunidade de sequer ver. Roupas. Despesas. O salário seria
praticamente livre. E iria morar o ano inteiro onde pessoas abastadas pagavam muito para estar durante
alguns dias. Perfeito. Tudo perfeito. Tentador.
 Desculpe, mas não estou interessado, Stefanie. Agradeço... Aaaaiiiii – berrou quando o dedão da
massagista afundou nos tendões da parte posterior do joelho.
A mulher não esboçou qualquer pedido de desculpas e continuou a massagem, agora com mais vigor.
Christian se perguntou se fora simples coincidência – a negativa e o movimento da massagista –, enquanto
engolia em seco e esperava os espasmos da dor cessarem.
16
 Entendo que esteja confuso, Christian – falou a diretora num tom professoral e sarcástico.  É uma
mudança muito brusca em sua vida, não? Você certamente já está habituado àquela choupana em que
vive, ao salário de R$ 800,00 e à rotina excitante de esquartejar porcos e galinhas. Eu entendo sua
confusão.
Stefanie ficou em silêncio por alguns momentos; parecia redefinir a estratégia da abordagem.
 Mas o que estamos fazendo? – disse ela com a voz divertida.  Negociando neste oásis de prazeres!
Que vergonha, não? Finalizem a massagem e preparem a sauna úmida para nós – ordenou aos atendentes.
Ambos tomaram duchas novamente para retirar o creme oleoso utilizado na massagem; garçons
ofereceram isotônicos artificiais e naturais para que se hidratassem antes da sauna. Stefanie e Christian
entraram na pequena sala que tinha toda uma parede feita de grossas lâminas de vidro temperado
transparente. Normalmente as saunas eram feitas em ambiente interno, fechado, o que conferia um ar
lúgubre que contribuía para que as pessoas com algum grau de claustrofobia as evitassem. A engenharia
do resort encontrara uma solução simples, usando o vidro que normalmente era empregado como barreira
de segurança, em portas de bancos, sacadas de prédios etc. Suas características de bom isolamento térmico
e superfície perfeitamente plana permitiam que os hóspedes fizessem sauna com a inebriante vista de
coqueiros, céu e mar. Eles se acomodaram em confortáveis cadeiras feitas com filetes de madeira nobre,
retiradas da grande floresta amazônica que dominava o norte do Brasil. Vestiam roupas de banho – sunga
e biquíni – e novas toalhas, grandes e felpudas.
Stefanie começou a falar, enquanto passava um creme hidratante nos vastos cabelos claros.
 Diga-me o que está incomodando você, Christian. Ou me faça uma contraproposta: tudo é
17
negociável – disse sorrindo, os dentes perfeitamente simétricos e de uma brancura impossível.
Ele notou os incisivos centrais superiores mais longos que o restante, o que dava a ela um improvável
ar de coelhinha.
 Eu não tenho a ambição de uma carreira profissional por cargos poderosos e dinheiro, Stefanie. É
só isto... Agradeço muito sua proposta, muito generosa por sinal. Sei que muitos dariam o braço direito
por um emprego assim.
 Mas não você, não é mesmo?
 Não, neste momento não.
 Qual a sua ambição, Christian? Qual seu maior desejo?
 Procuro viver sem isto, Stefanie, sem ambições e desejos materiais...
 Um idealista do espírito, então... No que você acredita, meu querido? – perguntou, sedutora.
O suor escorria pelos corpos relaxados; a parede de vidro já perdera a transparência inicial e agora
era uma pequena cascata de umidade condensada. Stefanie levantou-se pegou um pequeno frasco de óleo
essencial; foi até um pequeno dispositivo próximo à porta de entrada e depositou 15 gotas. O aroma suave
de ylang-ylang – que Christian não reconheceu – preencheu rapidamente o ambiente, assim como a
sensualidade que transbordava do corpo da mulher que ondulava com trajes mínimos, a transpiração
conferindo um brilho obsceno às curvas esculpidas à malhação e bisturi. Somente naquele momento
Christian notou que o modelo do biquíni era fio-dental; ele desviou o olhar, constrangido com a situação.
A mulher finalmente sentou-se e inquiriu, exigindo uma resposta, uma tomada de posição para que
pudesse prosseguir com sua demanda:
18
 Acredita em um deus, num todo-poderoso... Qual sua religião, Christian?
 Apenas acredito numa Consciência que está acima de tudo e todos. E procuro viver de acordo... –
respondeu da forma mais superficial possível.
A conversa tornara-se um interrogatório que o desagrava.
 Eu acredito na supremacia do homem no planeta, Christian; somos os comandantes da Terra, os
supremos mestres deste universo. Somos os líderes e nós, os mais evoluídos, somos responsáveis por
guiar o caminho de todos os outros. Eu e você somos talhados para sermos líderes de líderes.
 Não tenho grande necessidade de dinheiro, Stefanie. Vivo com muito pouco... Também não anseio
poder. Prefiro ajudar outras pessoas a dedicar minha vida a um projeto pessoal.
 Veja, meu querido: o cargo que lhe ofereço não é para ganhar dinheiro ou satisfazer prazeres
pessoais; é para orientar e ajudar pessoas menos favorecidas pela evolução deste planeta. Olhe para as
oportunidades que você terá: serão 250 pessoas sob seu comando direto; estes colaboradores influenciam
pelo menos mais setecentas pessoas nas suas famílias. Coloque amigos e conhecidos e chegará a mais de
duas mil pessoas sendo tocadas pela sua liderança direta e indireta – argumentou, persuasiva.
Ele apenas continuou olhando-a diretamente, sem expressar aprovação ou não; ela continuou:
 O poder que você terá nas mãos será enorme; o poder de mudar a vida das pessoas, de incutir-lhes
positividade, valores morais e éticos. Não se trata de dinheiro, meu querido; dinheiro é apenas uma
consequência. O objetivo real é muito mais elevado.
Christian olhava com admiração para a mulher; ela era realmente uma ótima executiva, que sabia
19
tocar nos pontos sensíveis que faziam diferença numa negociação.
 Eu realmente não estou interessado, Stefanie. Tudo que você está me dizendo é maravilhoso, mas
tenho de dedicar meu tempo e minha energia para outras questões de minha vida. Este cargo, como você
mesma disse, consumiria todas as horas do meu dia.
 É apenas o começo, Christian – falou, como se não tivesse ouvido a recusa.  O próximo passo é
a diretoria do resort. Vou fazer uma pequena inconfidência: um village do grupo, em Cervinia, nos Alpes
italianos, está sendo alvo de uma auditoria interna. Tudo indica que o atual diretor será trocado nos
próximos meses. Eu já fui sondada para assumir o cargo e tenho a prerrogativa de indicar um substituto
para Itaparica. Fique comigo e você será o próximo diretor do Club Pax Itaparica – completou, sempre
objetiva.
A situação era cada vez mais insólita para Christian: Stefanie estava lhe oferecendo algo que nunca
imaginara, nem em suas mais temerárias fantasias. Poder e dinheiro numa escala inimaginável para ele,
o ex-encarregado de manutenção, o açougueiro do Mercado da Sintra.
O rapaz engoliu em seco; por mais que mantivesse seus elevados propósitos como prioridade, seus
pensamentos e emoções estavam em erupção: “O que eu não faria com todos estes recursos? E com todo
este poder? Todo o bem, a caridade, auxílio aos que precisam, ensinar coisas que realmente podem mudar
a vida das pessoas: a verdadeira espiritualidade; os elevados padrões de conduta que devem dirigir a
humanidade! Tudo que não é possível hoje, pois estou preso atrás de um balcão de açougue!”. O corpo
emocional enviava sentimentos nobres, visões de pessoas sendo gratas a Christian, por terem suas vidas
melhoradas; crianças que antes passavam fome agora estavam saciadas. “Deixem vir a mim as criancinhas
20
que sofrem!” – ouviu um brado interno e percebeu os olhos marejados.
 Terei de recusar mais uma vez, Stefanie – falou com a voz embargada.
A mulher percebeu sua emoção e foi mais fundo:
 E ainda não lhe falei de nosso projeto assistencial, que prevê receber 120 crianças carentes por
ano, dando-lhes alimentação adequada, vestimenta e orientação especializada, inclusive para as famílias.
Estas crianças receberão ensino complementar ao das escolas públicas, inclusive com inclusão digital.
Nosso projeto prevê a criação de um laboratório multimídia de primeiro mundo para que elas possam ter
contato diário com as modernas tecnologias deste mundo. Você é a pessoa certa para implantar este
projeto, Christian!
A cada nova investida da diretora parecia que a temperatura da sala subia alguns graus; Christian
secou mais uma vez o suor da face; estava ficando sem fôlego.
 Já não é tempo de sairmos, Stefanie? Creio que já estamos há mais de meia hora...
 Sim, querido – concordou com um sorriso brilhante –, vamos nos refrescar.
Os dois se enrolaram nas toalhas e saíram da sauna; atendentes e garçons já os esperavam com
roupões, toalhas e refrescos. Stefanie murmurou mais algumas ordens rápidas e encaminhou-se para uma
escada em espiral; Christian apenas seguiu-a, dando graças pelo ar fresco. Ele nunca estivera naquela
parte do resort, que fora inaugurada há pouco tempo. Chegaram a uma sala com claraboia fumê que
cobria uma pequena piscina com sistema de hidromassagem, duas espreguiçadeiras e um charmoso bar,
que tinha um home theater, uma geladeira de portas transparentes e um balcão com telefone. A diretora
21
pegou um pequeno dispositivo, semelhante a um controle remoto de televisão, e pressionou um botão: o
ruído baixo de um motor tomou conta do ambiente e a claraboia começou a se abrir no meio, como se
fosse um observatório astronômico. A luz do sol transformou o ambiente, e Stefanie sorriu para Christian.
 Gostou? – disse com orgulho.  Apenas para la crème de la crème. Venha, meu querido, você deve
estar morrendo de calor...
Disse isto, jogou o roupão no chão e mergulhou nas águas cristalinas e borbulhantes. Christian a
imitou; um garçom entrou discretamente, abriu uma garrafa de champanhe, serviu duas taças numa
bandeja à beira da piscina e retirou-se, cerrando a porta.
 Venha, Christian, vamos celebrar este nosso encontro.
 Não bebo mais álcool há algum tempo, Stefanie.
 Ora, vamos! – falou, enquanto examinava a garrafa –, esta é uma Bollinger vintage 1999... Um
grande ano... Vamos, meu querido, um golinho não vai fazer mal.
Christian, que não conhecia bebidas em profundidade, imaginou que deveria se tratar de um
espumante especial, algo de algumas centenas de reais a garrafa – talvez mais. Aproximou-se de Stefanie
e aceitou a flûte com o líquido borbulhante; tocaram as taças com um “prosit” festivo dito pela diretora.
 Podemos colocar mais um atrativo extra nesta proposta que estou lhe fazendo, Christian – falou
enquanto depositava a taça na bandeja.
 A proposta já é muito boa, Stefanie; não é o caso de agregar... – calou-se quando viu a parte de
cima do biquíni da mulher boiando na piscina.
 Gosta do meu corpo, Christian? – sussurrou, enquanto ele via a segunda peça flutuando.
22
Ela aproximou-se dele lentamente, apenas a cabeça emergindo da superfície. Christian
instintivamente encolheu-se contra a beira da piscina, derramando um pouco de champanhe ao largar a
taça. Ele sentiu, então, o corpo da mulher aderir-se ao seu; sentiu as carnes firmes, a pele macia, as mãos
vorazes retirando sua sunga. Teve uma enérgica ereção. A boca da mulher estava calada, mas ativa como
nunca; seus lábios buscaram os do homem, num beijo suave e molhado; ele percebia seu coração batendo
acelerado e fechou os olhos.
Os instintos físicos se sobrepunham a qualquer oposição; o emocional ansiava pelas sensações do
ato sexual; a mente polarizada entre ceder, aceitar, e os alarmes internos espocando. Ele sentiu a língua
da mulher em seus mamilos; as mãos dela massageavam habilmente seu pênis e exploravam as áreas
erógenas do corpo masculino. A diretora, então, mergulhou a cabeça na água turbulenta. Christian abriu
os olhos e fitou uma imagem estampada na parede, que retratava o símbolo comercial do resort. Percebeu,
então, com clareza em quais domínios se encontrava.
Respirou fundo e reuniu toda a força de sua vontade. Mergulhou suas mãos e puxou delicadamente
a cabeça da mulher para fora d’água; ela o abraçou agressivamente, tentando encaixar-se nele, e foi
empurrada suave, mas energicamente para trás, desvencilhando os corpos.
 O que houve? Entre em mim! – ordenou com o semblante colérico.
 Não, não farei, Stefanie. Eu não aceito sua proposta, e minha posição é definitiva.
 Seu frouxo. Maricas! – vociferou, enquanto vestia o roupão já fora da piscina.
Stefanie colocou suas sandálias e saiu, batendo a porta com violência. Christian procurou sua sunga
no fundo da piscina, vestiu-a e sentou na beirada; tudo aquilo era muito louco: as propostas, a sedução,
23
tudo. Pegou o roupão e foi até o bar; abriu a geladeira e pegou duas caixinhas de água de coco; tomou a
primeira com sofreguidão e começou a degustar a segunda. “Bem” – pensou – “pelo menos terminou;
posso ir embora.” Colocou o chinelo e dirigiu-se para a porta; girou a maçaneta e a porta não se moveu.
Estava trancado.

A grande televisão de LED ligou e a imagem de duas ninfetas belíssimas fazendo sexo com um
homem apareceu na tela; os gemidos e sussurros tomaram conta do ambiente, e a claraboia fechou-se.
Christian olhou em volta e perguntou-se o que estaria por trás de tudo aquilo; o vídeo erótico
continuava a rodar na tela; ele apertou os botões dos aparelhos, mas nada funcionava. Só naquele
momento Christian percebeu pelo menos duas câmeras disfarçadas no ambiente; um olhar leigo não as
veria, mas ele estava acostumado com aquelas sutilezas tecnológicas no resort. Tentou o telefone, mas
parecia mudo.
Ele voltou à porta e examinou a fechadura, avaliando as possibilidades de abri-la com o que tinha à
mão. Estava acocorado em frente à porta quando ela se abriu; deu um passo desastrado para trás e caiu
de costas.
Michèle entrou lentamente, deu um sorriso discreto para Christian e fechou a porta atrás de si. Usava
um vestido simples, com duas alças, de um tecido branco com bom caimento, no qual o corpo perfeito
24
deixava uma impressão fugaz a cada movimento da garota. Ele levantou-se refazendo o nó do cinto do
roupão.
 Eu... Não... Estava tentando abrir a porta.
 Eles controlam tudo lá da central – disse a menina com a voz pueril.  Só abre quando eles querem.
 E sua mãe, onde está?
 Minha mãe é uma mulher má, vingativa... Ela não aceita uma recusa. Tudo tem de ser como ela
quer – disse sem qualquer emoção.
 O que você está fazendo aqui?
 Ela me pediu para convencer você a aceitar a proposta.
 Não entendo por que ela quer tanto que eu venha trabalhar aqui! Simplesmente não entendo.
 Nem eu. E não me importo com o que você decidir... E não gosto que ela monitore meus passos e
comande minha vida.
Michèle deu alguns passos e colocou toalhas em frente às câmeras de vigilância que Christian
identificara; ela aproximou-se dele e disse, baixando o tom de voz:
 Vamos falar baixinho para os microfones não captarem nossa voz – e sorriu como uma menina
sapeca que faz uma traquinagem.
Ele sentiu o aroma adocicado do hálito dela, tal a proximidade.
 Eu tenho de ir embora, Michèle; isto aqui está ficando ridículo.
 Por favor, fique mais um pouco... Assim minha mãe pensa que eu pelo menos tentei, se acalma e
nos deixa sair.
25
Christian estava em alerta. Aquela situação não o agradava, era incompreensível para ele. Mas não
queria criar um caso; Stefanie era uma mulher influente e poderosa, e ele preferia acabar com tudo sem
conflitos. Michèle continuou falando, a voz sussurrada e levemente rouca:
 É muito difícil viver com uma mãe dominadora como ela. Por isto estou tão feliz em ir morar nos
Estados Unidos.
 Eu imagino. Mas você é tão jovem. Como ficarão seus estudos?
 Vou continuar lá. A carreira de modelo não nos dá muito tempo para o estudo formal. Temos que
viajar muito, cuidar do nosso corpo, os eventos...
 As festas.
 É... As festas fazem parte da rotina. Elas são as equivalentes aos almoços de negócios de minha
mãe. É nas festas das revistas de moda que os contatos são feitos.
 Sua mãe foi modelo também, não?
 Foi. Meu pai é um fotógrafo com quem ela teve um caso rápido; não chegaram a casar... Nunca
convivi com ele – queixou-se com o semblante triste. – Nunca tive um pai.
 Você foi criada só por sua mãe?
 Sim. E ela sempre teve uma rotina pesada de trabalho. Sempre tive uma babá, mas o que sinto falta
é de uma presença masculina em minha vida.
 Compreendo – disse Christian enquanto pensava se o tempo de conversa até ali seria suficiente.
 Sempre tive problemas de relacionamento com homens. Nunca me interessei pelos garotos da
26
minha idade. São muito fúteis, superficiais. São crianças crescidas.
 Sei...
 Você acha que meu interesse por homens mais velhos está relacionado ao fato de eu nunca ter uma
figura paternal ao meu lado?
 Pode ser, Michèle, pode ser – disse Christian, sem interesse em aprofundar o tema.
O sentimento de urgência em sair ficava mais forte dentro dele.
 Eu sou a única virgem entre minhas amigas – disse à queima-roupa.
Ele olhou-a com firmeza, tentando vasculhar as intenções ocultas naquela conversa; o vídeo erótico
continuava rodando.
 Virgindade não deve ser uma característica que rotule as pessoas, Michèle.
 É uma coisa que me incomoda, Christian. Parece uma barreira, um obstáculo em minha vida.
 No momento certo você terá a pessoa correta ao seu lado.
 Gostaria que fosse com um homem maduro, experiente... Alguém que saiba fazer... – ela acomodou
o corpo na banqueta e o vestido mostrou outras curvas que estavam veladas até então.
 Apenas esteja atenta para não fazer por pressão dos outros; ouça sua consciência – disse ele,
observando os movimentos aparentemente inocentes da menina.
 Gosto das coisas que você fala, da forma como fala... Transmite tanta segurança! Você poderia ser
meu professor. Ensinar-me o amor verdadeiro.
Ele engoliu em seco mais uma vez. Ela jogou os longos cabelos para trás e inclinou-se levemente
para frente; o vestido leve descolou-se do corpo e Christian pôde ver os seios juvenis da ninfeta; os
27
gemidos vindos do home theater tornaram-se intensos e ela falou, em voz baixa e rouca:
 Teach me, Christian...
Ela ficou em pé, colada ao corpo dele; suas mãos delicadas vasculharam o tórax, dedilhando cada
pedaço como quem descobre algo totalmente novo. Uma alça do vestido caiu do ombro e desnudou uma
parte do corpo feminino; ela aproximou sua boca da orelha dele e sussurrou:
 Seja meu homem... – e sua língua tocou a parte interna da orelha, umedecendo-a.
A zona sensível estimulada causou um arrepio instantâneo no corpo dele, que ficou excitado
novamente; ela pegou sua mão e a conduziu suavemente sobre o seio desnudo, enquanto aproximavam
suas bocas, quase se tocando; ela fez um movimento rápido com a ponta da língua que apenas umedeceu
os lábios dele.
Um vulcão de instintos e emoções estava prestes a explodir dentro de Christian; ele sentiu suas
gônadas doloridas com a pressão interna; seu corpo todo implorava pelo coito, pela satisfação daqueles
desejos.
Então, de algum lugar muito profundo, veio a força para que ele conseguisse discernir o que estava
realmente acontecendo. Percebeu-se como um joguete, alvo de forças que o queriam cooptar; forças que
ele ainda não conhecia bem. Christian racionalizou os eventos para restaurar seu poder interno e retomou
o controle da situação.
Ele recolocou a alça do vestido no lugar e tomou as duas mãos da menina entre as suas; ele falou,
então, como um verdadeiro professor – mas não aquele que a garota pedia:
 Desapegue-se de sua mãe o quanto antes, Michèle. Não deixe que ela conduza sua vida e escolha
28
seu caminho; ainda há tempo, minha irmãzinha – e passou a mão direita nos cabelos sedosos da garota,
num gesto fraternal.
Michèle não disse nada; apenas baixou os olhos e caminhou para as câmeras, retirando as toalhas. A
imagem sumiu da tela e o silêncio dominou o ambiente; ela, então, foi até a porta, que se abriu com um
estalo metálico. Quando saía da sala, virou-se e disse simplesmente:
 Obrigada – e desapareceu, deixando a porta entreaberta.
Christian não perdeu a oportunidade e saiu daquele lugar. Suas roupas e pertences estavam numa
cadeira, logo que desceu a escada; vestiu-se rapidamente ali mesmo; não havia ninguém à vista; o resort
estava subitamente deserto. Ele saiu por um acesso lateral e os espaços externos também estavam vazios.
Olhou para o alto e uma grande nuvem escura encobria todo o céu; os ventos sopraram, então, fortes.
Uma pesada chuva começou a cair, encharcando de imediato as roupas e a pequena mochila que usava.
Caminhou pelo gramado em direção à saída; os trovões começaram a soar, intimidantes. Não via os
pequenos carros elétricos que faziam o transporte interno dos hóspedes circulando. Olhou para as janelas
das edificações e todas estavam com as cortinas e persianas fechadas. Ele se aproximou da guarita que
ficava na entrada principal do complexo, onde sempre havia dois funcionários presentes. Era uma
construção cilíndrica e envidraçada com películas reflexivas, e ele não percebeu movimento interno. Tudo
estava fechado, inclusive os portões de acesso para automóveis.
Christian passou pela roleta giratória para pedestres sem problemas e chegou à via pública; não havia
carros ou ônibus circulando; o ponto de táxi, sempre movimentado, estava deserto. A voz de Stefanie
29
surgiu em sua mente, aveludada e ameaçadora: “Voltaremos a nos ver, cão pleiadiano. Até lá, tornaremos
sua vida um inferno”.
Ele olhou o oceano revolto, jogando vagas sobre as areias da praia. A tempestade antecipara a noite
e ele começou a longa caminhada de volta à sua cabana. O enorme monumento encravado na pedra, um
forcado de três dentes, símbolo do resort, apontava o centro da tempestade, como se fora o seu embrião.
Um relâmpago uniu uma das pontas do tridente ao céu, com pavoroso clarão.
 Sinto muito, senhor Joaquim de Assis, mas estás dispensado – disse o senhor Gomes, dono do
mercadinho.
Christian olhou o bondoso português, que o acolhera num momento de muita dificuldade. Gomes
ficara sem seu açougueiro no dia anterior, que pedira algumas horas de folga para um compromisso e não
retornara. Havia algo diferente no olhar do senhor Gomes, mas Christian não argumentou em causa
própria:
30
 Eu só tenho a lhe agradecer, seu Gomes, por tudo que me fez. E peço desculpas por ter lhe deixado
sem ajuda ontem. Por favor, me perdoe por isto e por qualquer dificuldade ou sofrimento que eu lhe tenha
causado.
O português ouvia silencioso, com o olhar vitrificado; o rapaz continuou:
 O senhor me ajudou muito, no momento que eu mais precisava. Sempre vou estar à sua disposição,
sempre que necessitar. Saiba que não guardo qualquer mágoa em relação ao senhor e, desde já, lhe perdoo
por qualquer culpa que possa sentir em relação a mim.
 Perdoar-me por quê? Por acaso fiz algum mal contra ti?
 Não, o senhor está fazendo o que deve fazer, seu Gomes. Mas amanhã ou depois poderá surgir
algum sentimento de culpa; se isto acontecer considere-se perdoado, incondicionalmente.
 Pois...
 Separemo-nos sem débitos entre nós, meu querido irmão – encerrou Christian, enquanto o
português tentava entender o que estava acontecendo.
Em poucos minutos fizeram os acertos trabalhistas e monetários. Christian despediu-se dos agora
ex-colegas e saiu para a rua pilotando sua bicicleta. Sentiu-se livre e decidiu traçar seu destino de
imediato.
Deixou a velha Caloi em casa e tomou um ônibus coletivo até Bom Despacho, em Itaparica. Saltou
antes e foi direto ao colégio onde Carina estudara. Procurou nos murais da escola se havia alguma oferta
de trabalho; queria ensinar. A atividade de professor lhe parecia adequada e, apesar de não pagar muito
bem, lhe serviria de sustento. Não encontrou nada nos caóticos murais e dirigiu-se à secretaria. Uma
31
senhora idosa, com um permanente sorriso no rosto lhe atendeu:
 Olá, tudo bem? – cumprimentou-a.
 Tudo bem, meu jovem! Em que posso lhe ajudar?
 Gostaria de saber se existe alguma vaga para lecionar no colégio. Com quem devo falar?
 É nosso diretor que cuida disto, o senhor Lima, mas ele está numa reuniãozinha... Olha, eu sei que
ele está procurando um professor para substituir a dona Cleuza, que se aposentou – informou a mulher,
em tom de confidência.  Você pode esperar um pouquinho?
 Claro, claro que posso... A propósito: qual era a disciplina que a dona Cleuza cursava?
 Química – respondeu mostrando os belos dentes, alvos e bem proporcionados.
“Química” – pensou Christian, enquanto sentava e procurava o livro de bolso que sempre mantinha
na mochila para as esperas inesperadas. “Não há nada em meu currículo que remeta à química”. Mesmo
assim ele aguardou e foi recebido após quarenta minutos, o que permitiu avançar muito na leitura do
exemplar de bolso de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
 Entre, entre – convidou o idoso diretor.  Meu nome é Lima, Edgar Rosa Lima.
 Muito prazer; eu sou Christian.
 E o senhor é professor?
Christian descreveu rapidamente sua trajetória escolar e profissional, enfatizando o período em que
lecionara em Stanford, como professor-convidado. O senhor Lima fazia anotações numa agenda de
formato ofício, com um prosaico lápis 2B. Os movimentos da mão eram precisos e Christian imaginou
32
que a caligrafia deveria ser perfeita. Após alguns instantes o diretor falou:
 Senhor Christian, proponho o seguinte: nós estamos procurando um substituto para a cadeira de
Química, que obviamente não se encaixa no seu perfil.
 Não, não se encaixa – concordou.
 Mas me ocorreu agora, fortuitamente, que temos uma lacuna a ser preenchida neste
estabelecimento. Existe uma determinação do Ministério da Educação de que as escolas incluam Filosofia
e Sociologia no ensino médio. Esta medida já entrou em vigor e todas as escolas deverão adequar-se. Nós
estamos muito atrasados.
 Interessante.
 Não sei por que isto veio a minha mente agora. Eu estou precisando urgentemente de um docente
para Química, mas sua presença despertou em mim esta pendência – disse o diretor, no seu estilo
rebuscado.
 São áreas de meu interesse, senhor Lima.
 Julga poder assumi-las com competência?
 Certamente, diretor. Quando posso começar?
 As férias escolares terminam neste final de semana e as aulas recomeçam na segunda-feira: tenho
três turmas para o senhor. Aceita?

E assim foi. No mesmo dia em que foi demitido, Christian recebeu aproximadamente uma centena
33
de jovens para ensinar, numa cátedra que permitiria abordar assuntos que importavam naquele momento.
A semana seguiu intensa em reuniões de trabalho com os coordenadores pedagógicos do colégio.
Não havia precedente de conteúdo programático na escola, e o próprio ministério deixava-as livres para
implementar as disciplinas de acordo com suas possibilidades. Ficou definido que inicialmente não
haveria duas disciplinas, mas uma que englobaria ambas as áreas – filosofia e sociologia. O site do MEC
na internet recomendava que os professores utilizassem um banco de textos de domínio público como
base de seu trabalho. Christian encontrou quase mil textos de sociologia e filosofia, em várias línguas;
filtrou e chegou a 326 textos das duas disciplinas.
O material de sociologia era contemporâneo, na sua maioria artigos, anais e publicações da UNESCO
Brasil. Os textos de filosofia eram clássicos de Platão, Voltaire, Marx, Descartes, Hegel, Nietzsche,
Engels e Bacon, entre outros. Christian estudou o material e compreendeu que teria de tomar algumas
decisões.

Os primeiros dias depois da separação das férias sempre eram muito agitados por conta dos reencontros
e das inescapáveis novidades que tinham de ser compartilhadas. Assim que conseguiu a atenção de sua
primeira turma – um grupo de 27 adolescentes que cursava o terceiro ano do ensino médio – principiou
um discurso simples e objetivo.
34
 Meu nome é Christian e sou seu instrutor de filosofia e sociologia. Antes de falarmos sobre nossa
tarefa específica eu gostaria de saber seus nomes, por favor. Falem apenas o primeiro nome, começando
por você.
E os alunos disseram seus nomes em sequência; Christian memorizava cada um, armazenando junto
às feições. Era importante estabelecer a conexão pessoal com cada um deles, e o nome era o primeiro
passo. Os 27 levaram pouco mais de dois minutos para verbalizar os nomes, a maioria falando
propositalmente rápido, duvidando que o novo professor lembrasse algum deles durante a aula ou no
próximo dia. Ele continuou falando:
 Obrigado a todos.
 O senhor não vai fazer a chamada? – perguntou uma garota, referindo-se ao controle de presenças
em aula.
 Não, Raquel, não teremos chamada – respondeu o professor, já usando o prenome correto.  Cada
um de nós é responsável por si próprio e não existe sentido em obrigar ninguém a estar onde não quer.
 Não haverá controle de presenças, então?
 Sim, haverá. Esta é uma norma da escola e do sistema de ensino que iremos obedecer; mas esta
regra não deve ser o motivo da presença de vocês nesta classe. Estará aqui quem quiser aprender; será
uma escolha pessoal. O livro de presenças estará sempre aberto ali – falou apontando uma pequena mesa
auxiliar que ficava ao lado da porta de acesso.  Vocês mesmos marcarão a sua presença aqui, está bem?
A turma estava em silêncio, os alunos se olhando uns aos outros, estranhando aquelas novidades do
35
novo professor. Um rapaz de cabelos encaracolados e grossos óculos, perguntou:
 Posso marcar para minha namorada que não veio? – e todos riram.
 Responda-me você esta pergunta, Carlos.
 Sei lá... Acho que todo mundo vai marcar para os outros. Assim ninguém reprova por frequência.
Se o senhor não vai controlar...
 Você pode usar “você” ou “tu”, Carlos, não há necessidade de usar o tratamento de “senhor”. Isto
vale para todos: eu uso os seus nomes, e vocês usam o meu – Christian. Sua namorada está presente,
Carlos?
 Não.
 Por que você marcaria que ela está?
 Não sei... Sei lá... Para ajudá-la?
 Você estaria sendo correto? Seria algo verdadeiro ou seria uma mentira?
 Bom, não faz muita diferença. Se não vai haver controle.
 Eu não disse que não haverá controle. Eu disse que vocês farão este controle, cada um se
responsabilizará pelo seu. Percebem a diferença?
Os alunos continuavam confusos com aquele rumo diferente e insólito.
 Mas esta não é uma responsabilidade do professor? O senhor... Você não é pago para isto? – disse
uma moça que estava na última cadeira da fileira das janelas laterais.
 Minha tarefa é instruí-los, Rosane. Fazer com que vocês compreendam a realidade em que vivem,
usando a filosofia, e utilizar este conhecimento nas relações interpessoais – e isto é a sociologia. Não faz
36
parte de meu planejamento atuar como babá de homens e mulheres. Você se considera uma mulher
madura o suficiente para assumir a tarefa de registrar com sinceridade a sua presença nesta classe?
A garota apenas baixou a cabeça e não respondeu. O professor continuou, olhando diretamente nos
olhos de todos:
 Vocês se consideram homens e mulheres suficientemente responsáveis para assumir esta tarefa?
Um silêncio constrangedor tomou conta da sala. Os alunos se entreolhavam e baixavam os olhos,
fitando as costas de quem sentava na frente ou rabiscavam garatujas nas folhas dos cadernos.
 Bem, nós todos veremos isto nos próximos dias, não é mesmo? – falou Christian sorrindo.  Vamos
em frente: temos de esclarecer alguns pontos antes de começarmos nossa instrução. Vocês têm alguma
pergunta até aqui?
Um rapaz ergueu a mão.
 Max. Diga – pediu o professor.
 Você não era o açougueiro do português? – e a turma toda se dividiu em risos e exclamações de
espanto pela pergunta do colega.
Christian esperou a balbúrdia cessar e respondeu:
 Sim, eu era o açougueiro do Mercado da Sintra até alguns dias atrás, quando fui demitido pelo
senhor Gomes.
 O que aconteceu? Filosofava demais com os clientes?
Mais risos. O professor riu também.
 Não, não... Apenas encerrou meu ciclo naquela tarefa. Tudo tem um início, um meio e um fim: eu
37
estou iniciando esta tarefa como instrutor de vocês, e sei que chegará ao fim. Todos vocês entraram na
escola, estão no meio e isto também chegará ao fim.
 Menos para o Olavo! – disse uma garota, apontando para um rapaz com aspecto tímido e retraído,
que parecia ser o repetente contumaz da classe.
Mais risos. Christian não riu, esperou o silêncio e continuou:
 A vida física de cada um de nós neste planeta iniciou com o nascimento, tem um meio e chegará
ao fim, com a morte. Todos aqui sabem que a nossa vida física chegará ao fim, não sabem? Sem exceções.
Os alunos não riam mais; o assunto sempre trazia um respeito medroso que calava as pessoas.
Ninguém queria falar sobre a morte.
 Assim como tudo, minha carreira de açougueiro chegou ao fim. Muitos devem estar se perguntando
o que um sujeito que pretende dar aulas de filosofia estava fazendo atrás de um balcão de açougue. “Será
que ele está qualificado para tanto?”, é a pergunta que surge em algumas mentes.
Christian fez uma pausa estratégica e prosseguiu:
 A resposta em relação à minha qualificação será respondida por vocês mesmos, no decorrer de
nosso trabalho. E a outra resposta é simples e não há segredo em relação a isto: eu desci o mais baixo que
um ser pode descer nesta vida. Eu me entreguei totalmente aos prazeres e desejos da matéria e do
emocional – bebida, fumo, luxúria, lassidão, soberba.
A atenção dos alunos, agora, era total; ele continuou:
 E assim eu permaneci por vários meses, seguindo meus instintos e minhas emoções, vivendo em
38
função de prazeres sensoriais temporários, até que num determinado momento houve um impulso para
que minha vida voltasse a evoluir – e tudo mudou. O senhor Gomes foi um instrumento para me auxiliar,
e a forma de ajuda foi um emprego numa área que eu tinha habilidade para tanto, embora me
desagradasse: cortar, moer e vender carne de animais.
Nova pausa; todos os olhos estavam fixos no professor, que caminhava despreocupadamente de um
lado a outro da sala, sempre fixando o olhar em um ou outro aluno.
 Este trabalho me equilibrou e serviu-me como prova para que eu evoluísse como ser, como
consciência. Ao mesmo tempo em que a rotina no mercadinho disciplinou novamente minha vida e me
trouxe recursos monetários para saldar minhas dívidas, eu tive de trabalhar minha soberba, meu orgulho,
minha prepotência, fazendo uma tarefa simples, humilde, a qual não tinha qualquer simpatia.
Christian caminhou, então, em direção a Max, o rapaz que perguntara sobre o assunto, e falou:
 Veja, Max, que muitas vezes somos levados a determinadas situações que nos servem de
aprendizado. No momento em que estamos vivendo estas situações elas nos parecem detestáveis, um
castigo, um sofrimento. Mas, quando aceitamos e vivemos intensamente aquela experiência, aquela
prova, rapidamente aprendemos o que temos de aprender e o ciclo chega ao fim. Aí então você é demitido,
afastado, surge nova tarefa etc. E você está livre.
E falou para todos os alunos, girando o corpo na direção de cada um:
 E um homem melhor. E uma mulher melhor. Um ser humano mais evoluído – que é o que todos
devemos buscar prioritariamente – finalizou, dirigindo-se para o quadro-negro.  Mais alguma pergunta?
– disse, enquanto escrevia no quadro.
39
Ninguém perguntou mais; todos os alunos pareciam atônitos com a transparência daquele homem
que falava com clareza e objetividade. Christian dividiu o quadro-negro em duas partes: na da esquerda
escreveu um título: “ENEM”; a da direita foi intitulada “VIDA”.
 Temos dois desafios pela frente e teremos de enfrentar ambos. Todos nós vivemos dentro de vários
sistemas criados pelo homem: político, educacional, social, cultural etc. Não podemos deixar de enxergar
esta realidade, mesmo que nos pareça incorreta e inadequada, compreendem?
 Eu não entendi muito bem, professor. Pode dar um exemplo?
 Claro, Viviane. O sistema educacional brasileiro: ele tem méritos e melhora a cada ano, a cada
novo governo etc. Estamos inseridos neste sistema e temos de obedecer alguns critérios, mesmo que não
sejam totalmente verdadeiros e adequados. A grande maioria de vocês irá prestar algum tipo de prova
para ingressar numa escola de ensino superior – uma universidade. Os testes desta universidade são
elaborados de acordo com os conteúdos programáticos estabelecidos pelo sistema de ensino. Posso
prosseguir? Está claro até aqui?
Todos balançaram a cabeça afirmativamente.
 Veja o caso da filosofia, que tem como objetivo ampliar a percepção das pessoas, fazendo com
que compreendamos a realidade verdadeira em que estamos inseridos, deixando de lado crenças, tradições
e teorias antiquadas. O conteúdo obrigatório inclui autores como estes – e escreveu no quadro, no lado
do “ENEM”, alguns nomes de autores de textos que deveriam ser estudados naquela classe.  Vocês
reconhecem estes nomes?
Alguns balançaram a cabeça, assentindo; outros ficaram imóveis.
40
 A filosofia atual é baseada em autores muito antigos, como Aristóteles e Platão que viveram quatro
séculos antes de Cristo, até Nietzsche e Hegel, que viveram nos séculos 18 e 19 da nossa era. Eles foram
homens que muito contribuíram para a evolução da humanidade à sua época, mas muito deste
ensinamento já não é mais adequado ao nosso tempo.
 Por quê? – perguntou em voz baixa uma moça que sentava na cadeira em frente à mesa do
professor.
 Basicamente por três fatores principais, Míriam: o primeiro diz respeito à época em que foram
escritos. Havia uma determinada civilização que estava em um ponto evolutivo anterior ao nosso. Muitos
destes textos foram escritos para aquele povo e não serve mais para nós, que estamos em outra situação,
vivendo condições diferentes, certo?
A garota aquiesceu e Christian continuou:
 O segundo fator é que determinados ensinamentos foram velados, ou seja, muitas coisas foram
escritas de forma alegórica, oblíqua, para que não se percebesse o real significado.
 Por que eles fizeram isto? – perguntou Max.
 Conhecimento é poder, e muitas vezes os autores entenderam que deveriam preservar as partes
mais importantes aos olhos do mundo; outros entendiam que a humanidade não estava preparada para
receber determinadas orientações, e escreviam de forma a ocultar determinadas coisas. E não podemos
esquecer que muitos filósofos e pensadores foram perseguidos por suas ideias, que eram consideradas
heréticas ou revolucionárias.
 E o terceiro fator? – antecipou Míriam.
41
 Interesses ou crenças pessoais distorceram as conclusões dos autores, criando teorias que
continham vícios de origem. Estes ensinamentos foram aceitos por seguidores e admiradores,
transformando-se em paradigma para as novas gerações.
 O que é vício de origem? – perguntou um rapaz moreno e magro.
 Utilizamos esta expressão, José Henrique, para definir um início equivocado, um erro original que
compromete tudo que vem depois. Neste caso as crenças pessoais, os desejos da personalidade e os
dogmas do autor estiveram acima do objetivo de todo instrutor da humanidade: a evolução integral dos
seres. Resumindo: muitos filósofos criaram teorias que serviam para fortalecer a si mesmos, em busca de
fama, dinheiro, poder etc.
Os alunos se olhavam surpresos, como se uma nova janela se abrisse dentro de cada um deles. O
professor continuou:
 Apesar de saber tudo isto, teremos de estudar estes autores, pois vocês precisarão destas
informações para os testes e vestibulares que virão, compreendem?
 Sim, eu compreendo, Christian – disse Valquíria, uma jovem de cabelos longos e castanhos. 
Mas, pelo que você falou, será um conhecimento meio... sei lá... inútil para nossa vida, não é mesmo?
 É um conhecimento que será útil para passar nas provas e ingressar na universidade. E será uma
prisão para quem confiar apenas nessas teorias.
Um murmúrio de indignação cresceu na sala; o professor deixou que extravasassem aquelas emoções
e pediu silêncio. Todos se calaram e concentraram sua atenção nele, que estava defronte ao quadro-negro,
42
com o giz na mão, escrevendo na coluna “VIDA”.
 Todas as semanas, nas terças e quintas-feiras, às 19h, nós nos reuniremos para falar sobre a
verdadeira realidade que nos cerca e nos conduz – explicou.  Será aqui no auditório da escola, que o
diretor concordou em ceder para aulas complementares e de reforço. Nós trataremos do mesmo tema nas
duas noites, de forma que quem não puder vir numa terá oportunidade na outra. Todos podem participar,
inclusive seus conhecidos, amigos e parentes; não haverá custo algum, nenhuma cobrança. A Instrução
terá a duração de uma hora, uma hora e meia. Alguma pergunta?
Várias mãos se ergueram.
 Suzana – disse o professor, apontando para uma moça que estivera em silêncio desde o início.
 O que nós vamos aprender nestas outras aulas?
 Coisas que não estão em nenhum livro, ou que estão escondidas nas suas páginas, veladas; a
verdadeira compreensão da evolução planetária e desta humanidade; quem somos nós e o que fazemos
aqui; qual a nossa missão na Terra. Coisas deste tipo... – completou Christian, apontando para outro rapaz
que pedira a palavra.
 Por que devemos aprender estas outras coisas se não vamos usar para o ENEM?
 Excelente pergunta, Victor. Temos de saber destas coisas para podermos sair da prisão que o
conhecimento degenerado e as falsas teorias nos colocaram. A verdade liberta; a mentira aprisiona. Uma
meia-verdade é uma meia-mentira, e também aprisiona a consciência. Jorge, quer perguntar algo?
 Estas aulas complementares serão obrigatórias, vão contar nota, haverá exame?
 Não, esta Instrução extra não será obrigatória. Por favor, venha apenas quem realmente quer
43
aprender e evoluir; e venha com a mente aberta, pois muitas coisas que falaremos não serão fáceis de
aceitar. Será uma instrução para a vida – e ele apontou o quadro – de cada um de vocês. Não teremos
testes ou exames, e a análise do desempenho será feita por cada um de vocês, de si mesmos.
A classe estava silenciosa, anestesiada com tudo aquilo que estavam ouvindo. Era muito diferente
das outras disciplinas, e os alunos ainda procuravam posicionar-se defronte tudo que fora conversado
naquela aula.
A sirene que marcava a cadência das aulas soou e a inércia foi substituída pela urgência do intervalo.
Christian repetiu a mesma aula introdutória com as outras duas classes que recebera, ambas do segundo
ano do ensino médio. As reações e dúvidas foram semelhantes e as novidades da nova disciplina já
circulavam de boca em boca nos corredores do colégio. E chegou a terça-feira, o primeiro dia da nova
Instrução que seria dada pelo novo professor de Filosofia e Sociologia.
As pessoas começavam a chegar – na sua maioria os alunos que Christian conhecera nos dias
anteriores. Havia algumas caras novas, moços e moças da mesma idade dos alunos – certamente amigas
e amigos convidados. O auditório do colégio era simples, moderno e tinha sido inaugurado há apenas um
44
ano: um ambiente retangular com duas portas de acesso na parte superior, que ficavam no final do
corredor central do segundo piso do colégio. As cadeiras eram acolchoadas com um tecido sintético
navalhado, semelhante ao dos bancos de automóveis; na lateral de cada uma havia uma mesinha retrátil
que servia de apoio para escrita e leitura. Os dois blocos de cadeiras eram distribuídos num plano
inclinado que finalizava no nível do palco, que era uma meia elipse; as pessoas podiam descer por três
corredores, um central e dois laterais. Havia uma mesa de apoio no centro do palco, um microfone com
fio na mesa e um sem fio num pedestal; na parte posterior do palco havia uma tela para projeções e
quadros brancos móveis para escrita com pincel. O ambiente era climatizado e tinha um eficiente sistema
de iluminação. A capacidade total era de quatrocentas pessoas sentadas, o que tornava o lugar um dos
melhores e mais baratos para realização de seminários e apresentações, já que os hotéis e resorts da ilha
operavam preços mais elevados.
O horário marcado chegou e o professor contabilizou rapidamente 25 pessoas na audiência. Ele pediu
que os alunos sentassem nas primeiras fileiras para que não precisasse usar o microfone e começou a
falar:

“É impossível entender quem somos e o que fazemos aqui sem que compreendamos a jornada da
humanidade durante as várias Eras evolutivas. Quem somos nós? é uma pergunta antiga que várias
disciplinas tentam responder, na maior parte das vezes de forma incompleta ou errônea. De onde viemos
e para onde vamos? Qual nossa tarefa neste mundo? Quem eu sou? O que eu sou? Todas estas questões
45
foram e são abordadas incessantemente por cientistas, religiosos, filósofos, místicos e outros tantos
profissionais de todas as áreas.
Nestes encontros – que denominaremos simplesmente ‘Instrução’ – vamos abordar estes temas de forma
transparente e isenta. Estaremos distantes de dogmas e crenças estabelecidas através dos tempos nesta
humanidade. Não velaremos ensinamentos; não ocultaremos informações. O tempo disto já passou e
todos nós temos condições de saber e entender a verdadeira realidade que nos cerca.
Vamos começar pelo princípio de tudo; e este, talvez, seja o único tema que teremos dificuldade de
relatar e descrever com clareza e exatidão, pois se trata da Fonte Primordial, a Consciência que tudo gerou.
E quero, antes de começar, pedir a todos que se desfaçam de seus conceitos antigos e antiquados; eles
de nada servirão. Permaneçam abertos ao novo; nós falaremos aqui de algumas coisas que a maioria das
pessoas nunca escutou. É necessário, portanto, um esforço mental – uma ação da vontade – para não
tentar encaixar a nova instrução que está sendo ministrada nos escaninhos empoeirados da mente. Por
exemplo: quando falo da Fonte, da Consciência Primordial, alguns podem pensar: ‘Ele está falando de
Deus.’ – mas esta palavra foi corrompida ao longo dos anos. Temos este escaninho da mente preenchido
com as informações de um deus antropomórfico, um deus cristão, um deus muçulmano, deuses pagãos
etc. Portanto, quando nos referirmos à Consciência Primordial, àquela que tudo iniciou, recebam isto em
suas mentes como algo inteiramente novo, está bem?
Vida e consciência são inseparáveis, e tudo no Cosmos é vida, em diferentes formas. Uma pedra evolui:
um pedaço de minério torna-se uma pedra preciosa; tem vida, portanto, assim como um vegetal, um
animal ou um humano. Uma pedra, concluímos, tem consciência – como tem um humano, ou um animal.
46
Apenas as formas e constituição de corpos são diferentes; a manifestação da consciência, portanto, também
é diferente. Assim são todos os universos, todos os mundos, planetas e estrelas. As várias consciências são
todas originadas da Consciência Primordial – a Fonte de tudo. A Fonte é a perfeição total – pureza, paz,
harmonia, sabedoria e amor. E muito mais não podemos falar sobre a Fonte, sobre a Consciência
Primordial.
No início existia apenas o imaterial, a não-matéria; o escuro, a não-luz. A Fonte, então, criou a
contraparte do que havia – a Luz. Esta Luz foi a primeira manifestação material do Cosmos. Abro aqui um
parêntese: hoje nossa ciência reconhece que existem partículas de matéria na luz. Fecha parêntese. Vários
tipos de luz geraram diversas partículas, todas elas providas de consciência – todas “filhas” originadas da
Consciência Primordial. E o início foi apenas este: infinitas e diversas partículas dotadas de consciência
flutuando no Cosmos. Estas partículas principiaram sua trajetória evolutiva; elas começaram, então, a se
combinar e formar estruturas maiores, como os átomos, por exemplo, também conhecidos nossos.
Surgiram os elementos simples, como o hidrogênio e o carbono. E os elementos começaram a combinar-
se entre si, numa ação ordenada e incessante, orquestrada pela força que tudo anima – a consciência. Esta
consciência que era una no seu mundo de não-matéria agora experimenta a separação em infinitas e
infinitesimais partículas materiais. O esforço para tornar-se unificada novamente é a força que movimenta
o Cosmos, a evolução e o destino de todos nós. É como um imenso magneto que atrai tudo para si.
No momento inicial foi definido o estado trino – de três partes – que nos acompanharia por toda a
evolução cósmica. O estado que existia, o imaterial; a sua contraparte, o material; e um estado
intermediário, que acontece onde os dois se encontram. Podemos perceber isto claramente em exemplos
47
simples de nosso dia-a-dia: temos o positivo, o negativo e o neutro; sólido, líquido e gasoso; pai, mãe e
filho; o preto, o branco e o cinza; e assim por diante. Por mais que tentemos enquadrar métodos e teorias
num ambiente dual, sempre haverá um terceiro elemento oculto ou velado também atuando.
Vamos prosseguir com o início de nossa trajetória evolutiva: os átomos se combinam e formam
elementos que, por sua vez, iniciam o que conhecemos como o reino mineral – pedras, areia, gases, água
– enfim tudo que não é vegetal, animal ou humano. Em várias partes do Cosmos estes elementos se
agruparam e formaram corpos celestes – o que conhecemos como asteroides e planetas. Cada corpo celeste
conseguiu agregar uma enorme quantidade daquelas partículas pequeninhas do início; a soma das
consciências de cada partícula forma a consciência planetária, ancorada na matéria mineral. Os corpos
celestes permaneceram conectados entre si, por forças que conhecemos como gravitacionais, e principiaram
a girar no espaço sideral, em órbitas curvas e cíclicas. Nossa astronomia conhece alguns aspectos do
funcionamento destes corpos. Este foi o início do Cosmos – o princípio da evolução. Os vários universos
foram sendo consolidados e continuamente foram evoluindo, sempre animados pelas consciências que os
constituíram.
Alguns mundos alcançaram as condições para o surgimento de um novo tipo de vida material – o reino
vegetal – que se consolidou e abriu caminho para que o reino animal acontecesse. E do reino animal
emergiu um ser que se desenvolveu mais – podemos dizer que foram os primeiros humanos. Tudo isto
aconteceu a bilhões de anos atrás no maior planeta que se formou pela união daquelas partículas
primordiais, aquelas que primeiramente se combinaram e evoluíram. Um planeta que já não existe mais,
que já cumpriu sua evolução, tornando-se estrela e extinguindo-se posteriormente. As consciências mais
48
evoluídas deste mundo iniciaram, então um processo emigratório para outros mundos que pudessem
comportar vida como aquela do grande planeta; como nós fazemos aqui na Terra, por exemplo, quando
uma comunidade é atingida por uma grande seca e seus membros migram para outras cidades. Foi isto
que aconteceu com aquela primeira civilização: eles encontraram outros planetas para habitar, levando
seu desenvolvimento material e imaterial consigo. Temos que atentar para o fato de que estas foram as
consciências com maior proximidade da Fonte, a Consciência Primordial, de forma que havia um grande
desenvolvimento das faculdades internas, abstratas e sutis – além, é claro, do avanço material e concreto
que foi conquistado.
Estes seres encontraram planetas em vários pontos evolutivos: alguns estavam na etapa de consolidação
do reino vegetal; outros já tinham animais unicelulares e outros já eram habitados por animais aquáticos.
Eles não encontraram consciências em corpos evoluídos. Estes seres, então, decidiram habitar alguns
planetas e auxiliar no processo evolutivo de alguns outros. E assim o Cosmos começou a tornar-se habitado
por seres evoluídos e os vários universos dotados de vida tiveram um salto na evolução cósmica. ”

Christian parou de falar, tomou dois goles de água e abriu o momento em que todos podiam
perguntar. Ele não queria extenuar os alunos, embora todos parecessem muito atentos ao tema.
 Nós vamos reservar sempre um espaço para perguntas ao final de cada Instrução. Fiquem à vontade
– disse.
Três pessoas ergueram as mãos; o professor apontou um rapaz mais próximo.
 Pelo que entendi a vida surgiu primeiramente em outros lugares, e não aqui na Terra, inclusive os
49
seres humanos. É isto mesmo?
 Sim, Lauro, você compreendeu bem. A primeira vida inteligente – que podemos classificar melhor
como consciências evoluídas – surgiu no maior planeta que se formou logo após a Consciência Primordial
– a Fonte – emitir Luz. Nossa ciência terrestre não chegou a conhecer este corpo celeste. As consciências
evoluídas deste mundo migraram para planetas de uma nebulosa chamada Uskur, também nossa
desconhecida. Os seres de Uskur, por sua vez, habitaram e auxiliaram na evolução das Plêiades, que é
um conjunto de corpos celestes conhecido pela nossa astronomia. As Plêiades, por sua vez, auxiliaram a
evolução do nosso sistema solar, inclusive introduzindo o homem no planeta Terra.
 Quer dizer então que os humanos foram criados por estes seres das Plêiades? – perguntou uma
garota desconhecida do professor, provavelmente amiga de um aluno.
 Boa pergunta; qual é seu nome, por favor?
 Maria Elisa.
 Sim, Maria Elisa. Quando os seres das Plêiades chegaram aqui o planeta Terra tinha apenas os
reinos mineral e vegetal; mas já havia protozoários e outros organismos simples. Antes do ser antropoide
– este humanoide que conhecemos –, os pleiadianos introduziram espécies vegetais e animais no planeta,
principalmente para estabilizar o Mundo Material, esta parte composta de matéria física. Tudo isto para
preparar o início da trajetória humana na Terra.
Várias mãos se erguiam pedindo para entrar no debate. Uma garota do segundo ano perguntou:
 Se eles nos criaram, por que nunca apareceram por aqui?
 Muito bom seu questionamento, Sandra. Os irmãos das Plêiades nunca mais deixaram o planeta,
50
desde que iniciaram o projeto evolutivo. E houve várias etapas, inclusive com a participação direta deles
na superfície da Terra. Faz parte do processo de evolução a liberdade de escolha, de forma que os seres
das Plêiades nos acompanham, orientam e interferem o mínimo necessário.
 Existem alienígenas e ETs, então? – disse a mesma garota.
 Não da forma que os filmes de ficção nos mostram, Sandra. Esta é outra situação alterada, errônea,
que nos passam como entretenimento, forma cultura, e dificulta o conhecimento do real. Não existem
aqueles monstros terríveis e maus querendo dominar a Terra. O que existe são muitos universos dotados
de planetas com vida muito similar à que conhecemos. Existem alguns em estágio evolutivo anterior ao
nosso, e outros mais desenvolvidos. As Plêiades são, neste momento da evolução, o universo mais
desenvolvido do Cosmos; mas já esteve nos estágios anteriores, mineral, vegetal etc.
 Existem pleiadianos na Terra? – perguntou um rapaz do terceiro ano.
 Sim, João Carlos, assim como de outros mundos também. Os irmãos das Plêiades raramente trazem
seus corpos físicos para cá, de forma que apenas a consciência vem e habita um corpo humano
convencional, gestado por mulheres. A Terra também recebe atualmente seres de Sirius, que conhecemos
como a constelação de Cão Maior. Os sirianos têm um comportamento diferente e eventualmente ainda
trazem seus corpos físicos originais.
 Eles são iguais aos nossos?
 Praticamente iguais; Sirius está alguns passos à frente da evolução terrestre e ainda usa corpos
antropomorfos. As pequenas diferenças – cor de pele, textura, pelos etc. – são facilmente resolvidas pela
engenharia corporal dos sirianos, que é bastante adiantada. Resumindo, eles podem vir e não serão
51
reconhecidos pelos nativos da Terra.
 Como o senhor sabe tudo isto? – questionou um rapaz ainda desconhecido para o professor.
 Seu nome é...?
 Sou Vinícius; sou do terceiro, mas não pude assistir a sua primeira aula.
 Eu tive uma instrução diferente, Vinícius, que fez com que eu rememorasse toda a trajetória
evolutiva deste planeta. É por isto que eu sei estas coisas que estamos falando.
 Mas o senhor teve alguma iniciação, participa de uma seita ufológica, alguma religião... – quis
saber o estudante.
 Pode me chamar de Christian, Vinícius. Não, não tive nenhuma iniciação e não faço parte de
nenhuma seita, doutrina ou religião. Eu sou uma consciência das Plêiades que está incorporada no planeta
Terra – e por isto tenho este conhecimento.
Houve um murmúrio baixo entre todos. Christian já esperava algo assim e deixou acontecer por
alguns instantes. Ergueu a mão direita, como os alunos faziam, pedindo a palavra; o burburinho cessou.
 Isto não é algo fora do comum. Apenas é estranho, neste momento, porque todos vocês tiveram
um ensinamento parcial, errado ou corrompido. Alguns de vocês podem ser consciências de outros
mundos, por exemplo, e não saber. Vocês podem ter seres de outros universos entre seus amigos e
familiares.
 Eu tenho um primo que só pode ser de outro planeta, professor! – falou Vinícius, rindo.
52
Christian riu junto com a turma, descontraindo um pouco o ambiente, que estava pesado pela
densidade do tema.
 Muito bom, muito bom... – disse o professor – Bom humor sempre, dizia um sábio. Pessoal:
continuamos na próxima Instrução, ok?
Christian ainda ficou mais quarenta minutos respondendo perguntas de alunos que permaneceram
no local.
Às 23h escorou a cabeça no travesseiro da cama e sorriu. “Os jovens têm uma enorme capacidade
para o novo – e sempre com muito bom humor” – pensou. O sono veio rápido.
A semana prosseguiu com as aulas curriculares em que o professor se mantinha dentro do programa
exigido pelo ensino convencional brasileiro, embora muitos alunos tentassem dirimir suas dúvidas e
migrar para os assuntos tratados nos encontros de Instrução. Christian calmamente pedia para se aterem
à matéria, pois ela seria necessária para os exames nas outras instâncias escolares, mas não podia fugir
de algumas questões:
 Professor, por que temos de estudar filosofia e sociologia? E aquelas coisas que aprendemos na
Instrução: por que são importantes para nossa vida? – perguntou Vinícius, um dos mais questionadores
53
da turma.
 Qual prisão nos prende com maior eficiência, Vinícius?
O rapaz ficou confuso com a pergunta, e o professor continuou:
 A prisão mais eficiente é aquela que não vemos as grades – respondeu à própria pergunta.  Vocês
compreendem?
O silêncio mostrava que não.
 Vendo as grades de uma prisão sabemos que estamos aprisionados e procuramos a liberdade; se
não as vemos, não temos conhecimento de nossa própria condição – a de prisioneiros – e não procuramos
nos libertar. Tudo bem até aqui?
A turma assentiu e ele prosseguiu:
 A ignorância é uma das prisões mais eficientes porque o ignorante sequer sabe que não sabe. O
conhecimento da realidade verdadeira nos torna libertos. Filosofia e Sociologia são disciplinas que trazem
este conhecimento para nossas vidas e, através destas informações verdadeiras, podemos discernir sobre
temas do nosso dia-a-dia. Por exemplo: fazer sexo sem casamento é pecado ou não? Existe pecado?
Aborto: sim ou não? Clonagem de seres vivos: contra ou a favor? – disse ele, usando temas que faziam
parte do conjunto de discussões entre os jovens.
O professor parou alguns segundos para que os alunos digerissem as palavras, e prosseguiu:
 Vejam que estes temas contemporâneos não têm, aparentemente, ligação com as nossas Instruções,
com o início do Cosmos, com seres de outros mundos e a evolução humana, mas, se olharmos
atentamente, veremos que o conceito de pecado é uma prisão. O medo é outra prisão muito eficiente, que
54
nos paralisa. Como discernir sobre aborto se não sabemos o que é a vida? A ignorância sobre as origens
do corpo humano e sobre o processo evolutivo das consciências mantém estas prisões ativas, percebem?
Os alunos continuaram silenciosos e Christian continuou:
 Quando escolhemos deixar de ser ignorantes começamos a conhecer a verdadeira realidade. A
verdade liberta; todo o resto aprisiona. As mentiras, as meias-verdades, as maledicências, a boataria, as
fofocas... Tudo isto cria grades em nossa prisão e na dos outros: quando mentimos, e outra pessoa acredita,
estamos colocando-a atrás das grades. Usem sempre a verdade no seu cotidiano. A energia da verdade é
poderosa e consegue dissolver problemas e conflitos.
A sirena da escola tocou e os alunos começaram a levantar-se para sair.
 Podemos continuar o debate na próxima Instrução, está bem? – encerrou Christian.
E assim seguiam as aulas, com alunos motivados pelas novidades e pela inesperada abertura de um
mundo novo onde não existia segredo ou informação parcial. A forma como o professor apresentava os
temas – sempre de forma clara e transparente – fez com que seus alunos confiassem nele rapidamente e
sem restrições.

A Instrução seguinte foi mais concorrida: a audiência já passava de sessenta pessoas, inclusive alguns
adultos. Christian reconheceu entre eles um colega da escola, professor de Física. A Instrução começou
55
na hora marcada.

“Na Instrução passada fomos até o ponto onde os seres das Plêiades iniciaram o projeto evolutivo no
planeta Terra. Havia reino mineral e vegetal consolidados no planeta, e um princípio de vida animal. Uma
equipe multidisciplinar de pleiadianos, composta por especialistas em projetos evolutivos, veio até o
planeta em grandes naves físicas. As naves eram enormes laboratórios onde os cientistas estudavam e
recriavam as condições existentes na superfície terrestre – que ainda eram agressivas aos animais e humanos.
Os corpos humanoides foram projetados e criados em laboratório, seguindo as orientações das
necessidades de sobrevivência no planeta – irradiação solar, composição da atmosfera, pressão,
temperatura etc. Os humanoides pertencentes ao que chamamos de Primeira e Segunda Eras viveram em
biomas protegidos, ou seja, dentro das naves. Estas duas Eras passaram por vários estágios e testaram várias
opções: o humanoide hermafrodita, por exemplo. Um ser com os dois sexos no mesmo corpo, com
capacidade de reproduzir a espécie sem necessidade de coito para fecundação. A opção, como todos
sabem, foi a separação dos sexos em dois seres distintos, um masculino e um feminino. Muito trabalho foi
feito para que se chegasse ao protótipo ideal para a vida no planeta Terra.
Quando as condições no planeta se tornaram propícias um grupo de humanoides – homens e mulheres
– foi levado para a superfície. Este período é conhecido como Terceira Era. A Terra era muito diferente do
que conhecemos hoje: ainda havia muita atividade vulcânica e alterações de continentes. Toda esta
atividade fez parte da evolução natural do planeta Terra, que sempre está em mutação. Existia um grande
continente onde foram dados os primeiros passos humanos, onde hoje está a Oceania. Todos aqueles
56
arquipélagos que conhecemos hoje, ilhas e a própria Austrália são restos de um grande aglomerado
contínuo de terra que ficou conhecido nas crônicas terrestres como Lemúria. As tribos aborígenes que ainda
hoje vivem na Austrália são descendentes dos povos da Terceira Era, e representam a mais antiga raça física
existente no planeta. Ao final deste período houve uma inclinação no eixo de rotação da Terra: a maior
parte da Lemúria afundou e outras terras vieram à tona. Estas mutações, os terremotos e os vulcões
determinaram o fim de muitos seres dos reinos vegetal, animal e humano.
A inclinação do eixo determinou o início do período da Quarta Era, que se desenvolveu,
principalmente, no grande continente que existia onde hoje é o oceano Atlântico Norte. Este continente,
que abrigou os povos conhecidos como atlantes, chamava-se Atlântida. Milhares de anos depois, houve
uma nova inclinação do eixo de rotação, que ocasionou uma nova metamorfose na superfície terrestre: a
Atlântida submergiu no que ficou em nossos anais como o grande Dilúvio Atlântico, e os continentes se
acomodaram praticamente na forma como conhecemos hoje. Com o dilúvio iniciou-se a Quinta Era, da
qual fazemos parte. Uma Era se divide em sete épocas culturais. Esta humanidade vive, a partir de o dia
oito de agosto de 2008, a sexta época cultural, denominada época Russo-Chinesa.
E aqui estamos nós, evoluindo constantemente como consciências em corpos humanos; e aqui está o
planeta também evoluindo, sempre em transformação. Amanhã seremos diferentes do que somos agora,
assim como o planeta Terra também será.”

Christian fez uma explanação propositalmente mais curta, sabendo que a quantidade de perguntas
seria maior a cada semana que passava. Várias pessoas ergueram as mãos e o professor apontou uma
57
moça do segundo ano.
 Foi dito no início que os seres humanos foram criados em laboratório por pleiadianos. Por que eles
fizeram isto e como ficam as teorias que aprendemos na escola e na igreja?
 Ótima questão, Fabiana. Sim, os seres humanos da Terra são produto de um projeto genético
concebido no Complexo Pleiadiano com o objetivo de auxiliar no processo evolutivo cósmico, ou seja,
ajudar a Terra e seus reinos a evoluírem com maior eficiência e rapidez. Isto significa também menor
sofrimento, já que os pleiadianos passaram por todas as etapas evolutivas possíveis. É mais ou menos
como nós, na Terra, fazemos quando vemos que uma comunidade tem dificuldade em progredir e se
desenvolver materialmente: juntamos profissionais capacitados, levamos ferramentas e equipamentos e
ensinamos às pessoas daquela comunidade a trabalhar de forma mais organizada. No âmago deste
processo está o mais forte ajudando o mais fraco; o sábio ensinando o discípulo; quem tem mais
compartilhando com quem tem menos; um irmão ajudando a outro que tem necessidades. Está claro,
Fabiana?
Ela balançou a cabeça afirmativamente e o professor prosseguiu:
 Quanto às teorias, dogmas e doutrinas que proliferaram na Terra através de pensadores, cientistas,
gurus, padres, monges etc., podemos dizer que são, em sua maioria, imprecisas, parciais e/ou incompletas.
Algumas são absolutamente erradas, e devem ser descartadas por completo. Vamos dar alguns exemplos:
a Teoria da Evolução das Espécies, de Darwin. Esta teoria tem méritos, como o de explicar como
aconteceu o primeiro processo evolutivo logo após a Consciência Primordial ter emanado Luz. Aquela
foi, realmente, uma evolução sem intervenção externa onde unicamente as consciências que compunham
58
aquele planeta transformaram-se até chegar a um ser físico evoluído – não antropomórfico – com
capacidade mental superior. Esta mesma teoria erra quando diz que isto aconteceu aqui neste planeta;
sabemos que seres das Plêiades criaram o homem e a mulher como os conhecemos. Tudo bem até aqui?
A maioria balançou a cabeça concordando e Christian continuou:
 Outro exemplo: no caso das doutrinas religiosas – as chamadas teorias criacionistas –, que apontam
um ser superior, um deus criando a luz, as águas, as terras, as estrelas etc., e depois um homem e uma
mulher, à semelhança divina. O mérito destas teorias é que apontam um estágio inicial divino, acima de
tudo e de todos – aquilo que nós denominamos a Consciência Primordial. Ou seja, a contribuição destas
doutrinas é de que existe algo superior, e que o início de tudo não é uma prosaica explosão de alguma
coisa no espaço, como querem crer alguns cientistas terrestres com teorias como a do Big Bang. Existiu
algo que iniciou tudo, uma Consciência superior – isto é inatacável e é o aspecto positivo das teorias
criacionistas. Os pontos equivocados são muitos, a começar por dar uma forma antrópica a este deus.
Estas teorias consideram o corpo humano o estágio mais elevado da criação, e fazem representações de
seus deuses em corpos humanos idealizados. Estas teorias também erram quando veem apenas esta
humanidade, ignoram a existência de outras em mundos diversos e tentam encapsular todo o ensinamento
da trajetória evolutiva na curta jornada do planeta Terra. Ficou claro, Fabiana?
 Sim, obrigado! – respondeu a moça sorrindo.
Outras mãos se levantaram.
 Jorge – apontou o professor.
 Eu queria saber sobre as várias Eras até a Quinta Era atual. Isto tem a ver com as raças que temos
59
hoje no mundo?
 Sim e não, e me explico – começou Christian.  Tem relação quando entendemos que o corpo
humano foi evoluindo e sofrendo mutações através dos tempos, até chegar a este conjunto de vários tipos
físicos e cores de pele que temos atualmente. No início havia apenas um tipo, aquele corpo que melhor
se adaptou às condições do planeta, àquela época – a Terceira Era. Através dos tempos houve a
interferência externa na evolução dos humanos, principalmente do Império de Sirius, que trouxe
humanoides para trabalhos braçais e perdeu o controle destes grupos. Isto representou um código genético
novo sendo introduzido na Terra, um código que não ajudou em nada, evolutivamente falando. As
Plêiades também realizaram interferências na raça humana com a introdução – deliberada ou não – de
genomas mais adiantados, o que trouxe considerável avanço principalmente na expansão da capacidade
mental. Estes fatores contribuíram para diferenciar vários grupos no planeta – física, emocional e
mentalmente – e tudo aconteceu através das Eras, na trajetória evolutiva deste planeta.
O professor fez uma pausa para um gole d’água e prosseguiu:
 Uma Era ou uma época cultural não tem relação com o conceito de raças que temos hoje, e estou
a referir as questões tipicamente racistas, que discriminam simplesmente pelo tipo físico, cor da pele,
cabelos, origem etc. Este é um conceito arcaico e ultrapassado que mostra a profunda ignorância a que
esta humanidade ainda está submetida. Para compreendermos a evolução das Eras temos de nos desfazer
desta crença putrefata que a sociedade cultiva, colocando brancos num patamar, amarelos em outro,
negros, pardos, vermelhos etc. Somos todos irmãos numa jornada evolutiva, onde o corpo físico não tem
a grande importância que queremos dar. Para que todos compreendam melhor, vou usar o Complexo
60
Pleiadiano como exemplo: 98% das consciências pleiadianas já não habitam mais corpos físicos. Estes
seres já superaram o estágio evolutivo em questão e não necessitam mais de veículos materiais. Eles
vivem nos mundos imateriais, sutis, mais próximos da Fonte que tudo originou. Ou seja, os corpos físicos
de todas as humanidades serão inúteis em algum momento da evolução. Não se apeguem a ele, portanto.
Ficou claro para você, Jorge?
 Sim, ficou... Mas por que temos tantos conflitos inter-raciais, Christian?
 Porque escolhemos saquear, explorar, escravizar, violentar e matar os povos menos capacitados
que se encontram um passo atrás na trajetória evolutiva. Os povos desenvolvidos encontravam
comunidades mais simples e, ao invés de ajudá-los, tiravam o pouco que tinham e os levavam como
escravos para trabalhos pesados. O correto seria acolher, ensinar, compartilhar, doar, oferecer, guiar e
conduzir estas pessoas. Cooperar, trabalhar com eles. Se os povos mais sábios, aqueles que por
determinadas condições conseguiram evoluir mais rapidamente, vissem os povos menos favorecidos
como irmãos menores, frágeis e desprotegidos, e os tratassem com dignidade e retidão, não haveria
guerras no planeta. Não haveria racismo nem discriminação.
 Mas não é o que acontece hoje! – exclamou uma moça negra, em tom de indignação.
 Não, Renata, infelizmente não acontece. Ainda temos muita exploração e escravidão na Terra.
Vejam o ponto evolutivo deplorável em que estamos como humanidade: escravizando a nós mesmos.
Mas tudo tem uma origem: a Terra também foi – e sob certo aspecto continua sendo – vítima deste
processo de conquista e colonização. Outros mundos fizeram o mesmo com este planeta, vindo aqui,
escravizando humanos e saqueando recursos naturais. Sirius fez isto por algum tempo, até que
61
interrompemos esta prática. Existem outros universos, que esporadicamente vinham até aqui para isto.
Hoje não há mais incursões materiais com este objetivo no globo, mas elas continuam acontecendo em
níveis sutis. Sendo objeto destas práticas, os humanos as repetem entre si; e tornam-se conquistadores e
colonizadores.
 Professor: foi dito que as Eras têm sete épocas, certo?
 Sim, Cilene, sete épocas culturais.
 Eu gostaria de saber quais são as que já passamos nesta Quinta Era e o que aconteceu de especial
no dia oito de agosto de 2008.
Christian foi até o quadro e escreveu as épocas culturais que a aluna havia solicitado:
QUINTA ERA
1ª – Hindu
2ª – Persa
3ª – Egipto-Caldaica
4ª – Greco-Latina
5ª – Anglo-Saxônica – final em 8/8/2008
6ª – Russo-Chinesa
7ª – Pan-Americana

62  Podem ver que se trata de história recente, alguns milhares de anos apenas – o que é muito pouco
em proporção à evolução deste planeta, por exemplo, que é medida em muitos milhões de anos. Saímos
há pouco da quinta época cultural, denominada Anglo-Saxônica pelo predomínio desta cultura no mundo,
e entramos na época Russo-Chinesa, que é marcada pela expansão destes povos, de seu poder econômico
e de sua cultura. Esta mudança aconteceu no dia oito de agosto de 2008, e a grande maioria das pessoas
sequer notou algo diferente. A data precisa é determinada pelo Cosmos: o movimento dos corpos celestes,
das galáxias, nebulosas etc. é que ordena tudo desde o princípio. A astronomia e a astrologia terrestres
ainda não compreendem este processo. Existem, portanto, momentos precisos para os eventos
fundamentais da evolução, tais como mudança de Eras e épocas culturais.
 Mas eu lembro que algumas coisas aconteceram naquele dia: o início dos jogos olímpicos na China,
por exemplo – disse Cilene.
 Exatamente; alguns fatos explícitos e evidentes aconteceram, mas apenas alguns poucos
perceberam que um evento maior estava em curso. A cerimônia olímpica, iniciada às 8h08min da noite,
no dia 8/8/8, inaugurou a nova época cultural, com todo o luxo e ostentação do povo chinês. Pouco se
deram conta, por exemplo, que aquele mês de agosto marcou a destruição de uma das poucas religiões
que ainda se mantinham dentro de alguns princípios de pureza: o budismo tibetano. Foi naqueles dias que
irrompeu um grande movimento interno desta religião usando métodos violentos, ou seja, o preceito mais
caro que ainda permanecia íntegro foi violado. O uso da não-violência, da resistência pacífica e paciente,
e de práticas que não causassem sofrimento a outrem foi abandonado. Este foi o acontecimento que
determinou o início do fim daquela que era, talvez, a única religião de massa do planeta ainda não
totalmente corrompida.
63
Todos silenciaram, imersos em suas memórias daqueles tempos; o professor continuou:
 No início daquele mês também houve um eclipse solar total, ou seja, a lua escondeu o sol
completamente por alguns minutos. Além do evento cósmico, foi também um sinal: algo como se a Luz
fosse ofuscada pelas Trevas – a Sabedoria obscurecida pela Ignorância. Prestem sempre atenção nos
eclipses: eles são alinhamentos celestes e sempre nos dizem algo.
O assunto era denso e as pessoas precisavam de muita energia para manterem-se atentas. Christian
resolveu encaminhar o final:
 Pessoal: uma última pergunta e encerramos, está bem? – e o professor de Física, daquela mesma
escola, ergueu a mão rapidamente.
 Professor Christian: minha questão é comezinha, quase rudimentar, e espero não aturdi-lo com
minha incultura – falou com a pompa e a falsa modéstia dos eruditos.  Peço vênia para inquirir sobre a
fonte deste conhecimento tão vasto que o senhor nos proporciona. Existe algum livro que o senhor possa
nos indicar para que possamos estudar o tema?
 Professor Lúcio, não?
 Sim, está correto; a seu dispor. Inclusive quero parabenizá-lo pelo fato de tratar a todos pelos
prenomes estando a tão pouco tempo em nosso educandário! Eu mesmo não sei a metade dos que o senhor
proferiu durante sua exposição – acrescentou sorrindo.
Seguiram-se olhares enviesados dos seus alunos que nunca tinham recebido um tratamento mais
próximo daquele docente, que gostava da notoriedade, mas não fazia questão de reconhecer seus alunos.
64
 Eu sou originário das Plêiades, professor – disse Christian com simplicidade, como a referir uma
cidadezinha logo depois do morro.  Isto significa que o que sou – a consciência – provém de uma das
estrelas do Complexo Pleiadiano, Taygeta para ser mais preciso. Nasci neste planeta como todos vocês,
através de uma mulher, minha mãe biológica. Ao longo de minha vida tive aprendizado e ajuda suficientes
para que eu me recordasse de toda minha vivência, inclusive do período em que começamos a auxiliar a
Terra. O que ensino são as coisas que vivi e o que aprendi como membro do Complexo Pleiadiano. Desta
forma, caro professor, não existem compêndios que relatem os fatos da forma como os exponho aqui.
 Que lástima! Não há como provar as coisas que o senhor diz, então? – quis saber o professor Lúcio.
 Tudo pode ser provado – falou calmamente. – Existem registros no Complexo Pleiadiano de toda
a evolução cósmica. Mas, pergunto: seriam válidas provas apresentadas por um povo que sequer é
admitido como existente? Os humanos sequer aceitam premissas básicas, como por exemplo, que existe
vida em outros universos: vida menos evoluída e mais evoluída. Os humanos admitiriam provas vindas
de seres que eles acreditam inexistentes?
Christian parou por alguns momentos; a plateia estava nitidamente a seu favor, torcendo contra o
professor de Física que era visto como antipático, prepotente e orgulhoso pelos alunos. Christian percebia
estas nuanças e sabia que todos ali estavam cumprindo seu papel, da melhor forma que podiam; seria
muito simples superar os argumentos do colega, mas ele sabia que não devia seguir aquele caminho. Ele
continuou:
 A pergunta do professor Lúcio procede, é justa e pertinente. Estamos numa cultura que reconhece
a verdade mediante prova científica: coisas que podem ser observadas, testadas e repetidas. Não podemos
65
nos desligar desta realidade secular. Contudo, o que falarmos aqui poderá ser experimentado no âmbito
pessoal, interno; falaremos de mundos sutis e mostraremos o caminho para que cada um experimente
estes mundos. Indicaremos as formas de libertação das prisões que cegam e paralisam os humanos; o
medo; a culpa; o ressentimento; a soberba. Tudo que falarmos aqui poderá ser comparado com a vivência
que temos neste planeta, e saberemos, no mais profundo âmago de cada um de nós, que estamos diante
da verdade.
 Continuamos sem ter provas científicas disto que estamos ouvindo, não é mesmo professor
Christian? – disse o colega da Física.
 Provas científicas não são tão importantes assim, meu caro irmão Lúcio – falou Christian
amorosamente, aproximando-se do colega que estava sentado na primeira fileira de cadeiras –; este é
apenas um paradigma temporário desta humanidade. Poucos séculos atrás as provas aceitas, indiscutíveis
e nunca contestadas vinham dos religiosos: Religião era a lei. Quando isto foi percebido como falso – ou
defeituoso –, Ciência tornou-se a lei; Ciência tornou-se Religião. A balança pendeu para a outra
extremidade. Você pede provas, mas de nada adiantaria aterrissarmos uma nave física das Plêiades no
centro de Salvador, por exemplo. Este ato não auxiliaria em nada na evolução humana. Esta prova
material, que tantos gostariam, seria um retrocesso numa civilização já atrasada.
 Não compreendo a razão desta sua afirmação, nobre colega.
 Ainda tratamos de uma humanidade ignorante: o primeiro impulso seria adorar os pleiadianos
como deuses e pedir que resolvêssemos seus problemas. A transferência de responsabilidade sobre erros
e conflitos já acontece hoje, sem que haja um deus concreto; imagine se a civilização conhecer “deuses”
66
poderosos que podem solucionar suas guerras e misérias com um simples gesto. A solução seria artificial,
e haveria involução.
A resposta, proferida em tom mais firme, fez o colega calar-se – já que havia uma lógica cristalina
na argumentação. Christian voltou ao quadro e fez um desenho simples, com duas palavras no centro:
 O radicalismo religioso trouxe trevas à Humanidade, assim como o radicalismo científico está
fazendo, com a especialização extrema, a hiperespecialização, que desconsidera o ser humano. Ciência e
religião são falsos deuses que os humanos criaram, para seu proveito, devoção e desfrute. Ambas são
incapazes de expressar a verdade pura; ambas não conseguem alcançar a verdadeira Lei. Isto só é possível
de ser feito por cada um de nós, por cada consciência que se conecta ao Mundo Imaterial, onde há pureza,
amor, harmonia e verdade. Ali não há dúvidas, apenas a Lei. Iremos falar sobre isto na próxima Instrução,
está bem? – falou, encerrando o encontro.  Obrigado a todos pela presença; tenham uma boa noite.
Enquanto organizava suas coisas para sair, dois alunos subiram ao palco para fazer um convite: a
turma faria uma festa no final de semana e gostaria que o professor estivesse presente. Christian aceitou.

67

A festa começou às nove da noite, na casa da família de um dos alunos, na praia da Gameleira, que ficava
próxima ao colégio, mais ou menos um quilômetro ao sul do Quebra Mar, quase no limite dos municípios
de Itaparica e Vera Cruz. Christian chegou às 21h35min e descobriu que seria um luau havaiano; também
descobriu que era o único professor convidado.
A casa era ampla e o quintal terminava onde começava a areia da praia. Alguns rapazes iniciavam
uma fogueira aonde as águas mornas da baía não alcançavam; havia um aparelho de som ligado tocando
músicas alegres e dançantes. O ambiente já estava animado e todos auxiliavam na organização, levando
cangas que eram estendidas em torno do fogo e colocando os alimentos e bebidas sobre elas. Estavam
presentes, além dos alunos, namorados, namoradas, amigos e amigas. Christian estimou que mais de
oitenta pessoas já estavam ali, até então dispersos, em grupos menores, conversando ou dançando. Tudo
mudou quando anunciaram que a comida estava servida: como num passe de mágica os grupinhos se
dissolveram e formou-se um anel ao redor da fogueira.
O cardápio era composto de carne de porco com batata-doce, assados no forno, peixe grelhado e
muitas frutas nativas. Os pratos estavam distribuídos em círculo e todos se serviam com as mãos. As
bebidas disponíveis eram água de coco e cerveja, ambas refrigeradas em baldes com gelo. Christian
escolheu batata-doce e frutas, e bebericou água de coco. Misturou-se facilmente aos jovens, apesar de ser
mais velho e ter função professoral. O aparelho de som reproduzia uma balada suave quando um aluno
68
perguntou, em meio ao falatório geral:
 Posso fazer uma pergunta pessoal, profess... Christian?
 Claro que sim, Vinícius, só não garanto que vou responder – brincou.
As pessoas próximas sorriram e as atenções do grupo voltaram-se para ele.
 Fiquei sabendo – começou o rapaz – que você estudou muito, trabalhou no Google e deu aulas
numa universidade americana. É verdade?
 Sim, é verdade.
 Então que raios você está fazendo aqui, neste fim de mundo, ganhando um salário miserável do
colégio para ensinar um monte de adolescentes desmiolados?
Alguns riram; outros ficaram calados, assustados com a questão colocada tão cruamente. Temeram
a reação do professor, mas Christian sorriu e falou:
 Não seja tão rigoroso em relação a este lugar e às pessoas que estão aqui. Ser professor de vocês
está sendo a melhor experiência desses últimos anos. Tudo o que vivi até hoje foi um caminho para a
libertação, um caminho muitas vezes acidentado, uma estrada com buracos e desníveis. Apenas agora
comecei minha real tarefa: ensiná-los faz parte dela.
 E não somos todos desmiolados! – reclamou uma garota em tom de brincadeira.
 Não, nós não somos – ironizou Vinícius – os outros são, aqueles que não estão aqui. Nós somos
sábios!
Eles riram e um rapaz jogou uma laranja em Vinícius, que a pegou no ar e a devolveu,
69
amistosamente. Uma garota levantou a mão pedindo a atenção de Christian:
 Eu li que algumas substâncias, como o peyote e a ayuasca, podem nos trazer expansão de
consciência e elevação espiritual. Isto é verdade?
 Não, não existe maneira de se evoluir artificialmente. Evolução não se compra; liberdade de
consciência não se compra. Seria muito simples se pudéssemos adquirir substâncias psicotrópicas,
consumir e evoluir. Estas drogas – maconha, LSD, cocaína, heroína, ópio etc., além das que você citou –
sempre foram muito utilizadas pela humanidade. Fumar vários tipos de substâncias faz parte até hoje de
rituais de magia, por exemplo. Estes alucinógenos agem em nossos corpos emocionais e mentais,
causando alterações de percepção, que são confundidas com vivências espirituais.
Todos ouviam atentamente e, enquanto Christian fazia uma pausa, apenas o som débil das pequenas
ondas quebrando na areia e o crepitar da madeira queimando dominavam o ambiente; o aparelho de som,
providencialmente, fora desligado. Ele prosseguiu:
 Começamos a falar sobre o Mundo Imaterial na Instrução passada: este é o lugar onde residem a
sabedoria, a verdade e o amor reais. Não se consegue chegar a este mundo ingerindo drogas.
 Mas existem religiões que cultuam este tipo de prática, não é?
 Sim, existem muitas, assim como há as que cultuam o poder, o sexo e o dinheiro. Um olhar atento
às seitas, doutrinas e religiões desta Quinta Era mostrará que praticamente todas são devotas ou do deus-
alucinógeno, ou do deus-poder, ou do deus-sexo, ou do deus-fama, ou do deus-dinheiro.
 Eu estou lendo um livro sobre Tantra – disse um rapaz – e a prática sexual é o ritual mais utilizado
70
para atingir o nirvana, o ápice espiritual. O livro está errado?
 Quem o escreveu estava errado, Renato, e o fez de má ou boa-fé, não há como saber. O Tantra
começou como quase tudo neste mundo, puro e com boas intenções. Um tipo de filosofia útil para aqueles
tempos. Mas foi desvirtuado por pessoas que tinham desejos sexuais intensos e descontrolados; estas
pessoas colocaram-se em posições de liderança nas seitas tântricas e as modificaram, incluindo a prática
do sexo, que se transformou no centro do culto. Pura satisfação egoísta; pura satisfação de prazeres
pessoais.
 Mas o livro cita exemplos de pessoas que ficam horas fazendo sexo e conseguem um êxtase
inigualável – insistiu o rapaz.
 Sim, é verdade; isto é possível. Mas não passa de controle de corpos: físico e emocional, neste
caso. O homem controla a ejaculação e estimula a mulher a ter vários orgasmos, cada vez mais longos.
Um orgasmo, além do prazer físico, inibe por alguns segundos o controle do ego, ou seja, paralisa
emoções e pensamentos proporcionando uma liberdade ilusória à consciência. Muitas drogas agem da
mesma forma.
As atenções estavam todas nas palavras de Christian. Eram jovens e se deparavam com escolhas para
as quais não tinham base para decidir. Sexo e drogas estavam na pauta de todos em torno da fogueira. O
professor prosseguiu:
 Não alimentem ilusões em relação a isto: não se evolui pelas drogas, pelo sexo ou por qualquer
outra prática forçada, tais como danças, flagelação física, desafios heroicos e radicais, ascetismo, jejum
71
etc. Nada disto lhes trará evolução real e consistente. São meros exercícios de controle de corpos.
 Não devemos fazer nada disto, então? Tudo isto é errado? – questionou outra menina.
 Não, não significa que sejam práticas proibidas ou erradas, apenas que não são evolutivas. Não há
problema em você praticar o jejum ou experimentar uma droga. Faça isto se tiver curiosidade; use,
experimente os resultados e descarte o mais rápido possível. É muito melhor você vivenciar do que
carregar um desejo reprimido que também lhe paralisa o caminho evolutivo. Se você acha, por exemplo,
que a ayuasca lhe trará uma experiência sagrada, vá até uma comunidade do Daime ou da UDV e participe
de um ritual. Tenha a vivência, assimile e mantenha o aprendizado conseguido, livre-se da curiosidade o
mais rápido possível e siga em frente. Todas estas práticas nos levam ao Mundo Intermediário, que
falaremos nas próximas Instruções, mas não nos dão a chave para estarmos conscientes no Mundo
Imaterial – o lugar da Luz e da Sabedoria.
Os jovens pareciam hipnotizados com aqueles ensinamentos, como se nunca tivessem escutado sobre
estes assuntos sob aquele ponto de vista; alguns se entreolhavam, principalmente os casais de namorados.
 Meninos e meninas: estamos em aula? – disse Christian, ao que todos sorriram.  Isto é uma festa,
e vocês devem aproveitá-la. Vou deixá-los em paz.
E levantou-se de pronto, acompanhado de alguns “Ohs!” e “Ahs!”. Despediu-se do grupo com um
aceno amplo e caminhou na direção da residência. A algazarra tomou conta do grupo rapidamente e uma
garota seguiu o professor até a frente da casa; ela o chamou:
 Christian.
72
 Olá – falou, virando-se para a garota que lhe era desconhecida.
 Você tem um minutinho?
 Sim, pode falar.
 Meu nome é Cássia e fui eu que acompanhei Carina até o Paraguai.
Ele surpreendeu-se com a revelação; há algum tempo não tinha notícias de Carina, que fora morar
numa comunidade espiritual no país vizinho, e a recordação de que uma amiga estivera lá e retornara
estava esmaecida. Nunca tivera interesse em saber quem era esta amiga ou em procurá-la; mas ela estava
ali agora, em sua frente. Era uma moça jovem e bela, nos seus vinte anos de idade; estava maquiada com
algum exagero, usando roupas quase vulgares, mas emanava a pura sensualidade feminina. Era mais baixa
que Carina, mas o corpo era enxuto e proporcional; os seios transbordavam pelo decote da blusa, que se
ajustava à fina cintura e deixava parte do ventre à mostra. Christian evitou pensamentos secundários e
saudou a garota:
 Muito prazer, Cássia. Tudo bem com você?
 Sim, tudo bem. Carina falava tanto de você que eu estava curiosa em conhecê-lo.
 Ela estava bem?
 Sim. Não; não sei... Mais ou menos, eu acho. A comunidade é meio complicada... Eu não aguentei
muito tempo e vim embora. Ela estava se sentindo muito só, mas acho que está tudo bem.
 Muito bom – disse Christian encaminhando nova despedida.  Foi um prazer...
 Ela me contou tudo sobre vocês – disparou a garota.
 Certo...
73
 Ela disse que você foi a melhor transa dela, o homem mais gostoso que ela teve... – fuzilou.
 Bem...
 Você usava com ela esses métodos cântricos de que falou, professor? – emendou insinuante.
 Tântricos, na verdade – corrigiu-a automaticamente e logo tentou consertar.  Não, não é isso; eu
não usava... Olhe, Cássia, isto faz parte do passado e da minha privacidade. Eu não gostaria de falar sobre
este assunto.
 Vocês chegaram a ter uma relação, então? – provocou a mulher.
 Este é um tema que não discutirei com você, está bem?
 Podemos ir para um lugar mais discreto, então... Mas não para falar sobre Carina – insistiu.
Christian suspirou e disse amorosamente:
 Você é uma mulher linda e muito sensual. Lembre-se do que falamos hoje e procure participar das
Instruções no colégio: todas as terças e quintas-feiras à noite. Encontre um companheiro de caminhada,
Cássia, uma pessoa que possa evoluir com você. Construa um relacionamento transparente e verdadeiro.
E viva em paz.
A garota ficou olhando Christian em silêncio, parecendo não entender o que ele dizia. Costumava
ter os homens que queria, sem dificuldades. Tratou de ser mais agressiva com o professor. Estavam sós,
encobertos pela escuridão noturna, e a turma toda festejava na praia.
Cássia aproximou-se ainda mais de Christian enquanto alisava provocantemente os próprios seios;
num movimento proposital desnudou o mamilo esquerdo.
 Quer provar? São originais... zero de silicone.
74
Aquela aproximação grosseira tinha efeito oposto ao pretendido pela garota, e o professor estava,
além de constrangido, compadecido com a atitude dela, que continuou com sua atuação:
 Sou completa, Christian, faço tudo que você possa imaginar numa cama... Tudo...
E colocou sua mão direita sobre os genitais dele, iniciando uma massagem, que ele interrompeu de
imediato segurando o pulso com firmeza, mas sem machucá-la.
Christian afastou-a amorosamente, recuperando a distância entre os corpos, e falou-lhe com
compaixão:
 Use seu corpo com sabedoria, Cássia; use sua vida material com sabedoria. Faça sexo apenas com
a pessoa que escolher para esta curta caminhada terrestre. Se não der certo com esta pessoa, escolha outra
e siga em frente, até conseguir libertar-se dos desejos e apegos. Você entendeu?
A garota olhou-o como se ele falasse outro idioma e replicou no nível possível para sua situação.
 Quando Carina me contava sobre você eu já sabia que tinha alguma coisa errada: primeiro eu
pensei que você fosse homossexual; depois, que fosse bi; depois... sei lá! Qual é a tua, hein? Quer que eu
leve mais uma amiga junto... Ou um amigo, talvez?
 O que eu podia e devia lhe falar, já o fiz – conformou-se Christian.  Boa noite, Cássia.
Virou-se e caminhou só, embrenhando-se no umbroso caminho de volta a casa.

75
A terceira semana de Instruções foi muito concorrida; as palestras do novo professor do colégio Sagrado
Coração já eram comentadas em toda a ilha. Na primeira noite havia mais de 150 pessoas presentes:
alunos, professores, parentes, amigos e moradores sem qualquer vínculo com a escola. As pessoas que
participaram das duas primeiras Instruções eram procuradas para fazer uma síntese dos ensinamentos,
assim quem estava ali pela primeira vez poderia ter um melhor entendimento.
Christian começou, como sempre, no horário marcado; este era outro hábito que estava sendo
redefinido: as pessoas começavam a chegar com alguns minutos de antecedência porque sabiam que o
professor era rigoroso no cumprimento do momento marcado para começar a palestra. Christian entendia
que não fazia sentido a tolerância habitual de cinco, dez, às vezes quinze minutos para retardatários, pois
aquilo era um descaso com as pessoas que chegavam pontualmente. Rigoroso neste item, era flexível para
acolher a todos que chegavam atrasados – o que sempre pode ocorrer por imprevistos.
Ele ligou o microfone sem fio e começou a falar:

“Na Instrução anterior nós iniciamos o tema do Mundo Imaterial – que iremos ampliar hoje. O universo
Terra em que vivemos é trino, tríplice, formado por três partes, as quais vou representar no quadro por
um desenho esquemático, que poderá auxiliar na compreensão:

76

O Mundo Material é a parte física deste universo que vivemos. Tudo que temos contato e percepção no
período em que estamos acordados – em vigília – faz parte do Mundo Material, inclusive emoções e
pensamentos. Enquanto estamos acordados temos pouca ou nenhuma percepção dos outros mundos, o
Intermediário e o Imaterial. Isto acontece porque estamos num estágio evolutivo em que somos
consciências descontínuas, não unificadas, ou seja, enquanto estamos acordados percebemos a matéria sem
nos lembrarmos das vivências nos outros mundos; e vice-versa: enquanto dormimos percebemos o Mundo
Imaterial, sutil e não-físico, e esquecemos a vivência no Mundo Material. Aquilo que vulgarmente
conhecemos como sonho – sonhar –, nada mais é que resquício de memória; são lembranças entrecortadas
das vivências que tivemos durante o sono nos mundos Intermediário e Imaterial.
Por que os universos são separados desta forma? Bem, antes de tudo eles são reflexos do que aconteceu
no início da existência do Cosmos, quando a Fonte emitiu Luz. O que existia antes era a não-matéria; com
a emissão da Luz passou a existir matéria e a interseção entre os dois estados. Tudo que vem acontecendo
no processo evolutivo obedece este paradigma da trindade – os três estados. Trazendo esta realidade para
a prática de nosso cotidiano, isto significa que temos de viver – e evoluir, portanto – nestes três mundos.
Evoluir enquanto estamos acordados e enquanto dormimos; trabalhar nossa consciência a todo o
77
momento. Nosso destino – e nosso grande desafio – é unificarmos nossa consciência nos três mundos, ou
seja, estarmos conscientes sempre, seja qual for o estado em que estivermos vivendo. Isto significa
superarmos esta descontinuidade que caracteriza nosso ponto evolutivo e nos tornarmos consciências
unificadas no Mundo Material, no Intermediário e no Imaterial.
Este ensinamento nos remete a outro conceito importante que estamos abordando indiretamente: o que
somos nós? Somos o corpo? Somos nossa mente? Somos nossas emoções? O cérebro, talvez? Em última
instância somos aquilo que tudo criou – Consciência. Eu sou a consciência que habita este corpo no período
de vigília, ou seja, enquanto estou acordado. Quando durmo abandono o corpo físico e passo a viver em
mundos sutis, abstratos, não-materiais. Durante o sono a consciência libera-se do corpo físico para que este
repouse e restabeleça os sistemas orgânicos densos necessários à vida material. Existe, porém, uma carga
que a consciência leva consigo e que torna sua evolução no Mundo Imaterial difícil e lenta: esta carga
chama-se personalidade ou ego. Nossa personalidade é formada, além do corpo físico e suas emanações
densas, por emoções e pensamentos – corpo emocional e mental. Assim como o corpo físico é, sob certo
ponto de vista, uma prisão para o que somos – a consciência –, os corpos emocional e mental aprisionam-
na nos mundos sutis; ou seja, quando dormimos não ficamos totalmente libertos porque emoções e
pensamentos continuam vinculados à consciência. Esta condição faz com que nossa evolução fique
desequilibrada: podemos ser muito evoluídos no Mundo Material, termos um corpo físico belo e saudável,
sermos bem-sucedidos profissionalmente e termos uma grande capacidade intelectual, e não termos a
contraparte sutil desenvolvida, ou seja, sermos imorais, aéticos, egoístas, individualistas, agressivos,
raivosos, gananciosos etc.
78
Vou falar um pouco sobre o Mundo Intermediário que, como se trata de um estado médio entre a matéria
e a não-matéria, tem uma grande influência em nosso modo de viver neste momento da humanidade.
Não deveria ser assim: o Intermediário deveria ser apenas uma ligação entre o Mundo Material e o
Imaterial, como se fosse um túnel interligando ambos, como tentei representar no esquema. Uma
passagem, somente isto. A evolução deveria acontecer na matéria e na não-matéria, prioritariamente,
apesar de existir este terceiro estado intermediário. Aconteceu que em alguns momentos da evolução,
onde a degeneração humana atingiu níveis assustadores, o que era para ser um túnel, uma simples
passagem, adquiriu contornos de um terceiro mundo, e as consciências passaram a dedicar sua vivência
durante o sono físico a este mundo. Mas o que é realmente o Mundo Intermediário? Ele é formado de
criações emocionais e mentais dos seres que habitam o planeta, humanos ou não. Os corpos emocional e
mental de cada um de nós criam formas emocionais e mentais: quando sentimos uma forte raiva de alguém,
por exemplo, estamos criando formas no plano emocional, e aquela forma-emoção irá atingir os
envolvidos. Quando pensamos sobre uma pessoa querida que esteja viajando e nos preocupamos com ela,
geramos uma forma-pensamento que a atinge. Pois bem: nossas emoções e pensamentos são utilizados,
majoritariamente, em função de nossos desejos. Pensamos e sentimos coisas relacionadas ao que mais
queremos, ou seja, ao que nos dá prazer e satisfação – as nossas paixões: dinheiro, poder, sexo, fama,
comida, bebida, fumo, drogas, intelectualidade, misticismo, jogos de azar, relações familiares e pessoais
etc. O Mundo Intermediário é formado das criações emocionais e mentais destas paixões – todas ilusórias
e fantasiosas na sua promessa de satisfação e felicidade. Vivemos numa época cultural em que
personalidades fortes são valorizadas; egos são venerados. O Mundo Intermediário cresceu rapidamente
79
e tornou-se importante local de parada para as consciências deste universo Terra.
Quando um corpo físico adormece, a consciência fica liberada para percorrer os mundos abstratos; mas a
consciência não está sozinha, ela está aprisionada pelos pensamentos e emoções do ego. Quando chega
ao Mundo Intermediário ele encontra todas as fantasias e ilusões que julga poder satisfazer: existem ilhas
de jogatina, onde cassinos luxuosos oferecem todo tipo de jogo concebido pela humanidade; existem ilhas
da gula, que dispõem de bares e restaurantes que satisfazem todas as paixões por comida e bebida; as ilhas
de sexo são as mais procuradas, pois tratam dos maiores desejos e prazeres desta Quinta Era; há lugares
de culto religioso, onde os místicos e fanáticos permanecem em práticas rituais; existem as ilhas pessoais,
onde cada personalidade recria sua cidade natal e o ambiente familiar, e revive todos os conflitos da
matéria, na esperança vã de resolvê-los. Enfim, o Mundo Intermediário é uma triste ilusão enganosa –
desculpem-me a redundância – que dá a falsa impressão do contentamento de um desejo, da elevação
espiritual, da cura de um irmão ou do perdão a um ente familiar. Infelizmente é, atualmente, o lugar mais
frequentado por esta humanidade.”

Christian tomou um gole d’água e abriu para perguntas; muitas mãos se ergueram e ele apontou um
senhor de aproximadamente sessenta anos de idade que sentava na primeira fila de cadeiras. As pessoas
que o professor conhecia já se tornavam minoria, e ele pediu que cada um se identificasse pelo primeiro
nome antes do questionamento.
 Meu nome é Mário e gostaria de saber se consciência, alma e espírito são a mesma coisa.
 Boa pergunta, seu Mário. A maioria dos conceitos que temos neste mundo para definir alma e
80
espírito foram corrompidos, e são inadequados para este momento que vivemos – momento evolutivo,
bem entendido. Estas definições foram sendo criadas ao longo dos tempos por religiões, seitas, doutrinas
e disciplinas laicas sempre com alguma parcialidade e com limitação de entendimento. Parcialidade
porque sempre estiveram a serviço de interesses de pessoas ou grupos; limitação de entendimento porque
somente conseguimos compreender algo quando evoluímos, ou seja, em épocas passadas não estávamos
maduros o suficiente para falarmos sobre estes assuntos como estamos falando agora – livremente e com
clareza. Tudo bem até aqui?
O homem concordou e Christian prosseguiu:
 Não é, portanto, útil e recomendável tentarmos traçar um paralelo entre as crenças que temos
estabelecidas dentro de nós, tais como os conceitos de alma e espírito, e esta instrução que fala da
consciência. É mais produtivo que criemos dentro de nós uma nova personagem – a consciência , o que
somos em realidade, congruente à Consciência Primordial, à Fonte que iniciou todo o processo evolutivo
cósmico. Com esta nova personagem e estes novos ensinamentos vamos ampliar nossa clareza, até que a
percepção se torne fiel à realidade. Deste momento em diante, pouco importará qual palavra usaremos
para o conceito.
Mário sorriu e balançou a cabeça afirmativamente; o professor apontou uma aluna que pedira a
palavra.
 Como fica a questão da reencarnação e das vidas passadas no contexto desta instrução?
 O conceito de reencarnação como conhecemos hoje, Cíntia, é oriundo do final da Quarta Era, mais
precisamente das duas últimas épocas culturais – as mais degeneradas de todas, as que mais utilizaram
81
de magia negra. Esta ideia se consolidou e ainda persiste nos dias de hoje. Poucas doutrinas realmente
instruem seus adeptos com o conhecimento preciso e adequado. Muitas seitas distorcem o ensinamento
para continuar utilizando magia negra para fins pessoais ou grupais, em busca de poder, dinheiro, sexo
e/ou fama. Para entendermos como acontecem esses processos de nascimentos sucessivos teremos de nos
livrar destas informações antigas e muitas vezes corrompidas. Partamos do início: quando a Fonte criou
a Luz o Cosmos foi preenchido por partículas materiais dotadas de consciência – reflexo fiel da
Consciência Primordial. Não existe nenhuma partícula no Cosmos que não seja portadora desta
consciência; na realidade o correto é dizer que a consciência porta uma partícula material, pois ela já
existia antes. A consciência “vestiu-se” de matéria – materializou-se –, habitou uma pequena partícula
dando-lhe vida. Ora: tudo que existe no Cosmos originou-se da aglutinação destas partículas primitivas,
ou seja, tudo é dotado de consciência e vida – melhor dizendo, consciência dota tudo que existe no
Cosmos, ela está em tudo.
O professor fez uma pausa; sabia que aquele assunto era delicado, pois a maioria da plateia era
simpática ou praticante de ritos espiritualistas de umbanda, candomblé ou espíritas. Era necessário
esclarecer aquela dúvida – e ele sabia que seria difícil fazê-lo em minutos. Prosseguiu a explanação,
procurando ser didático:
 Nossa ciência separa os seres entre animados e inanimados; com vida e sem vida. Esta separação
não procede: tudo tem vida, pois tudo tem consciência. Vamos exemplificar usando o conceito de vida
animada: vegetais, animais e humanos para facilitar a compreensão, embora uma pedra também servisse
a este propósito. Toda vez que surge uma nova plantinha, nasce um pequeno pássaro ou um bebê humano
82
vem ao mundo, acontece uma nova organização em função das partículas que compõem o novo ser.
Atentem para o fato de que estamos constantemente reutilizando as mesmas partículas que sempre
estiveram no Mundo Material da Terra: uma partícula que faziam parte de um vegetal – uma alface, por
exemplo – é ingerida por uma vaca e passa a fazer parte de um ser do reino animal; esta vaca produz leite,
que é consumido por um ser humano. Aquela mesma partícula era da constituição da alface, passou pela
vaquinha e agora faz parte do corpo de um humano, sempre carregando consigo a consciência, ou melhor,
a consciência habitando e conduzindo a partícula material. O humano morre e seu corpo é cremado; a
partícula passa a fazer parte de cinzas que são soltas ao vento, no alto de uma montanha. Passam-se
séculos e aquela partícula, que foi levada pela chuva para um rio, está agora na caixa d’água de um prédio;
um morador bebe aquela água e a partícula está novamente em outro corpo humano. Por que estamos
falando nisto? Bem, muitas partículas que estão em nosso corpo físico agora podem ter passado por um
rio de lava, por uma planta pré-histórica e pelo corpo de um dinossauro, por exemplo.
Christian olhou a plateia avaliando se as palavras estavam sendo compreendidas e continuou:
 Temos de manter em nossa mente o preceito de que cada partícula faz uma jornada ininterrupta
para a sua origem, a Consciência Primordial. A consciência que dota cada partícula material de vida tem
como objetivo prioritário unificar-se com a Fonte, elevando-se evolutivamente sem cessar. Evoluir
significa retornar à Fonte, à origem de tudo; as partículas vieram da primeira emissão de Luz desta Fonte
e para a Fonte retornarão. Este é o terceiro aspecto da luz, ainda não compreendido pelos cientistas e
físicos desta humanidade: a essência que conecta todas as partículas do Cosmos, uma “energia cósmica”
– na falta de uma expressão mais adequada – que determina certos comportamentos ainda inexplicáveis
83
pela nossa ciência, que ainda considera a luz um elemento dual – apenas com comportamento corpuscular
e ondulatório. A luz é, portanto e como toda manifestação cósmica, trina – corpo, onda e energia cósmica.
Mas não iremos aprofundar-nos na constituição da luz, embora tenhamos que evoluir nestes paradigmas
científicos nalgum momento pela importância do tema. Volto à questão original: a reencarnação.
Nova pausa para água e ele continuou:
 A matéria depende da consciência, mas o oposto não é verdadeiro. Isto significa que a consciência
permanece, é perene e imperecível, enquanto que a matéria é temporária. Sendo a consciência
essencialmente luz, possui a propriedade de energia cósmica, que estabelece vínculos e agrega, condensa
as partículas. Uma pedra é um condensado de partículas; uma árvore, idem, assim como um peixe. Na
medida em que esse conjunto de partículas se forma – no mineral, no vegetal e no animal – estabelece-se
um vínculo energético entre elas, ou seja, o conjunto de partículas começa a formar uma entidade cada
vez mais complexa. Quanto maior a complexidade, mais consciência, mais autoconsciência. A entidade
cresce em complexidade e se individualiza, constituindo uma identidade – surge o reino hominal, o
homem e a mulher. Esta identidade é denominada de muitas formas, entre elas alma, espírito, essência,
ego, self etc. A grande quantidade de termos dificulta a compreensão e, por consequência, o viver de
acordo com este conhecimento. Preferimos denominar esta individualidade que se forma, com identidade
própria, como Consciência. A Consciência evolui tomando veículos – corpos – cada vez mais complexos
e sutis, menos densos, num processo constante de renovação. Esta palavra, aliás, é a mais adequada para
descrever todo o processo cósmico evolutivo. Renovação.
Tomou fôlego e seguiu a fala:
84
 A doutrina reencarnatória foi concebida em épocas de pouca evolução e grande degeneração; isto
fez com que premissas incorretas fossem utilizadas, o que comprometeu tudo o que se seguiu. Como o
próprio nome conduz à ideia de retorno à carne, ao corpo físico, como se todo o processo evolutivo
dependesse de vivências físicas, em corpo material como o conhecemos. A evolução acontece,
principalmente, no Mundo Imaterial, quando também renovamos corpos, deixando os mais densos para
trás. Renovação é a constante evolutiva por excelência. Vidas repetidas e consecutivas no Mundo Material
não geram, por si só, evolução dos seres.
O silêncio da plateia foi marcante naquele momento. A explanação atingia as bases das crenças da
maioria ali presente. Algumas pessoas levantaram-se e saíram; outras começavam a cochichar. O
ambiente estava pesado e Christian percebeu; sabia que haveria aquele tipo de reação e fora sua escolha
ensinar de forma transparente e clara. Um senhor de cabelos brancos e ralos perguntou:
 O correto de se acreditar é na ressurreição, então?
 Muito bem colocada sua questão. No momento preciso, senhor...
 Allano. João Allano.
 A ressurreição é outro conceito que serviu por muito tempo a interesses de pessoas e grupos. É um
dogma cristão que não é real: não existe ou existiu ressurreição de corpo físico que já tenha finalizado
sua etapa material. Quando um corpo humano termina sua jornada física – com a ocorrência da assim
denominada morte ou desencarnação – a consciência se liberta e não existe um caminho de volta àquele
corpo material. Não há razão para existir, já que toda a nossa evolução é no sentido de desapegarmo-nos
85
das coisas materiais, ou seja, nos distanciarmos das coisas físicas, inclusive do corpo. Não haveria sentido
em reutilizar um corpo físico que já cumpriu seu papel, seu João.
 O que aconteceu com Jesus Cristo? Ele não ressuscitou como ensina a Bíblia? E Lázaro? Como
fica esta história? – quis saber o homem.
 O corpo físico de Jesus foi colocado em uma tumba após a crucificação. Houve, então, um abalo
sísmico – um terremoto – na região que abriu uma fenda profunda e tragou o corpo, fechando-se em
seguida para que não houvesse qualquer vestígio dele. O mesmo tremor, concomitante com um eclipse
solar, movimentou a pedra que fechava o sepulcro em que o Cristo da Terra foi sepultado. As aparições
relatadas posteriormente aconteceram, mas não com o corpo físico original de Jesus: a Consciência
Crística, livre do veículo físico, usou temporariamente corpos de outros humanos ou se materializou. É
relatado nos livros sagrados que os que eram próximos a ele não o reconheceram. Isto é correto: o corpo
era de outra pessoa, mas as pessoas o reconheceram pelo que falava e como falava. Em outras ocasiões
aconteceu uma materialização também temporária, onde o corpo pareceu etéreo e com um brilho estranho.
Estas coisas são possíveis e acontecem. A Consciência Crística foi a mais elevada e poderosa que já
visitou este planeta. Não haveria dificuldade em realizar estes eventos. Percebam que as escrituras sempre
relatam que ele não era reconhecido de imediato, nem mesmo sua voz; isto procede porque o corpo físico
– a identidade que as percepções sensoriais reconhecem – não mais existia.
O professor deixou a audiência assimilar as informações por alguns instantes e continuou:
 Quanto à Lázaro, o que aconteceu foi diferente: ele era uma pessoa especial e viveu algo que
podemos denominar de iniciação, que durou pouco mais de três dias. Neste processo o corpo físico
86
permanece em estado comatoso, com suas funções vitais em nível mínimo. A consciência imerge no
Mundo Imaterial onde recebe instruções e evolui consideravelmente. O Cristo Jesus sabia de tudo isto,
mas as pessoas daquela época não tinham uma mente que pudesse racionalizar certas informações. Até
nos dias de hoje é difícil compreendermos tudo isto, não é mesmo? Imaginem há vinte séculos. As
aparições do Cristo e a iniciação de Lázaro foram denominadas ressurreições, pela simples limitação
mental e evolutiva daqueles homens e mulheres, naquela época desta humanidade.
Christian parou de falar e olhou compassivamente a plateia; percebia o turbilhão de pensamentos e
emoções que se instalara dentro de muitos. Na Instrução daquele dia eles tinham desconstruído dogmas
preciosos à ciência e às religiões; ele sabia que haveria conflito interno; também sabia que haveria reação.
 Vamos encerrar por hoje. Agradeço muito a presença de todos e desejo uma boa noite de descanso.
A semana seguinte já revelava algumas reações contrárias ao que se ensinava nas palestras
extracurriculares da disciplina do professor Christian. Alguns alunos o procuraram informando que os
pais os haviam proibido de frequentar as Instruções. A direção da escola recebera algumas cartas
denunciando que não era aceitável o que se ensinava naquelas palestras, mas o diretor decidira não
encaminhar nada por enquanto – até porque o retorno que ele recebia dos alunos era muito positivo. O
professor Lúcio, catedrático de física, lhe escrevera uma longa missiva, na qual fazia uma síntese dos
estudos sobre a natureza da luz desde que Max Planck batizou o termo quanta em 1900, passando por
87
Albert Einstein que teorizou que a luz se comportava como se se constituísse de corpúsculos – partículas
chamadas fótons – até chegar a Thomas Young que demonstrou o comportamento da luz como onda
eletromagnética. A carta mencionava ainda outros renomados cientistas e físicos – Erwin Schrödinger,
Heisenberg, Marie Curie, Niels Bohr e outros, citando suas contribuições –, que trabalharam para
entender a natureza dual da luz e, usando as próprias palavras do professor Lúcio, “...não seria um mero
professor de filosofia, com formação suspeita e vida pregressa não sabida, que iria reformular teorias que
vários prêmios Nobel transpiraram sangue para construir!” O diretor não deu maior atenção à carta, mas
resolveu assistir à próxima Instrução de Christian.
Havia quase trezentas pessoas no auditório; o ambiente estava alterado de alguma maneira –
Christian podia perceber: ao lado de pessoas que estavam ali para aprender, estavam os curiosos, os
críticos e os inquisidores. A atmosfera era totalmente diferente da dos outros dias.
O professor iniciou no horário preciso; a audiência calada e ansiosa.

“Estamos ao final da Quinta Era, num dos momentos de maior decadência desta humanidade. Isto não
significa que seja o momento mais baixo em todo o processo evolutivo desde o início da trajetória do
homem neste universo. Em todas as Eras houve altos e baixos, e o final do período sempre foi de uma
decadência mais acentuada que coincide com certa exuberância material. Nós continuamos evoluindo e a
cada período damos passos na direção correta. Nosso destino já está traçado: todos retornarão à Fonte,
88
unificando-nos à Consciência Primordial. Quando digo “todos” me refiro a este e a todos os outros
universos manifestados; todas as humanidades e reinos existentes. É claro que tudo isto não acontecerá
por si. Não basta que fiquemos esperando que aconteça: temos de fazer nossa parte. Apesar de nossas
resistências e eventuais desvios, existe algo que está além de nossa vontade e interferência – a essência da
matéria. Tudo que existe no Cosmos originou-se daquelas partículas que foram materializadas quando a
Luz foi emitida pela primeira vez. Cada partícula foi uma manifestação da Consciência Primordial, ou seja,
a Consciência Una que tudo originou projetou matéria na forma de minúsculas partículas que são, em
essência, consciência. Todos nós aqui nesta sala, por exemplo, somos formados por estas pequenas
partículas que foram, ao longo das Eras, reutilizadas inúmeras vezes. Cada partícula contém, em sua
essência, algo como uma vontade irresistível de retornar a sua origem. Esta é a grande força que move o
Cosmos: a constante busca pela unificação, sendo a evolução o caminho único. Observem que por mais
que uma pessoa faça o mal, para si e para os outros, a consciência tratará de transformar aquele corpo
para colocar-se novamente em trajetória evolutiva ascendente: uma pessoa que exagera no fumo e na
bebida, por exemplo, tem sua vida física abreviada e suas partículas são recicladas nos outros reinos.
O ser humano é uma etapa neste processo evolutivo cósmico. Os outros reinos – mineral, vegetal e animal
– servem de escada para que as consciências evoluam para um patamar onde a matéria torne-se
desnecessária. Todas as partículas que formam os átomos e células de nosso corpo físico foram, em algum
momento da evolução do Cosmos, usadas pelo menos no reino mineral. Outras foram usadas também
nos reinos vegetal e animal. Estes reinos não devem, portanto, servir como inspiração ou paradigma para
a evolução superior – termo aqui colocado significando a evolução do reino superior deste universo Terra,
89
a Humanidade. É muito comum vermos pessoas enaltecendo, de forma muitas vezes devocional, as
montanhas, por exemplo. “A sabedoria das montanhas”, dizem alguns; outros buscam refúgio e sapiência
nas florestas, incensando a “mãe-natureza”; muitos buscam as lições que determinados animais ensinariam,
exaltando a forma como algumas espécies cuidam de seus filhotes ou atribuindo qualidades inexistentes ao
reino, como “a coragem de um tigre” ou a “compaixão de uma fêmea” que adotou um filhote de outra
espécie. Todas estas manifestações são comprovações eloquentes da nossa ignorância de questões básicas
sobre o funcionamento deste planeta. Os reinos inferiores não estão aqui para nos ensinar ou guiar: a
realidade é o oposto, ou seja, nós que somos mais evoluídos temos de guiá-los, conduzi-los pela estrada
da evolução. Esta nossa tarefa também é contrária ao que comumente fazemos: explorar, matar, depredar
e usufruir. Estes atos não contribuem em nada para a evolução dos reinos mineral, vegetal e animal.
Outra questão importante é a de que todos os reinos materiais deste planeta serão, num determinado
momento, extintos, inclusive o humano. Faz parte do processo evolutivo: houve um início, há um
desenvolvimento e haverá um fim. É natural que continentes, terras e ilhas surjam e desapareçam; também
é da evolução que espécies vegetais e animais principiem, se desenvolvam e se extingam. E assim será com
o homem físico, a humanidade neste Mundo Material: haverá um ponto final para todos os corpos na
matéria. O importante nisto tudo é que as coisas aconteçam no seu ritmo evolutivo próprio, sem a
interferência destrutiva do homem ou de outros seres.
Os seres humanos da Quinta Era não devem olhar para baixo procurando os caminhos que devem seguir.
Não devem olhar para as montanhas, os rios, as árvores, as abelhas, os golfinhos, os pinguins e para os
gansos procurando orientação para a sua vida confusa. Nossa atitude perante estes reinos deve ser a da
90
gratidão e do respeito; somos os legítimos tutores de todos, nossa sobrevivência material depende deles e
devemos exercer nossa responsabilidade com sabedoria e ética.
Também não é útil que olhem para trás, para antigas civilizações que dominaram o planeta, os hindus, os
persas, os egípcios, os gregos e os anglo-saxões buscando lições para o que virá. O estudo a respeito destas
épocas culturais deve ser restrito aos livros de história e aos museus. Não há muito de útil na trajetória
destes povos que possa nos ajudar no atual momento que vivemos, assim como não haverá nada de
evolutivo na época cultural presente, a Russo-Chinesa que vivemos atualmente, que nada mais é do que
uma vivência requentada da última época cultural da Quarta Era, a Mongol.
Somos instados a colocar nosso foco, a nossa vontade, a nossa força mental, no momento em que vivemos,
este sim, resultado do trabalho e esforço das gerações pregressas – às quais também devemos gratidão.
Estar desperto é uma exigência destes tempos; estar alerta; estar ciente; estar liberto. E, estando livre, deixar
que a nossa essência nos guie – a consciência.”

Houve uma pausa, as pessoas acomodaram-se nas cadeiras, movimentando o corpo para fazer o
sangue circular. A plateia estivera atenta durante toda a explanação, e algumas mãos foram erguidas
pedindo a palavra. O professor apontou um estudante, enquanto tomava um pouco de água.
 Luís Carlos.
 Eu gostaria de saber mais sobre a mudança das Eras, da Quarta para a Quinta: se a época cultural
Mongol foi a última do período anterior, ela não deveria ter sido a mais evoluída?
 Boa questão: a Quarta Era teve períodos de muita evolução, mas degenerou de forma rápida e
91
constante. O desenvolvimento material ocorreu concatenado com a evolução sutil, moral e ética, que
acontece no Mundo Imaterial; mas só por curtos períodos. À medida que alcançavam sabedoria e poder,
os atlantes – povos que viveram na Quarta Era – começaram a usar estas conquistas em proveito próprio,
explorando os demais. A decadência foi inevitável e aconteceu um período de uso indiscriminado de
magia negra, um dos mais intensos até hoje neste universo Terra, a ponto de comprometer todo o projeto
evolutivo desta humanidade. O Complexo Pleiadiano decidiu intervir de forma mais profunda:
escolhemos um povo que ainda se mantinha dentro das regras de conduta daquele tempo e que ainda não
tinha se corrompido. Tomamos este povo sob nossa tutela e proteção diretas, guiando-os até a
transposição daquele evento que ficou conhecido como Dilúvio Atlântico, que na verdade foi o
afundamento definitivo do continente em que viviam.
Christian observava atentamente as pessoas e suas reações; continuou com a explicação:
 Este povo foi escolhido dentre os da quinta época cultural: a Semita. Foram instruídos e guiados
durante as duas épocas subsequentes, a Acadiana e a Mongol; conseguimos protegê-los da corrupção e
eles foram a semente da Quinta Era. Uma parcela deste povo escolhido mantém-se ainda isolada até hoje,
enquanto a maioria cumpriu sua tarefa mesclando-se com outros povos. Os descendentes que
permanecem à parte são os hebreus, que ainda lutam para consolidar o território de Israel. As épocas
Acadiana e Mongol continuaram a trajetória de crescimento material desassociado da evolução interna,
sutil, e se corromperam cada vez mais até o fim. Podemos ver vestígios destes acontecimentos na
civilização chinesa atual, por exemplo, que associa um desenvolvimento externo exuberante com padrões
de conduta, moral e ética absolutamente sofríveis. Ficou claro para você, Luís Carlos?
92
O rapaz balançou a cabeça e o professor Lúcio pediu a palavra:
 Em sua explanação, caríssimo colega, chamou-me a atenção sua recomendação de não buscarmos
no passado as respostas para nossas dúvidas presentes. O digníssimo docente de filosofia de nosso
modesto – mas íntegro e honesto – colégio citou literalmente os gregos como exemplo do que não
devemos ler – falou em tom de discurso, dirigindo-se à plateia.  Porventura não foram os gregos que nos
deram os melhores textos que pautam a nossa cultura? Não foram eles – Sócrates, Aristóteles e Platão,
entre outros tantos – que nos legaram ensinamentos que ainda hoje persistem em nossa sociedade? Afirmo
que as bases de nossa civilização foram alicerçadas por estes eminentes humanistas; afirmo que devemos
continuar bebendo no cálice desta sabedoria se quisermos evoluir; afirmo que seus textos continuam
muito atuais e que suplantam muitos que se julgam filósofos neste século 21! – finalizou com o dedo
indicador em riste.
Fez-se um silêncio constrangedor. O professor Lúcio permanecia em pé, aguardando manifestações
de apoio – aplausos, talvez , que não aconteceram. Christian o olhava de forma neutra e, sem alterar-se,
falou:
 E qual é a sua questão, professor Lúcio? – verbalizou candidamente, sem qualquer ironia.
Houve risos contidos e o professor de física ruborizou, contendo sua ira.
 Minha opinião foi externada e tenho certeza de que conto com a silenciosa aprovação da parcela
culta presente nesta sala!
Aconteceram velados apupos em todo ambiente, e Christian fez um sinal com as duas mãos pedindo
93
silêncio.
 Não posso falar por todos, professor Lúcio, mas sua opinião conta com meu sincero respeito,
embora contrária ao que foi dito. Todos – enfatizou – podem emitir sua opinião, mesmo neste espaço que
sempre reservamos para dúvidas em relação ao tema da Instrução. Por isto minha pergunta: o senhor tem
alguma questão objetiva que eu possa contribuir para esclarecer? – concluiu calmamente.
 Tenho-a, pois! – disse o intelectual, visivelmente alterado.  Não é uma contradição que o senhor
ensine Aristóteles nas classes regulares e o desabone em suas palestras? – arrematou triunfante.
 Bem, antes de tudo um esclarecimento: quando digo que os textos e ensinamentos dos gregos e
outros não são úteis para nós atualmente não os estou desabonando, de forma alguma. O que afirmo é que
foram ensinamentos úteis e verdadeiros naquela época, naquele contexto, apenas isto. Hoje podemos
considerá-los antiquados e anacrônicos; não servem mais. Foram grandes homens, filósofos inspirados –
naquele tempo, naquela condição, naquele ponto evolutivo. Não são mais necessários hoje, assim como
não foram decisivos na evolução da humanidade, tanto é que, apesar dos textos e ensinamentos deles,
continuamos definhando moralmente até chegarmos a este estado degenerado e corrompido de hoje.
Christian fez uma pausa, sempre medindo as palavras para não causar maior desconforto ao colega.
 O fato de estudarmos os filósofos gregos nas aulas curriculares decorre da exigência do sistema de
ensino brasileiro. Nossos alunos precisam passar no vestibular, participar do exame nacional do ensino
médio e esta informação é necessária, embora questionável como subsídio para a vida de cada um e para
a evolução da humanidade.
A calma e a clareza com que Christian falava pareciam enfurecer ainda mais o colega, que se
94
mantinha em pé, como num embate de vida ou morte.
 Já que parece dominar tão bem as obras de nossos filósofos gregos, a ponto de criticá-las com tanta
segurança, o senhor poderia apontar um erro ou uma inverdade proferida por estes sábios de nosso
passado? – desafiou.
 Sim, eu posso – disse o palestrante –, embora não seja nosso objetivo aqui a avaliação comparativa
e crítica de textos antigos. De maneira geral todos os seres humanos que buscaram a sabedoria
conseguiram realizar alguns avanços e acertos. Mas todos careciam de um maior conhecimento de coisas
básicas, como por exemplo, a fisiologia humana: não era sabida, na antiga Grécia, a função dos órgãos
humanos. Aristóteles, por exemplo, acreditava que o cérebro servia para resfriar o sangue, como se fosse
um radiador; dizia que o corpo masculino era mais completo que o feminino e coisas do gênero. Ele
salientava a aristocracia como forma mais adequada de governo e julgava os trabalhos manuais como
desprezíveis, já que eram destinados aos escravos. Veja, prezado colega, que eram homens dedicados e
intelectuais esforçados, mas cuja obra já cumpriu seu papel. Como pode um homem legar sabedoria
genuína à humanidade se aceita a escravidão de seus semelhantes com naturalidade?
Novo silêncio no auditório; o contendor sentara discretamente durante o final da resposta.
 Podemos citar também – continuou Christian – a inclusão da relação sexual entre mestre e aprendiz
como conceito filosófico elevado na obra de Platão, o que denota uma incapacidade em controlar instintos
físicos básicos. Justificar o abuso sexual com pseudonormas que eram agregadas aos ensinamentos tidos
como verdadeiros é outro indicativo de que estes escritos filosóficos gregos foram corrompidos em sua
origem.
95
Houve alguns segundos de entorpecimento no auditório, até que um aluno quebrou a espessa muralha
de constrangimento com outra pergunta:
 Por que, então, eles são tão famosos entre nós? Todos os citam como grandes mestres, não é
verdade?
 Sim, você está correto, Edir. Um fator é que se tratam de textos antigos que foram preservados,
são relíquias. Esta humanidade tem a falsa concepção de que as respostas para nossas angústias atuais
serão encontradas no passado. Vem daí a grande expectativa em disciplinas como a arqueologia, por
exemplo. Outro fator é que identificamos, nos dias de hoje, poucos pensadores com ética e moral
elevadas. Naturalmente idealizamos nos filósofos gregos o modelo de elevação intelectual, moral e ética.
Uma senhora pediu a palavra:
 Meu nome é Lourdes, e sou funcionária do colégio. No final de sua palestra foi falado que devemos
estar despertos e livres, para que a consciência nos guie; como fazer isto?
 Boa questão. Este é o primeiro passo para qualquer movimento evolutivo que queiramos fazer,
Lourdes. Nós, as consciências, devemos estar livres do jugo dos corpos densos – mental, emocional e
físico. Toda vez que dormimos nos libertamos do físico, mas permanecemos escravos da mente e das
emoções. Vou desenhar no quadro algo que pode nos ajudar:

ACORDADOS DORMINDO
CORPO FÍSICO
96
CORPO EMOCIONAL CORPO EMOCIONAL
CORPO MENTAL CORPO MENTAL

CONSCIÊNCIA CONSCIÊNCIA

 O esquema da esquerda representa nossa situação enquanto estamos acordados, em vigília; o da


direita, enquanto dormimos. Observem que nossa essência, o que realmente somos – a consciência – está
aprisionada no núcleo dos corpos. Mesmo quando dormimos o mental e o emocional continuam ativos,
cerceando a consciência. Esta é a mesma situação da morte física, ou seja, em termos de composição dos
corpos não há diferença entre estarmos dormindo ou mortos. Estarmos despertos e livres significa
atingirmos um estado onde a consciência comanda nossos passos, sem a interferência dos outros corpos.
Nossa mente e nosso emocional interferem mais por serem desequilibrados, do que por estarem realmente
fortalecidos. Construímos uma fortaleza de pensamentos e emoções que julgamos coerente, necessária e
verdadeira: firmamos posições, consolidamos nossas opiniões e afirmamos ter uma personalidade forte.
Não percebemos que a construção desta fortaleza está sendo feita em terreno movediço. Os tijolos que
usamos ao longo da vida são as crenças, preconceitos e dogmas – pensamentos –, e os desejos, mágoas,
culpas, medos e orgulho – emoções. Quando nos damos conta que não há necessidade de construir
97
fortaleza alguma, os corpos emocional e mental perdem a capacidade de interferir em nossa evolução.
 Mas como fazer isto? – repetiu ansiosa a mulher.
 Já estou chegando lá – sorriu o professor.  Todo este elenco espúrio de pensamentos e emoções
nasce de um evento singular: o erro. Quando cometemos um erro desencadeamos uma série de eventos
internos que vão se acumulando ao longo de nossa vida. É muito simples; vou colocar no quadro.
E Christian traçou um esquema que pudesse facilitar o entendimento da plateia, que dedicava atenção
total à explanação.
EU ERREI E ELE ERROU E
NÍVEL MERECE SER
MEREÇO A MENTAL
PUNIÇÃO PUNIDO

NÍVEL
CULPA MEDO MÁGOA SOBERBA
EMOCIONAL

98
NÍVEL
ERRO PARALISIA ERRO CEGUEIRA
MATERIAL

CICLO VICIOSO
gera MAIS ERROS
 Vejam que tudo começa quando cometemos um erro, um equívoco, uma falta: ofendemos uma
pessoa com palavras, por exemplo. Instala-se a emoção da culpa em quem ofendeu e a mágoa no ofendido;
tudo isto ocorre no corpo emocional, que envia a informação “para cima”, para o corpo mental. “Fui
ofendido!”. “Ofendi!”. A mente processa estas informações, julga e dá os veredictos: “Eu realmente
ofendi, sou culpado e devo ser punido”, e “Como eu fui ofendido é justo que eu esteja magoado e que o
outro seja punido”. Todos estes pensamentos confirmam as emoções anteriores, que agora se instalam no
corpo emocional como MEDO (o medo de ser punido) e SOBERBA (a arrogância de punir o outro). O
medo nos paralisa e vai se acumulando desde nossa infância; quando percebemos somos adultos
medrosos: temos medo de altura, de estarmos sós, da morte, das diferenças (preconceito) etc. A soberba
nos torna cegos, pois ficamos arrogantes, pretensiosos, orgulhosos, superiores (crença); sentimo-nos
99
melhores que os outros – afinal, eles nos magoaram, nos ofenderam e nos devem alguma coisa. Cegos e
paralisados perante a vida, cometemos mais e mais erros; um ciclo vicioso.
 Erro é a mesma coisa que pecado? – quis saber um garoto.
 Boa pergunta. Sim, todas estas denominações usadas ao longo da história da Humanidade –
pecado, falta, equívoco, incorreção, atitude imprópria, desvio, comportamento inadequado etc. – são a
mesma coisa que erro. Os humanos utilizam eufemismos para evitar a realidade de que todos cometem
erros e evitar ter de reconhecê-los. Ou usam hipérboles para ampliar a gravidade do ato de errar – como
o sinônimo “pecado” – e poder comercializar o processo de expiação do erro, como fez a igreja católica
que vendia indulgências. Vejam que usamos figuras semânticas para fugirmos do significado preciso de
um erro – que é algo simples e comum.
 E pode-se sair deste ciclo vicioso? – quis saber o mesmo rapaz.
 Esta é a boa notícia – exclamou Christian.  Podemos interromper o ciclo por nossa própria vontade
e ação, sem dependermos de mais ninguém. Voltamos neste momento à pergunta de dona Lourdes: o que
fazer para sermos livres. O processo também é muito simples: vejam os três passos necessários:

2
PEDIR
AVERSÃO
PERDÃO

1 3
100 O SER
ERRO
LIVRE

APEGO PERDOAR

 No primeiro passo você identifica os apegos e aversões – que são os vínculos que nos prendem a
outras pessoas. A aversão surge quando a pessoa “deve” algo a outro; ela ofendeu, magoou ou
simplesmente deve dinheiro. Sente-se culpada e não quer encontrar o outro – tem aversão. O apego está
no lado oposto: a pessoa acha que o outro lhe deve algo, seja um pedido de desculpas, o cumprimento de
uma promessa ou de uma expectativa não realizada ou algo material, dinheiro e objetos – tem apego. A
identificação dos apegos e aversões nos ajuda a entender e aceitar nossos erros e a darmos o passo mais
importante e definitivo: perdoar e pedir perdão. O perdão é a ferramenta que dissolve os medos, o orgulho,
a culpa e as mágoas. Ele age nas pessoas mudando as escolhas que fizeram logo após o erro cometido, e
faz uma verdadeira limpeza neste lixo emocional que foi acumulado ao longo dos anos. Utilizando a
ferramenta do perdão sistematicamente, a consciência se liberta – o ser desperta.
 E onde entra a mente nesta questão do perdão? – quis saber a mulher.
 O julgamento é o fator que causa o desequilíbrio mental nas pessoas; a mente humana é um lugar
101
de caos, com pensamentos desordenados e descontrolados. Na medida em que usamos o perdão este caos
diminui, até o ponto onde a mente não aceita mais as emoções de culpa e mágoa, ou seja, ela interrompe
o ciclo logo após o emocional enviar as informações. A mente processa e determina uma ação corretiva
imediata, seja ela de perdoar ou de pedir perdão; desta forma cortamos a geração e a instalação de medo
e soberba. Uma mente clara e ordenada é um grande instrumento de elevação e evolução.
 E o que causa o desequilíbrio emocional?
 Estas mesmas emoções que estão no quadro: o acúmulo de culpa, mágoa, medo e soberba
desequilibra o corpo emocional das pessoas. Desequilíbrios mentais e emocionais trazem como
consequência o desequilíbrio físico – doenças, principalmente –, e a consciência permanece refém de
tudo isto, sem poder atuar evolutivamente.
 Este seu método funciona com dívidas materiais também? – perguntou um senhor na primeira fila.
 Bem – sorriu o professor – não é “meu método”. Apenas estou ensinando como funcionam as
coisas, qual a Lei que nos rege. Em relação à sua questão, temos de ter bem claro que todo débito deve
ser saldado no mesmo nível em que foi contraído, ou seja, um erro no nível material – não paguei a conta
da padaria, por exemplo – não será resolvido se eu pedir perdão ao padeiro.
As pessoas riram e olharam para um senhor idoso e calvo, que sorriu timidamente; ele era o padeiro
mais antigo de Vera Cruz. Christian sorriu e continuou:
 Para resolver esta aversão – porque desde que ficamos devendo não vamos mais à padaria – temos
de pedir desculpas por não pagarmos no momento devido e darmos o dinheiro equivalente ao débito. Ou
prestarmos serviço que salde aquela dívida. Da mesma forma, se ofendemos alguém, de nada adiantará
102
lhe darmos dinheiro: é uma dívida não-material e devemos pedir perdão com a mesma palavra que
utilizamos para ofender.
Christian percebeu que várias pessoas copiavam os desenhos do quadro em seus cadernos e blocos;
também percebeu que a hora era avançada e que as pessoas já demonstravam cansaço. Decidiu finalizar
a Instrução.
 Se desejarem retornaremos a estes temas nas próximas Instruções. Obrigado a todos, tenham uma
boa noite.
O final de semana seguinte foi marcado por um silencioso e discreto movimento de importantes
personalidades da Ilha de Itaparica. As Instruções do professor Christian estavam repercutindo em todas
as comunidades da região: onde houvesse um aluno do colégio, acontecia o falatório. O professor não
sabia, mas na quinta-feira anterior membros ilustres da elite política, social e religiosa da ilha estavam
escutando atentamente a palestra; não fizeram perguntas e não expressaram opinião. Entraram e saíram
em total mutismo.
Uma reunião fora marcada para o domingo, após a missa católica, no próprio colégio. O diretor Lima
103
aceitara o papel de anfitrião a contragosto: apreciava o novo professor de filosofia apesar de não
compartilhar algumas de suas ideias; mas a pressão fora demasiada e tivera de ceder. O domingo tranquilo
e preguiçoso em família estava perdido.
A escola ficava deserta no domingo, prerrogativa para aquele encontro que deveria ser sigiloso. Não
havia funcionários ou vigias; os carros entraram discretamente e estacionaram atrás da área
administrativa, onde não poderiam ser vistos da rua. O organizador principal daquela reunião era um
sujeito forte e enérgico que viera do sul do país: chamava-se Sérgio Kroeff e era mestre-maçom. Fundara
a primeira loja maçônica na ilha, já que a maioria preferia a bonança e a alta densidade demográfica da
capital Salvador. Tivera dificuldades no início, mas era persistente e conquistara um espaço considerável
entre os próceres de Itaparica e Vera Cruz: os principais comerciantes, por exemplo, faziam parte da
maçonaria ilhoa. Sérgio tinha duas filhas que participavam das Instruções no colégio e comparecera
pessoalmente a uma delas; saiu indignado e com os pensamentos em estado vulcânico. Nos dias seguintes
fez contato com outras lideranças da comunidade e agendou a reunião.
Sentaram-se em torno da mesa oval na sala do diretor, que estava providenciando uma jarra com
água fresca e copos descartáveis. Estavam presentes o padre Mauro Trevisiani, que comandava a paróquia
católica local, o babalorixá Cândido das Neves, do Terreiro da Ilha, Gilberto dos Santos, médium e
coordenador do centro espírita Luz e Harmonia, o bispo Ezequiel Arum, da igreja evangélica local,
Alberto Azambuja, que presidia o Círculo de Pais e Mestres de Itaparica, o professor Lúcio, físico e
representante do corpo docente e Valter Quintanilha, vereador e pai de uma aluna que frequentava as
Instruções de Christian, ali a representar o poder legislativo e o prefeito que não pudera – ou não quisera
104
– comparecer. Completavam a mesa o presidente do Rotary Club de Salvador Agenor Barbacena, que
tinha quatro casas de praia em Itaparica, e Lédio Marques Toledo – o Ledinho – que editava o pequeno
jornal semanal “Voz de Itaparica”.
Sérgio abriu os trabalhos enquanto o diretor ainda distribuía os copos; era sua forma de mostrar quem
estava no comando, apesar de a cadeira principal, à cabeceira, ser ocupada pelo incomodado anfitrião.
 Quero deixar claro que esta é uma reunião secreta: nada do que falarmos pode sair deste grupo,
está bem entendido? – completou olhando fixamente todos em redor da mesa.
Alguns baixaram o olhar, intimidados com a agressividade contida do maçom; o diretor Lima
finalmente sentou-se na sua enorme cadeira que tinha um espaldar que superava em altura sua calva.
Sérgio continuou, encarando firmemente o editor da “Voz de Itaparica”:
 Entendeste, Ledinho? Nada pode sair na sua coluna, está claro?
 Sim, sim... – concordou, fazendo-se de submisso.
Lédio sabia que não estava ali por sua importância na comunidade, mas sim por que ao final haveria
alguma coisa a ser publicada, e então precisariam dele.
 A pauta desta reunião é a confusão que este borra-botas está fazendo com estas palestras.
 O professor Christian, de Filosofia – amenizou o diretor Lima.
 Que seja! – vociferou Sérgio.  Aonde tu encontraste este sujeito, Lima? Numa zona da capital?
Um risinho zombeteiro correu a mesa; todos conheciam a personalidade do maçom, que fazia
questão de manter sotaque e palavreado de sua terra nativa. O diretor engoliu saliva e juntou forças para
não gaguejar:
105
 O professor Christian tem um ótimo currículo, uma formação muito consistente; e ele já morava
aqui há algum tempo, na Barra do Gil.
 Ele era açougueiro no mercadinho do português – entregou o professor Lúcio, ao que recebeu um
olhar raivoso do diretor.
 Um açougueiro – exclamou Sérgio teatralmente, gesticulando amplamente para enfatizar sua fala.
 O novo guru dos nossos filhos era açougueiro! Na minha terra açougueiro fica atrás do balcão, moendo
carne e cortando bife; tapado de sangue, e não dando aula! – gritou a última frase e deu um soco na mesa.
O diretor segurou a jarra para não derramar; o olhar do maçom estava em chamas. Os risos cessaram
e todos experimentaram o medo que aquele homem irradiava. O padre Mauro tomou a palavra, assumindo
o papel de bombeiro; afinal a reunião apenas iniciara.
 Vamos ordenar os trabalhos para termos uma reunião produtiva: cada um fala sua posição em
relação a estas palestras, de maneira sintética, para podermos concluir alguma coisa ao final, está bem?
Todos assentiram, com exceção de Sérgio, que não gostou da atitude de liderança do padre. “Padreco
metido. Quer mandar aqui também!” – pensou. O padre Mauro continuou:
 Alguém pode ser o secretário para redigir uma ata?
 Sem escritos! – antecipou o maçom.  Esta reunião não está acontecendo. Se alguém perguntar,
ela nunca aconteceu. Está claro a todos?
Ninguém teve coragem de arguir e o professor Lúcio tomou a palavra:
 Vou dar meu testemunho, já que acompanho de corpo presente àquelas palestras, embora minha
mente e meu coração jamais deitaram no berço daquelas heresias científicas e religiosas – começou
106
pomposamente.
Os presentes passaram a mão na cabeça e tomaram um gole d’água: todos conheciam o discurso
prolixo do físico. Festejaram disfarçadamente quando Sérgio cortou:
 Tu és mais enrolado que papel higiênico. Desembucha logo, vivente, que eu tenho uma picanha
para assar me esperando lá em casa!
Lúcio recompôs-se e continuou:
 Vou falar como o cientista que sou. Não entrarei no âmbito esotérico-religioso, haja vista a ilustre
presença dos senhores da esfera espiritual.
O diretor deu um pontapé na canela do professor, fazendo o sinal para que fosse direto ao ponto; não
queria novas grosserias à mesa e a forma empolada da fala poderia parecer provocação.
 Todas as teorias e informações dadas pelo professor Christian não procedem. São falsas ou simples
especulações. Não há nada nos compêndios... livros científicos que embasem o que ele fala. E há um
agravante: além de pregar ensinamentos fictícios ele desestimula os alunos a aprenderem com nossos
grandes mestres da antiguidade, como Sócrates, Aristóteles e Platão.
 Mas a turma está estudando a filosofia desse pessoal nas aulas normais, não está? – perguntou o
presidente do CPM.
 Sim, eles estão, Azambuja – respondeu o diretor Lima –, de acordo com o currículo do MEC.
 Apenas para passar no vestibular, diga-se a bem da verdade – emendou o professor Lúcio. 
Filosofia e Sociologia são disciplinas que devem reger a vida dos nossos alunos; eles devem espelhar-se
nas ideias, na ética dos pensadores que criaram a nossa civilização – os gregos – e não apenas acumular
107
informações para um teste de múltipla escolha.
 O que tenho ouvido também não recomenda o rapaz – disse o padre Mauro.  Dogmas sagrados a
nós, católicos, são tratados como se fossem instruções profanas. Já ouvi narrativas que dão conta que o
seu professor afirma que Deus é um extraterrestre... – concluiu olhando para o diretor.
 Pior que isto – exclamou Gilberto.  Ele contesta a reencarnação e a existência da alma. Os santos
espíritos de luz, que são nossos guias na doutrina, já deram seu veredicto: este professor tem um obsessor
muito forte com ele. Sim... – ele fez uma pausa e fechou os olhos, como se prestasse atenção em algo
invisível, que só ele ouvisse – ...estão pedindo que o levemos ao Centro Espírita para uma sessão de
desobsessão... Urgente!
Alguns na mesa se entreolharam e suspiraram; Sérgio interrompeu no seu estilo peculiar:
 Enquanto o Gilberto incorpora a gente continua! Cândido: como é que o Terreiro está vendo tudo
isto?
 Com muita preocupação. As coisas que este professor está falando são contra os ensinamentos da
nossa religião mais importante: o Candomblé.
O padre Mauro remexeu-se incomodado na cadeira; o babalorixá prosseguiu:
 Todo o poder dos Orixás emana da Natureza e este professor ensina que a Humanidade é o reino
superior, e que todos os outros são subordinados a ela. Além disso, já me falaram que ele é vegetariano e
condena o uso dos animais em rituais sagrados. Já imaginaram barbaridade maior? Ele quer o quê? Que
usemos sangue de gente?
“Vegetariano!” – pensou Sérgio. “Sabia que tinha algo muito errado com este ordinário.”
108
 Tu contrataste uma bicha para ensinar nossos filhos! – gritou em tom de acusação para o diretor
Lima, que afundou ainda mais na cadeira.
Lédio anotava tudo disfarçadamente num pequeno bloco solto sobre as coxas: “Que material. Que
texto teria para sua coluna semanal!” – comemorava.
 Não podemos condenar uma pessoa por sua preferência sexual – avisou o representante do prefeito.
 Não é politicamente correto.
 Deus condena o homossexualismo, doutor Quintanilha – decretou o padre Mauro – e não podemos
ter um meio-termo sobre este assunto.
O diretor balançava a cabeça em desânimo total.
 Caros irmãos – começou o bispo Ezequiel –: relutei até agora, mas não posso esconder a verdade.
Os dons espirituais já me alertavam: eu estaria aqui para falar o que ninguém falou! Para desvelar o manto
de trevas que cobriu este colégio; para desalojar o Mal que se instalou no coração desta ilha; para
extirpar...
 Fala logo, Ezequiel – interveio Sérgio, impaciente.
 Satanás está entre nós! – finalizou apocalipticamente.
Alguns suspiraram; outros arregalaram os olhos; o maçom coçou a cabeça semicalva. O presidente
do Rotary, que se mantivera silente até então, falou:
 Minha pergunta é a seguinte: este rapaz vai prejudicar os negócios na Ilha? Eu não me importo se
ele acredita em Deus, em ETs ou o raio que o parta. Mas me incomoda muito se houver agitação e afetar
109
o turismo e o preço dos imóveis.
 A presença do demônio não tarda a contaminar a matéria – continuou o bispo evangélico no mesmo
tom.
 Sim, sim, eu conheço todo este blá-blá-blá. Mas já existe alguma consequência prática das palestras
do sujeito? – insistiu Agenor.
 Os alunos estão muito mais interessados e participativos nas aulas – disse o diretor Lima
timidamente.
 Não é disso que estamos falando, Lima – cortou Agenor, impaciente.  Quero saber do que
realmente interessa: progresso; desenvolvimento; o futuro!
 Dinheiro – replicou o diretor, com inesperada coragem.
 Dinheiro que também é doado para o colégio! Não esqueça quem consegue as verbas para as obras
e reformas desta sua espelunca – treplicou o rotariano com o indicador da mão direita em riste.
O diretor baixou a cabeça. “Que material! Que material!” – pensava o jornalista.
 Ledinho! – quase gritou Sérgio.  O que tu sabes desta encrenca toda?
 E-eu... – gaguejou – não tenho informações...
Fora pego de surpresa. Tentava esconder o bloco e a caneta para falar aos outros; não esperava ter
de dar opinião naquele momento. A caneta caiu ao chão e ele bateu a cabeça na mesa ao pegá-la. Lédio
preferia a opinião posterior, pensada e repensada; escrita e revisada. Sempre tinha dificuldade quando
tentava dar sua opinião no calor dos acontecimentos, verbalmente.
 Ora, Ledinho, todo mundo sabe que você é o sujeito mais bem informado da Ilha – falou o vereador
110
Quintanilha em tom de brincadeira.
 Vamos – incentivou o maçom ironicamente –; diga-nos o que se comenta no “salão das loucas”.
Quase todos riram. O Lafayette Cabeleireiros era o salão de beleza mais badalado de Itaparica e
notório centro de fofocas. Era mais frequentado pela riqueza e abundância de boatos locais do que pela
habilidade dos seus profissionais. Lédio passava por lá todos os dias; era uma de suas minas mais
produtivas, de onde retirava a matéria-prima para seus artigos.
 Bem... O caso é muito comentado por todos e existe uma divisão bem clara de opiniões.
 De quanto, mais ou menos? – quis saber o padre.
 Meio a meio. Metade concorda e acha bom, e metade quer ver o professor longe daqui.
 Deixe-me ver se adivinho – disse o maçom. – A parte que gosta é a das mulheres que acham o
sujeito bonitinho mais as bichinhas que trabalham lá. Acertei?
 É... Mais ou menos assim... – concordou o jornalista para encerrar logo sua participação na
conversa.
 O povo precisa de alguém que pense por ele – afirmou Agenor. Estas opiniões populares são
fruto de ignorância profunda.
 E cabe a nós dar um fim a este câncer que está se formando no seio de nossa comunidade – fez
coro Sérgio, agora em tom de campanha política.
 Mas o que pode ser feito? – perguntou o vereador.  Não estamos mais numa ditadura onde se
podia simplesmente varrer o lixo para baixo do tapete.
111
 O colégio não pode simplesmente demiti-lo? – inquiriu o padre Mauro.
 Se eu o demitir, estaremos criando uma espécie de mártir – ponderou o diretor.  Ele está muito
popular no momento e os alunos não vão aceitar bem sua saída.
 Se ele participar de três sessões de desobsessão...
 Nem começa, Gilberto – cortou seco o maçom.
 Manda ele pro meu terreiro que eu dou um jeito – propôs Cândido.
 Por favor, senhores – pediu o professor Lúcio.  Precisamos de soluções racionais e concretas.
 Levem ele no culto de amanhã à noite – disse o bispo Ezequiel.  Segunda-feira é dia de
Exorcismo: não tem demônio que resista ao poder de Jesus!
E o falatório simultâneo tomou conta da reunião. O diretor balançava a cabeça, desiludido; o
jornalista anotava tudo, sorridente; o padre parecia rezar; o vereador e o rotariano falavam ao celular. A
reunião terminara por deterioração espontânea.

Os homens foram entrando em seus carros e partindo. Sérgio ficou propositalmente para trás; chamou
Lédio num canto da escada e falou:
 Não publique nada ainda; tenho coisa melhor para ti. Te espero às nove lá em casa.
 Hoje à noite?
 Hoje à noite – confirmou e saiu caminhando em direção à sua enorme caminhonete preta, sem
esperar resposta do outro.
112
Poucos tinham coragem ou disposição para contrariar o mestre-maçom, e Lédio compareceu
pontualmente. A esposa de Sérgio o atendeu e o encaminhou para a parte superior da residência onde
havia uma sala de jantar com cozinha e churrasqueira; as amplas janelas envidraçadas proporcionavam
uma bela vista das luzes da capital. O ambiente era descontraído; havia uma música sertaneja tocando ao
fundo, cervejas na mesa e conversa sobre futebol. Sérgio girava espetos repletos com corações de galinha
e salsichões de carne suína; sua habilidade na churrasqueira era famosa em Itaparica. Na mesa de madeira
bruta confraternizavam o vereador Quintanilha e o presidente do Rotary Agenor Barbacena.
 Te aprochega, vivente! – gritou Sérgio ao ver Lédio subindo os últimos degraus da escada.
 Boa noite, boa noite... – cumprimentou o jornalista.
 Senta, senta, Ledinho – disse o anfitrião enquanto servia um copo com cerveja ao recém-chegado.
 Vai tomando umas que o coraçãozinho tá quase no ponto!
Lédio, que pouco bebia, sentou-se ao lado de Agenor e rezou para que a comida viesse logo: se
bebesse de barriga vazia sabia que passaria mal no dia seguinte. Conversaram e riram sobre tudo e todos;
o álcool e o ambiente intimista e alegre faziam com que as amarras da reunião no colégio fossem
rompidas. Lédio se perguntava por que apenas os quatro estavam ali, e qual o papel dele naquele encontro.
Sérgio esvaziou o último espeto na baixela de aço inoxidável em forma de cuia e sentou-se; aquela
era a senha para terminar a parte festiva e iniciar a séria. Todos se calaram e – como soldados obedientes
– aguardaram o pronunciamento do general.
 A reunião foi uma perda de tempo. Foi um erro convidar toda aquela gente.
113
Os outros balançaram a cabeça concordando.
 Decisões difíceis são para grandes homens – continuou o maçom –; homens que sabem conduzir
o seu povo. Aprendi na minha infância nos pampas que existem dois tipos de gentes: os tropeiros e a
tropa. O tropeiro conduz e a tropa obedece.
Agenor e Quintanilha continuavam balançando a cabeça com o olhar fixo no anfitrião; Lédio espiava
os dois de canto de olho e acompanhava o gesto. A sensação de que o momento era solene e que algo
importante estava para ser revelado tomava conta da mesa. Só ali Lédio notou que não havia mais música;
também não vinha nenhum ruído da casa. Estavam sós, decidindo os destinos da Ilha de Itaparica.
Sérgio continuou:
 Somos os tropeiros nesta ilha e nosso gado não pode se desgarrar. Temos que tomar medidas
urgentes para eliminar esta ameaça que surgiu no horizonte. Este professorzinho é um perigo real e temos
de cortar este mal pela raiz! – discursou, empunhando a adaga de palmo e meio de comprimento com que
servira o assado.
Lédio teve a sensação de que, se o professor Christian estivesse ali, o maçom executaria literalmente
o que disse. Ninguém ousava pronunciar palavra; estava implícito que o mestre-maçom daria o caminho
a ser percorrido quando entendesse ser o momento adequado.
 Este moço é fisicamente intocável; não podemos fazer nada que possa transformá-lo num herói ou
mártir. Mas vamos fazer melhor: expor sua vida e desacreditá-lo. Ledinho é aqui que você entra.
O jornalista estremeceu à menção de seu nome; aqueles três homens pareciam ter uma conexão que
114
ele ainda não compreendera. Lédio balançou a cabeça como bom soldado aguardando as ordens; o álcool
turvara sua mente.
 A história que eu vou te dar vai ser um furo de reportagem e vai resolver nosso problema.
 Qual história? – perguntou Lédio.
 De quem este sujeito é na realidade: um depravado sexual!
 Ele é mesmo homossexual? – quis saber Agenor.
 Pior que isso: é bissexual – respondeu Sérgio em tom funéreo.  O sujeito corta pros dois lados!
Agenor e Quintanilha se olharam estarrecidos; Lédio não conseguia entender onde aquilo tudo
levaria, nem qual a gravidade. “Maldita cerveja!” – pensou.
 Tenho testemunhos de várias pessoas de idoneidade inquestionável. Não há dúvida. E este sujeito
está ensinando nossos filhos na escola!
 Conta, conta a história – implorou o rotariano.
 Vou contar. Começa a anotar, Ledinho. Tudo aquilo que tu escreveste na reunião, bota no fogo –
ordenou.  E tudo que tu ouvires a partir de agora, publique.
Lédio buscou bloco e caneta na pasta e preparou-se para escrever. Olhou o maçom, aguardando a
história, mas Sérgio apontou a churrasqueira com a adaga. Lédio levantou-se e foi arrancando uma a uma
as folhas da espiral; as labaredas ergueram-se num átimo extinguindo as anotações da manhã. Sentou-se
novamente, perguntando-se em qual lado estava: no dos tropeiros ou da tropa. A narrativa começara:
 Pois o nosso professorzinho, na época que era açougueiro, engravidou uma menina da Barra do
115
Gil, menor de idade. Moça pobre, órfã de pai, filha mais velha que ajudava na criação dos irmãos menores.
Quando descobriu que estava grávida a menina procurou o rapaz; queria casar e ter o filho. Não queria a
vergonha de ser mãe solteira. Pois o sujeito arranjou para ela um aborto no Paraguai. Convenceu a menina
a viajar com uma amiga para lá e livrou-se do problema. A amiga voltou e me contou tudo; por motivos
óbvios não posso revelar a identidade dela.
 E o que aconteceu com a menina grávida?
 Ficou por lá, morando com um bando de fanáticos religiosos. Não teve coragem de voltar e encarar
a mãe.
 E a mãe não reagiu, não procurou ajuda?
 O professorzinho tratou de arrumar uma grana para a coitada. Ele até conseguiu uma aposentadoria
fria no INSS... Parece que conhece alguém graúdo na previdência...
 E a mãe se calou sobre o assunto.
 Não abriu a boca. Ele ameaçou cortar a aposentadoria se ela falasse com a polícia.
 Hmrmf... – grunhiu Lédio, enquanto anotava.
 E o outro lado? – perguntou Quintanilha.
 O quê?
 O outro lado. Você falou que o sujeito era bi: essa história é de um lado. E o outro?
 Ah. Ele foi procurar emprego no maior hotel da Ilha. A diretora se interessou pelo rapaz... Sabe
como é, sujeito boa pinta, a coroa no atraso... – todos riram enquanto Sérgio acendia um charuto baiano.
116
Ele continuou:
 Todos sabem de quem eu estou falando, não é? Mas o nome dela não pode aparecer, ouviu
Ledinho?
Lédio concordou com a cabeça, anotando tudo.
 Aquilo é um mulherão, não é? Pois não é que o sujeito não quis? A mulher se esfregou nele, ficou
pelada, fez massagem e o cara nem aí!
 Ele pode não gostar de mulheres maduras... – ponderou Lédio.
 O pior ainda não contei: quando a diretora desistiu a filha entrou em ação.
Um murmúrio tomou conta do ambiente: todos conheciam a bela filha da diretora. Jovem, corpo de
modelo, rosto perfeito. Alguns diziam que era a mulher mais desejada de Itaparica.
 Não! – exclamou Quintanilha.
 Sim. – confirmou Sérgio, deleitando-se com o efeito das revelações.  E ele recusou também!
 Só pode ser! – decretou Agenor.
 Do pior tipo! – concordou o vereador.
 Eu já disse: o pervertido é gilete. Um perigo para nossos filhos e filhas. Se fosse na minha terra eu
sangrava na hora! – acrescentou teatral, roçando a ponta da adaga no próprio pescoço.
Agenor e Quintanilha sorriam, imaginando a lúgubre situação; Lédio se perguntava se o maçom
falava aquelas coisas a sério ou era pura fanfarrice.
 Posso citar alguma fonte?
 Nenhuma. Apenas que são fontes confiáveis. E me mande o texto antes de publicar – ordenou o
117
maçom.
Lédio, então, teve certeza que era das gentes do lado da tropa.

Christian não sabia, mas a Instrução daquela semana seria a última. O jornal “Voz de Itaparica” circulava
nas sextas-feiras; distribuição aos assinantes e venda nas bancas e mercados da ilha.
O auditório estava lotado; algumas pessoas tiveram de sentar nos degraus dos corredores. Christian
iniciou no horário programado:
“O que significa ter uma vida evolutiva? Esta questão tem relação direta com nosso objetivo na Terra, que
é dar os passos necessários para a ascensão do que realmente somos – consciências. Enquanto estivermos
presos às questões materiais, emocionais ou mentais esta ascensão torna-se lenta ou inexistente. Grande
parte da nossa prisão é devida à ignorância: não sabemos coisas básicas deste universo Terra, de como
funcionam o Mundo Material, o Intermediário e o Imaterial; criamos fantasias sobre a morte, cada um de
acordo com suas crenças; enaltecemos seres inferiores e ignoramos seres mais evoluídos. Esta sabedoria
escassa se deve, em grande parte, à necessidade de poder, controle e dinheiro que têm as seitas, doutrinas
e religiões, além da própria ciência. Esta prática, realizada século após século, acabou por tornar estas
próprias instituições desprovidas de sabedoria, de conhecimento. De nada serve uma instrução que não é
118
compartilhada. As instruções que o Complexo Pleiadiano trouxe, e continua trazendo para todos, deve
ser vivida e compartilhada. Não deve servir para criar seita ou reunir discípulos; não deve servir para
ganhar dinheiro; não deve prestar-se à conquista de poder. Devemos ter especial cuidado e atenção
quando uma instituição religiosa, um grupo espiritual ou uma seita qualquer nos ensina que o caminho
evolutivo, ou caminho espiritual, consiste em realizar meia dúzia de horas de alguma prática por semana.
Tomem cuidado quando lhes disserem que o caminho é repetir um ritual criado milênios atrás. As pessoas
enaltecem estas práticas antigas para ganhar poder e dinheiro – o seu dinheiro. Estes ritmos, exercícios e
rituais foram muito úteis; no seu devido tempo. Cada etapa evolutiva tem a sua necessidade. Vamos dar
um exemplo: a ioga. Este tipo de prática é da 1ª época cultural da Quinta Era, esta Era que vivemos. Foram
os hindus que a desenvolveram e utilizaram com intensidade. A ioga foi muito útil a eles, pois ajudava a
evolução física, o controle do corpo material, que era a necessidade naquele momento. Hoje ela é de
pouca utilidade, porque o ponto evolutivo é outro e a necessidade também. Executar uma prática assim
pode ser prejudicial às pessoas, pois cria a ilusão de que se está no caminho evolutivo verdadeiro quando,
na verdade, está-se consumindo tempo numa atividade física. Outro exemplo: a mediunidade –
corrompida em prática de magia negra ao final da Era atlante – até gerou religiões e doutrinas. Algumas
correntes de Umbanda, Candomblé e Vudu, por exemplo, são baseadas em mediunidade mal conduzida.
O conceito equivocado de reencarnação e carma foi disseminado pelo Budismo e abraçado por outras
religiões, dando às pessoas a fantasia de que evoluem apenas repetindo vidas no Mundo Material. Temos,
enfim muitos exemplos a dar; todos, infelizmente, nos mantém nesta prisão de ignorância. A boa notícia
é que estamos na prisão por nossa própria vontade e escolha. Quando optamos por seguir uma seita,
119
sermos adeptos de uma religião sem questionarmos seus princípios e práticas, sem raciocinarmos sobre os
ensinamentos compartilhados, estamos voluntariamente adentrando a uma penitenciária. Ora: se sabemos
entrar, podemos sair. A questão torna-se complexa porque, em geral, não nos damos conta que estamos
entrando – ou que já estamos dentro – de uma prisão. Muitos de nós simplesmente nascemos numa família
religiosa e adotamos o mesmo culto; nascemos numa determinada cidade e permanecemos; crescemos no
bojo de um sistema de crenças – alimentares, sociais, culturais, morais etc. – e simplesmente o aceitamos
como fato indiscutível. Ou não. Também é comum a contraposição: a pessoa nasce em São Paulo, católico
e omnívoro, por exemplo; rebela-se contra tudo: muda-se para Salvador, converte-se ao Candomblé e
vira vegetariano. Ou nos acomodamos, ou nos rebelamos. Ou apego, ou aversão. Não conseguimos
escapar dos vínculos e, enquanto estes vínculos existirem, nós seremos prisioneiros.
Na semana passada falamos em como estes vínculos surgem e como podemos quebrar o ciclo vicioso. Por
favor, quem fez anotações – inclusive dos desenhos – compartilhe com as pessoas que não estavam
presentes. Aquela instrução é a chave para o passo evolutivo necessário neste momento em que vive a
humanidade. Resolver apegos e aversões e nos libertarmos.
Questionem o tempo dedicado a orações, meditações, adoração e culto, mantras, rituais, contemplações,
magia, oráculos, fenômenos, penitências etc. Questionem o papel dos padres, bispos, gurus, monges,
santos, profetas e mestres; perguntem-se: eles estão aqui para ajudar ou para ganhar poder e dinheiro?
Trabalhem de forma pragmática para errar menos; tornem a instrução da semana passada uma realidade
nas vidas de vocês, 24 horas por dia, sete dias por semana.
Este é o melhor ensinamento que posso trazer a vocês.”
120
Havia um tom de despedida na voz de Christian, que mesmo ele ainda não racionalizara. As mãos
elevadas começaram a pipocar no meio da multidão.
 Vinícius – apontou o professor, enquanto bebia um gole d’água.
 Eu queria saber, professor, a respeito das coisas boas que as religiões fazem, como por exemplo,
a cura espiritual num centro espírita.
 Excelente questão, Vinícius. Mantenha sempre sua postura em saber mais e nunca se contente com
explicações parciais ou medíocres. Conserve isso e você será um ser em constante evolução.
O ambiente de final de etapa agora era perceptível por todos; o professor Christian agia como se
nunca mais fosse vê-los. Ele continuou a resposta:
 As chamadas curas espirituais ou mediúnicas são interações dos humanos que vivem no Mundo
Material com humanos que já não têm corpo físico, ou seja, as consciências com seus corpos mentais e
emocionais que habitam o Mundo Intermediário. Os médiuns de cura ligam-se a esses seres através do
pensamento, assim como você chama um médico usando o telefone. A união das energias de ambos pode
resultar ou não na cura de outro indivíduo. São personalidades no Mundo Material interagindo com
personalidades do Mundo Intermediário. A evolução pessoal acontece se a cura se dá nos corpos mental
e emocional; a cura física é secundária, embora seja a mais procurada pelas pessoas.
 Mas a cura de uma pessoa, alguém que tem câncer, por exemplo, não é algo bom? – insistiu o
rapaz.
 Este tipo de cura é algo bom e desejável, mas não pode tornar-se uma muleta na vida das pessoas.
121
Mesmo que tenhamos um propósito louvável e uma intenção boa, não devemos seguir nossos próprios
desejos e critérios, já que ao aliviarmos a dor de um irmão podemos estar interferindo em sua jornada
evolutiva, pois em muitos casos a dor e o sofrimento são usados pela consciência para despertá-lo: livre
da dor, ele se acomoda. O único caminho a ser trilhado é o da evolução e, enquanto estamos presos pelo
corpo físico, pelo emocional e pela mente, não temos o discernimento para saber se alguém deve
permanecer no Mundo Material ou não, assim como os habitantes do Mundo Intermediário também não
o têm. Quando decidimos realizar uma terapia mística, imposição de mãos, cirurgia espiritual etc., para
curar alguém, nós estaremos praticando magia. E enquanto formos prisioneiros da mente e das emoções,
esta magia pode ter consequências nocivas, apesar das aparências e dos resultados. Temos de entender
que é muito mais fácil recorrer a uma cirurgia espiritual do que reeducar nossa alimentação, perdoar um
familiar ou deixar para trás um mau hábito.
Uma mulher na primeira fila ergueu a mão.
 Meu nome é Sonia e tenho estudado muito sobre os círculos e desenhos que aparecem nas
plantações da Inglaterra, no sul do Brasil e em outros lugares. Algumas pessoas dizem que são
extraterrestres que os fazem; outras afirmam ser obra de humanos encarnados; e os cientistas ou são
céticos ou dão explicações estapafúrdias. Você poderia falar sobre isto?
 Sim, claro, Sonia – assentiu Christian, olhando para a plateia em geral.  Ela está perguntando
sobre os chamados crop circles que aparecem principalmente na região de Wiltshire, na Inglaterra,
próxima a Londres. Aqui no Brasil, surgiram formações deste tipo em Ipuaçu, no oeste de Santa Catarina.
122
São imagens, símbolos e desenhos feitos em plantações de trigo, cevada e colza, principalmente, pouco
antes da colheita quando as plantas estão altas. As hastes são tombadas, dobrando-as próximo ao solo
sem quebrá-las, formando as imagens – que são enormes e só podem ser entendidas de um ponto mais
elevado; eles usam normalmente um helicóptero. Já foram feitos crop circles de cem, duzentos, trezentos
metros de diâmetro. As imagens são por vezes complexas e quase sempre muito belas. Este é um caso
exemplar das nossas dificuldades como humanidade: buscamos explicações na ciência ou na religião; no
concreto ou no místico. A ciência não consegue explicar, porque ainda está muito presa a determinados
paradigmas; prefere ignorar ou ridicularizar o fato, sempre trazendo a possibilidade de fraude pura e
simples. A religião mente e engana para atender a seus interesses. Se você consultar uma seita ufológica
ela confirmará que são ETs enviando mensagens; se você perguntar numa igreja eles dirão tratar-se de
mais uma prova da existência de um deus ou de um demônio.
O professor fez uma pausa e serviu-se de mais um copo com água. A plateia aguardava ansiosa a
explicação.
 Os crop circles são resultado de práticas mágicas. Existem grupos muito discretos de pessoas que
praticam magia negra – a magia que se faz em benefício próprio. O maior centro de magia existente na
Terra atualmente é Londres, Inglaterra. Lá existem grupos – volto a dizer, muito sigilosos – que
empregam magia para enriquecer, ter poder e fazer sexo. Os crop circles são exercícios de magia que
fazem os feiticeiros experientes e iniciantes. Por isto a diversidade de formas: existem figuras simples –
como círculos e anéis –, e complexas – tais como mandalas, geometrias complicadas e misteriosas. Estes
123
grupos se divertem vendo as interpretações bizarras que os cientistas e os religiosos divulgam. Para esses
magos, porém, não trata-se apenas de exercício e diversão: no centro destas formações são colocados
dispositivos imateriais de captação de energia. Toda a vez que você visitar o local ou admirar uma foto
do crop circle, sua energia estará sendo drenada. Energia, no plano imaterial, é como o dinheiro no plano
material.
 São seres humanos que os fazem, então?
 Sim, humanos em corpo físico e fora dele, que seguem o caminho da magia. É um atalho muito
sedutor e atrai muitas pessoas nesta época cultural. Sabemos que não existem atalhos no caminho
evolutivo, e todos estes magos terão de abdicar destas práticas no futuro.
 Existem estes grupos no Brasil?
 Sim, menores e menos desenvolvidos, mas existem. O maior centro de magia negra – e usamos
esta expressão na falta de outra que melhor caracterize a prática, sem qualquer viés discriminatório – do
Brasil é Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. São grupos que estão dez ou vinte anos atrás dos europeus,
mas que progridem rapidamente. Eles iniciaram os exercícios de crop circles no estado vizinho, ao final
de 2008. Esses feiticeiros não se expõem, pois seu objetivo é outro; procuram fazer seus exercícios de
magia distantes de sua base para não serem identificados. Sempre reiterando que a magia é uma interação
das personalidades que estão no Mundo Material e no Intermediário – e que, basicamente, sabem controlar
as forças e elementos da natureza – o ar, a aguá, os vegetais, os animais etc.
 A teoria de alienígenas produzindo estes desenhos para nos enviar mensagens não procede, então?
– disse Sonia.
124
 Não. E esta é uma teoria que não resiste à lógica simples. Qual seria o sentido em enviar mensagens
cifradas ano após ano? Se estes extraterrestres quisessem ajudar a Humanidade não seria mais simples
uma mensagem direta? Por que comunicar-se através de símbolos? Os ETs seriam de uma civilização
avançada a ponto de fazer os crop circles, mas que não conheceria uma forma de comunicação verbal ou
escrita?
 Eles poderiam mandar um e-mail, não é professor? – brincou Vinícius.
 Seria muito mais simples, não é? – sorriu Christian.
Alguns riram e mais mãos foram erguidas; um aluno do colégio pegou o microfone sem fio.
 Eu assisti a todas suas Instruções e gostei muito, principalmente a da semana passada. Até já
comecei a quitar meus débitos, pedir perdão e a perdoar.
 Muito bom, Fábio. Continue neste caminho com muita perseverança; não se deixe abater pela
incompreensão dos que o cercam e prepare-se para a solitude. Quem caminha na senda evolutiva vai
experimentar, em algum momento, a solidão. Quando ela chegar, aceite, fortaleça sua vontade e siga
adiante.
 A minha pergunta é justamente sobre este “adiante”. Depois de romper todos os vínculos e me
libertar, qual o próximo passo? Como vou saber o que fazer?
 Ótima questão. Uma consciência liberta – um ser livre – caminha evolutivamente, ao natural. A
consciência – você – começa então a realizar sua tarefa real no planeta, de acordo com a evolução
cósmica; ou seja, sua personalidade – instintos, emoções e pensamentos – não comandam mais sua vida.
Você passa a viver por um propósito mais elevado – você realmente começa a evoluir e ser útil.
125
 Minha preocupação é o que fazer. Devo trabalhar como voluntário numa ONG, juntar-me a um
movimento ambientalista... Esta é minha dúvida.
 Quero tranquilizá-lo em relação a isto: não há motivo para preocupação ou ansiedade. Quando este
momento chegar, você verá o seu caminho muito claramente. A consciência livre enxerga a necessidade
com clareza, ou seja, você será levado para onde pode ser mais útil – talvez uma tarefa que você nem
cogite agora. As reais tarefas evolutivas são aquelas em que diminuímos o sofrimento de nossos irmãos
e irmãs, usando caridade e fraternidade. Um professor faz isso; um padeiro que coloca boas energias no
seu produto faz isso; um médico que vê seu paciente como um ser integral faz isso. Uma pessoa livre é
útil ao Plano Evolutivo deste universo Terra e do Cosmos; um indivíduo aprisionado por seus instintos,
desejos e crenças é um peso a mais para ser carregado. Ficou claro, Fábio?
 Sim, obrigado.
 Olá, meu nome é Manfred e gostaria de fazer uma pergunta – falou um jovem de cabelos longos e
cacheados.  Eu e minha esposa somos católicos e estamos pensando em fazer uma viagem para lugares
santos na Europa e Oriente Médio.
 Quais lugares? – perguntou Christian.
 O pacote turístico inclui os lugares das aparições da Virgem – Fátima, Lourdes e Medjugorje –, o
Vaticano e a Terra Santa.
 E qual a sua questão?
 Devemos ir?
 Depende do que vocês querem com esta viagem, Manfred – disse Christian sorrindo.  Se for uma
126
viagem turística, todos estes lugares são muito interessantes de serem visitados; mas creio que o seu
objetivo não é este, não é mesmo?
 Não, não é. Nós queremos ter contato com as coisas sagradas de nossa religião; queremos uma
benção, talvez uma elevação espiritual...
Christian suspirou discretamente, baixando o olhar; sempre era difícil desfazer as ilusões guardadas
por tanto tempo dentro das pessoas. Mas não estava ali para satisfazer ninguém, muito menos prolongar
fantasias e ilusões. Aproximou-se do rapaz e falou:
 A chamada Terra Santa, ou Terra Prometida, nunca existiu, Manfred. A verdadeira Terra prometida
é esta em que todos vivemos, o planeta Terra. Quanto à Jerusalém, a Palestina e Israel, não há mais nada
de sagrado lá. Estes lugares foram cenários de importantes eventos para todo o planeta, e não apenas para
aquele pequeno deserto. A Consciência Crística veio ao planeta naquele lugar porque o povo escolhido
para comandar a Quinta Era – o semita – lá estava. A mensagem do Cristo Jesus foi para toda a
humanidade, e não apenas para aquelas pessoas, naquele lugar. O Sagrado está nas pessoas e não nos
lugares; hoje, ali existe apenas guerras, intolerância, ódio, medo, culpa e ressentimentos. E, acima de
tudo, uma enorme dificuldade em perdoar.
Christian observava o semblante do jovem alterar-se; sabia que estava mexendo com sentimentos
profundamente arraigados, mas não podia enganar as pessoas. Continuou:
 O Vaticano tem sido um governo como qualquer outro neste planeta, como é a Casa Branca em
Washington e o Palácio do Planalto no Brasil. Tem um presidente, o Papa; tem seus ministros, os cardeais;
tem seu banco para especulações financeiras, o Banco do Vaticano; sua própria CIA, a antiga Inquisição,
127
agora com novo nome. Você não encontrará espiritualidade ou elevação de consciência lá: eles são
políticos e empresários com outros hábitos. Há uma nova esperança, contudo, com a chegada de
Francisco.
Manfred parecia desmoronar por dentro.
 Quanto aos locais de aparições, bem, temos de entender estas aparições da Virgem. Todas
aconteceram em momentos estratégicos da história recente desta Quinta Era, assim como aconteceram
aparições na Quarta Era. Todos estes eventos servem – ou serviram – para avivar nos homens e mulheres
a lembrança de uma consciência superior, do Divino, ou seja, eventos para interromper a trajetória
decadente que a Humanidade estava trilhando. O Complexo Pleiadiano abandonou estes estratagemas há
muito; percebemos que uma aparição cria mais ignorância na medida em que motiva a devoção cega – o
fanatismo. Mas nossos irmãos do Império Siriano pensam diferente e usam as aparições de forma muitas
vezes indiscriminada.
 Você quer dizer que as aparições da Virgem Imaculada foram feitas por extraterrestres? – quase
gritou uma senhora idosa.
 Sim, foram – respondeu Christian sem alteração na voz.  A maioria foram projeções emitidas por
naves sirianas, como as imagens holográficas que a tecnologia terrestre consegue fazer com certa
eficiência. Lembrando que existem as falsas aparições, engendradas por seitas para fanatizar seus
seguidores. Geralmente são simuladas por um suposto clarividente, que recebe as “mensagens” e
transmite aos adeptos.
A senhora idosa levantou-se, visivelmente irritada, e encaminhou-se para a saída; outras pessoas a
128
seguiram. “Isto é demais para mim!” – murmuravam alguns; “Que vergonha!” – diziam outros. O silêncio
tomou o auditório até a batida ruidosa da porta. Christian respeitou aquele momento e não expressou
qualquer desconforto com o ocorrido; Manfred manteve-se firme, apesar de ter lágrimas discretas
brotando dos olhos.
 Bem, todos estes acontecimentos tiveram um efeito temporário sobre a evolução das pessoas, que
logo trataram de aproveitar o evento em proveito próprio ou de sua instituição. Usaram a aparição para
fomentar o medo e o fanatismo, para aumentar seu poder ou ganhar dinheiro. Se você for a estes lugares
– e não há problema algum em visitá-los – verá que se tornaram grandes mercados para venda de relíquias,
objetos e ilusões. Respondi sua pergunta, Manfred?
 Sim... Obrigado... – respondeu cabisbaixo.
 A verdade – finalizou Christian – pode nos chocar no momento em que temos o primeiro contato;
sofremos e nos sentimos tristes. No momento seguinte entendemos que algumas grades da prisão foram
retiradas, e que estamos nos libertando. A verdade liberta, mesmo que nos faça sofrer inicialmente. Nunca
desistam de buscar a verdade. Este é o caminho: viver buscando a verdade. Obrigado a todos pela
presença. Que a Luz guie a vontade de todos nós.

O delegado Pedro Palmérius, titular da circunscrição de Itaparica, acordava cedo, preparava um café forte
129
e comia algum biscoito apenas para não dizerem que ele fumava em jejum. Mal a bolacha Maria era
engolida, ele tomava um gole de café quente, muito doce e acendia o primeiro cigarro Hollywood do dia;
mais 59, em média, o seguiriam. O delegado assinava dois jornais: o diário “A Tarde”, da capital
Salvador, e o semanal “Voz de Itaparica”. Mantinha-se a par das novidades que diziam respeito ao estado
e ao país com o primeiro e, com o segundo, sabia o que acontecia na sua pequena jurisdição; hoje era dia
de “Voz de Itaparica”.
Pedro Palmérius sentou-se na varanda dos fundos da casa, arejada o suficiente para que a fumaça
não fosse motivo de reclamação de sua esposa e escondida aos olhos da rua. Sabia que o início da manhã
é um momento de relativo torpor, em que os sentidos ainda não estão suficientemente aguçados. Era este
o motivo pelo qual as polícias geralmente cumpriam mandados de prisão no raiar do dia; o sujeito
procurado estava ainda dormindo ou recém acordado. Normalmente o elemento estava em pijamas e não
havia reação ou tentativa de fuga. O delegado sabia que isto não acontecia apenas com bandidos; ele
também demorava a despertar. O ritual diário café-biscoito-cigarro-e-jornal era parte importante na sua
passagem do sono noturno para a vigília do dia. Sua casa tinha uma enorme varanda frontal, que dava
para a rua, com uma vista privilegiada do sol nascente, mas lhe apavorava a ideia de ser pego de surpresa
por um desafeto neste momento de permeio. Sua escolha, então, era a acanhada varanda dos fundos, com
a vista tristonha do muro do vizinho.
O relógio marcava seis horas em ponto e, como de costume, começou a ler a “Voz” pelo final; a
coluna “Lédio Sem Tédio” ficava na última página e trazia o que realmente interessava ao delegado:
fofocas, fuxicos, intrigas e avisos premonitórios. Lia, também, as notícias gerais, culturais e esportivas
130
que tratavam, na maior parte das vezes, de fatos que já conhecia. A coluna de Ledinho, não. Pedro
Palmérius encontrava ali informações frescas, tenras, vindas de uma fonte à qual não tinha acesso direto.
O mundo social não era o habitat natural do delegado, homem rude, curtido pelos anos massacrantes que
a carreira de policial impõe aos brasileiros que a seguem – 38 anos no seu caso –, trabalhando em
municípios pobres do estado, além da própria Itaparica, na qual estava há sete anos.
Chamou-lhe a atenção uma nota sobre o “Filósofo da Ilha”, como Ledinho apelidara o professor do
colégio que fazia palestras públicas; nas edições anteriores as notas na coluna tinham sido elogiosas, seja
pela capacidade intelectual do sujeito ou por sua estampa de galã. Naquele dia foi diferente: o colunista
apontava o sujeito como pervertido sexual e indicava que havia patrocinado um aborto no exterior,
envolvendo uma menina nativa. Aquilo despertou o delegado de pronto: jogou fora o toco de cigarro no
canteiro de margaridas da esposa, ciente que sua transgressão geraria a queixa habitual, engoliu o resto
do café e tomou um banho rápido. A programação daquela sexta-feira mudara completamente com aquela
pequena nota.
Eram 6h25min quando entrou na Chevrolet Blazer preta com a identificação da Polícia Civil da
Bahia; o pesado motor diesel roncou alto, enchendo a garagem com espessa fumaça preta; sua mulher
ainda dormia. “Se não morrer do cigarro, esta fumaça fará o serviço.” – pensou o delegado, enquanto
tossia. Pedro Palmérius dirigiu por alguns minutos até a 19ª DP, no centro histórico de Itaparica, norte da
ilha; era o tempo de meio cigarro.
Costumava cronometrar suas atividades cotidianas com os cigarros: meio para chegar à delegacia, a
outra metade iria até o final da primeira caneca de café na sua sala de trabalho; dois cigarros para a reunião
131
com seus subordinados, onde o ato de esmagar o segundo toco no cinzeiro indicava que a conversa estava
terminada. Pedro Palmérius lembrava-se do início do seu casamento, quando o sexo durava um cigarro
Benson & Hedges 100’s mentolado inteiro durante, e outro depois – ele e a mulher juntos, apaixonados,
na cama. Um ano depois, o durante consumia meio B&H 100’s, e o depois servia para terminá-lo, sozinho
na cama. Ao final do terceiro ano de casamento a esposa, que nunca fumara, proibira o cigarro no quarto
do casal. Daí por diante, o depois continuou sendo um cigarro solitário na varanda; o durante – Pedro
Palmérius especulava – estaria na faixa de três tragadas.
 O que nós sabemos sobre este professor Christian? – perguntou aos policiais no início da reunião.
Era o momento do dia em que compartilhavam informações e o delegado incumbia seus
colaboradores mais próximos das tarefas daquela jornada. Eram dois os policiais que formavam o grupo
de confiança de Palmérius: Oscar Tiesi, o mais velho, era uma herança do delegado anterior. Nativo da
ilha, Oscar tinha comportamento conservador e moralista, coisa que desagradava Pedro Palmérius. O
assistente era evangélico praticante, mas, como quase todos os baianos, frequentava os terreiros de cultos
afro-brasileiros.
Cláudio Tomé Brites era jovem em início de carreira; o delegado Pedro o recrutara durante um curso
na Academia de Polícia e eram parceiros desde então. Tomé, como era conhecido no meio policial, tinha
algo inestimável para o veterano Pedro Palmérius: um ótimo conhecimento em tecnologias da informação
e comunicação. O delegado mal sabia os rudimentos de um computador, mas contava com Tomé para
estas questões; foi ele que deu a primeira resposta:
 Ele tem ficha limpa conosco, PP – disse o jovem, usando as iniciais do delegado, como ele era
132
habitualmente tratado entre os policiais.  Nada que o desabone até o momento.
 O sujeito não presta – cortou Oscar, seco.  Aquilo que saiu na coluna do Ledinho é só o começo...
 Você sabe de alguma coisa concreta? – perguntou o delegado.
 Boatos. Mas onde tem fumaça...
 ...tem fogo. Que fogo é este? Fala logo o que você ficou sabendo, Oscar.
 Dizem que o sujeito também está envolvido com pedofilia.
 Quem diz? – questionou Tomé.
 O povo fala... – evadiu-se Oscar.  Eu frequento vários meios, vocês sabem, e procuro me manter
informado. Essa coisa que o Ledinho colocou na coluna eu já sabia há tempos. Este elemento tem que
apodrecer na cadeia, no mínimo. Pedófilo sem-vergonha! – praguejou. – Minha preferência é uma bala
na cabeça, mas só depois de cortar o saco com uma faca sem fio!
 E por que nunca comentou conosco? – cobrou PP.
 Ah, chefe, boataria de rua, de igreja... Não dá pra trazer tudo, né?
 É o seguinte: daqui a pouco o telefone vai começar a tocar com o pessoal me enchendo o saco,
entenderam? E nós só temos uma notinha de jornal e umas fofocas da rua que o “doutor” Oscar achou
melhor não dar atenção. Compreenderam a meleca que nós estamos?
Oscar remexeu-se na cadeira com a ironia; PP era ácido sempre que podia; ele continuou:
 Oscar: você vai ao colégio, fale com o diretor Lima e veja o que ele sabe. Tomé: você faz uma
varredura no computador. Eu quero saber até a marca da fralda que o sujeito usava quando nasceu, está
133
compreendido? – e apagou o cigarro inacabado no cinzeiro.
Os dois policiais levantaram-se automaticamente, como se houvesse um botão os comandando.
 E o chefe, aonde vai? – perguntou Oscar, já na porta de saída.
 Vou ter uma prosa com o senhor “Sem Tédio”.
PP contornou a praça com sua caminhonete e dirigiu-se para o sul. A localização da delegacia no
extremo norte da Ilha de Itaparica o incomodava. Se pudesse escolher trabalharia no “centrinho” de
Itaparica, como o povo se referia ao local onde era concentrado o transporte marítimo de ferry boats com
a capital Salvador; seria muito melhor localizado para qualquer deslocamento na ilha. Se quisesse atender
a uma ocorrência em Cacha-pregos, no extremo sul insular, por exemplo, teria de percorrer 35
quilômetros de estradas nem sempre muito boas a partir de onde estava a delegacia atualmente. Minutos
preciosos eram perdidos. Mas, consolava-se PP, estas escolhas eram sempre mais políticas e menos
técnicas. Uma delegacia por perto sempre inibia o crime, e o norte mais poderoso e rico levara a 19ª DP.
Estacionou na frente da casa de moradia adaptada para redação jornalística que era o quartel general
da “Voz de Itaparica”. Gostava de chegar sem aviso prévio; preferia ter a leitura correta das reações à sua
presença, sem preparação nenhuma por parte dos indivíduos que interrogava. Abriu a porta e passou
direto pela recepcionista, sem cumprimentá-la ou dar atenção aos repetidos “Quer falar com quem,
senhor?” e “Não pode fumar aqui dentro”. Sabia o caminho e não gostava de esperar; empurrou a porta
de vai-e-vem e localizou Lédio de pronto, numa escrivaninha grande, de cerejeira, nos fundos da redação.
Todos olharam para o inesperado personagem que entrara expelindo fumaça fétida, mas o delegado fixou
sua atenção nos olhos do colunista: detectou instantaneamente o que se passava por trás deles – medo.
134
 Delegado, mas que surpresa – exclamou o jornalista, tentando disfarçar o desconforto.  Puxe a
cadeira, por favor.
Pedro Palmérius sentou-se sem apertar a mão estendida; evitava contato corporal desnecessário com
qualquer pessoa, principalmente o cumprimento ordinário de aperto de mãos. Tinha dois motivos bem
definidos, aparentemente contraditórios, mas bastante realistas: o primeiro era que sabia que as pessoas
não higienizavam como deviam suas mãos. Quando estava em banheiros públicos costumava observar os
homens entrando e saindo; uma boa parte deles saia sem lavar as mãos: urinavam, balançavam o pênis,
guardavam-no ainda pingando, fechavam a braguilha e saiam do banheiro. Não sabia como as mulheres
procediam, mas sua esposa lhe confirmara certa vez que não eram muito mais cuidadosas e higiênicas
que eles. Em suma, não apertava a mão dos outros porque as considerava sujas. O segundo motivo era
seu hábito de fumar. Suas mãos acumulavam as partículas da fumaça; ficavam amarelecidas e fedorentas.
Ou seja, não apertava a mão dos outros porque suas mãos eram sujas.
 Aceita um café, delegado, uma...
 De onde saiu a informação sobre o filósofo, Ledinho? – cortou PP, em seu habitual estilo, direto e
rústico.
Lédio engoliu saliva e afundou-se na poltrona; aquele homem lhe dava calafrios. E aquele olhar...
Parecia penetrar suas entranhas, cérebro, coração, intestinos. Sentiu o estômago virar pedra, mas
conseguiu controlar-se, pelo menos superficialmente.
 Doutor Pedro, o senhor sabe que tenho de proteger minhas fontes. Não posso revelar de onde
vieram aquelas informações, apenas afirmo que foram extremamente confiáveis.
135
 Sei... – disse o delegado, encarando firmemente o interlocutor, a cinza do cigarro despencando no
chão.
 Queremos ajudar a sociedade ilhoa, denunciando os crimes e transgressões. A imprensa livre é um
veículo de democracia e justiça!
 Que seja... Mas até agora não tenho nenhuma reclamação, nenhuma ocorrência registrada contra
este rapaz.
 Mas terá! – deixou escapar o outro.
 Como você sabe, Ledinho? As suas fontes preferiram procurar primeiro o jornal e depois a polícia?
 Não. Sim. Não sei, não sei – enrolou-se o jornalista.  Acho que sim... Espero que sim, na verdade:
os fatos vindo à tona, os culpados deverão ser punidos.
 A mulher. Quem é a mãe da menina que foi fazer aborto no Paraguai?
 Não tenho esta informação, doutor. Minha fonte, que tenho por dever preservar, é a amiga que
voltou sozinha; ela não quis revelar o nome da mãe para não prejudicar a família.
 Família nativa?
 Nativa, tradicional, muito pobre – confirmou.
 Você fala na sua coluna que o rapaz tem perversões sexuais graves. Que tipo?
 Todas, pelo que me falaram.
 Homens?
 Sim.
 Frente e verso?
136
 Com certeza! – confirmou Lédio, excitado pelo rumo da conversa; sentia-se protagonizando um
filme policial.
 Crianças? – perguntou o delegado.
Lédio hesitou; não recebera nenhuma instrução em relação àquilo. Pedofilia sempre o enojara e sabia
que havia pouca tolerância das forças policiais e judiciárias com aquele tipo de crime. Parecia-lhe
excessivo, mas não contestou:
 Parece se encaixar no perfil...
Pedro Palmérius amassou o toco de cigarro com o pé esquerdo, tossiu e encarou o jornalista
novamente:
 Sabe, Ledinho, desde hoje de manhã, quando li sua coluna, senti um cheiro de podre no ar, entende?
 Po-podre, doutor Pedro? – gaguejou.
 Podre. Fétido. Mas ainda não sei de onde vem o fedor, entende? – disse enquanto cofiava o bigode.
Lédio permanecia calado.
 Eu vou cavoucar até encontrar, você sabe disso, não?
PP levantou-se e encarou os funcionários que haviam parado para observar a conversa: todos
voltaram a fingir que trabalhavam. Parou deliberadamente para acender um cigarro e saiu da redação.
Lédio sentia frio, mas uma gota quente de suor escorreu-lhe na têmpora. Eram 10h28min.

137
A coluna de Lédio abriu a válvula de uma panela de pressão: os muitos insatisfeitos com as palestras de
Christian encontraram um caminho para extravasar a indignação e a raiva acumuladas nas últimas
semanas. Foi uma avalanche de telefonemas inundando a delegacia, o colégio e o jornal; reclamações,
solicitação de providências e pedidos de mais detalhes. “O que a polícia está fazendo?”, “Já prenderam o
sujeito?”, “O professor já foi demitido?” e “Quem são os envolvidos?” foram as perguntas mais
frequentes. A pressão chegou ao máximo na altura do meio-dia, quando o assunto era tratado em todos
os restaurantes, bares e locais de convivência; a ilha toda, em suma, falava sobre o professor Christian e
suas supostas perversões.
As instituições estavam de mãos amarradas, pois não havia queixa formal. Tudo não passava, até o
momento, de boataria; conversas que vieram à tona após a publicação do jornal. Ninguém quis registrar
um boletim de ocorrência, e esta era a dificuldade da polícia: muitas reclamações, pedidos de providência,
mas não havia nenhuma pessoa que alegasse ter sido prejudicada por Christian Joaquim de Assis. Havia,
sim, uma grande comoção na comunidade – a paixão pelo justiçamento do professor.
Foi então que Tomé recebeu um e-mail de um endereço desconhecido, com domínio de um provedor
mundial gratuito: era o equivalente a uma carta anônima – não se poderia rastrear o remetente. A
mensagem entrou na caixa de spam – e-mails indesejados – mas foi resgatada por Tomé, que sempre
verificava todos os spams antes de apagá-los. A mensagem era sucinta:

138
Prezados senhores:

Recebi as fotos anexas por e-mail de uma pessoa que se intitula “Filósofo”. Acredito ter ligação com
as notícias que circulam em Itaparica sobre o pervertido do colégio.
As fotos foram mandadas por engano para mim. Não participo deste tipo de coisa e não posso me
identificar.

Atenciosamente,
Justiceiro
Anexo 1: 246K menino_no_jardim.jpg
Anexo 2: 180K menina_escolar_2.jpg
Anexo 3: 360K explicito_garoto_8.jpg
Anexo 4: 2048K explicito_2.wmv

Tomé certificou-se de que o antivírus do seu computador estava atualizado e abriu a primeira foto.
Ela mostrava um menino, de aproximadamente cinco anos de idade, completamente nu, segurando uma
bola de futebol que encobria seu rosto. O fundo da foto era um muro coberto com uma planta trepadeira
com pequenas flores brancas. A segunda foto mostrava uma menina loira, cabelos cacheados, na mesma
faixa etária do menino. Ela estava nua e sentada no colo de um homem também nu; ambos estavam numa
cadeira defronte a uma escrivaninha de madeira; a menina, que tinha seu rosto borrado eletronicamente,
139 tinha um lápis na mão e parecia fazer a lição da escola. Uma das mãos do homem estava sobre os mamilos
da menina. O corpo do homem, peludo e flácido, aparecia do pescoço para baixo; era o corpo de alguém
entre cinquenta e sessenta anos, avaliou Tomé, que já sentia um misto de indignação com asco. A terceira
foto era de um homem penetrando um garoto, que não parecia ter mais de sete anos de idade. O quarto
anexo era um vídeo de péssima qualidade, com um áudio idem. O filme tinha 134 segundos de duração,
mostrava cenas de um homem e uma mulher adultos com um menino e uma menina, ambos no final da
infância. Os rostos eram sempre escondidos atrás de névoas; os corpos dos adultos eram de pessoas na
faixa de 45 a 50 anos, mal cuidados e com hematomas, principalmente na mulher. Numa das cenas, as
crianças faziam sexo oral nos adultos; quando elas afastavam a cabeça, cuspindo enojadas, as mãos fortes
dos adultos faziam com que voltassem. Tomé percebia a presença de mais duas pessoas no local: uma
com a câmera e outra que ajudava a controlar as crianças. O som do choro não foi suprimido, e o detetive
Tomé correu para o banheiro; colocou a mão sobre a própria boca, tentando em vão conter o vômito que
já a enchia. Foi pingando no chão e na roupa que chegou a pia, onde se lavou.
Tudo, então, aconteceu muito rápido. Num país onde as instituições policiais e judiciais se
notabilizam pelo tempo de resposta medido em meses e anos, naquele dia de paixões a métrica usada
foram as horas.

Sexta-feira, 16h14min – Reunião no gabinete do delegado Palmérius; presentes os detetives Tomé e


Oscar. Nivelamento de informações. Não há queixa formal registrada. Mensagem eletrônica com
pedofilia é a única materialidade, sem autor determinado. Suspeito de envolvimento é o professor
Christian Joaquim de Assis.
140
Sexta-feira, 17h35min – Detetive Tomé entrega um pedido de mandado de busca e apreensão de
equipamento de informática na residência do suspeito ao juiz Heleno Panatis. O fórum está quase a fechar.

Sexta-feira, 19h44min – O juiz Panatis defere o pedido, após analisar os documentos, notícias e material
eletrônico. O juiz já esperava aquele pedido; tinha fontes sigilosas que o informavam de quase tudo com
antecedência. Ele era grão-mestre maçom em 31° grau da loja Arquiteto Universal, de São Paulo, capital.
Foi transferido por vontade própria para Itaparica, mas jamais se coligara à pequena loja local dirigida
por Sérgio Kroeff. A informação que o alertara viera de um membro de sua inteira confiança na capital
paulista.
Sexta-feira, 20h15min – Christian prepara o jantar em sua pequena casa, alheio a tudo que se passou na
comunidade envolvendo seu nome. As sextas-feiras eram dedicadas ao estudo e à reclusão; ele não tinha
compromissos no colégio e procurava não marcar nada para poder dedicar mais tempo a outras tarefas.

Sexta-feira, 21h50min – O delegado PP dispensa os colaboradores, após o planejamento de toda a


operação.

Sexta-feira, 22h35min – Christian deita-se na cama para dormir. Sabe que a etapa atual de sua evolução
está finalizando. Percebe intuitivamente, mas ainda não sabe como tudo está acontecendo. Ele não tem a
141
consciência unificada totalmente e ainda não percebe a realidade em todos os mundos daquele planeta.

Sábado, 0h14min – O delegado Pedro Palmérius apaga o último cigarro do dia, o sétimo do quarto maço.
Sua intuição lhe diz que algo muito sujo está por trás de tudo o que aconteceu naquela sexta-feira. PP
nunca se enganava com pessoas: se o sujeito era culpado, ele sabia antes de todos. Nada do que ouvira,
até então, lhe tinha dado a percepção da culpa daquele professor. Sabia que teria a impressão definitiva
quando o encontrasse face a face na manhã seguinte, e foi dormir com esta certeza.

Sábado, 5h12min – Pedro Palmérius, Oscar Tiesi, Cláudio Tomé Brites e Rui Paz, cinegrafista e fotógrafo
policial, deixam a 19ª DP rumo à Barra do Gil para executar o mandado do juiz Heleno Panatis.
Sábado, 5h39min – PP bate à porta da casa de Christian Joaquim de Assis.

Christian já estava acordado; o ronco da caminhonete quebrara o silêncio da tranquila rua onde
morava. Era um horário em que apenas alguns pássaros cantavam. O motor da ruidosa Blazer fora
desligado na frente da casa, e Christian ficou alerta. Levantou-se e, enquanto escovava os dentes, ouviu
a batida na porta. Jogou água fresca no rosto, vestiu o roupão preto de algodão e olhou pela janela da sala,
que tinha vista para a rua. Reconheceu o carro oficial e abriu a porta.
 Bom dia – saudou os policiais, enquanto passava a mão nos cabelos na tentativa de arrumá-los.
Christian fez uma busca visual ampla e rápida; viu três homens: o sujeito mais velho, com um grande
142
bigode que escondia a boca, parecia o chefe. Outro homem se postara pouco atrás, à sua direita; parecia
ter uma arma e seu gestual mostrava que a sacaria em frações de segundo, se necessário. O terceiro homem
estava segurando algum equipamento com as mãos, e parecia o auxiliar do grupo. Um ruído quase
imperceptível vindo dos fundos da casa fez com que ele percebesse que havia um quarto homem, mas
não deu mostras disto; apenas fixou seu olhar no do homem com grandes bigodes.
Pedro Palmérius não conseguiu racionalizar com exatidão o que intuíra naquele momento: soube que
Christian não era culpado, mas, principalmente, percebeu tratar-se de uma pessoa diferente. Sua vontade
naquele momento foi de abraçar o rapaz, pedir desculpas pelo incômodo e anunciar a toda Ilha de Itaparica
a grande injustiça que se estava fazendo. Mas PP era um profissional, e tinha de cumprir seu dever.
 Posso ajudá-lo em algo, senhor – disse Christian, rompendo o silêncio constrangedor que se seguiu
após sua saudação matinal.
 Senhor Christian Joaquim de Assis? – perguntou o delegado, recompondo-se.
 Sim, sou eu.
 Sou o delegado Palmérius, e estou aqui para cumprir um mandado de busca e apreensão – disse,
entregando o papel oficial a Christian, que o leu rapidamente.
 Pelo que entendi os senhores estão procurando material de informática, computadores, é isto?
 Sim, e tudo que tenha sido gerado por computador, como CDs, DVDs e impressos – completou
Tomé.
 Bem, eu não sei do que se trata, mas, por favor, entrem... Vamos sair desta aragem fria – convidou
143
Christian, sentindo o vento frio que soprava naquela hora do dia.
Os homens entraram, enquanto o anfitrião abria as janelas para que a luz da manhã entrasse; ligou
as luzes da sala para melhorar a visibilidade e falou:
 Vou abrir a porta da cozinha para seu policial entrar, está bem delegado?
PP assentiu, enquanto aproveitava para “ler” o ambiente. Assim como tinha uma leitura apurada dos
olhares e expressões corporais, conhecia o habitat de um criminoso. Observou os detalhes da pequena
cabana, os móveis escassos e simples, as paredes sem quadros, a ordenação criteriosa dos objetos e a
limpeza absoluta de tudo, sem que houvesse aroma remanescente de produtos de limpeza. Aquele –
concluiu – era um homem transparente, que não disfarçava suas ações e intenções; verdadeiro na vida
que levava. Não era o perfil de um contraventor.
Oscar entrou pela porta dos fundos, disfarçando o constrangimento; não respondeu à saudação de
Christian e juntou-se aos outros na sala. Estranhamente todos pareciam aguardar a autorização do rapaz,
como se fossem convidados e não oficiais cumprindo ordem judicial. Rui Paz, o fotógrafo, lembrou-se
de outras diligências que acompanhara, onde a regra era entrar chutando e intimidando. Naquele
momento, percebeu que até o delegado apagara o cigarro antes de entrar. Todos permaneciam imóveis,
disfarçando o olhar em objetos, sem que alguém tomasse a iniciativa. Christian o fez:
 Eu vou lhes mostrar onde tenho meu computador, está bem?
Ele dirigiu-se para o pequeno quarto que fazia o papel de escritório; acendeu a luz e entrou; os quatro
o seguiram. A situação era cômica para quem a testemunhasse naquele momento: cinco homens, em pé e
em silêncio, espremidos num ambiente de pouco mais de seis metros quadrados. Novamente foi Christian
144
a desfazer o nó:
 Bem, vocês fiquem à vontade que eu vou preparar um café para nós, está bem? Nesta prateleira eu
guardo os CDs e documentos pessoais, que estão nas pastas suspensas, identificadas por assunto. Aqui
estão os livros, papel para impressão, rascunho etc. O computador, velhinho, mas funcionando, o modem
da internet, impressora... Fiquem à vontade – e dizendo aquilo saiu do quarto.
Christian foi para a cozinha e os policiais começaram a conversar; o ruído do flash da máquina digital
espalhou-se pela casa. Ele estava tranquilo e sabia que tudo fazia parte do encerramento de sua tarefa
naquela comunidade. Colocou pó na cafeteira e água suficientes para doze xícaras; não sabia quanto
tempo os homens ficariam ali. Preparou algumas frutas, o pão que comprara no dia anterior e organizou
rapidamente a mesa para cinco pessoas. Ele só tinha quatro cadeiras, então colocou a banqueta redonda
que servia de base para um vaso de flores na varanda.
No quarto do computador o trabalho prosseguia: tudo já fora fotografado e os homens já podiam
mexer à vontade nos objetos. Tomé ligou a máquina e o monitor; Oscar começou a vasculhar as gavetas
e prateleiras; o fotógrafo começou a fazer panorâmicas de toda a casa, internas e externas. O delegado
caminhava pela casa, saboreando o aroma do café que a inundava, quando encontrou Christian arrumando
a cama.
 Entre, delegado. Só estou organizando um pouco o ambiente. Não esperava visitas tão cedo... –
disse sorrindo.
 O senhor mora sozinho? – perguntou o policial.
145
 Sim, sempre morei só desde que estou aqui nesta casa.
 Nenhuma namorada, namorado...
 Não, não – riu Christian –, nada sério, pelo menos. Tive uma ou outra namorada, mas foram apenas
namoricos passageiros.
 O senhor nunca foi casado?
 Por favor, delegado, pode me tratar sem cerimônia: só Christian está bem. Respondendo a sua
pergunta, nunca fui casado. Tive relacionamentos com mulheres, o mais longo durou quatro anos. Foi
antes de eu vir para cá... Foi um dos motivos de eu vir, na verdade.
 Complicações?
 Nada grave. Ela me deixou, começou um relacionamento com um amigo comum e eu entrei em
depressão – disse sorrindo.  O senhor aceita uma xícara de café, delegado?
 Sim, aceito. Não quer saber por que estamos aqui, Christian? – inquiriu enquanto estavam
caminhando para a cozinha.
 Penso que vocês estão cumprindo sua função, delegado. Para mim isto basta.
A pequena mesa da cozinha estava repleta: havia frutas, melado, granola, biscoitos doces e salgados,
pão integral, creme de tofu e geleias doces. Rui Paz já estava com uma mão cheia de biscoitos, comendo
vorazmente.
 Rui! – repreendeu PP.
 Está tudo bem, delegado – disse Christian –, eu preparei para vocês. Por favor, sentem. Desculpem-
146
me por não ter leite, manteiga e presunto; não costumo comer, mas tenho margarina e queijo, se quiserem.
O fotógrafo não vacilou e sentou-se; Christian serviu-lhe café numa xícara antiga; nenhuma era igual
à outra, assim como os pequenos pratos. PP notou que as louças do rapaz eram o conjunto de vários jogos
de mesa que foram perdendo suas peças ao longo dos tempos. Christian ofereceu a maior e em melhores
condições ao delegado; para si próprio usou um copo de vidro, que parecia ter acomodado requeijão em
vidas passadas.
 Desculpem-me que só tenho açúcar mascavo – sorriu Christian.
Não costumava receber visitantes e não tinha opções fora da própria dieta alimentar que seguia. PP
colocou quatro colheradas de açúcar na xícara, um biscoito doce na boca e saiu para a varanda: não sabia
exatamente o porquê, mas estava tendo o mesmo cuidado e respeito que tinha na sua própria casa. Rui
devorava um pote de frutas com granola, enquanto Christian convidava Oscar e Tomé para o desjejum;
ambos se olharam confusos; a imagem prévia que tinham criado daquele sujeito não estava se
confirmando. Eles agradeceram e continuaram trabalhando; Christian foi para a varanda, depois de encher
o copo com mais café.
 Posso sentar-me com o senhor, delegado?
 Se não lhe incomoda a fumaça do cigarro...
 Não, não, fique à vontade – e lhe alcançou um prato cerâmico que fora base de um vaso de flores
para servir de cinzeiro.
 Obrigado... – sussurrou o delegado, que cada vez mais sentia-se constrangido por estar ali
cumprindo aquele mandado.
147
Depois de um breve silêncio e alguns goles de café, o rapaz falou:
 Por favor, diga-me se posso ajudar em alguma coisa, delegado. E fique tranquilo em cumprir seu
dever: vai ficar tudo bem comigo.
PP olhou o jovem, buscando o sentido daquela última frase. “Como ele pode saber se ficará tudo
bem?” – pensou.
 Deixe eu lhe mostrar uma coisa, Christian – e tirou um pedaço de jornal dobrado do bolso.
O professor leu o texto da coluna da “Voz de Itaparica” sem alterar o semblante e devolveu-a ao
delegado.
 Já tinha lido o jornal de ontem?
 Não, não costumo ler este jornal.
 Tem algum comentário a respeito, Christian?
 Nenhum, delegado.
 Não quer nem se defender?
 Minha palavra teria o mesmo valor destas que estão impressas no jornal: tudo que eu falasse aqui
seria retórica sem prova alguma. Como posso provar o oposto do que está escrito sobre mim? É tão difícil
quanto provar que sou isto que estão dizendo... São somente palavras, delegado, mas elas assumem força
desproporcional às vezes, infladas pelas paixões.
O delegado refletiu e percebeu que o rapaz tinha razão; nunca pensara sob aquele ponto de vista.
 É, você tem razão... Mas estamos aqui porque nos veio outra denúncia: envolvimento com
pedofilia.
148
Christian entendeu, naquele momento, o motivo da varredura em seu computador. Baixou a cabeça.
Entristecia-o muito ver quão baixo as pessoas podiam chegar para alcançar seus objetivos pessoais; nunca
imaginaria um desfecho como este.
 Algum comentário sobre isto, Christian?
 Não, delegado, nenhum.
Houve um momento de silêncio, em que o delegado olhava atentamente o rapaz, que permanecia de
cabeça baixa. Apagou o toco do cigarro sem desviar os olhos; as percepções que tinha importavam mais
para Pedro Palmérius que provas concretas.
 Christian...
O rapaz ergueu o rosto, olhando diretamente para o delegado, que pôde ver a tristeza do semblante,
pontuada nos olhos úmidos; uma lágrima represada foi rapidamente contida, e o delegado levantou-se.
 Vou ver como está o andamento das coisas.
Entraram os dois na cozinha, ainda a tempo de ver os três policiais devorando as últimas migalhas
de alimento na mesa. PP explodiu, aproveitando para dar vazão à frustração que sentia:
 Ôxe! – expeliu com raiva usando sua gíria baiana favorita.  Vocês vieram aqui para tirar a barriga
da miséria? Bando de jegues! Vão trabalhar!
A cozinha esvaziou-se instantaneamente; os policiais correram para o computador deixando xícaras,
pratos e bules vazios para trás. PP e Christian se olharam e não conseguiram evitar um sorriso zombeteiro;
o delegado ensaiou um pedido de desculpas com seu gestual contido e foi atrás dos subordinados.
149
Christian suspirou e começou a organizar a cozinha.
 E aí? Temos alguma coisa? – perguntou PP logo que entrou no quarto.
 Nada por enquanto – respondeu Tomé.
 Nada também nas prateleiras – disse Oscar –, só que tem uma porção de CDs e DVDs que não
conseguimos verificar um por um.
 O que você sugere, Tomé?
 Vamos levar a CPU e os discos para a delegacia; lá podemos usar os outros computadores para
apressar o processo.
 CPU? Que treco é esse, Tomé? Por que você não fala português comigo?
 CPU é o computador; é esta caixa de metal aqui. – apontou.
 Então fala logo computador, não fica dando uma de americano que só fala em siglas!
Pedro Palmérius estava colérico, e ninguém ousava falar nestes momentos; andava de um lado para
outro no pequeno quarto, pensando no que fazer. Decidiu-se e ordenou:
 Junta tudo e bota na caminhonete. Rui: preenche o auto de apreensão. Faz alguma coisa! Acha que
veio aqui só para bater foto? Ôxe!
E saiu para rua, acendendo mais um cigarro enquanto passava pela soleira da porta. Eram 8h17min
de uma manhã ensolarada na Bahia.

150
Tomé desligou o computador e começou a desconectar os cabos, enquanto Oscar separava os discos e
descrevia para Rui, que transcrevia nos formulários. Deixavam o material na mesa da sala; Christian teria
de assinar o documento em que constava tudo que estava sendo apreendido. Oscar, que era o veterano da
equipe, por vezes se valia desta condição para dar ordens – sempre que o delegado não estava presente.
Os outros aceitavam mais para não arrumar confusão do que por respeito:
 Eu vou dar uma mijada e já volto. Vocês deem uma organizada no escritório do rapaz... Não vamos
deixar esta bagunça, não! Lembrem que ele serviu um bréquifésti legal!
Os colegas também toleravam com galhardia as incursões de Oscar no idioma de Agatha Christie,
de quem o policial era fã, sem fazer zombarias. Ninguém simpatizava com ele na delegacia, a bem da
verdade. Sua constante acidez e amargura por uma longa carreira sem as promoções que julgava
merecedor o tornavam uma companhia desagradável.
Ele entrou no banheiro e trancou a porta; tirou a carteira de couro do bolso e abriu a pressão da
niqueleira. Buscou com a ponta dos dedos um objeto que se mesclara com as moedas. O pen drive de
material translúcido-esverdeado era pouco maior que uma moeda de um real. Oscar segurou entre os
dedos polegar e indicador a pequena engenhoca eletrônica; olhou contra a luz, curioso para saber o que
poderia armazenar tanta coisa. A pessoa que lhe dera o pen drive dissera que ali dentro cabia uma
enciclopédia inteira. Oscar virou o pequeno dispositivo buscando alguma indicação de como aquilo
poderia acontecer naquele objeto que mais parecia um chaveirinho; desistiu movido pela urgência e pelo
perigo que corria com o que teria de fazer. Lembrou-se do homem que lhe encomendara o trabalho: seu
151
pastor na igreja, o sujeito que o levara para o templo a primeira vez. Nunca mais saíra, tornando-se
evangélico fervoroso. Fazia tudo pela igreja, que o acolhera e valorizara como a carreira policial não o
fizera.
Recusara o dinheiro no início; faria de graça, por amor a sua igreja, por devoção ao Deus Onipotente.
Satanás tinha de ser expulso do planeta, em cada uma de suas manifestações. E se o maldito estava
infiltrado na sua jurisdição, era seu dever agir. O pastor insistira e ele aceitou os trinta mil reais, dez antes
e vinte quando o demônio fosse expulso de Itaparica. “Doação dos fiéis”  dissera o pastor –; “e você
será o São Jorge Guerreiro, que enfiará a lança no coração trevoso do Satã!”.
“Bem” – pensou Oscar –, “a lança que tenho é este tal de péindraivi. Tenho que achar onde enfiar
isto, agora.” Colocou a mão no bolso esquerdo da calça, sem soltar o pen drive, e saiu do banheiro. Passou
sem ser visto pela porta do quarto onde Tomé e Rui davam os retoques finais na organização. O delegado
fumava, encostado na caminhonete, falando com alguém pelo celular. O material da busca estava sobre a
mesa da sala. A CPU em torre estava deitada, com alguns CDs por cima. Oscar foi para trás do
computador, como o pastor lhe ensinara, mostrando como se fazia no notebook da igreja. Relembrou a
explicação:
 Está vendo aquela porta?
 Aquela escrita úsbi?
 U-esse-bê – corrigiu o pastor pausadamente.  Fale a sigla; não tente ler a palavra.
 Uessebê. Entendi. Vai estar escrito uessebê?
 Não, não é sempre que está escrito. Às vezes tem este símbolo aqui, ó.
152
 Sei. A ponta de um arpão.
Oscar olhou a traseira do computador de Christian e começou a apavorar-se. “É tudo diferente do
computador dobrável do pastor!” – pensou. “E cadê o arpãozinho?”. Sentiu o suor escorrer-lhe pela testa;
a visão começou a embaçar. Desistiu de procurar o desenho e começou a testar o encaixe em todos os
furos quadrados e retangulares que encontrava na máquina; sua mão tremia. Não conseguiu enfiar a
“lança” em nenhum deles. “Na frente! Pode estar na frente!”. Correu para o outro lado da mesa, ouvindo
o falatório dos colegas que indicava que a tarefa havia terminado. “Meu Deus, meu Deus, me ajude a
cumprir Tua missão!” – implorou em oração sincera e desesperada. A parte frontal do computador era
pior ainda: não tinha nenhum orifício possível. A mão trêmula, dirigida pela mente em desespero,
empurrava a portinhola do drive para disquetes quando uma mão firme a segurou. Oscar sentiu-se gelar
por dentro. A mão firme conduziu a sua carinhosamente para a parte inferior da CPU, abriu uma janela
basculante que encobria duas portas USB e ajudou a introduzir numa delas. O pen drive encaixou
perfeitamente. A mão salvadora retirou a mão trêmula de Oscar, que segurava fortemente o pequeno
equipamento quase o esmagando e colocou seu próprio polegar no corpo do pen drive, marcando sua
impressão digital. A mão, então, fechou a janela, e só então Oscar teve coragem de olhar para o lado. O
rosto de Christian não demonstrava qualquer emoção.
 Está tudo bem – ele disse, vendo o medo que tomava conta do policial.
Oscar começou a chorar e foi amparado por Christian. Tomé e Rui entraram na sala naquele
momento e viram a cena insólita: o policial durão, o que mais havia demonstrado raiva, indignação e sede
por justiça naquele caso jazia chorando como uma criança nos braços do suspeito.
153
 Oscar! – gritou Tomé.  O que aconteceu, homem?
 Não houve nada, detetive – falou Christian, impassível.  Todos nós temos momentos de fraqueza,
não?
 Ôxe! O que está acontecendo aqui? – esbravejou Pedro Palmérius, escancarando a porta.  Vamos
ficar aqui o dia inteiro? Oxente! Assim não dá... Oscar, vai bancar a boneca agora?
 N-não, não... – disse o outro, enquanto enxugava as lágrimas.
Os policiais listaram rapidamente o material que estava sendo levado; Christian assinou a relação
sem ler, mecanicamente.
PP continuou blasfemando e xingando seus subordinados dentro da caminhonete que dirigia em alta
velocidade rumo norte, de volta à 19ª DP; eram 9h32min da manhã do último sábado de Christian na Ilha
de Itaparica.

 Quanto tempo para você me dar um parecer do conteúdo do computador? – inquiriu secamente PP logo
que entraram na delegacia.
 Depende... – tergiversou Tomé, sabedor das catacumbas e esconderijos da computação – Se não
154
houver nada criptografado eu...
 Você tem até o meio-dia – ordenou.
Pedro Palmérius entrou em seu gabinete, batendo a porta com violência. Acendeu um cigarro e
sentou-se à mesa. Sentia-se manipulado e detestava aquilo. Seu faro apurado continuava sentindo o cheiro
de podre no ar, mas não conseguia determinar a direção de onde vinha.
 A verdade é que tem lixo fedendo para todos os lados – pensou alto.
PP pegou o telefone e discou um número de celular; seus informantes deveriam saber alguma coisa.
Enquanto os policiais jovens dedicavam sua energia para o mundo cibernético e às novas tecnologias, o
delegado cultivava seus métodos antigos. Logo que chegara à ilha começara a tecer uma rede de
informantes à que recorria para saber o que se falava nos bares, nas boates, nas ruas, na escuridão da
noite. Eram pessoas comuns: o dono de um bar que escutava a conversa dos clientes; a costureira que
cerzia silenciosa e de cabeça baixa ouvindo o murmúrio dos passantes; o viciado inofensivo que circulava
nas bocas de fumo falando e ouvindo muito; o pescador que trazia as histórias contadas nos dias chuvosos;
todos, de alguma forma, tinham uma dívida de gratidão com o delegado, que os ajudara em momentos de
necessidade.
O telefone chamou três vezes e uma voz feminina atendeu:
 Sim?
 Sou eu. Está sozinha?
 Sim, pode falar.
 É sobre o professor Christian, do colégio...
155
 Vixe, mainha! Só falam nisso...
 Falam o quê?
 Que é armação dos graúdos...
 Armação? Para quê?
 Ele incomodou muita gente naquelas palestras. Com as coisas que dizia... Mexeu com religião,
com família, com tudo.
 Quem armou?
 Todos... O padre, o pastor, o maçom, o prefeito... Todos.
 Tá bom. Se souber de algo mais, me avise. Tchau.
 Tchau.
PP desligou o telefone e discou outro número. “É, o fedor vem de todos os lados...” – pensou.
 Alô – atendeu uma voz masculina.
 Sou eu. Me fala do professor – ordenou, seco.
 Esse já era, meu rei – disse com voz arrastada.
 Como, já era?
 Já tá encomendado, doutô. Dizem que até o caixão já tá pronto... hi hi hi...
 Ôxe! Já tá alto a essa hora do dia?
 Fazê o que, né, chefia?
 Quem? Quem encomendou o professor?
 Sei não... Só sei que vem gente da capital fazê o serviço...
156
 Quando?
 Sei não... – respondeu a voz sonolenta.
PP desligou, praguejando internamente. Uma batida rápida e a porta se abriu: era Tomé.
 Você precisa ver isto.
Os dois seguiram para a mesa do detetive, onde ele montara a máquina apreendida naquela manhã.
A tela do monitor mostrava uma lista de arquivos que parecia não ter fim.
 O que é isto? – perguntou o delegado.
 É o conteúdo de um pen drive.
 Em português, em português...
 Está vendo aquela coisinha verde ali embaixo? – perguntou Tomé, apontando para a janela
basculante aberta na CPU.
 Sim. Aquilo é o tal...
 Pen drive. É um dispositivo portátil para transporte de dados. O que você está vendo na tela é o
conteúdo dele.
 E o que tem nestes arquivos? – inquiriu o delegado, já sabendo a resposta.
 Pornografia infantil; pedofilia. Fotos e filmes, inclusive aqueles que recebemos por e-mail.
PP congelou; uma prova concreta aparecera.
 Muita coisa?
 Muita... – respondeu Tomé, enquanto dava um comando com o mouse.  São 3,7 gigabytes de
157
dados no total, o equivalente a mais de cinco CDs cheios. Fotos: 6.800. Filmes: 44.
Pedro Palmérius sentou-se e buscou a carteira de cigarros no bolso; ele a deixara no escritório e
Tomé prontamente foi buscá-la, sem precisar de ordem ou pedido para tal.
 Está tudo bem, PP? – perguntou, estranhando a palidez do chefe.
 Sim, sim... Só preciso de um momento para pensar... – falou enquanto acendia o cigarro.
O delegado olhava mesmerizado para a tela do computador, como que esperando uma intuição que
apontasse um pontinho de luz naquele túnel sombrio em que estava caminhando.
 É tudo material de pedofilia?
 Sim. Quer dizer... não olhei tudo... Não tive tempo e nem estômago para isto, PP. Abri
aleatoriamente uns cinquenta arquivos: é tudo o mesmo lixo!
 Como você conseguiu tão rápido? – questionou o delegado, já com a mente voltando a funcionar.
 Você disse que podia demorar... E por que você não encontrou isto lá na casa dele?
 É... Bem... O caso é que...
 Desembucha, homem!
 Eu só percebi o pen drive aqui na delegacia.
 Como assim?
 Eu posso jurar que olhei esta baia e ela estava vazia... Mas não posso afirmar com certeza...
 As fotos do Rui – lembrou PP.
 Já verifiquei com ele: não tiramos fotos do computador com a janela da baia aberta, só fechada.
 Ôxe, que sujeito inútil! O cara vai lá só para fotografar e faz uma asneira dessas. RUI! – gritou.
158
O fotógrafo veio correndo, abotoando as calças.
 Sim, doutor! – disse Rui esbaforido; estava no banheiro quando ouviu seu nome.
 Já sei que você não tirou a única foto que importava, mas pelo menos lembra se esta coisa estava
no computador?
 Não, não lembro, doutor delegado... Eu fui tirando as fotos... Ficava concentrado nisso...
 Cadê o Oscar?
 Foi para casa; não estava se sentindo bem.
PP balançou a cabeça como quem estava desistindo de tudo e de todos.
 Eu mereço vocês... Acho que minha lista de pecados é tão grande que São Pedro manda só
incompetentes para minha delegacia – vociferou.
Os dois auxiliares permaneceram imóveis; PP acendeu outro cigarro.
 Que tipo de busca você fez enquanto estava na casa do sujeito? – perguntou o delegado, mais
calmo.
 Verifiquei todo o HD, o disco rígido da máquina; todas as partições e pastas dele.
 E não achou nada?
 Não.
 E por que não verificou a coisinha?
 O pen drive? Bom... eu não vi que ele existia...
 Como que você não viu? – insistiu PP.  Não deveria aparecer alguma coisa na tela?
 Sim, aparece. No computador dele, que tem software antigo, aparece esta identificação – respondeu
159
Tomé, mostrando com o mouse uma linha na tela.
 E você não viu isso hoje de manhã?
 Não, não vi – respondeu constrangido.
 Olha, Tomé, não é hora de se sentir culpado. Preciso que você tenha raciocínio lógico agora: me
responda objetivamente. Quais são os motivos possíveis para você não ter visto a coisinha no
computador?
Tomé avaliou rapidamente e disse:
 São duas possibilidades que me ocorrem: a primeira é falha humana, ou seja, eu não vi o pen drive
fisicamente na porta USB e nem virtualmente na tela do computador.
 E a segunda?
 O pen drive não estava lá naquele momento.
 Certo, agora estamos progredindo. Vamos desconsiderar a primeira hipótese, ou seja, vou acreditar
que você é um sujeito competente, eficiente e estava totalmente focado na diligência desta manhã, e que
não cometeria uma besteira deste tamanho, certo? Estão acompanhando?
Os dois balançaram a cabeça, assentindo.
 Na segunda hipótese, a coisinha foi colocada no computador logo após ele ser desligado e retirado
do quarto, ou seja, entre o momento que você desligou lá e religou aqui, certo?
 Certo... – murmurou Tomé, começando a pensar na mesma sintonia que o chefe.
 A pergunta, então, é a seguinte: quem teve a oportunidade de fazer isto?
Os dois subalternos se olharam, receosos das ponderações que o delegado estava fazendo.
160
 Bem, o computador ficou sozinho na sala enquanto o senhor estava fumando lá fora – disse Rui –
e nós estávamos terminando de arrumar o quarto... O tal professor pode ter aproveitado e...
 ...e ido até o computador enfiar nele as provas de sua própria culpa – completou PP.  Grande
dedução, Rui! Prêmio Sherlock Holmes para você. Senta aí e escuta. Veja se aprende alguma coisa,
cabeçudo!
 O único momento que a CPU ficou sozinha – falou Tomé – foi nestes dez ou quinze minutos, PP.
Nós estávamos terminando lá no quarto, o professor estava limpando a cozinha e você estava falando
com alguém por telefone lá fora.
 E vocês três ficaram sempre juntos no quarto?
Tomé forçou a memória, tentando reviver aqueles momentos, desimportantes enquanto vividos,
decisivos agora. Rui ergueu a mão, temeroso de algum xingamento.
 Fala, homem. Até parece que está numa sala de aula do primário...
 O Oscar saiu para mijar – disse baixinho.
 O quê?
 Xixi. O Oscar saiu para fazer xixi.
Os três ficaram calados por algum tempo, aguardando o rumo que Pedro Palmérius daria para as
investigações. Alguns minutos passaram e ele falou:
 É possível que o professor tenha guardado todo o material apenas em um lugar?
 Possível é, mas sempre que você tem um material importante, você faz backup dele. Cópia, uma
161
cópia em outro lugar – antecipou-se Tomé.
 E onde você faria uma cópia disto?
 Eu usaria um DVD; todo este conteúdo do pen drive cabe num DVD apenas. Segunda opção, em
cinco CDs.
 E nós trouxemos todos os discos de lá?
 Sim, tudo que encontramos.
 Tudo bem: você, Tomé, vai vasculhar todos os discos em busca de uma cópia do que está na
coisinha, está bem?
 Pode deixar, chefe.
 Mais uma coisa: você mexeu nela? Encostou a mão?
 Não, não, isto eu posso garantir, PP. Abri a janela da baia e fui direto para o teclado acessar o
conteúdo. Eu não toquei no pen drive.
 Ótimo. Rui: você vai pegar a maleta de datiloscopia e verificar se existe alguma impressão que se
aproveite na coisinha, está bem?
O fotógrafo balançou a cabeça afirmativamente.
 Você não matou as aulas de datiloscopia na academia, matou Rui? Acha que consegue dar conta
disso?
 Sim, doutor, pode deixar.
 Mexam-se – ordenou – e só falem sobre o caso comigo; com mais ninguém, entenderam?
 Sim, chefe – responderam ambos, quase em uníssono.
162
Eram 11h09min.

Aquela era a pior parte do trabalho para PP: a espera. Não havia nada a fazer. Com a informação que
tinha poderia comprometer a investigação se interrogasse mais pessoas. Sabia que Oscar tinha plantado
a coisinha no computador do professor; sabia que alguma coisa estava errada desde que entrara na casa e
vira Oscar chorando como uma criança nos braços de Christian; sabia do ressentimento que o veterano
policial tinha com a Polícia Civil; sabia do fanatismo religioso do subordinado desde que entrara para a
tal igreja. Tudo se encaixava, mas Pedro Palmérius precisava mais do que deduções inteligentes para
fechar aquele caso: precisava de materialidade. Provas concretas, que por enquanto estavam todas contra
o professor suspeito de Barra do Gil.
O delegado soltava mais uma espiral de fumaça quando Rui o chamou.
 Temos uma impressão digital perfeita, chefe! – disse, orgulhoso de si mesmo; desde a época da
Academia de Polícia não tirava impressões.
PP olhou na tela do computador a digital ampliada, perfeita em suas bordas, sem borrões, e não teve
um bom pressentimento.
 Mande para a Datiloscopia na capital; peça urgência e dê os nomes de todos que tiveram contato
com o computador desde hoje de manhã.
163
 Agora mesmo, chefe.
PP foi até a mesa de Tomé e perguntou:
 Alguma coisa, filho?
O delegado usava formas de tratamento mais carinhosas com seu pessoal, sempre depois das
explosões temperamentais em que usava palavras mais duras.
 Nada até agora, PP.
 Nada? Nem pornografia normal, mulher pelada, fotos da Playboy, nada?
 Nada. Achei textos de filosofia, fotos de viagens, paisagens, filme de uma árvore sendo
derrubada...
 Árvore sendo derrubada? Para que alguém filma uma árvore sendo derrubada?
 Denúncia. Parece que o sujeito é daquele ecochatos que tem um ataque de coração quando vê
alguém pisando numa plantinha. Aparentemente arrancaram uma árvore para construir um prédio e ele
soltou o filme na internet para denunciar.
 Sei... Continue procurando.
 Doutor – chamou Rui.  Estou com o plantão da perícia na linha... Eles disseram que só dá para
fazer na segunda-feira.
 Passa a ligação para a minha sala.
PP entrou e fechou a porta atrás de si; o telefone já tocava; ele deixou tocar mais três vezes, acendeu
mais um cigarro e tirou o fone do gancho.
 Quem está falando? – disse de pronto, sem qualquer cumprimento.
164
 Detetive Orlando, Perícia.
 Aqui é o delegado Palmérius, titular da 19° DP de Itaparica. Qual é o problema, detetive? – disse
PP, voz mansa, tom apaziguador.
 O problema é que estou sozinho no plantão e não posso dar atenção para este caso hoje. Vai ter
que esperar passar o fim de semana...
“25 ou 26 anos de idade” – avaliou mentalmente o delegado –, “acha que sabe tudo porque tirou
notas altas na academia e por estar alocado na Perícia.” O rapaz continuou se justificando:
 Temos muitas ocorrências aqui na capital, o senhor sabe... Uma identificação datiloscópica leva
tempo, tem que puxar os arquivos dos suspeitos nos estados de origem, às vezes não está no computador
e tem que escanear...
PP ouvia o som de uma TV ligada ao fundo... Noticiário do almoço, provavelmente. O perito
continuou:
 Então é preciso que toda a equipe se envolva na identificação, e eu estou sozinho, de plantão, e...
 Detetive Boiando – cortou PP.
 Orlando.
 Vou explicar só uma vez, e se eu precisar repetir vai ser ao vivo, segurando as tuas bolas numa
mão e o teu pescoço na outra, entendeu, seu monte de excremento? É o seguinte, detetive Parando, começa
a anotar: você vai tirar o rabo desta cadeira, desligar esta porcaria de televisão, sentar na frente do
computador e trabalhar na impressão que nós mandamos.
O rapaz estava em silêncio no outro lado, intimidado com a voz de Pedro Palmérius.
165
 E você vai trabalhar sem parar, detetive Mijando, até descobrir de quem é a impressão; do mesmo
jeito que nós estamos trabalhando sem parar desde as quatro horas da manhã. Entendeu, detetive
Defecando?
O delegado ouvia apenas o som da televisão ecoando no outro extremo da linha. A voz de Palmérius
subiu mais três oitavas e tornou-se verdadeiramente aterrorizante:
 Porque, detetive Coçando, se eu não receber uma resposta até as quatro da tarde de hoje, eu irei
pessoalmente até aí, vou entrar nesse chiqueiro que vocês chamam de Perícia nem que seja à bala, e vou
trazer uma orelha tua de recordação para Itaparica! – gritou.
Silêncio.
 Estamos entendidos, detetive-perito Orlando?
 S-sim – murmurou o rapaz.
Pedro Palmérius bateu o telefone sem cerimônia e soltou uma sonora gargalhada. Divertia-se em
intimidar os novatos da polícia, gente ainda não endurecida pelos anos de labuta.
 Deve ter-se borrado nas calças! – disse a si mesmo, rindo alto para despejar a tensão daquele
penoso dia.
Eram 12h24min e os policiais saíram para almoçar na churrascaria próxima à DP. O plantão avisaria
se houvesse alguma ocorrência e eles precisavam relaxar um pouco longe da pressão da investigação.

Neste momento Christian almoçava só em sua casa; ele aprontara uma pequena mochila com duas mudas
166
de roupa, nécessaire, água e barras de cereais, além de alguns objetos e documentos essenciais.

Oscar dormia em sua casa sob o efeito de um calmante poderoso.

Na Bahia Marina, em Salvador, quatro homens preparavam discretamente uma lancha Phantom 360.
Mesclados na multidão de funcionários, munícipes e turistas característica dos sábados, os homens
carregavam pequenas bolsas e checavam detalhes triviais do barco, como combustível, sistema elétrico e
comunicações.
Eram 15h15min quando Tomé fez a leitura do último disco apreendido na casa de Christian. Não
encontrara nada parecido com o conteúdo do pen drive. Pedro Palmérius não se surpreendeu com o relato
do detetive, que o questionou:
 PP, você acha que foi o Oscar, não é?
O delegado olhou o rapaz demoradamente e falou:
 Vamos aguardar a perícia.
Foi quando o telefone soou; Tomé atendeu, falou algumas palavras e desligou.
167
 Então? – inquiriu PP, que tinha o olhar perdido na paisagem histórica na janela de seu gabinete.
 Era o perito da capital; ele enviou o laudo por e-mail para o Rui, mas já me adiantou resultado:
positivo para Christian Joaquim de Assis.
Pedro Palmérius não moveu nenhum músculo; permaneceu imóvel tentando juntar as peças daquele
caso. Sua certeza inabalável na inocência do professor, na existência de um movimento subterrâneo que
procurava atingi-lo e na participação de seu subordinado sofria um revés. Mas era um revés externo:
nunca deixava de seguir sua intuição e continuava convicto da inocência de Christian, mas era um servidor
da lei, e a lei tinha de ser cumprida com base em evidências concretas, não na subjetividade de uma
intuição. Sua mente treinada de policial assumiu novamente o controle e ele disse, sem olhar para o
subordinado:
 Traga-me o Oscar aqui e peça um mandado de prisão para Christian ao juiz Heleno. Urgente.
Tomé saiu da sala sem dizer nada; orientou Rui a buscar Oscar com uma viatura disponível e sentou-
se para redigir o mandado.
PP acendeu mais um cigarro; não lhe agradava o rumo que as coisas estavam tomando, mas não
tinha opção a não ser agir de acordo com as evidências. Eram 16h em ponto, exatamente 34 horas após
ele ter lido a coluna de Lédio na “Voz de Itaparica”, o marco zero dos acontecimentos. Pedro Palmérius
não sabia, mas tudo estaria terminado em apenas quatro horas e 51 minutos.

168
A pequena comunidade da Ilha de Itaparica estava em transe com os acontecimentos das últimas horas.
Fotos do pen drive tinham vazado e circulavam por e-mail; um perfil – cujo criador usava o pseudônimo
“Justiceiro da Ilha” – fora criado no Facebook com o nome de “O demônio de Itaparica” estampando
algumas das imagens; os usuários do Twitter repercutiam a boataria, levando o caso para fora dos limites
insulares. Dois vídeos foram postados no YouTube. A capital Salvador já comentava o assunto, e algumas
emissoras de rádio e televisão já realizavam reuniões de pauta para verificar se seria adequada uma
cobertura jornalística.
O professor Christian, tão admirado e elogiado nas últimas semanas, perdia seguidores a cada
minuto; poucos se arriscavam a defendê-lo depois que viam as fotos na internet. Uma gigantesca onda de
indignação tomava os habitantes de todos os pontos cardeais da ilha. Nos bares de Itaparica e Vera Cruz
os homens, incendiados pelo álcool das bebidas, falavam em justiçamento pelas próprias mãos e
linchamento; alguns até alegavam conhecer crianças das fotos, afirmando que as barbaridades tinham
sido perpetradas na própria comunidade. Até os alunos mais próximos do professor haviam cedido ao
tsunami emocional que varria a ilha.

35 horas e 38 minutos após o marco zero


Rui retorna da casa de Oscar sem o policial; explica a Pedro Palmérius que encontrou Oscar na cama,
aparentemente dormindo, e não conseguiu acordá-lo. Havia um frasco de Lexotan vazio ao lado da cama;
sua esposa não soube precisar a quantia de comprimidos que restavam. Levaram Oscar para o hospital,
169
onde estava sendo feita uma lavagem estomacal.

35 horas e 45 minutos
Os quatro homens na Bahia Marina terminam os preparativos e separam-se discretamente – dois em
cada bar da marina. Eles aguardarão o momento da ação bebendo cerveja leve, para relaxar e ganhar
coragem.
O juiz Heleno Panatis concede o mandado de prisão para Christian Joaquim de Assis.
36 horas e 8 minutos
Tomé entrega o mandado ao delegado PP, que determina que seja executado naquele mesmo dia.
Ordena a Rui e Tomé que se preparem para a diligência às 21h; sairiam da 19ª DP meia hora antes.
Christian assiste a seu último pôr-do-sol na Ilha de Itaparica e recolhe-se para preparar o alimento
da noite.

37 horas
A Phantom deixa a marina levando os quatro tripulantes. O piloto da lancha de onze metros de
comprimento manobra lentamente para sair do emaranhado de embarcações e toma o rumo noroeste. É
apenas um despiste; ele segue nas rotas mais usadas, aquelas que levam para o norte turístico da Ilha de
170
Itaparica e para o interior da Baía de Todos os Santos. Ele seguirá nesta direção por alguns minutos,
apenas o suficiente para que os olhares na marina olvidem o barco. Quando o piloto percebe que o farol
da Ponta de Humaitá está diretamente à sua direita, ele executa uma manobra de 98° a bombordo, como
um automóvel que faz uma curva fechada à esquerda, rumando para a saída da baía. A distância em linha
reta da marina até a Barra do Gil é de doze quilômetros; o trajeto em ziguezague aumentará o percurso
para dezoito, mas é uma precaução necessária. Ele pilota a potente lancha com segurança e cuidado: em
média velocidade, para não chamar a atenção, e com todas as luzes de navegação exigidas pela Marinha
brasileira ligadas. Os outros três homens vestem roupas de neoprene preto próprias para mergulho. As
roupas cobrem as coxas, o tronco, os braços e a cabeça, deixando uma abertura no rosto; elas permitem
mobilidade e são, principalmente, uma boa forma de tornarem-se virtualmente irreconhecíveis usando
um par de óculos para mergulho qualquer. O piloto avistara o farol da Barra alguns minutos atrás, à sua
esquerda; ele verifica o GPS no painel e direciona o barco 88° a estibordo. A Phantom 360 está com sua
proa apontando diretamente para a rua da casa de Christian Joaquim de Assis.

37 horas e 42 minutos
O piloto manobra o barco lentamente em marcha ré. O calado de pouco mais de meio metro permite
que ele chegue quase na areia da praia da Barra do Gil. O barco finalmente para, aprumado na direção
das luzes da capital, e lança âncora. Não há vivalma à vista, mas, mesmo assim, o piloto usa duas pequenas
faixas adesivas pretas para transformar uma letra “V” em “M” no letreiro que identifica a embarcação;
um retângulo de adesivo branco simplesmente cobre o último número do código. Se houvesse testemunha
171
ocular, não identificaria a lancha. Um dos homens usa um binóculo para fazer uma varredura na praia e
nas casas próximas; não avista bares ou locais de encontros.
O céu está totalmente limpo e podem-se ver estrelas em todos os quadrantes, mas a lua só nasceria
às 22h14min, e ela estaria na fase minguante. A escuridão é total e a luminosidade mais significativa é a
que vinha da capital, dez quilômetros além, no outro lado da barra da Baía de Todos os Santos. O celular
do piloto vibra e ele atende; num diálogo rápido, confirma a posição atual, lendo o display do GPS:
12°59'36.67" Sul e 38°37'37.84" Oeste. A voz do outro lado recomenda que sigam o horário planejado e
desliga; o piloto passa a informação aos outros e começa a fazer uma verificação dos sistemas da Phantom
para garantir que não haverá problemas.
Christian coloca o alimento na mesa: arroz integral, tofu refogado com shoyu e salada de rúcula,
tudo regado com azeite extra virgem de oliva e enriquecido com gersal; uma cerveja long neck 0% álcool
acompanhará o jantar, uma forma velada e solitária de comemoração naquela noite. Ele apenas intuía –
não poderia saber, ainda – o desfecho dos acontecimentos que viriam nas próximas horas. Sua intuição o
alertava e ele seguia: deixara a mochila de emergência pronta e num lugar que poderia pegá-la
rapidamente tanto se saísse pela porta dos fundos, quanto pela da frente. Christian olhou o relógio e deu
a primeira garfada: eram 20h15min.

38 horas e 30 minutos
Pedro Palmérius, Tomé e Rui Paz partem da 19ª DP rumo à Barra do Gil.
172
Os homens descem a escada de aço inoxidável na traseira da lancha. A água morna e calma cobre as
pernas, quase chegando à cintura. Cada um carrega uma pequena mochila preta e impermeável nas costas;
estão descalços para percorrer os poucos metros até a areia seca, que eles vencem em poucos segundos.
Os três correm até uma pequena elevação de areia e vegetação logo adiante; todos se sentam, tiram pares
de tênis das mochilas – apropriados para corridas esportivas em trilhas arenosas –, limpam a areia dos
pés e os calçam. Imóveis, camuflados pela vegetação e pela escuridão, eles são praticamente invisíveis
mesmo se alguém estivesse caminhado na areia da praia. A pele escurecida pelo sol e a vestimenta preta
tornava os vistosos tênis coloridos a parte mais visível do conjunto. Mas ninguém estava na praia: em
todas as residências as pessoas estavam jantando e assistindo ao jornal da noite; depois seguiria a novela,
o que decretava cerca de uma hora e meia de torpor coletivo na comunidade. Ninguém queria ser
incomodado naquele ínterim; ninguém esperava ser incomodado.
Os três homens seguiram abaixados até a entrada da rua da casa de Christian; observaram o lado
mais escuro, onde a iluminação pública era deficiente, e caminharam eretos, a passo normal, próximos
uns dos outros. Quem olhasse de longe, não saberia dizer se eram duas ou três pessoas. Caminharam cerca
de duas quadras sem serem incomodados; a ruela era arborizada e os cachorros estavam nas portas das
cozinhas esperando os restos da refeição. Eles finalmente chegam defronte à casa de Christian; um dos
homens – o líder – confere mentalmente o endereço. Não existe portão e eles entram caminhando no
terreno da casa; apenas uma luz está acesa na residência e não há ruído de televisão.
Dentro da casa, Christian esvazia a garrafa no copo: são os dois últimos goles que encerrarão aquele
173
jantar. Ele está calmo, como que aguardando os acontecimentos aos quais não pode – e não quer –
interferir.
O líder faz sinal para os outros dois homens seguirem cada um por um lado da casa, enquanto ele
próprio se encolhe ao lado dos degraus que sobem à varanda e à porta de entrada, e torna-se invisível. Ele
tira a mochila das costas e pega uma arma dentro dela: é uma PT 638 PRO em material escuro e não-
reflexivo. Trata-se de uma arma leve e de pouco volume; o tiro tinha de ser próximo para ser certeiro. O
líder verifica, pela enésima vez, o projétil calibre .380 ACP que já está na câmara, pronto para ser
disparado; o pente tem mais onze balas – ele nunca usa a capacidade máxima. Ele destrava a arma e
aguarda, a respiração e o coração acelerados pela adrenalina. Os outros dois homens retiram de suas
mochilas galões com cinco litros de gasolina e começam a espalhar nas laterais e fundos da casa,
silenciosamente, que é construída, com exceção do banheiro, inteiramente de madeira.
Christian continua sentado à mesa, com o olhar perdido no copo vazio de cerveja. O odor forte de
combustível chega às suas narinas, colocando-o em alerta. Ele automaticamente olha para a mochila e
depois para as janelas; só então ele percebe a escuridão total da noite. O cheiro fica mais penetrante;
Christian levanta da cadeira e desliga a única lâmpada acesa da casa; tudo mergulha no breu noturno e
um dos homens risca um palito de fósforo.
Uma ferradura de fogo envolve instantaneamente a casa de Christian; apenas a frente está livre. A
estratégia é óbvia, mas eficiente: as pessoas têm pavor da morte no fogo e correm instintivamente para o
único lugar que não veem chamas.
174
Com as labaredas iluminando toda a casa, Christian caminha lentamente em direção à mochila;
coloca-a nas costas, afivela o estabilizador na altura do tórax, a barrigueira e caminha em direção à porta
de entrada. Ele não olha para trás: tudo aquilo que já está queimando representa uma etapa de sua vida
que termina ali e agora.
O líder está em pé a um metro de distância da porta; joelhos levemente flexionados, pistola na mão
direita estendida, suportada pela mão esquerda; os braços também estão flexionados levemente para
absorver o impacto do disparo. Um tiro na testa. O líder gosta de matar com apenas um tiro no meio da
testa; ele despreza os colegas de profissão que esvaziam a arma para matar um homem, atirando a esmo
em todo o corpo da vítima, com sangue jorrando em cascatas. Um tiro certeiro na testa, bala que entra e
não sai, e o serviço está feito; mas o professor não aparece. Qualquer um já teria aberto a porta e saído
correndo, já que as chamas cobriam todas as outras paredes. O relatório dizia que o sujeito não tinha
nenhuma arma em seu nome, mas poderia estar errado. O pensamento de que o rapaz poderia sair armado
e atirando deixou o líder mais atento. Com sua visão periférica buscou as janelas laterais, mas todas
estavam fechadas.

O silêncio na caminhonete de PP é total; o delegado não gosta de ouvir música e seu ânimo não é para
conversa. Eles estão passando pela praia da Penha quando Tomé, sentado ao seu lado, aponta o clarão
intermitente do incêndio, com uma coluna de fumaça que cobre algumas estrelas logo acima do horizonte.
Pedro Palmérius afunda o pé no acelerador.

175
O ruído agudo da fechadura da porta sendo girada retesa os músculos do líder ao limite; a maçaneta gira
e a porta se abre suavemente. Christian olha para o homem por trás da arma, vestido de preto e usando
óculos de mergulho. Os olhares se encontram por um instante. O líder aprendeu, ao longo dos anos, a
dominar seu medo e a nunca hesitar. O rosto sereno e bondoso que o rapaz parado na soleira da porta tem
não explica o porquê daquele trabalho – e nem precisa. Ele não precisa de motivos e explicações, é um
profissional e apenas o contrato interessa. Quando percebe que alguma emoção começa a emergir dentro
de si, o líder começa a mover o dedo indicador para puxar o gatilho. Christian coloca intuitivamente os
braços cruzados em xis sobre a testa e ouve um disparo; uma fisgada de dor é a última recordação de
Christian Joaquim de Assis.
O líder olha o rapaz caído à sua frente: o impacto da bala o derrubara de costas para dentro da casa.
A mochila nas costas amortecera o tombo e fizera o corpo ficar deitado de lado, ombro esquerdo colado
ao chão. O líder vê a grande mancha de sangue que se forma no piso da sala; o rosto está coberto do
líquido viscoso, fragmentos de carne e ossos. Os dois outros homens já o estão chamando, próximos à
rua, quando ele suspira descontente: aquela não era a sua “marca registrada” – um orifício no centro da
testa, uma bala que entra, mas não sai e o mínimo de sangue. Pragueja alguma coisa, mira novamente e
dispara mais uma bala em direção ao coração para garantir o serviço; só então ele se vira e começa a
correr com os outros. Eram 20h51min da noite de sábado na Barra do Gil, 38 horas e 51 minutos depois
que o delegado Pedro Palmérius havia lido a coluna no jornal. O “filósofo da ilha”, alcunha dada pelo
colunista da “Voz de Itaparica”, jazia imóvel sobre um lago vermelho dentro de uma caixa de fogo.
176

Os dois homens corriam pela rua em direção ao mar, seguidos pelo líder. A vizinhança só saiu do estado
de mesmerização com o estampido do primeiro tiro; o rosto das crianças apareceu antes nas janelas.
Apesar de não poderem ser reconhecidos, o líder não gostava de plateia e começou a atirar para o alto. O
efeito foi imediato: as luzes se apagaram nas casas e sumiram os rostos; até o final da rua o líder disparou
mais oito vezes.
Os três homens saltaram a pequena duna de areia e entraram correndo na água do mar; o piloto já
manobrava em marcha ré para aproximar ainda mais a embarcação. O líder foi o primeiro a alcançar a
lancha e subiu rapidamente os degraus da escada; ele puxou os outros rudemente pela própria mochila,
apesar dos protestos.
 Vai, vai, vai! – gritou, assim que o terceiro homem se estatelou no chão da Phantom.
Aquele era o momento que o piloto mais apreciava: a missão estava cumprida e a equipe precisava
ser evacuada sem demora, sem cuidados com velocidade ou luzes. Ele empurrou o manche totalmente
para frente dando potência máxima à parelha de motores do barco. A Phantom 360 empinou a proa qual
cavalo bravio e se afastou rapidamente da praia. O homem que recém tinha conseguido erguer-se do chão
caiu novamente. É o momento em que as suprarrenais chegam ao ápice da secreção de adrenalina, e o
177
piloto extravasou pilotando sua lancha em velocidade máxima.
Se eles olhassem para trás veriam os faróis de uma caminhonete surgindo na rua que costeia a praia
da Barra do Gil; mas eles não olharam: estavam retirando o equipamento, rindo e comentando sobre a
missão bem-sucedida.
O piloto se afastou em linha reta, perpendicularmente à praia, por pouco mais de quatro quilômetros,
os quais percorreram na velocidade limite do barco; só então ele voltou o manche ao ponto neutro e o
barco, docilmente, relaxou sobre as águas da baía. O líder beijou a PT 638 e a jogou no mar; veio à sua
mente o caminho que aquela pequena e bela obra de engenharia percorreu, desde sua manufatura numa
das fábricas de armamentos do sul do Brasil. Aquele modelo de pistola era liberado para comercialização
e uso civil, mas as armas que o líder utilizava nunca eram obtidas pela via normal. Todas as armas, quando
são desenvolvidas, passam por um apostilamento, como é chamado o processo de homologação junto aos
órgãos governamentais. Acontece que o Exército Brasileiro para homologar uma arma precisa testá-la, o
que é feito em campos de provas como o da Restinga da Marambaia, no Rio de Janeiro. Estes campos de
provas recebem protótipos das armas e realizam todo tipo de teste, inclusive alguns destrutivos; a maioria
dos protótipos não retorna à fábrica e alguns deles são desviados por militares corruptos e vendidos ao
crime organizado. Um destes protótipos estava agora no fundo da Baía de Todos os Santos.
Os outros homens lançaram ao mar os galões de combustível, tomando o cuidado de enchê-los com
água para que afundassem. Eles retiraram as vestes de neoprene e colocaram roupas normais de pescaria:
eles seguirão para um ponto qualquer na baía e passarão a noite e a manhã do domingo pescando; à tarde
de domingo se unirão ao fluxo de barcos retornando à marina, sem despertar suspeitas.
178
O piloto jogou uma lata de cerveja gelada para cada um dos homens, ligou as luzes de navegação e
iniciou o deslocamento em velocidade de cruzeiro. A missão estava cumprida.

Quando PP fez a curva fechada à direita para entrar na rua da casa de Christian já havia pessoas indo em
direção ao incêndio; ele ligou as luzes giratórias e a sirene policial, e ordenou:
 Chame os bombeiros, Rui, e fique na viatura; Tomé, você vem comigo.
A Blazer parou no meio da rua, arrastando os pneus, e os dois homens desceram rapidamente. A casa
estava toda tomada pelo fogo e o delegado viu que dois homens puxavam um corpo ensanguentado pelas
pernas na varanda; um vizinho colocava uma mangueira de jardim por cima do muro lateral e as mulheres
vinham com baldes cheios de água. O calor próximo a casa era quase insuportável. Pedro Palmérius e
Tomé ajudaram os homens com o corpo e o colocaram deitado sobre a grama. PP quase não reconheceu
Christian, que tinha uma máscara de sangue, carne e ossos secada pelo calor do fogo sobre o rosto. Os
anos de experiência ensinaram ao delegado como agir nestes momentos: sua primeira providência foi
colocar a mão direita no pescoço de Christian. Havia pulsação, mas quase imperceptível, assim como a
respiração, que mal movimentava o tórax. Ele percebeu que não havia mais sangramento na cabeça, mas
nos dois pulsos sim, e havia um ferimento no lado direito do abdômen, aparentemente estancado. PP
179
olhou a trilha densa de sangue deixada desde a porta da casa e tomou sua decisão. Tomé tremia, mas
reuniu forças para falar:
 Chamo a ambulância, PP?
 Não; o rapaz tem poucos minutos de vida. Vamos colocá-lo na caminhonete – respondeu o
delegado, no tom exato para transmitir calma e urgência ao subordinado.
Os quatro homens ergueram o corpo inerte de Christian, enquanto PP gritava para o policial na
Blazer:
 Rui: abra a porta traseira e recline os bancos; o professor vai conosco. AGORA!
Uma lona foi usada como colchão; o corpo ficou deitado no meio da camioneta, com os dois
policiais, um de cada lado. Pedro Palmérius bateu a porta traseira, entrou na cabine e arrancou com o
veículo, jogando pedriscos e poeira para todos os lados.
 Agora vocês me escutem bem – falou – cada um pega um braço e segura no ferimento para estancar
o sangue, entenderam?
Rui estava pálido; costumava fotografar e filmar corpos e cadáveres, alguns até mais mutilados que
o do professor, mas sempre havia a barreira confortável da distância e do equipamento. Nunca tinha
colocado as mãos num sujeito em vias de morrer. O olho treinado do delegado não deixou de perceber, e
ele ordenou:
 Tomé: dá um tapa no Rui.
180
 O quê? – estranhou Tomé, que já tinha autocontrole restabelecido.
 Um tapa, senão ele vai desmaiar!
Tomé olhou o colega e pespegou um sonoro tabefe. O rapaz balançou a cabeça e fez sinal que estava
melhor. O delegado já estava falando ao telefone com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – o
SAMU da Bahia – que tinha uma base em Vera Cruz; era sua melhor opção. Informaram que o veículo
estava livre e poderia se deslocar imediatamente; PP agradeceu internamente por a noite estar apenas
começando: o carro do SAMU não parava nas madrugadas de sábado para domingo, recolhendo bêbados
e acidentados. Combinou com o atendente que usariam a rodovia estadual e passou as informações
possíveis sobre o estado do paciente. Enquanto falavam o caminhão dos bombeiros passou por eles, rumo
ao local do incêndio.
Os dois veículos, a viatura policial e a do SAMU, com luzes e sirenes tocando, se encontraram após seis
minutos na rótula que dá acesso ao povoado de Mar Grande; precisavam de um local para estacionar os
carros lado a lado com segurança, e PP não hesitou em subir no canteiro central do cruzamento onde
havia espaço livre para isto; a van do SAMU imitou a viatura policial e, passados sete minutos desde o
resgate de Christian, os veículos estavam parados e com as portas abertas.
Dois paramédicos desceram com uma maca e assumiram o atendimento à vítima; uma onda de alívio
percorreu os dois policiais, que puderam entregar a responsabilidade para especialistas. Em poucos
segundos Christian já estava no interior da unidade do SAMU, um furgão Renault Master modificado
para aquele fim, recebendo os primeiros-socorros.
181
Pedro Palmérius chamou os dois assistentes e ordenou:
 Vocês dois voltem para a Barra do Gil e descubram o que aconteceu; eu vou com o furgão – e
entrou na van, sem cerimônia ou licença.
Os dois policiais se olharam sem entender: PP nunca agira daquela forma, se envolvendo com um
suspeito. Sua atitude natural, naquela situação, seria a de voltar para o local do crime e participar da
investigação – e deixar o ferido aguardando o socorro.
 Talvez ele saiba de alguma coisa que não sabemos – comentou distraidamente Tomé.
 É – respondeu laconicamente Rui –, pode ser.
Subiram na Blazer e começaram a terceira ida daquele dia à Barra do Gil.
 Como ele está? – perguntou um aflito PP, dentro da van em movimento.
 Estamos quase sem pulsação – respondeu um dos jovens.
 Ele perdeu muito sangue – reforçou o outro.
O delegado olhava para a pele de Christian que estava com a cor esbranquiçada dos cadáveres e
sentia um estranho mal-estar. Ele mesmo se surpreendera com a própria atitude: nunca acompanhara uma
vítima para o hospital, muito menos um suspeito de crime. Mas, naquele momento, parecia-lhe que a
coisa mais importante do mundo era salvar aquele rapaz, que já estava recebendo soro, oxigênio e
182
adrenalina.
 Sangue. Ele precisa de sangue – exclamou PP.
 Esta é uma unidade básica, delegado. Não temos plasma disponível.
 Estamos perdendo o rapaz – disse o paramédico que monitorava os sinais vitais.
 Sou “O” negativo – disse PP, referindo-se ao seu tipo sanguíneo e mostrando as veias salientes do
braço direito.
Os rapazes se olharam; mesmo sendo um doador universal, como era vulgarmente conhecido o
sangue tipo “O”, fator Rh negativo, uma transfusão sem um teste prévio de compatibilidade poderia
causar alguma reação adversa. Por outro lado, eles sabiam que o paciente estava morrendo; as massagens
cardíacas não produziam efeito pelo simples fato de a quantidade de sangue no corpo ser pequena. Os
dois fizeram um sinal de positivo com a cabeça e começaram a agir: enquanto um lancetava a veia jugular
no pescoço de Christian com uma agulha de grosso calibre, o outro garroteava o braço direito do delegado
e inseria com precisão um grosso scalp – a agulha com borboleta. Pedro Palmérius sentou-se ao lado da
cabeça do professor e os paramédicos abriram o registro que permitia o fluxo pelo tubo transparente.
 Abra e feche a mão lentamente, delegado – pediu o jovem enquanto retirava o garrote.
O líquido espesso cor de vinho tinto fluiu lentamente entre os dois homens. “Novamente a odiosa
espera”, pensou PP, “não há nada que eu possa fazer a não ser esperar”. Os dois paramédicos continuavam
sua tarefa enquanto Pedro Palmérius observava calmamente tudo acontecer; vários quilômetros se
passaram e o interior claustrofóbico da van sacolejava sem cessar. “Coitado”, pensou, “além de ter levado
bala está recebendo um sangue podre de nicotina como o meu.” PP saiu dos seus devaneios quando
183
percebeu que o furgão estava próximo do hospital.
 O senhor terá que acompanhar a maca até a sala de cirurgia, está bem? – instruiu um dos jovens.
 Segure a borda da maca com as duas mãos e não solte; vamos deixar a transfusão por mais três minutos.
Não se preocupe que estou cronometrando: vamos usar cerca de quatrocentos mililitros de seu sangue,
ok? O senhor está bem? Pode caminhar sem problemas?
O delegado aquiesceu e fez um gesto de positivo reiterando que estava bem. A van parou, as portas
se abriram, todos desceram e acompanharam a maca hospital adentro. O cirurgião, avisado com
antecedência, estava pronto ao lado da mesa de operações com duas enfermeiras e um médico anestesista.
Todos ajudaram a transferir o corpo da maca e, só então, foi retirada a agulha do braço de Pedro
Palmérius; uma enfermeira colocou um pequeno curativo e encaminhou o delegado para uma sala de
espera do hospital, onde ele poderia descansar um pouco. Solícita, ela ofereceu-lhe água e café; só então
PP deu-se conta que estava há mais de uma hora sem fumar – um recorde no seu caso.

Era o início da madrugada de domingo quando quatro adolescentes saíram de uma boate no sul da Ilha
de Itaparica, na localidade de Cacha-pregos, lugar com grande índice de criminalidade relacionada a
drogas, lícitas ou não. Os jovens haviam bebido e estavam usando comprimidos de ecstasy; eram filhos
da classe média alta de famílias tradicionais de Salvador que estavam na ilha para o final de semana. Eles
184
usavam um sedã Citroën C4 prata do pai de um deles. Rodaram por alguns minutos até encontrar o que
procuravam: um mendigo dormia só, sobre papelões, enrolado numa coberta suja, ao lado de um muro
num terreno baldio. Os jovens desceram, cercaram o mendigo e começaram a urinar sobre ele; dois
estavam fumando cigarros convencionais e outro fumava maconha; o quarto rapaz tinha uma lanterna
Maglite 5-cell D preta na mão esquerda. Ele segurava o pênis com a outra mão e urinava diretamente na
cabeça do mendigo. Todos riram quando o homem acordou gemendo e reclamando; havia uma garrafa
vazia de cachaça ao lado dele. Era um morador de rua conhecido em toda a ilha; caminhava de norte a
sul, mendigando comida e dinheiro para a bebida. O jato de urina entrou na boca do homem e os rapazes
gargalharam. O jovem ligou a Mag com o dedo médio e dirigiu o foco aos olhos do mendigo, cegando-o
momentaneamente; o homem esboçou uma reação, colocando a mão na frente do rosto e cuspindo a urina
nos pés do rapaz com a lanterna.
Uma Mag deste modelo é feita para servir como lanterna e como cassetete. É construída a partir de
um corpo metálico rígido, e se torna mais pesada ainda com as pilhas no seu interior. Aquele modelo que
o jovem baiano usava – de cinco pilhas grandes – tinha quase quarenta centímetros de comprimento e
pesava mais de um quilograma. Este tipo de equipamento é usado por várias polícias do mundo, muitas
norte-americanas.
Ele segurava a lanterna da maneira tecnicamente correta, mão agarrando próximo ao bulbo da
lâmpada com o dedo médio no interruptor e o dedo polegar voltado para a outra extremidade, que
descansava sobre o ombro. Quando o mendigo ergueu a cabeça e cuspiu, o braço do rapaz moveu-se em
185
reação, descrevendo um semicírculo no ar. A lanterna atingiu o homem no meio da testa; todos ouviram
o som de ossos se partindo e o sangue brotou instantaneamente por alguns segundos, apenas até o coração
parar de bater.
Os jovens se entreolharam, calados, por uma fração de tempo; e recomeçaram a rir histericamente.
O rapaz que dera o golpe olhava enojado para a lanterna molhada de sangue; outros dois correram para o
carro e retornaram com duas garrafas cheias de etanol – álcool combustível. Empaparam as vestes, o
papelão e os poucos pertences do cadáver, e atearam fogo. Festejaram a grande fogueira que se seguiu
tomando mais um comprimido de ecstasy cada, entraram no carro e seguiram para o norte da ilha, onde
seus pais os esperavam nas respectivas casas de praia.
A cirurgia para a retirada do projétil do abdômen de Christian durou mais de três horas. A bala entrara
logo abaixo da última costela do lado direito, em trajetória ascendente que tinha como destino o coração.
O projétil, no entanto, trespassou o fígado, perfurou o diafragma e alojou-se no pulmão esquerdo.
O outro tiro, que inicialmente causara mais preocupação na equipe, revelou-se o menos danoso em
termos internos. Foi o que causou a maior perda de sangue por ter perfurado os pulsos, mas o projétil não
penetrou o crânio do professor.
O cirurgião encerrou sua parte, deixou a finalização dos trabalhos para outro colega que tinha se
186
juntado ao grupo durante a operação e foi ter com o delegado.
 Doutor Pedro – chamou o médico com suavidade, tocando o ombro do delegado, que cochilava
numa poltrona.
 Como ele está, doutor? – perguntou de pronto, esfregando os olhos marcados por profundas
olheiras.
 Estabilizamos o quadro geral.
 Que significa isso?
 Que ele parou de piorar. Estancamos as hemorragias, extraímos a bala do pulmão, recompusemos
seu sistema circulatório, enfim, os sistemas vitais estão debilitados, mas funcionando.
 Vai viver?
 Ainda não podemos afirmar; as próximas 24 horas serão críticas, mas certamente sua doação de
sangue permitiu que ele chegasse até aqui – afirmou o médico –; sem aquela transfusão, provavelmente
estaríamos encaminhando o corpo para o IML.
Pedro Palmérius estremeceu ao lembrar-se do Instituto Médico Legal de Salvador, que fazia as
autópsias de cadáveres; era o lugar mais horripilante que conhecera e não queria repetir a experiência.
 E o tiro na testa? – inquiriu.  Pensei que aquela bala tinha aberto a cabeça do rapaz.
 Também pensamos – disse o cirurgião sentando-se –, mas a bala não perfurou o crânio. Uma
hipótese é que a mesma bala que perfurou os pulsos seja a que feriu a testa.
 Como assim?
 Se a pessoa, num gesto instintivo de proteção, colocar os braços na frente do rosto, assim – e fez
187
o gesto dos dois antebraços cruzados em xis, com os pulsos sobre a testa – o projétil irá perfurar os dois
pulsos, perdendo força, desviando a trajetória e apenas ferir a testa. Foi o que vimos: havia apenas um
rasgo superficial na testa que causou a hemorragia, pois é região bastante vascularizada, mas sequer
raspou a caixa craniana.
PP baixou a cabeça, tentando imaginar a cena. “Sim”, pensou, “parece lógico: duas balas apenas.
Por que o matador não descarregou a arma no professor?”
 Bem, delegado, se o senhor não tiver mais nenhuma questão, eu vou para casa descansar. Se quiser
vê-lo, ele estará na UTI em poucos minutos.
 Sim, sim, doutor, vá descansar – falou PP levantando-se.  Agradeço sua ajuda.
O médico afastou-se e o celular de Pedro Palmérius tocou; era o plantão da 19ª DP, avisando-o de
um homicídio em Cacha-pregos: um mendigo fora incinerado.
 Ligue para Tomé ou Rui; penso que eles ainda estão próximos, em Barra do Gil. Peça para
verificarem e me mantenha informado – determinou, desligando.
O delegado sentiu fome, mas queria antes ver Christian com seus próprios olhos. Foi até a porta da
Unidade de Tratamento Intensivo, olhou pela janela de vidro transparente e fez um sinal para a
enfermeira, pedindo para entrar. Todos conheciam o delegado na ilha, e seu famoso bigodão não dava
margens para confusões; a mulher chamou-o e fez sinal para que mantivesse silêncio. O aspecto do rapaz
estava muito melhor, o que animou PP. A palidez sepulcral havia desaparecido e ele estava limpo; mas
tinha tubos, cateteres e sensores por todo o corpo. Olhou para o pequeno monitor que mostrava os sinais
188
vitais: tudo parecia normal, ao seu olhar de leigo. Percebeu que nada tinha a fazer ali, agradeceu à
enfermeira e retirou-se da sala.
Seu estômago reclamou mais uma vez e ele lembrou-se de uma lanchonete próxima que poderia
estar aberta. Pedro Palmérius ganhou a rua e recebeu a aragem fresca no rosto. Nada se movia àquela
hora da madrugada naquelas redondezas. Apenas o hospital, com seu movimento esporádico de
acompanhantes de doentes, familiares e plantonistas gerava alguma demanda de serviços externos.
Enquanto acendia um cigarro, seu olhar fez uma varredura de 360°; força do hábito: gostava de estar
alerta a tudo em sua volta. Havia movimentação discreta no ponto de táxi, que ficava na rua lateral do
hospital, e na lanchonete, no outro lado da rua. PP caminhou vagarosamente, desfrutando daquela paz
ainda intocada pela movimentação matinal.
O lugar era pequeno e aconchegante. Não era ponto de alcoólatras ou jogadores de bilhar, o que
tornava o ambiente mais agradável. Um homem com um avental branco lavava alguma coisa atrás do
balcão de fórmica bege; o rádio estava sintonizado em algum programa local, aqueles onde as pessoas
ligam para a estação, contam sua vida ao locutor e pedem uma música. A voz cristalina anunciava que a
próxima canção seria uma música da banda U2, “Moment of Surrender”. PP sentou-se numa mesa
localizada no canto oposto ao balcão, de onde podia ter uma visão completa do ambiente e das portas de
entrada, e pediu café com leite e um misto quente. A música suave e penetrante dos irlandeses fez Pedro
Palmérius relaxar e ter uma agradável sensação tomando conta de si, como se o calejado policial vivesse
um momento de rendição ao bem, ao amor e à verdade.
Foi então que o estranho entrou na lanchonete.
189
Era um homem alto, na casa dos 45 anos de idade, corpo bem proporcionado, cabelos negros e
longos; o rosto emanava bondade e alegria. Ele não usava barba ou bigode, e parecia ter-se barbeado no
minuto anterior, tal a lisura da pele. Chamou à atenção do delegado a beleza indefinível do estranho,
quase andrógina. Um rosto belo e harmônico, masculino no geral – mas sem exageros , e feminino nos
detalhes.
O estranho sorriu para o homem no balcão e caminhou diretamente para a mesa de PP, fato que
normalmente o colocaria em alerta, mas, naquela situação específica não despertou nenhum alarme.
 Bom dia, delegado – saudou o estranho –, posso lhe fazer companhia?
Pedro Palmérius simplesmente estendeu a mão com a palma para cima, apontando a cadeira em
frente à sua; o estranho sentou-se, agradecendo. O homem trouxe o pedido e perguntou se o outro queria
alguma coisa: “Apenas café, preto e puro, obrigado.” – respondeu.
 Posso ajudar em alguma coisa? – perguntou PP, olhando-o diretamente.
Pedro Palmérius nunca tinha visto olhos como aqueles do estranho. A começar pela cor, que não
conseguia definir; pareciam de um violeta suave, mas com pigmentos de prata – coloração totalmente
nova para o delegado. Eles não eram nem claros, nem escuros – tinham uma gradação que parecia alterar-
se a todo o instante. E por mais que se esforçasse, não conseguia ter nenhuma leitura intuitiva daquele
estranho que, como se percebesse o esforço do delegado, sorriu amavelmente e respondeu à pergunta:
 Sim, doutor Pedro, pode. Estou aqui para falar sobre Christian.
190
À menção do nome do professor, o delegado retesou o corpo: poucos sabiam da sua presença no
hospital. Havia poucas horas estavam ali e um estranho já o procurava para falar sobre ele.
 Fique tranquilo, delegado, apenas quero o bem de Christian, como o senhor.
 Quem é você?
 Meu nome é José.
 José de quê?
O estranho levou um átimo para responder.
 José de Miraetiaa. Christian é meu irmão, delegado, e estou aqui para protegê-lo.
PP remexeu-se na cadeira; o nome era claramente um embuste e não tinha conhecimento de um
irmão na família.
 Protegê-lo de quê? De quem? – quis saber o delegado.
 Dos que o querem matar.
 Sabe quem são?
 Nós dois sabemos, não é mesmo, delegado?
 Não, eu não sei. Por que não me diz...José?
 São os verdadeiros donos desta ilha, os chefes religiosos, políticos, econômicos e sociais. Aqueles
que se sentiram atingidos pelo que Christian ensinava.
PP silenciou. Enquanto o estranho falava, a imagem de cada um dos próceres de Itaparica passava
em sua cabeça, o maçom Sérgio Kroeff, o católico Mauro Trevisiani, o político Valter Quintanilha, o
rotariano Agenor Barbacena, tantos outros... “Os cardeais de Itaparica”, pensou.
191
 Sim – disse o estranho – em qualquer parte do mundo são sempre os mesmos culpados: aqueles
que não querem que a verdade prevaleça, que mudanças aconteçam e que os homens despertem e
evoluam.
 Você tem provas disto?
 Não estou aqui para julgar ou prender alguém, doutor Pedro, até porque o seu sistema judiciário
legal não está preparado para punir os que mandam, apenas os que obedecem. Estou aqui para resgatar
Christian.
 Ele pode estar morto neste momento. O médico falou...
 Christian está se recuperando e sobreviverá – afirmou categoricamente o estranho.  Mas poderá
não suportar um novo atentado: assim que a notícia de sua sobrevida se espalhar, eles tentarão novamente.
Pedro Palmérius sabia que o estranho tinha razão; e para piorar, avaliava, havia o fato de que o
professor era suspeito de pedofilia, entre outras coisas.
 O senhor tem alguma dúvida da inocência de meu irmão, doutor Pedro? – perguntou o estranho.
PP olhou surpreso para seu interlocutor, que encaixava as perguntas de acordo com o raciocínio do
delegado.
 Eu... Bem, eu sempre tive certeza de que estavam armando alguma para o professor, mas nunca
tive indícios concretos ou suspeitos disto. Todas as evidências que apareceram foram contra Christian.
 Compreendo – disse o estranho calmamente.  Falar-lhe sobre Christian seria uma perda de tempo,
já que somos irmãos e sou parte diretamente interessada no caso. O que posso afirmar-lhe é que sua
intuição sobre os acontecimentos até agora é muito precisa e correta.
192
Pedro Palmérius, por mais que se esforçasse, não conseguia decifrar o estranho. Se fosse qualquer
outro, PP já teria arrancado – com lábia e intuição – todas as informações que quisesse. O estranho era
impenetrável e novamente o surpreendeu com o que disse:
 Esta proteção é necessária, doutor Pedro. O senhor tem certo grau de clarividência, que é ótimo
em sua profissão, mas exige que eu tome esta precaução.
 Quem é você? Realmente!, sem esta conversa de José de ...
 Miraetiaa. Perdoe-me se pareço suspeito ou arrogante ao adotar um nome terrestre; é necessário.
Como lhe falei, eu e Christian somos irmãos e viemos do mesmo lugar. Minha tarefa agora é protegê-lo,
e para isto preciso de sua ajuda, delegado.
 De onde vocês são?
 O senhor assistiu alguma Instrução de Christian, doutor Pedro?
 Não, confesso que não. Sei de ouvir falar alguma coisa, gente que foi e me contou...
 Nós viemos de um lugar chamado Plêiades, com uma missão de auxílio a este planeta. Somos
seguidores da Luz e da Lei maior, o senhor já pressentiu isto, e Christian é peça fundamental na tarefa
que temos pela frente.
Pedro Palmérius estava imóvel, ereto na cadeira dura e desconfortável da lanchonete: acabara de
ouvir que estava tomando café com um extraterrestre; nada mais, nada menos. E o mais esquisito naquilo
tudo é que, por mais que a mente racional de PP reagisse violentamente, ele sabia que era verdade – podia
sentir a sinceridade do estranho no núcleo mais íntimo de seu ser. Só então ele percebeu que o café e o
misto quente esfriavam diante de si; PP pegou um em cada mão e disse:
193
 Como posso ajudá-los?
 Christian precisa morrer – não de fato, mas legalmente.
 Como assim? – perguntou enquanto mastigava.
 Ele será caçado se sobreviver, mesmo que saia desta ilha. As forças que se uniram para eliminá-lo
têm tentáculos em todo o país. Ele precisa ser legalmente morto – e as pessoas precisam saber que o
atentado à sua vida foi bem-sucedido. É a única forma de Christian poder seguir em frente com sua
missão.
 Mas... Mas como... – balbuciou PP tentando pensar claramente sobre o caso.
O delegado percebeu que as muitas horas acordado, a agitação e a adrenalina cobravam seu preço: a
mente já não tinha a mesma agilidade e clareza.
 O primeiro passo é retirar Christian do hospital com urgência. Vamos removê-lo com o argumento
de transferi-lo para um hospital mais bem aparelhado e seguro na capital. Parece-lhe crível, doutor Pedro?
 Sim, sim, seria um procedimento de rotina...
 O senhor poderia pedir uma embarcação apropriada para a Marinha ou para o Corpo de Bombeiros,
não?
 Sim, já fizemos isto antes... Mas...
 O senhor embarcaria um corpo para Salvador, que daria a entrada no IML como provável cadáver
de Christian Joaquim de Assis. Tudo bem até aqui?
 Não, não está tudo bem! – disse PP.  Esta manobra vai deixar uma série de lacunas. A equipe
médica, por exemplo, eles sabem que Christian vai sair do hospital vivo. Como vou chegar com um
194
cadáver em Salvador?
 Os médicos serão informados que o paciente veio a óbito durante o transporte; a tripulação já
receberá um corpo sem vida, assim como a equipe do IML; não terão questionamentos, portanto.
 Sim, sim, mas você não acha que está faltando um pequeno detalhe? – irritou-se PP.  O cadáver!
Onde vamos achar um cadáver com as características pelo menos aproximadas de Christian?
O locutor no rádio anunciava uma balada sertaneja de Chitãozinho e Xororó, o que deixava o homem
no balcão alheio ao diálogo.
 Houve, há questão de poucas horas, um assassinato no sul da ilha: um mendigo foi queimado. Seu
corpo pode ser útil para nosso intento.
O delegado calou-se novamente, olhando o estranho do outro lado da mesa. “Como ele sabia da
ocorrência em Cacha-pregos?” – perguntou-se o policial. As desconfianças voltaram a rondar os
pensamentos de PP. “O mendigo incinerado se encaixava perfeitamente naqueles planos... Muito
conveniente”.
 Compreendo sua hesitação, doutor Pedro. Por um lado estou pedindo para o senhor infringir a lei
terrena; por outro, sabemos que Christian não sobreviverá muito tempo se seguirmos os trâmites legais.
De qualquer forma a pessoa que foi assassinada – o andarilho conhecido como “Sorriso”, nome de registro
Afonso Carlos Almeida – provavelmente gostaria de saber que seu corpo serviu para uma finalidade
nobre.
 Como você já sabe o nome da vítima?
195
 Nossa civilização está alguns passos à frente desta humanidade; temos algumas habilidades que
vocês conquistarão num futuro próximo.
 Ler pensamentos...
O estranho fechou e abriu os olhos lentamente, numa concordância muda, e continuou falando
pacientemente sobre a retirada de Christian.
 O senhor verá, delegado, que a falsa morte de meu irmão irá ajudar a esclarecer algumas coisas
em relação a este episódio de Barra do Gil.
 Eu acredito, mas um ponto falho permanece.
 Qual?
 O assassinato do Sorriso desaparece, bem como os responsáveis. Não seria correto, infringiria
nossas leis e poderia repetir-se com outro morador de rua.
O estranho pareceu avaliar por alguns instantes e disse:
 Sim, tem razão, delegado.
Ele levantou-se, pediu papel e caneta para o homem no balcão e sentou-se novamente; escreveu algo
que PP não conseguia identificar à distância. Demorou pouco mais de um minuto e o estranho entregou
o bilhete a Pedro Palmérius. Estava escrito:
Madrugada de 16 para 17
13°03'29.63"S
38°42'40.53"O
196
 Que é isto? – perguntou PP.
 É quando e onde este mesmo grupo vai repetir o crime.
 Você consegue ver o futuro?
 Não exatamente; alguns eventos estão definidos, mas podem ser alterados pela ação humana. Este
outro morador de rua, por exemplo: sua hora chegou, não há mais possibilidade de evolução e sua etapa
com este corpo físico tem de terminar. Trata-se de uma escolha: se você não fizer nada, eles o cremarão
vivo no próximo dia 17; se, ao contrário, você montar uma tocaia e prendê-los, o mendigo só terá ganhado
uma pequena sobrevida. Alguns dias mais e ele terá sua etapa na matéria finalizada de outra forma, menos
sofrida com certeza.
 Não fará sentido, então – raciocinou o delegado –: não poderei prendê-los porque não realizaram
o crime, e não posso esperar que o machuquem para intervir. E não adiantará nada tê-lo salvado, pois
morrerá em seguida.
 A sobrevida do mendigo será um serviço que estará prestando à comunidade, ajudando a retirar de
circulação um bando de assassinos; será bom para ele, contará na sua evolução. A sua interveniência
salvará a vida dele, mesmo que por poucos dias, e dará a possibilidade de reunir evidências que conectem
o grupo ao assassinato de Sorriso. A arma ainda estará no carro, com material biológico do mendigo –
sangue que não foi limpo com cuidado.
 Voltamos ao problema dos corpos no IML: não posso descartar o corpo do mendigo, pois precisarei
dele para checar com o que eu encontrar no carro.
197
 Você dará entrada no IML de um corpo calcinado, suspeito de ser Christian Joaquim de Assis –
que teve sua casa incendiada; isto será noticiado e não desmentido, dando-nos tempo para nos afastar
daqui sem problemas. Com a análise da arcada dentária se chegará ao nome de Afonso Carlos Almeida –
o Sorriso – e aí terá sua prova.
 Aí o corpo que falta será o de Christian – concluiu PP.
 Sim, correto. Neste ponto valerá o seu testemunho, o de seus assistentes e do pessoal do barco.
Todos se recordarão que embarcaram um homem já morto, numa sacola funerária. A conclusão, no final,
será a de que alguém extraviou um corpo ou vendeu-o para estudo; você sabe que isto acontece com
frequência: corpos de mendigos são vendidos para laboratórios, escolas e universidades por funcionários
corruptos. Esta será uma dedução lógica, em dois casos que ninguém terá interesse em remexer. Cairão
no esquecimento.
Pedro Palmérius avaliava as chances de aquilo dar certo. O estranho tinha razão e desaparecimento
de corpos era mais comum do que se imaginava. E quanto ao fazer justiça, ninguém reclamaria a não-
solução de dois crimes daquela natureza: o assassinato de um mendigo e de um filósofo suspeito, ambos
sem familiares, amigos ou admiradores. Além disso, pensou acidamente PP, “Mendigos e filósofos são
mais apreciados depois de mortos”.
 E posso lhe garantir – continuou o estranho – que a tarefa de Christian está encerrada neste lugar.
Ele não aparecerá mais por aqui e os mentores do atentado acreditarão a missão como cumprida.
 Eu acredito em você – rendeu-se PP – não sei muito bem o motivo, mas confio em você como
198
confiava que aquele rapaz não era culpado de nada.
 Agradeço, delegado.
Pedro Palmérius olhou novamente para o papel e perguntou:
 No próximo dia dezessete de madrugada, certo? E estas são as coordenadas geográficas do local
do próximo crime, correto?
 Sim. Existe um terreno baldio ao lado de uma pousada; um sem-teto se abriga ali algumas vezes.
Eles tentarão repetir, mas estou certo que desta vez não serão bem-sucedidos – ponderou com um sorriso
bondoso no rosto.
 Vamos lá, meu amigo das estrelas – vitalizou-se o delegado, como se tivesse acabado de acordar
para mais uma diligência –, temos trabalho pela frente.
E aconteceu como o planejado: duas horas depois, com as primeiras luzes do domingo, uma
embarcação do Corpo de Bombeiros recebeu de Tomé e Rui um corpo destinado ao IML de Salvador –
o cadáver de Sorriso. O instituto recebeu instruções do delegado Pedro Palmérius informando que naquele
dia daria a entrada um cadáver não-identificado com queimaduras generalizadas, supostamente de
Christian Joaquim de Assis. Os hospitais – de Vera Cruz e de Salvador – foram informados de que o
paciente não resistiu e faleceu durante a transferência, sendo encaminhado diretamente para o IML. PP
comunicou a seus policiais de que outra embarcação havia levado Christian durante a madrugada, que ele
não resistiu aos ferimentos e veio a óbito. O jornalista Lédio, da “Voz de Itaparica” foi informado destas
versões dos dois crimes, e que os corpos já estavam no Instituto Médico Legal da capital; a emissora de
rádio local também recebeu o mesmo boletim policial. Todas as pessoas envolvidas queriam descansar e
199
aproveitar aquele domingo; ninguém questionou ou preocupou-se em checar as informações da 19ª DP.
O almoço daquele domingo seria de comemoração em várias famílias da sociedade ilhoa.

Pedro Palmérius realizou pessoalmente o trâmite para retirar Christian do hospital de Vera Cruz. Assim
que tudo foi resolvido, perguntou sobre Oscar, que continuava internado sob observação. Com as últimas
energias que lhe restavam, foi vê-lo no quarto.
O policial Oscar Tiesi estava cochilando na cama, com o televisor ligado; sua esposa fazia alguma
peça de cobertura de mesa em crochê, sentada numa cadeira ao lado do marido. Ela ergueu os olhos e
sorriu ao ver o delegado entrar; ele era bem quisto pelas famílias dos policiais, que viam nele um chefe
justo e correto.
 Como ele está? – perguntou o delegado depois de cumprimentá-la.
 Bem melhor, doutor. A lavagem estomacal foi feita com rapidez e livrou-o de algo pior.
 Pior?
 Sim. O médico diz que ele morreria se não fosse trazido para cá naquele momento...
 E o que aconteceu? Ele tomou os comprimidos acidentalmente?
A mulher baixou a cabeça e PP viu uma lágrima cair no centro de mesa rendado.
200
 Que aconteceu, Rute?
 Eles dizem que foi tentativa de suicídio. Pela grande quantidade que encontraram... Dizem que
seria impossível um engano assim.
 Sei... E você já conversou com ele?
 Ele não fala comigo sobre este assunto, doutor – disse a mulher com a face marcada por pequenos
córregos de lágrimas.
Os dois olharam para a cama e perceberam que Oscar estava acordado, prestando atenção na
conversa. Sua fisionomia era neutra, como se estivesse indiferente ao que estava acontecendo.
 Rute, querida, você pode nos dar licença – pediu com a voz apagada.
A mulher saiu sem pronunciar palavra, tentando recompor-se. Pedro Palmérius não era de delongas:
encarou o subordinado pupila com pupila e disparou:
 Por que você tentou se matar, Oscar?
O veterano virou o rosto para o lado, sem forças para sustentar o olhar penetrante do chefe. Sua
resposta saiu como um fio que está para se romper:
 Não sei... Problemas meus... Não precisa se preocupar, delegado.
 Tem relação com a diligência de ontem de manhã? Tem a ver com Christian Assis? – perguntou
com o que lhe restava de voz.
 Como ele está? – quis saber o outro.
Pedro Palmérius rodeou a cama; queria ver a expressão facial de Oscar.
201
 Está morto, Oscar, está morto. Levou dois balaços e botaram fogo na casa, ontem à noite. O corpo
já está no IML a estas horas – falou lentamente, saboreando as palavras e seus efeitos.
O semblante de Oscar paralisou; seu olhar perdeu-se num ponto qualquer da parede branca do quarto.
Primeiro uma lágrima correu do olho esquerdo, passou pelo nariz e juntou-se a outra lágrima do olho
direito; uma mancha de umidade começou a formar-se no travesseiro e Oscar gritou como se sua essência
estivesse sendo arrancada. Um grito de dor e culpa indefiníveis que assustou o próprio delegado. Uma
enfermeira entrou correndo no quarto, seguida pela esposa do policial.
PP percebeu que nada tinha mais a fazer ali, virou-se e caminhou para a porta de saída. Ainda no
corredor, ouvia o choro convulsivo e os lamentos de Oscar:
 Eu não sabia, eu não queria...
Três dias depois de ter alta hospitalar, Oscar colocou trinta mil reais e uma carta num envelope endereçado
a Pedro Palmérius e enforcou-se na garagem de sua casa. A carta, entre pedidos de perdão e despedidas,
contava sobre sua participação no caso de Christian e dava o nome de quem o havia pago para isto.

A operação de tocaia iniciou à zero hora do dia dezessete, com os policiais escondidos dentro da Pousada
Dhazartes, uma pequena hospedagem entre a rodovia e a praia de Acapulco. A gerência da pousada
202
concordara em não receber hóspedes naquela noite específica, e as luzes estavam todas apagadas. O
mendigo dormia próximo às árvores, a cerca de cinquenta metros de distância dos policiais, protegido por
uma pequena lona de plástico preta quando o Citroën prata estacionou silenciosamente no terreno baldio.
Os quatro rapazes desceram, sem se preocupar com o barulho: riam e conversavam à vontade, confiantes
no anonimato que a escuridão lhes proporcionava e na coragem inflada pelo álcool e pelas drogas. Um
deles tinha uma lanterna, que iluminava o caminho e o mendigo; os outros carregavam garrafas. Eles
cercaram o sem-teto, que se cobria totalmente com um cobertor fétido e sujo, e começaram a urinar sobre
ele. Como ele não reagiu, o rapaz com a lanterna-cassetete começou a bater: uma, duas, várias vezes. Não
houve reação e os outros esvaziaram as garrafas sobre o mendigo. O rapaz da lanterna, que fumava um
cigarro Gudang Garan, acendeu um graveto com o isqueiro e jogou sobre o cobertor. Uma pequena
explosão, quase sem som, foi a gênese de uma grande fogueira; as chamas se ergueram a mais de dois
metros do solo, iluminando a vegetação em torno. Não havia movimento no centro das chamas e as risadas
foram cessando aos poucos.
Só então um dos rapazes virou-se e olhou para o carro. Ele viu dois homens: um era jovem,
empunhava uma filmadora ligada e estava em pé ao lado do C4; o outro, um homem maduro com um
grande bigode que lhe encobria toda a boca, estava sentado no capô, observando calmamente a cena. O
rapaz avisou os outros companheiros, que um a um foram se virando; um silêncio sepulcral caiu sobre a
noite de Itaparica. Três outros policiais, até então ocultos entre as árvores próximas aproximaram-se da
fogueira por trás dos quatro rapazes; o mendigo assustado, carregando uma mochila velha com todos os
seus pertences veio caminhando com eles, impressionado com o que vira. Os quatro rapazes olharam em
203
volta enquanto o círculo se fechava; as labaredas iluminaram o rosto queimado de sol do sem-teto, que
os olhava através das chamas.
Eles baixaram os olhos vendo o fogo consumir papelão, plástico, cobertor e um manequim masculino
que o delegado conseguira com uma amiga de uma loja de roupas.
Sem saber, cada um via seu próprio futuro se transformar em cinzas naquele momento.
O estranho tomou a direção sul até entrar na BA-001, rodovia estadual que o levaria para o continente,
saindo da Ilha de Itaparica. Entrou na estrada para Nazaré e dirigiu com segurança dentro das exigências
de trânsito daquele trecho. Não queria chamar a atenção e manteve-se na velocidade limite. Eram
9h20min da manhã daquele domingo insólito e já estava na altura do município de Nazaré; não fez parada
alguma: estava com o veículo abastecido, tinha comida e água consigo. Afastava-se rapidamente de
Itaparica, e logo entrou na rodovia federal BR-116, que o levaria até seu destino final naquele dia. Ele
queria sair da Bahia o mais rápido possível e traçou no GPS do veículo um roteiro até a cidade de Teófilo
204
Otoni, no estado de Minas Gerais. O aparelho projetava dez horas de viagem e o estranho preparou-se
para aquela jornada na deficiente rodovia brasileira.
Eles viajavam num motorhome Scheid Mercedes Benz, com capacidade para oito pessoas. O veículo,
apesar de ser de segunda mão, estava totalmente revisado e com todos os sistemas operando dentro da
normalidade. Christian repousava na grande cama de casal, amarrado por cintas que não permitiam que
seu corpo se movimentasse com os solavancos e curvas que a estrada proporcionava. Preso ao fundo do
armário suspenso estava a bolsa com soro e medicação, que mantinha o organismo alimentado, protegido
de infecções e livre de dores. Um monitor portátil de sinais vitais centralizava numa pequena tela os
valores relativos a batimentos cardíacos, frequência respiratória, temperatura corporal e pressão arterial.
Um alarme sonoro avisaria se algum parâmetro saísse dos valores esperados. Mesmo assim, o estranho
fazia paradas em postos de venda de combustíveis a cada hora e meia ou duas horas, para checar
pessoalmente o estado de seu passageiro, trocar a bolsa de soro e ministrar alguma medicação.
O dia ensolarado e de trânsito ameno contribuiu para que a viagem fosse produtiva e, às oito horas
da noite, o motorhome já atravessava Teófilo Otoni pela BR-116. O estranho escolheu um grande posto
na marginal direita da própria rodovia; tinha toda estrutura que precisava e não necessitaria de
restaurantes, banheiros ou hotéis durante a viagem. Dependeria dos postos apenas para a descarga dos
dejetos e o abastecimento de combustível, além do local de parada para o descanso noturno. O pleiadiano
estava em corpo físico no planeta Terra, e deveria adaptar-se às limitações daquele ambiente; apesar de
ter uma resistência acima dos corpos humanos normais algumas horas de repouso físico seriam
necessárias.
205
Ele manobrou habilmente entre os caminhões que já se aglomeravam para passar a noite; estacionou
ao lado da bomba de óleo diesel, desceu do veículo e pediu aos frentistas para que abastecessem e
limpassem os vidros dianteiros. O estranho permaneceu ao lado do motorhome enquanto realizavam os
serviços; o quarto de Christian estava com as cortinas totalmente fechadas para não despertar qualquer
curiosidade. O estranho pagou em dinheiro a um dos frentistas e levou o veículo até uma vaga onde
passariam a noite; conectou o plugue de energia elétrica na tomada externa do posto, completou o
reservatório com água potável, trancou as portas e janelas e tomou um banho.
Christian permanecia sedado, condição necessária para aquela etapa pós-trauma e cirurgia. O
estranho verificou os sinais vitais usando as próprias mãos; vasculhou todo o corpo físico de Christian,
coisa que não tivera oportunidade de fazer ainda. Retirou os curativos da testa, dos pulsos e do abdômen;
todos estavam em bom estado para apenas 24 horas do ocorrido. A boa condição física e o vigor corporal
ajudavam bastante, mas não seriam suficientes para atender ao cronograma do estranho, que planejava
chegar ao destino final em apenas 48 horas mais – duas noites e eles teriam de separar-se novamente. Ele
tirou do bolso uma pequena saca de tecido sintético; abriu-a e retirou uma pedra de cristal translúcido,
semelhante ao quartzo terrestre; a pedra era do tamanho de um ovo de galinha pequeno e tinha o formato
de uma bola, um globo com pequenas irregularidades. Ele colocou o globo sobre o ferimento do pulso
esquerdo e começou a girar suavemente, como se fizesse uma massagem. Uma fina película transparente
começou a formar-se sobre a lesão; o cristal parecia derreter-se em contato com a pele e a carne
danificadas. O estranho fez o procedimento por cerca de dois minutos naquele pulso e depois o repetiu
nas demais lesões. Ele não recolocou curativos novos, simplesmente cobriu Christian com o lençol e a
206
coberta para protegê-lo do frio noturno.
Ele, então, pegou na cozinha do veículo um copo de vidro comum e esterilizou-o com álcool
hospitalar; enquanto o copo secava, retirou vinte mililitros de soro fisiológico usando uma seringa
descartável. Verificou se o copo estava seco, colocou o globo de cristal dentro e derramou lentamente o
soro sobre ela. Agitou lentamente a esfera cristalina com o líquido até dar-se por satisfeito; recolheu todo
o líquido novamente na seringa e injetou-o diretamente na veia de Christian. Guardou o cristal
cuidadosamente e organizou os materiais usados. Apagou as luzes e fechou parcialmente a porta do
quarto, deixando uma abertura para contingências.
O estranho fez uma refeição ligeira, à base de salada de tomate, castanha, amendoim e arroz integral,
preparou uma das camas de solteiro e deitou-se para repousar.
O ruído dos veículos na BR-116 não cessa nunca, apenas diminuem de intensidade na madrugada.
O pleiadiano filtrou aquele som indesejável e entregou-se aos trabalhos do Mundo Imaterial.

As trevas da noite ainda dominavam quando o Scheid prateado manobrou no pátio do posto e virou à
direita na rodovia federal BR-116, direção sul – ela seria o caminho por poucas horas mais. O enorme
veículo mostrava-se de excelente dirigibilidade, apesar de peso e porte avantajados. O estranho tivera
alguma dificuldade inicial para adaptar-se aos rudimentares comandos, mas agora já desfrutava daquela
207
experiência insólita – havia muito não pilotava um veículo terrestre.
A rodovia começava a mostrar seus primeiros usuários, os caminhões de carga, quando a luz solar
começou a iluminar aquela longitude do globo terrestre. Estavam em Governador Valadares, ainda no
estado mineiro; o GPS indicava uma mudança de rodovias e o estranho seguiu a recomendação: converteu
à direita para entrar na BR-381 – a conhecida Fernão Dias.
Quando já deixavam a zona urbana, o estranho parou o motorhome num acostamento amplo à direita
da pista, próximo a algumas árvores que proviam sombra; mesmo assim deixou o motor ligado para que
o sistema de ar condicionado mantivesse a temperatura agradável. Verificou visualmente o em torno, que
pareceu-lhe seguro. Foi para o quarto onde seu passageiro repousava. Abriu as cortinas e duas janelas que
estavam voltadas para as árvores; o ar fresco circulou revigorante no pequeno aposento, assim como a
luz do sol, que parecia purificar cada canto escondido com sua radiação.
Christian permanecia dormindo, apesar da interrupção do sedativo na noite anterior. O estranho
desatou as amarras que o prendiam na cama e verificou as lesões: todas haviam cicatrizado
completamente e a região dos ferimentos estava apenas levemente avermelhada. Ele sorriu e começou a
tirar os pontos cirúrgicos dos pulsos e do abdômen; retirou os sensores do monitor e a agulha que estava
fixada na veia do braço direito desde o hospital de Vera Cruz. Limpou as secreções corporais com algodão
e álcool, e recolheu os materiais e equipamentos – que já não teriam mais utilidade.
Christian não acordou naquele tempo todo. O estranho ergueu delicadamente com a mão esquerda a
cabeça do sonolento passageiro e, com o dedo médio da mão direita pressionou um ponto específico na
208
nuca. Os olhos de Christian abriram-se de imediato e ele pousou sua cabeça novamente no travesseiro.
O rapaz piscou algumas vezes e umedeceu os lábios com saliva, tentando ordenar os pensamentos,
e quase gritou:
 Kuius!
Os pleiadianos sorriram alegres com o reencontro – agora no Mundo Material.
 Como vai, meu querido irmão? – saudou Kuius.
 Eu... eu... não sei ao certo... – disse Christian, olhando para seus braços e apalpando-se.  Estou
inteiro? – perguntou em tom de galhofa.
 Sim, está. Você foi ferido aqui – apontou Kuius –, aqui e aqui.
Christian deteve-se alguns instantes olhando os pulsos marcados e o corte no abdômen; virou-se para
trás e olhou sua fronte no grande espelho do quarto. Parecia buscar na memória física o registro mais
recente possível.
 Sim, lembro. Abri a porta e um sujeito estava lá com uma arma... E ele atirou!
 E esta bala perfurou seus pulsos e feriu levemente sua testa.
 E este corte? – questionou apontando o flanco direito do abdômen.  Ele me esfaqueou?
 Não, ele atirou novamente; a bala entrou, mas não saiu e os médicos tiveram de cortar mais para
fazer a extração.
Christian apalpava a cicatriz cada vez com mais força, experimentando o nível de dor: praticamente
não sentia.
209
 Que dia é hoje, Kuius? Onde estamos?
 Estamos dentro de um veículo que os humanos chamam motorhome, na manhã de segunda-feira,
passando por um lugar chamado Governador Valadares.
 Minas Gerais... Mas... Eu fui baleado num sábado à noite... Em Barra do Gil... Fiquei mais de uma
semana convalescendo?
 O atentado aconteceu 36 horas atrás, Christian, mas esta é uma história que vou lhe contar durante
a viagem. Não podemos ficar muito tempo parados aqui. Façamos o seguinte: você já pode movimentar-
se sem problemas, os seus ferimentos internos já estão cicatrizados também. Você deve estar com sede e
fome, não?
 Muuuito! – respondeu com alegria.
 Ali está sua mochila – apontou Kuius para a bagagem de emergência que o companheiro preparara
na noite do atentado.  Cortesia do nosso amigo delegado; está um pouco ensanguentada por fora, mas
intacta e limpa por dentro. Tome água à vontade, coma e faça sua higiene. Depois sente-se ao meu lado
para conversarmos: temos muita estrada pela frente e muito que falar.
Olharam-se fraternalmente por alguns instantes e Kuius deixou-o só, dirigindo-se para a poltrona do
motorista. Verificou visualmente os indicadores do veículo, soltou o freio de estacionamento e acelerou
fundo, fazendo o poderoso motor Mercedes de 238 cavalos roncar alto.
Não lhe agradava fazer uma viagem com tanto desperdício de energia e liberação de gases tóxicos
na atmosfera, mas não havia alternativas na indústria terrestre. Kuius resignou-se com o fato e fez a frente
em forma de cunha do Scheid sibilar com o atrito aerodinâmico.
210

As primeiras duas horas de conversa foram para atualizar Christian dos acontecimentos nas horas
anteriores: Kuius discorreu sobre o atentado, sobre Pedro Palmérius, sobre os arranjos para seu
desaparecimento, enfim, sobre tudo que acontecera após o primeiro tiro desferido pelo líder da equipe de
matadores. Falaram sobre o período em que Christian esteve ministrando as instruções ao povo de
Itaparica, as impressões e o desfecho de tudo. Quando os dois pleiadianos esgotaram o assunto, Christian
percebeu que estava conversando com Kuius como se estivessem na nave no Mundo Imaterial; agora,
porém, estavam num motorhome, no Mundo Material, viajando por uma rodovia brasileira.
 E você, Kuius, como chegou à matéria? Como arranjou este corpo?
O companheiro sorriu. Imaginara que a curiosidade colocaria esta questão nas primeiras conversas
do dia, mas até que demorara.
 Trouxemos o corpo do Complexo Pleiadiano. Há muito não usávamos este expediente, pois
consome muita energia: implica em deslocar uma nave física até aqui. Mas foi necessário nesta situação;
precisávamos de alguém no Mundo Material para realizar este resgate físico, isto que estamos fazendo
agora.
 Você está usando um clone pleiadiano... – raciocinou Christian.  Isto significa que sua estada
211
aqui será breve.
 Sim, este corpo foi gerado com um código genético ainda desconhecido e inexistente no Quarto
Globo. Não podemos correr o risco de que ele caia nas mãos dos humanos neste momento.
Christian sabia que ele tinha razão: uma pequena quantidade de resíduo de saliva ou um fio de cabelo
do corpo que Kuius utilizava seria suficiente para os laboratórios terrestres identificarem um genoma
totalmente diverso do humano, mais avançado e com características que poderiam dar muito poder a
quem o detivesse. Aquilo não seria admissível e significaria uma interferência brutal na evolução da
humanidade terrestre. Um pensamento fugaz – a iminente separação do irmão querido – retirou o sorriso
do rosto de Christian.
 Quanto tempo mais?
 Quarenta horas, o suficiente para falarmos sobre os detalhes da tarefa que você tem pela frente.
 Bem, só nos resta aproveitá-las intensamente.
 Sim – disse Kuius com um sorriso no rosto.
 Vamos falar sobre minha tarefa?
 Ótimo! Existe uma lista de irmãos pleiadianos que ainda não lhe mostrei – disse Kuius, enquanto
ultrapassava um ônibus numa grande reta da estrada.  Por favor, pegue o computador que está na minha
mochila preta.
Christian retornou com um pequeno notebook com tela de onze polegadas e alguns acessórios. Kuius
começou a orientá-lo:
 As coisas ainda são um pouco rudimentares por aqui... Conecte o alimentador na tomada do painel
212
do motorhome. Isso... Agora a antena externa para acesso à rede de computadores do Quarto Globo.
 Internet – disse Christian automaticamente.  Este cabo?
 Sim, naquele conector azul ao lado do de energia. Você terá duas possibilidades de acesso sem fio:
satélite e telefonia móvel. O sistema do computador já está configurado para conectar-se na melhor opção
disponível.
 A que estiver com a melhor banda para o tráfego de dados.
 Correto. Você poderá navegar sem interrupções de sinal mesmo com o veículo em deslocamento.
 Você está falando como se eu fosse utilizar muito este motorhome...
 E irá – confirmou Kuius.  Ele será sua base para grande parte da tarefa que tem pela frente. Você
não terá mais um lar, uma casa ou apartamento fixo, meu irmão. Estará constantemente em movimento.
Anonimato, invisibilidade e segredo serão o seu cotidiano. Comprei este motorhome justamente para isto:
será a sua casa daqui em diante.
Christian baixou os olhos para a tela do notebook, enquanto a máquina inicializava, pensando naquilo
que Kuius lhe dissera. Não havia resistência nem ansiedade, apenas a aceitação de uma etapa totalmente
nova e diferente em sua vida.
 Bem – sorriu para o motorista – você terá de me deixar dirigir um pouco. Nunca pilotei algo
parecido.
 Sim, sim, não se preocupe: será a sua próxima lição – riu Kuius.
 O note está pedindo uma senha de acesso.
 Todos os sistemas estão protegidos por senhas e criptografia. A chave de acesso é o seu nome
213
pleiadiano.
Christian digitou: equ-mupou e uma nova janela se abriu com novo pedido.
 Está pedindo uma identificação de íris?!
 Sim. Coloque seu olho direito na frente da câmera do computador, a mais ou menos cinco
centímetros. Isso... Agora o olho esquerdo; ótimo.
A tela do sistema operacional finalmente apareceu com as opções na área de trabalho.
 De agora em diante – continuou Kuius – você não precisa mais usar a senha alfabética, mas a
máquina sempre pedirá a identificação da íris, principalmente nos sistemas que envolvam dados relativos
aos pleiadianos latentes. Se o computador detectar alguma tentativa de violação, ele se autoinfectará com
um vírus que destrói os dados no HD.
 Parece muito seguro.
 E se você tiver de abandonar em definitivo o computador por algum motivo, a combinação de seis
teclas pressionadas a um só tempo iniciará o mesmo processo autodestrutivo: Ctrl-Alt-Tab-Shift direito-
Delete-F9.
 Ctrl-Alt-Tab-Shift direito-Delete-F9? – repetiu Christian, para memorizar.
 Correto.
 Que eu faço agora?
 Abra o Google Earth.
 Certo... Pronto.
 Veja em “Lugares” alguns marcadores chamados E1, E2 etc.
214
 Encontrei; que significam estes marcadores?
 Enviado 1, Enviado 2... O marcador aponta a última localização conhecida dos Enviados no
planeta.
 Certo... Mas quem são eles?
 Existe um arquivo-texto criptografado na pasta com seu nome. Abra-o – orientou Kuius.
Christian obedeceu e – após nova leitura de íris – uma lista com os nomes, endereços e localização
geográfica apareceu na tela. Havia uma marca vermelha em alguns nomes.
 Que significam estas marcas vermelhas?
 Estes são os Enviados que perdemos contato. Houve um vazamento desta informação e agentes de
Sorat conseguiram anular sete dos doze Enviados.
 Não sabemos o que aconteceu ou onde estão?
 Segundo o agente que trabalhou para eliminá-los, os corpos estão sendo usados por discípulos de
Sorat em colônias de Sirius no Brasil, Estados Unidos, Índia, Escócia, Portugal, Espanha e França; as
consciências de nossos irmãos estão aprisionadas no Mundo Intermediário. Mas isto não deve preocupá-
lo. Sua missão é despertar o restante do grupo. Resgatar os demais não é prioridade.
 Despertá-los... Espero que não sejam tão cabeças-duras como eu fui.
Kuius riu com o comentário.
 Você vai conseguir. Ainda mais agora, na nova condição.
 Como assim, Kuius?
 Você pensa que tudo que aconteceu na ilha foi em vão ou aleatório?
215
 Em relação ao atentado?
 Não apenas isto, mas tudo desde sua instrução no Mundo Imaterial: a decadência, o retorno como
açougueiro, as tentações no resort, o trabalho no colégio etc.
 O que foi tudo isto?
 Foi o seu Caminho. O caminho de todos nós é composto de etapas evolutivas bem definidas que
fazem com que a personalidade entre em alinhamento com a Consciência. O pleiadiano que você é – a
consciência – finalmente alinhou seu veículo – a personalidade – no universo terrestre. Compreende?
 Sim, creio que sim. É aquilo que você me ensinou como unificação de consciência – a consciência
una nos três mundos. Mas eu não percebo muita diferença não...
 Perceberá a partir desta noite, quando formos prestar serviços no Mundo Intermediário e Imaterial
– afirmou Kuius.
 Não haverá mais distinção entre vigília e sono?
 Não; você experimentará um estado único de consciência, e será o mesmo quando estiver
dormindo, acordado ou sonolento. Será como passar por uma porta para trabalhar dentro de um prédio:
você gira a maçaneta, entra e continua o mesmo sujeito, com a memória intacta.
 Sei... Bem, vou aguardar o momento. Você falou das etapas evolutivas pelas quais passei.
 Sim?
 Quais foram?
216  Sua Instrução foi a primeira etapa; foi o período que trabalhamos juntos no Mundo Imaterial.
Serviu para eliminar sistemas de crenças obsoletos da personalidade, além de fortalecer a verdade e a Lei
que rege a todos nós.2
 Certo. Esta foi uma etapa bem definida.
 A segunda etapa foram as Tentações. Você viveu isto principalmente naquele dia no resort, com
a mãe e a filha. Você conseguiu sobrepor sua vontade aos desejos sexuais, ganância monetária e ambição
por poder.
 Quer dizer que o tempo de duração das etapas é variável?

2
Nota do autor: descrito em ERAS – Livro 1 - Despertar
 Sim. A de Tentações foi uma etapa de um dia, basicamente; a de Instruções durou um tempo maior,
semanas, meses. Existem pessoas que ficam vivendo uma mesma etapa por anos – uma vida física inteira,
por vezes.
 E quanto a estes nomes das etapas evolutivas – Instruções, Tentações –, são denominações fixas
ou podem variar de pessoa para pessoa.
 Não de pessoa para pessoa, mas de Era para Era. As etapas evolutivas da Quarta Era não foram as
mesmas da Quinta, que por sua vez são distintas das que serão necessárias para a Sexta Era.
 Ou seja, cada Era tem seu Caminho evolutivo próprio.
 Sim, e não se pode fugir dele ou tentar atalhos; muito menos deve-se tentar um caminho antigo,
de uma Era anterior. Quando a Consciência Crística esteve aqui, o ensinamento foi dado: “Eu sou o
217
Caminho.”
 ...a verdade e a vida – completou Christian.
 Apenas “o Caminho” – corrigiu Kuius.  O que significava, muito simplesmente, em outras
palavras: vejam o que eu faço, por onde ando e a direção que vou – e imitem. Esotericamente, a
Consciência Crística estava passando por etapas evolutivas, embora não necessitasse mais disto – estava
mostrando o Caminho.
 Como um grande sábio, um doutor em muitas disciplinas, que começa a alfabetizar seus pequenos
alunos desde o básico.
 Sim, e a partir de seu próprio exemplo. Ele esteve aqui e mostrou como se faz. Seus ensinamentos
não foram grandes discursos, aulas magnas ou escritos históricos. Ele não doutrinou as pessoas, apenas
deu o exemplo. Os humanos – alguns, pelo menos – citam o ditado “O exemplo arrasta; a doutrinação
afasta.”
 É um bom ditado... E até rima!
 Pois bem: este exemplo ficou esquecido, assim como este conhecimento das etapas evolutivas
necessárias para esta Quinta Era planetária.
 E o que vem depois das Tentações?
 O Lava-pés.
 Lava-pés? Como assim?
 Esta é uma etapa evolutiva em que deve predominar a humildade. Você a viveu em vários
momentos: no seu trabalho como açougueiro, na ajuda à Carina, nas Instruções que você ministrava ao
218
povo de Itaparica etc. A humildade foi necessária para que reconhecesse seus erros e começasse o
processo de perdão incondicional.
 Sei... Faz sentido. É que quando se fala em lava-pés a mente nos remete ao fato contado na Bíblia,
quando o Cristo lavou os pés dos apóstolos.
 Sim; aquele momento foi o que melhor simbolizou a etapa do Lava-pés. Mas não foi mais do que
isto: um símbolo, pois o ato em si não foi relevante ou evolutivo – lavar os pés de doze marmanjos.
Os dois riram imaginando a cena; Kuius prosseguiu.
 O Cristo Jesus viveu cada momento de sua estada aqui com humildade, sem soberba, sem
arrogância ou prepotência. O poder de um ser de sua estatura é algo inimaginável, mesmo para nós,
Christian. E em nenhum momento ele fez uso deste poder magnífico. A cada instante de sua tarefa ele
esteve “lavando os pés” dos humanos que o seguiam.
 Entendi. E depois?
 A etapa da Flagelação. Esta fase consiste em reconhecer intimamente o sofrimento de nossos
irmãos. Você a viveu quando escolheu envolver-se na história pessoal de Carina e sua família. Você,
acima de tudo, aceitou conhecer o maior flagelo desta humanidade – a ignorância. A tarefa de ensinar
alunos, sendo professor no colégio, trazia uma grande agonia interna na medida em que você percebia o
grau de ignorância dos jovens daquela comunidade, não é verdade?
 Sim – confirmou Christian, imerso nas lembranças das noites mal dormidas em que relembrava
seus alunos um a um.  A imagem que eu via era de uma colônia de leprosos...
219
 É uma boa analogia: leprosos emocionais e mentais.
 O flagelo da ignorância, que não é percebido por quem o detém, mas causa sofrimento aos lúcidos.
 Exato – assentiu Kuius.  A próxima etapa evolutiva é a da Coroação de Espinhos, um momento
de humilhação e escárnio. Foram os momentos vividos após a publicação de calúnias no jornal da ilha e
circulação de boatos na rede de computadores. Naquele momento, todas as instruções, todo o trabalho
realizado por você foi esquecido: você foi rebaixado de mestre a criminoso; de guru a pervertido.
 Messias num dia, condenado à morte e crucificado no outro.
Kuius assentiu silenciosamente. Precisavam fazer uma parada para caminhar um pouco e fazer uma
pequena refeição. A conversa envolvente já durava algumas horas e Kuius sinalizou para entrarem num
restaurante, no lado oposto da Fernão Dias. O GPS informava que cidades de maior porte estavam
distantes e aquele lugar parecia ser uma boa opção.
 Uma pausa e depois continuamos a conversa, está bem?
Christian concordou prontamente. Desde os eventos em Itaparica não exercitara as pernas e o corpo,
ficando todo este tempo ou deitado, ou sentado. Ele caminhava dentro do motorhome levemente curvado,
pela elevada estatura. “Sair para esticar as pernas e tomar um pouco de ar será muito bom!” – pensou.

220
Kuius entrou no retorno à esquerda, no centro da rodovia, seguindo uma placa que apontava “Venda do
Chico”; aguardou o trânsito de veículos que seguiam para o norte cessar e rodou mais cerca de meio
quilômetro para chegar ao restaurante. Havia dois estabelecimentos, aparentemente de um mesmo
proprietário, que serviam alimentação: o maior parecia ser um restaurante convencional, que deveria estar
servindo almoço naquele momento, e tudo indicava que o outro, menor, era uma lanchonete-cafeteria,
que estampava seu principal atrativo numa placa onde se lia “Leite com café” próximo da rodovia. Eles
optaram pelo lanche rápido e estacionaram o motorhome entre algumas árvores ainda jovens à beira de
um pequeno açude, onde alguns patos nadavam despreocupados do burburinho humano.
Kuius colocou um boné de tecido branco e um par de óculos de lentes retangulares que variavam sua
intensidade de cor com a luz ambiente. O “disfarce” servia para atenuar os traços físicos marcantes do
pleiadiano, que chamava atenção onde quer que estivesse. Subiram o pequeno declive admirando os
bustos em madeira de três mulheres sorridentes com traços e vestimentas baianas que estavam na janela.
No banco de madeira que ficava no lado de fora da lanchonete estava um casal com uma criança pequena
no colo – estes menos sorridentes. Eles observavam os dois homens desde o estacionamento.
Kuius e Christian foram ao banheiro masculino, que ficava ao lado esquerdo da entrada principal,
lavaram-se rapidamente e sentaram numa mesa na varanda aberta que dava para o açude dos patos.
Pediram café puro, água de coco e empadas de palmito. O pedido veio rápido: poucas pessoas estavam
ali no momento e o atendimento era imediato. Além do casal que viram na entrada, havia dois homens
no balcão, provavelmente os motoristas de dois caminhões de carga que estavam estacionados no pátio.
Enquanto comiam e falavam amenidades sobre o lugar, o casal com a criança aproximou-se da mesa.
221
Homem e mulher jovens, 25 a 30 anos de idade, boa aparência e vestidos com simplicidade; a criança –
que dormia no colo da mulher – era um bebê com menos de seis meses de idade. Carregavam duas bolsas
de viagem a tiracolo.
 Com licença – disse o homem humildemente.  Desculpe interromper, mas estamos precisando de
ajuda.
 Que tipo de ajuda? – perguntou Kuius, olhando-os fixamente.
 Precisamos chegar a uma cidade para levar nosso bebê ao hospital. Conseguimos carona até aqui,
mas temos que chegar à cidade – completou o homem.
 Estamos indo para o sul – disse Christian, referindo-se ao fato de estarem no lado oposto da rodovia
–; se vocês querem ir para...
 O que tem o bebê? – interrompeu Kuius, enquanto tomava um gole de café.
“Focalize sua atenção na mente da mulher.” – ouviu Christian internamente. A voz de Kuius estava
em sua mente, embora ele estivesse conversando com o casal. Christian entendeu que ele se comunicava
em pensamento, e obedeceu a ordem, mesmo confuso com a situação.
 Ele está com diarreia há dois dias e não está se alimentando direito – respondeu o homem.  Nós
até preferimos ir para o sul: Três Corações é maior e tem mais recursos.
A mulher permanecia calada ao seu lado, balançando levemente o corpo, em leve ninar. Christian
apenas olhava para os dois, e mantinha seu foco no corpo mental dela; começou a receber pensamentos
esparsos, entrecortados, que inicialmente não fizeram sentido.
 Sentem-se conosco, por favor – convidou Kuius cordialmente, apontando duas cadeiras vagas.
222
O casal largou as sacolas ao lado da parede e sentou-se; o homem era simpático e agradável; a mulher
tinha a fisionomia séria, mas sem inspirar antipatia – parecia ser a angústia de uma mãe com o filho
doente.
 Vocês já comeram alguma coisa? – ao que eles balançaram negativamente a cabeça.  Por favor,
são nossos convidados.
Christian já conseguia entender a situação real em que estavam envolvidos; fez o mesmo processo
com o homem e confirmou sua percepção. Era a primeira vez que ele lia diretamente a mente de outra
pessoa; Kuius poderia explicar isto depois, mas, por hora, Christian estava interessado em acompanhar
como ele trataria do assunto. Chamaram o garçom e o casal pediu leite com café, pão de queijo e bolo de
milho verde.
Os pleiadianos terminaram sua refeição e ficaram observando o casal comer; o bebê continuava
dormindo, sem aparente incômodo. A certa altura, como nada se falasse mais na mesa, a mulher dirigiu
um olhar imperativo ao homem, que retomou a conversa, sorrindo.
 Agradecemos muito sua caridade. Hoje em dia não é fácil encontrar pessoas boas que ajudem o
próximo.
Kuius nada comentou; apenas olhava firmemente para os dois. A mulher pareceu enervar-se, e o
homem continuou, olhando para ela:
 Viu, querida? Nós encontramos duas boas almas, dois anjos que nos deram de comer e vão nos
ajudar a chegar ao hospital.
 Por favor, não se assustem com o que vamos falar – disse Kuius calmamente.  Somos apenas dois
223
viajantes, e sempre ajudamos quem precisa.
O homem e a mulher sorriram artificialmente, confusos com o tom e o conteúdo da conversa.
 O bebê realmente precisa de ajuda, e se ele não for atendido, morrerá em poucas horas.
Os dois se entreolharam, assustados; Kuius continuou:
 Vocês deram uma dose muito elevada do sedativo, e o bebê precisará de uma lavagem estomacal.
Nós o levaremos conosco, providenciaremos o atendimento e o devolveremos aos verdadeiros pais.
O casal pareceu receber um choque elétrico: ergueram-se num salto, surpreendidos com a revelação
do segredo de forma tão crua e inesperada. Kuius ergueu a mão direita, no sinal universal de paz, e disse:
 Sentem-se, por favor. Não somos policiais e nem vamos lhes fazer mal.
Mas a mulher já estava arredando a cadeira e olhando para as sacolas; o homem estava atônito, sem
saber o que fazer. Kuius, então, baixou a mão e alterou o timbre da voz, ordenando:
 Sentem-se.
Os dois ficaram paralisados por breves momentos e, como que lutando contra a própria vontade,
sentaram-se novamente. Christian compreendeu que o companheiro usara a própria voz para assumir o
comando do casal, que agora permaneciam imóveis na sua frente.
 Dê-nos a criança – continuou, ao que a mulher estendeu os braços sobre a mesa.
Christian pegou o bebê de forma desajeitada, e percebeu que a criança não reagia a nenhum estímulo:
o corpo estava mole e a respiração, débil. Kuius prosseguiu com o casal, dirigindo-se à mulher:
 Retire o revólver de dentro de sua bolsa, remova as balas e jogue tudo no lago.
224
A mulher obedeceu como um autômato; os patos se assustaram quando as peças caíram na água.
Dentro da lanchonete, a televisão e as conversas triviais entretinham as pessoas. Kuius falou ao homem:
 Retire sua faca e canivete e jogue no lago.
Ele ergueu as bainhas das calças, revelando uma arma presa em cada canela, e fez como ordenado.
 Nós temos de ir, agora – continuou Kuius – pois a criança realmente precisa de atendimento
emergencial. Aproveitem este tempo para refletir se as escolhas que fizeram foram corretas; pensem se
foi sábia a decisão de raptar esta criança; pensem se valeria a pena nos matar para ficar com o veículo.
Nada é definitivo e, se escolherem diferentemente desta vez, poderão retornar à senda evolutiva. Fiquem
em paz, e que a Luz de nosso Pai ilumine suas mentes.
Os dois levantaram-se e foram ao caixa pagar a despesa; Kuius pagou tudo, inclusive a comida do
casal, e pediu para servirem mais dois cafés na mesa. Kuius pegou um cartão de visitas do lugar e os dois
saíram sem qualquer perturbação: os funcionários e clientes mesmerizados pela televisão, pela comida e
pela conversa fútil sequer notaram que os dois homens entraram sozinhos e saíram com um bebê no colo.
Kuius destravou as portas e desabilitou o alarme com o controle remoto, colocou a chave do motorhome
na mão de Christian e pegou a criança. “É, vou ter de aprender a dirigir este gigante sem professor!” –
pensou, enquanto observava Kuius levar o bebê rapidamente para o quarto em que ele convalescera.
 Vamos para onde? – inquiriu Christian, enquanto dava a partida e manobrava.
 Siga para o sul; não podemos nos desviar de nossa tarefa, e não podemos deixar de ajudar esta
criatura. Não pare e mantenha-se dentro das leis de trânsito para não chamar a atenção. Trace rotas no
225
GPS para as cidades mais próximas, não muito distantes da rodovia, e me dê os tempos de viagem –
orientou, denotando urgência na fala.
Christian consultou o mapa no equipamento e simulou rotas para as próximas cidades.
 Temos Três Corações a 35 minutos; Pouso Alegre, uma hora...
 Não teremos este tempo – disse Kuius –; a vida está se esvaindo. Siga sempre na rodovia, sem
paradas. No porta-luvas há um telefone celular pré-pago: use para informar à polícia que resgatamos o
bebê que foi raptado ontem, em Belo Horizonte. Não se identifique e nem diga onde estamos; informe
onde está o casal de raptores, e que eles estão desarmados. Diga que estamos tratando da criança e que
vamos informá-los do hospital que a levaremos – concluiu, alcançando o cartão de visitas com os dados
da lanchonete.
 Certo – disse Christian, pegando o telefone.
Kuius não tinha certeza se conseguiria salvar o bebê. Eles haviam dado uma dose que para um adulto
seria elevada, justamente para que a criança permanecesse silenciosa e não chamasse a atenção. O
sedativo poderia ser fatal se ele não agisse rapidamente. Kuius improvisou uma sonda estomacal com as
mangueiras de soro que trouxera para Christian; introduziu delicadamente na garganta do bebê e, quando
a ponta chegou ao pequeno estômago, ele começou a sugar com uma seringa. Retirou pouco mais de
quarenta mililitros de um líquido esbranquiçado, até a seringa não puxar mais nada. Kuius manteve a
sonda e pegou outra pedra cristalina na sua mochila: desta vez era uma esfera opaca de coloração rosada.
Repetiu o procedimento que fizera com Christian, colocando o cristal num copo e derramando sobre ele
vinte mililitros de soro; agitou por algum tempo e sugou o líquido – agora rosa-fosforescente – com uma
226
nova seringa. Injetou vagarosamente pela sonda, retirando-a com cuidado ao final. Kuius acomodou a
criança entre travesseiros e colocou um respirador no pequeno nariz: ele forneceria uma mistura mais rica
de oxigênio, o que facilitaria a respiração. Fixou alguns sensores do monitor de sinais vitais e observou
as fracas curvas na tela. Levaria alguns minutos para o efeito do procedimento ser perceptível; Kuius
passou duas fitas para imobilizar o pequeno e foi conversar com Christian.
 Como ele está? – perguntou o novo motorista.
 Muito fraco. Fiz uma limpeza e apliquei nosso revitalizador físico.
 Ele vai sobreviver?
 Saberemos nos próximos minutos... Conseguiu contatar a polícia?
 Sim. Eles insistiram em saber quem eu era... Pensaram que era um trote, mas eu disse para ligarem
para a Venda e perguntarem sobre um casal. Creio que estão fazendo isto e acho que ligarão nos próximos
minutos... Você sabe que eles têm o número do celular e podem nos rastrear, não?
 Sim, mas não há como conectar o número a nós. Jogue fora este aparelho após a ligação do policial;
temos mais meia dúzia para essas eventualidades.
Um leve choro veio dos fundos do motorhome e Kuius, prontamente, foi para o quarto ver o bebê.
O pequeno tinha liberado as mãozinhas e brincava com a mangueira do respirador; o sorriso nos lábios
da criança foram o indicativo de que tudo estava bem. Ele sentou-se na cama, ao lado do bebê, que olhava
tudo com curiosidade; desligou o oxigênio e retirou os sensores do pequeno corpo. Alisou a cabecinha
carinhosamente; os cabelos ralos e macios acomodaram-se num novo penteado.
227
 Meu irmãozinho terráqueo... Que a Luz ilumine seus passos nesta jornada que está iniciando.
O bebê sorria feliz; a pele não estava mais esmaecida; já adquirira tônus e uma coloração rosada.
Kuius sorriu, alegre com aquele encontro inesperado, e foi estar com Christian, que falava ao telefone.
 Polícia? – perguntou após o final da conversa.
 Sim. Eles insistem em saber quem somos, querem saber o que vamos fazer com o bebê etc.
 Eles estão fazendo o papel deles. Não há como comprovar a nossa história, apenas nossa palavra.
– avaliou Kuius.
 Que aconteceu com o casal depois que saímos da Venda?
 Depende muito de cada pessoa: o processo não envolve controle da mente do outro, mas sim a
inibição temporária das emoções e dos pensamentos. Isto libera o núcleo da consciência que passa a
comandar a pessoa de acordo com a Lei, com padrões morais e éticos adequados.
 Seria muito bom se eles ficassem assim para sempre, não?
 Seria uma interferência agressiva na evolução daqueles seres se isto fosse feito, Christian. Não
existe forma de evoluir artificialmente; não há magia que apresse a evolução de uma pessoa; não existe
substância química, droga ou alucinógeno que possibilite evolução real.
 E o que isto significa? Que eles podem ter voltado ao normal e fugido do lugar?
 É possível; a outra possibilidade é que as personalidades – os egos – tenham levado mais tempo
para voltar ao controle e que eles falem a verdade aos policiais. Não saberemos disto, mas temos de agir
228
considerando que somos suspeitos do sequestro.
 Mas temos de entregar a criança para alguém... Como vamos fazer isto?
 Não podemos ficar associados a este evento. Nossa tarefa com a criança está finalizada.
 Sim, mas não podemos deixá-la na beira do asfalto, não é mesmo?
Kuius riu do comentário do colega.
 Não, não podemos. Mas não temos tempo para ficar prestando depoimentos, nem correr o risco de
sermos detidos como suspeitos.
 Podemos entrar num hospital, entregar a criança – dizendo que ela é o bebê sequestrado – e ir
embora.
 Seríamos vistos e poderíamos ser facilmente identificados, principalmente se enxergassem o
motorhome, Christian. Temos de ser invisíveis, lembra?
 Sim... Vai ser difícil; pelo que percebi nos pensamentos do casal eles planejavam receber muito
dinheiro. O bebê deve ser de alguém rico ou importante da capital.
 Vou ver o noticiário de hoje – disse Kuius, pegando o notebook para acessar os sites de notícias.
O pleiadiano navegou por alguns portais de Belo Horizonte, buscando as notícias policiais; balançou
a cabeça e falou:
 Você tem razão. É filho de um importante político, família tradicional, e a história do sequestro já
vazou para a imprensa. A esta altura todo estado já sabe de um bebê desaparecido, o que nos torna alvos:
dois homens com um bebê.
229
 É verdade. Enquanto você procurava, pensei em algo: e se envolvermos a imprensa?
 Como assim, Christian?
 Escolhemos um jornal ou uma emissora de TV que queira receber o bebê e levá-lo aos pais;
marcamos o encontro, sob condição de anonimato, e o entregamos.
 Mesmo que os jornalistas não nos filmem ou fotografem, eles nos verão e poderão nos descrever
aos policiais.
 Não se eles acreditarem em nossa história: a imprensa pode ocultar suas fontes, mesmo da polícia.
E não haverá motivo para suspeitarem de nós, pois estaremos entregando o bebê e pedindo em troca
apenas a discrição para não nos envolvermos.
 Bem pensado, bem pensado... Deve funcionar – concordou Kuius.
 Jornal ou TV?
 Televisão. Eles devem ter equipes mais ágeis para algo assim. Qual a emissora você sugere?
Christian nominou a que achava mais confiável e considerou:
 Eles devem ter alguma afiliada por perto; veja no site deles.
Kuius acessou a informação e disse:
 Em Minas Gerais, a afiliada mais próxima fica em Varginha. Que já ficou para trás.
 Sim, mas eles devem ter condições de mobilizar um helicóptero para estar no lugar que definirmos.
Será um furo de reportagem, além de eles figurarem como heróis.
 Veja no GPS qual a última cidade de Minas Gerais nesta rodovia, Christian.
 Deixe-me ver... Chama-se Extrema e fica na divisa com São Paulo, o próximo estado.
230
 Ótimo. Vamos usar este lugar como referência.
Enquanto Christian pilotava o motorhome, Kuius iniciou os contatos para organizar a volta do
pequeno aos seus pais. Conversou com o responsável da TV em Varginha, que o colocou em contato
direto com um produtor de Belo Horizonte. Em trinta minutos o helicóptero da emissora estava no ar,
rumo à Extrema, levando uma equipe de jornalismo e os pais da criança sequestrada. Kuius contatou a
polícia e informou que o bebê seria entregue no Hospital Renascentista, em Pouso Alegre. Isto colocaria
o foco dos policiais longe de Extrema, caso houvesse alguma suspeita sobre os dois pleiadianos. Ficou
acordado que a repórter – uma apresentadora famosa em Minas Gerais – faria contato por telefone quando
chegasse à cidade.
O motorhome estava estacionado num local discreto, longe dos olhos de curiosos; os dois companheiros
estavam juntos ao bebê, cada um sentado ao lado da cama de casal, brincando com a criança. Kuius
alimentava-o com uma seringa cheia com o líquido translúcido; Christian havia visto o preparo, e
perguntou:
 Qual a função deste líquido?
 Este é o nosso reconstrutor; usei-o em você também, externa e internamente. Ele reconstrói tecidos
orgânicos. No caso de nosso irmãozinho é apenas uma prevenção: o líquido revitalizador que ele recebeu
o manterá alimentado e hidratado por 48 horas, pelo menos. Este reconstrutor percorrerá todo seu
organismo e reconstituirá qualquer dano nos sistemas gastrointestinal, nervoso, respiratório etc.
 Vamos devolvê-lo melhor do que estava... Muito legal!
231
 Sim – sorriu Kuius – muito melhor. E vamos acrescentar algo mais...
Disse isto e retirou um pequeno estojo da mochila; abriu e pegou um objeto em seu interior. Christian
reconheceu imediatamente:
 A Assinatura!
Kuius colocou a Assinatura na frente dos olhos da criança, que parou de movimentar-se de imediato;
o objeto parecia cintilar, como se irradiasse luz, uma luminosidade dourada. O bebê sorria e tentava pegar
a Assinatura com as pequenas mãozinhas; Kuius e Christian sorriram.
 Que efeito terá sobre a criança? – perguntou o segundo.
 Principalmente proteção em todos os mundos.
 Proteção física, emocional e mental?
 Pode-se dizer assim – consentiu Kuius.  Será uma criança sem doenças: vírus, bactérias e outros
micro-organismos não conseguirão atingi-la. As formas e corpos emocionais e mentais do Mundo
Intermediário não poderão prejudicá-la. Será um ser com muito discernimento.
 E será por toda a vida material?
 Sim. A Assinatura física, esta que estou usando, nada mais é do que um espelhamento da
consciência, ou seja, todos já temos a Assinatura impressa em nossa essência – a consciência. A
personalidade evita olhar para dentro, porque sabe que lá está a liberdade verdadeira. Quando mostramos
a Assinatura para alguém, estamos mostrando para a personalidade, para os olhos físicos verem, para o
emocional sentir e para o mental registrar. O ser defronta-se consigo mesmo.
 É como se fosse uma lembrança, então – disse Christian – como se a pessoa relembrasse quem
232
realmente é.
 Exato. Ninguém consegue manter alguma máscara na presença da Assinatura. Tudo se revela e
tudo se transforma. É um poder que deve ser utilizado com cautela.
O telefone tocou e Kuius entregou a Assinatura para Christian continuar com o bebê; atendeu a
chamada na cabine do motorhome.
 Sim?
 É Isabela Mussi. Estamos sobrevoando Extrema neste momento.
 Ótimo. Os pais estão com você?
 Sim, estão comigo.
 Diga a eles que a criança está muito bem. Agora, por favor, peço que siga as minhas instruções
rigorosamente, está bem?
 Sim, não se preocupe... Como posso chamá-lo? Fica difícil dialogar sem saber quem está do outro
lado...
 Você nunca saberá quem eu sou, Isabela. Esta é uma condição inegociável; mas pode me chamar
de Alcyone.
 OK, Alcyone. Onde posso encontrá-lo?
 Siga sobre a Fernão Dias rumo à São Paulo; adiante do posto de controle fiscal mineiro da divisa
dos estados existe um trevo de acesso à rodovia SP-036.
 Em São Paulo?
233
 Sim. O contorno à direita para quem vai à direção sul e quer passar por baixo da rodovia tem um
formato de uma gota d’água; pouse no meio da gota e desligue o motor, entendeu?
 Sim, entendido. Você estará lá?
 Estarei lá com o bebê, vou entregá-lo a vocês e não quero nada em troca. Já falamos sobre isto,
Isabela, mas vou pedir novamente: sem imagens minhas ou de nosso veículo, está bem? Nenhuma
gravação.
 Entendido; estamos indo.
Kuius desligou o telefone e orientou Christian novamente. O clima dentro do helicóptero era de
apreensão: eles não sabiam exatamente quem estava com a criança, se os sequestradores ou um bom
samaritano que a resgatara. A mãe chorava ininterruptamente, num misto de dor pela perda e emoção
pelo reencontro; o pai estava sério e tenso: carregava consigo uma maleta com quinhentos mil reais, que
usaria para negociar se o homem fizesse alguma exigência. Trazia também – e isto apenas ele sabia –
uma pistola Glock 36 num coldre que carregava na cintura, oculto pelo casaco do paletó. A repórter-
apresentadora procurava acalmá-los:
 Ele disse que tudo está bem com o filhinho de vocês, que vai entregá-lo sem pedir nada em troca.
 Como vamos saber que não são os próprios sequestradores? – disse o pai.  A polícia não tem
alguma novidade?
 No último contato que fizemos, a polícia informou que verificava suspeitos num local próximo de
Três Corações; não sabemos o desdobramento disto.
 Você não acha melhor avisarmos a polícia deste local que iremos? – perguntou a mãe, secando as
234
lágrimas.
 Não – respondeu o pai taxativo –, não quero correr o risco de uma intervenção desastrada. Esse
pessoal fica nervoso com polícia, mas tolera a imprensa e os familiares.
 Concordo – disse a jornalista.
 Depois que tivermos o Júnior em nossas mãos, seguro, aí soltamos os “cachorros” atrás deles –
completou o pai em termos chulos.
 Você está pronto? – perguntou a jornalista ao cinegrafista.
 Sim – confirmou o rapaz – enquanto estivermos no ar vamos filmar tudo com a câmera externa do
helicóptero; quando pousarmos eu descerei na frente com a microcâmara oculta no boné já ligada. Não
vamos perder nada.
 Ótimo!
“Esta matéria vai render um Esso!” – pensou a jornalista, referindo-se ao prêmio ExxonMobil, um
dos lauréis mais importantes do jornalismo brasileiro.
 Estamos nos aproximando – informou o piloto.
 Comece a filmar – ordenou a jornalista –; podemos analisar todos os veículos que estiverem nas
redondezas para a identificação, se necessário.
Todos no apertado helicóptero se debruçaram nas superfícies transparentes, tentando ver o que se
passava embaixo. O retorno em formato de gota no lado direito da rodovia apareceu nítido; havia um
grande espaço interno para o pouso, um terreno gramado e sem obstáculos. O experiente piloto calculou
uma área livre e plana de quarenta metros de diâmetros, pelo menos. Espaço de sobra.
235
 A câmera externa caiu! – informou o cinegrafista.
 Caiu? Como assim? Caiu no chão? – perguntou o pai.
 Não temos imagem – avisou o rapaz – algum problema técnico.
 Posso aterrissar? – pediu o piloto.
 Sim – autorizou a jornalista.  Rápido, ligue a portátil, mas não deixe que vejam você filmando.
Isabela Roberta Mussi era editora e apresentadora de um dos telejornais mais importantes de Minas
Gerais. Raramente fazia reportagens externas, mas aquele caso era muito importante para um repórter
inexperiente; além do mais, uma matéria assim teria repercussão nacional, e uma de suas ambições era
um convite da matriz, no Rio de Janeiro, para integrar o quadro da mais poderosa emissora do país. “Ah,
como seria bom trabalhar na ‘Vênus Platinada’!” – pensou, usando a alcunha pela qual a emissora era
conhecida.
 Não liga! – apavorou-se o cinegrafista.
 Como, não funciona? Que raio de equipamento você trouxe?
 O melhor que temos – respondeu o rapaz, intimidado com a presença da jornalista.
O helicóptero tocou o chão suavemente, e as atenções voltaram-se para o em torno. Eles estavam
exatamente no meio da “gota”: à frente viam a rodovia BR-381 – a Fernão Dias – cerca de sete metros
acima do nível em que o pouso se dera; contornando a aeronave pela direita, uma pista de duas faixas em
declive que, no seu trecho final à esquerda do aparelho, chegava ao mesmo nível em que estavam e
passava por baixo das quatro faixas principais, duas para o norte e duas para o sul. O sol forte no céu sem
236
nuvens projetava sua luz ofuscante e suas sombras bem definidas. Todos olhavam para fora, mas não
enxergavam nenhuma pessoa ou veículo parado, apenas o tráfego normal da rodovia. Nenhum carro
estava usando o acesso tampouco; as pás do helicóptero continuavam girando, com o motor em rotação
lenta: eles conseguiriam decolar rapidamente, caso houvesse algum imprevisto.
 Onde está ele? – perguntou o pai.
 Será que estamos no lugar certo? – questionou a mãe.
 Pode ter sido um trote... – arriscou o cinegrafista, baixando o rosto sob o olhar feroz da jornalista.
 Vou ligar para ele – disse, sacando o celular da bolsa.
Após a terceira chamada, Kuius atendeu:
 Já estamos aqui – disse impaciente a jornalista.  Onde você está?
 Lembra das coisas que lhe pedi?
 Sim... Fizemos tudo.
 Sem gravações, lembra?
A jornalista engasgou com a frase, mas não podia revelar a estratégia da reportagem. Pigarreou para
recuperar a voz e respondeu:
 E não filmamos nada, como você pediu.
Houve um silêncio prolongado na ligação; Isabela pensou que havia caído e falou:
 Alcyone. Alcyone. Está ouvindo?
 Ouça atentamente, Isabela, para não cometer erros novamente. Mande o piloto desligar o motor,
como lhe pedi – AGORA!
237
 Desligue o motor – ordenou ela para o piloto.
 Se houver algum problema nós vamos demorar mais de cinco minutos para decolar e... – objetou
o homem.
 Desligue! – exasperou-se a jornalista.
O ruído cessou de imediato e as pás foram gradualmente parando.
 Certo – disse Kuius – agora eu quero que me diga qual sua intuição a respeito do que está
acontecendo: eu estou falando a verdade ou mentindo?
Isabela silenciou e respirou fundo; seus sentimentos estavam tumultuados, sua mente caótica. Não
conseguia racionalizar aquele momento. A voz daquele homem penetrava profundamente em seu ser e
lhe causava um estado sinérgico: queria colaborar com aquele desconhecido. Sabia que ele era bom e
havia resgatado o bebê – era o “mocinho” da história. Mas todo seu treinamento e sua experiência
jornalística lhe empurravam na direção oposta: deveria desconfiar, questionar, investigar até que a
verdade se estabelecesse com evidências concretas, gravações, imagens e áudio. A voz do homem lhe
tirou do devaneio:
 Sua intuição é a melhor bússola, Isabela: siga-a e terá seu lugar na “Vênus Platinada”.
A jornalista levou um choque. O desconhecido citara um pensamento íntimo. “Não” – racionalizou
– “todos conhecem o apelido e todos querem trabalhar no Rio. É só um sujeito esperto.”
 O que você quer saber? – questionou, abalada.
Todos no helicóptero a olhavam sem entender o que se passava; os olhares inquisidores estavam
sobre Isabela e apenas o piloto olhava para fora.
238
 Eu sou o mocinho ou o bandido?
 Mocinho – disse sem hesitar.
Isabela não estava preparada para a tensão de estar completamente desnuda perante seu objeto
jornalístico, e seus olhos umedeceram. O desconhecido parecia ler dentro dela – e nada a havia preparado
para enfrentar aquilo.
 Tem alguma coisa se mexendo lá fora! – gritou o piloto, apontando para a área de sombra embaixo
da pista, os viadutos da rodovia.
Todos olharam e viram uma figura cambaleante levantar-se do chão e equilibrar-se com dificuldade.
 Um mendigo – praguejou o pai.  Um maldito sem-teto!
 Lembre-se de tudo que está vivendo agora, Isabela – continuou Kuius.  Mantenha seu caminho
na verdade, custe o que custar, e siga sua intuição, aquela voz mais profunda que representa a pureza da
sua essência. Jamais se deixe corromper. Sua ascensão profissional será consequência das escolhas que
você fizer. Use sua vocação de comunicadora e sua condição de apresentadora para retirar os véus que
escondem nossos irmãos ignorantes, que acreditam que roubar, enganar e corromper é um caminho viável.
Está entendendo?
 Sim... – disse Isabela com as lágrimas correndo na face.
 O mendigo está vindo! – avisou o piloto, apontando para a figura cambaleante.
 Você precisa reservar um período em sua vida para descobrir a verdade oculta neste mundo, Isabela
– continuou Kuius com voz serena.  Seu tempo está todo dedicado à profissão e família: não deve ser
239
assim. Procure o conhecimento que está oculto, a instrução que é velada à população.
 Que tipo de conhecimento? – murmurou a jornalista controlando as emoções.
 Como funciona este planeta, quem são seus habitantes, de onde vieram e para onde irão. Você
precisa entender as Eras planetárias, Isabela.
 Mas onde? Onde encontro isto?
 Apenas abra-se para este conhecimento superior e ele chegará até você. É um aprendizado
necessário a todos os humanos.
 Sim... Eu buscarei – concluiu decidida.
 Agora saiam todos do helicóptero, sem exceções. Diga a seu colega cinegrafista para deixar o boné
dentro do aparelho; você poderá filmar à vontade depois que eu me for. Vou desligar agora.
O telefone emudeceu e todos começaram a sair do aparelho cautelosamente. A vegetação em torno
era de gramíneas raquíticas que estavam sofrendo com a prolongada estiagem daquela região, mas as
folhas ressecadas incomodavam mesmo assim: quase chegavam à altura do joelho de Isabela. Maior
problema foi para a mãe do bebê, que usava uma saia e salto alto. Mas, àquelas alturas dos
acontecimentos, os humores estavam divididos entre a ansiedade do sequestro da criança e o transtorno
daquele mendigo, que agora estava a poucos metros de distância. O sujeito vinha enrolado em um cobertor
de aspecto imundo, com uma touca na cabeça idem e segurava nos braços o que parecia serem todos seus
pertences: uma saca de farinha – que já fora branca – transformada em mochila. Ele vinha caminhando
com dificuldade, parecia coxear de uma perna, e tinha o corpo encurvado dos derrotados pela vida.
 Vocês têm algum tipo de alimento no helicóptero, um saco de bolachas, sei lá – perguntou o pai,
240
impaciente.  Não temos tempo para isto!
 Dê um dinheiro para ele! – exasperou-se a mãe.
Mas o mendigo foi na direção de Isabela, que permanecia muda e atenta a tudo que se passava ao
redor. A conversa no telefone surtira um efeito renovador na jornalista: ela, de alguma forma, sentira-se
despertando de um longo sono. Muitas coisas faziam sentido agora e as dúvidas de praxe haviam
desaparecido.
O mendigo parou na sua frente e ergueu o rosto. Isabela não sentiu nenhum cheiro desagradável
como seria de se esperar de um sem-teto naquele estado deplorável. A touca escondia os cabelos quase
que por completo, mas ela entreviu mechas escuras e brilhantes; os pesados óculos de armação grossa e
preta desfiguravam um rosto de traços harmônicos e belos; um discreto fone de ouvidos com microfone
pendia no lado esquerdo do rosto.
 Você?! – murmurou a jornalista.
Kuius estendeu os braços na direção da mulher, e o que parecia uma mochila improvisada revelou-
se um casulo de proteção do bebê que dormia tranquilamente. Isabela sentiu as lágrimas brotarem
novamente e apertou o berço feito de lençóis e travesseiros alvos e limpos em seus braços.
 O Hospital Renascentista em Pouso Alegre está preparado para receber a criança; leve-a para lá
diretamente – disse Kuius em voz baixa.
A mãe, que assistia a tudo paralisada, precipitou-se sobre o filho em choro convulsivo. O piloto e o
cinegrafista estavam parados, um ao lado do outro, curiosos com os desdobramentos. O pai parecia
241
confuso, preso a uma paralisia mais profunda: a que a ignorância e a prepotência causam. Acostumado a
ter as rédeas das situações nas mãos, o rico político de Minas Gerais estava na condição de mera
testemunha de acontecimentos que envolviam a vida de seu primogênito sem poder interferir.
Na passionalidade do momento as mulheres sequer perceberam que Kuius já se afastava,
caminhando diretamente para a pista principal da Fernão Dias; continuava no papel de mendigo, enrolado
no cobertor, encurvado e mancando. Ouviu-se, então, um grito:
 Ei, você – gritou o pai na direção do mendigo que se afastava.
O tom autoritário fez com que todos – com exceção de Kuius – olhassem para ele e vissem,
atemorizados, um homem com as feições deformadas pela ira e pelo medo apontando uma pistola para o
mendigo.
 Pare aí mesmo – ordenou.  Quero saber como você estava com meu filho. Nós vamos esclarecer
isto tudo agora!
 Deixe-o ir embora! – pediu a mãe chorando.
 Não sem antes me dizer quem é e como encontrou nosso filho – gritou, com a voz trêmula.
A equipe da TV permaneceu quieta, amedrontada com a figura ilustre portando uma arma. Kuius
continuou andando, alheio ao que acontecia à suas costas; aquilo foi uma afronta ao pai, que se habituara
a ser obedecido e reverenciado.
 Maldito... – murmurou o político.
A .45 automática tem um sistema de segurança que se desarma quando um minigatilho embutido no
gatilho da pistola é pressionado. O pai não sabia, mas quando puxou o gatilho da Glock aconteceram três
242
eventos internos na arma construída em polímero: o minigatilho destravou a pistola, armou o mecanismo
de disparo e liberou o percutor. O recuo da arma fez com que a mão do pai desse um salto dolorido para
trás e para cima; não era um atirador contumaz: gostava de armas porque lhe davam um sentimento de
segurança e, sobretudo, poder. O estampido assustou a todos, que instintivamente se acocoraram, e o bebê
começou a chorar. O projétil alojou-se no chão, próximo aos pés de Kuius, que permaneceu imóvel e
voltado para a rodovia.
O pai caminhou a passos largos na direção do mendigo, sempre com a arma apontada para o alvo,
imitando os personagens dos filmes policiais. Em poucos segundos colocou-se frente a frente com o
encurvado mendigo, que mantinha o rosto baixo; o político era um homem robusto, cerca de um metro e
oitenta de altura, jovem nos seus 45 anos de idade e segundo mandato político. Apontou a arma
diretamente para a cabeça, sequer percebendo que ao fundo, na mesma linha de tiro, estavam mulher e
filho, além de helicóptero e equipe jornalística.
 Não vai a lugar nenhum sem me dizer tudo, imundície!
Kuius ergueu lentamente o corpo até estar em sua postura ereta. O pai teve a impressão de que um
gigante crescia em sua frente: o corpo físico que Kuius utilizava tinha pouco mais de dois metros de
altura. Calmamente ele deixou cair o cobertor, retirou a touca e os óculos; os fartos cabelos negros
reluziram ao sol. A inusitada transformação apenas não surpreendeu Isabela, que inexplicavelmente para
ela, esperava algo assim.
O pai continuava apontando a arma para o homem em sua frente; o braço tremia muito agora e a
língua parecia presa.
243
 Olhe nos meus olhos – pediu Kuius candidamente.
O pai obedeceu automaticamente e uma sequência de imagens começou a passar em sua mente:
cenas de seu próprio pai lhe ensinando como fazer política de resultados; cenas de sua primeira campanha
para as eleições legislativas, quando usou dinheiro de caixa dois de empresas para comprar votos; cenas
de quando subornou um juiz para receber um parecer favorável; cenas de quando recebeu dinheiro para
apoiar uma lei estadual que daria isenção de impostos para um determinado setor empresarial; cenas de
sexo com assistentes de gabinete e militantes partidárias. A arma foi baixando lentamente e os joelhos
foram se curvando; ele colocou as mãos no rosto e chorou.
 Volte com sua mulher e seu filho; corrija o que pode ser corrigido; peça por perdão; siga um
caminho reto e honesto daqui para frente. Use sua posição para fazer boas coisas.
 Oh, meu Deus, meu Deus... – soluçava o homem, agora quase em posição fetal, saliva e lágrimas
misturando-se ao pó.  Tu, ó Todo Poderoso, que tudo vê e tudo sabe, eu mereço Seu castigo, Sua
punição! – gritou descontrolado.
Kuius suspirou: não tinha tempo para tudo aquilo. Pegou o político pelo colarinho e deu um forte
chacoalho no homem que agora estava totalmente suspenso no ar. A atitude inesperada fez com que o
homem saísse da histeria e olhasse assustado para Kuius, que falou com severidade:
 Não há um ser todo poderoso controlando cada falcatrua, roubo ou extorsão que você faz por aqui.
A consciência faz isto – você mesmo; ela registra tudo e é a ela que você tem de prestar contas. Não há
como se esconder e não existe alternativa: você é o responsável por todas as suas escolhas, e somente
você pode mudá-las. Caminhe na Luz de hoje em diante.
244
Largou o homem no chão e continuou caminhando, a passos largos e elegantes, sem olhar para trás.
O telefone do motorhome tocou e Christian ouviu as orientações. O veículo estava oculto numa pequena
mata, seiscentos metros ao norte do local da entrega do bebê; deu a partida, manobrou na estrada de chão
e entrou na BR-381. Dirigiu lentamente no início e depois estabilizou em sessenta quilômetros por hora;
passou por cima do viaduto onde Kuius estivera oculto, olhou para a direita e viu a hélice do helicóptero
iniciar sua rotação. À sua frente percebeu a figura de Kuius, caminhando no acostamento da rodovia, já
fora do campo de visão da equipe de jornalistas. Christian apenas reduziu a velocidade, sem parar, e abriu
a porta com o comando no painel. Kuius entrou no motorhome com um salto ágil e preciso; o companheiro
fechou a porta e acelerou na rodovia, mesclando-se ao fluxo de veículos daquele final de tarde.
Os dois companheiros sorriram satisfeitos com o desfecho do caso. Para Christian tinha sido uma lição
importante sobre o poder de que dispunha e como poderia ajudar pessoas que cruzassem seu caminho no
futuro.
 Vamos viajar até onde, Kuius?
 Podemos parar logo depois de Atibaia – respondeu, apontando na tela do GPS –; são mais uns
trinta quilômetros... Veja aqui: temos de entrar à direita, saída 36A, para a SP-065, antes da cidade.
 Ótimo; desta forma desviamos a capital.
245
 E saímos da Fernão Dias. Não podemos perder mais tempo; se a polícia mineira insistir em saber
quem somos podem pedir uma blitz aos paulistas.
 Você acha que eles tentarão nos identificar?
 É possível; a raça humana está num momento muito deteriorado, de muita soberba e de muito
medo. Vamos tomar as precauções e ninguém vai nos incomodar.
 Esta é a vantagem do motorhome: podemos simplesmente estacionar, comer e dormir sem que nos
vejam.
 Sim – concordou Kuius. – O que está achando de pilotar um veículo deste tipo?
 Ótimo; suave e seguro.
 Bom. Ele será sua morada por algum tempo.
 Quanto tempo?
 O tempo que for necessário para despertar nossos irmãos que estão neste continente.
 E depois?
 Depois você terá de deixá-lo para trás e irá para outros países, de acordo com a lista.
 Vou abandonar o motorhome?
 Sim. Venda e use o dinheiro terrestre para as viagens.
 Falando nisto: como você conseguiu dinheiro para comprá-lo? Quanto custou esta belezinha?
 420 mil reais – disse Kuius com simplicidade. – Eu joguei numa loteria que o governo brasileiro
mantém.
 Uma loteria?! Você jogou na Mega-Sena?!
246
 Não... Outra mais simples... Eu não precisava de tanto dinheiro e não queria chamar atenção.
 Quanto você ganhou, Kuius? – perguntou Christian, rindo com a situação.
 Pouco mais de seiscentos mil.
Eles riram juntos – Kuius rindo da atitude do colega.
 Qual o motivo da graça, Christian?
 É que você fala como se fosse algo muito simples... Ganhar na loteria é uma possibilidade
remotíssima para qualquer um.
 Sim, deve ser. Não para nós.
 Você teve de abrir uma conta bancária para receber, não?
 Sim, sim, uma chatice interminável: abri a conta, retirei o dinheiro e fechei a conta. O resto do
dinheiro está na minha mochila; vai ficar com você. Quando precisar mais, jogue novamente: é uma forma
um pouco complicada de receber, mas não infringe as leis humanas e não chama atenção. Ganhe pouco,
apenas para as necessidades de curto prazo.
 Mas... Você previu o resultado do jogo?
 Não, não foi uma previsão. Foi como tirar uma fotografia de um momento que viria a seguir; uma
imagem do futuro; você pode fazer isto também.
 Como faço isto?
 Existem linhas de acontecimentos de tudo que está no planeta. Você pode seguir uma linha até o
final; muitas vezes descobrirá que o final ainda não existe, ou está nublado, pois coisas podem acontecer
247
e modificar a linha. Se você capturar uma imagem do final desta linha será como fotografar uma montanha
num dia de muita neblina: a montanha não aparecerá, ou somente um vulto será visível.
 E como sei se o final da linha está definido?
 Somente seguindo a linha para saber. No caso das loterias, a linha do acontecimento fica
completamente clara quando as intenções de todos os envolvidos se definem. Os humanos usam muito
os termos sorte e azar, mas na prática o que determina o resultado de um sorteio de loteria, por exemplo,
são leis do Mundo Material, atos, emoções e pensamentos de pessoas, além das leis da física. Tudo isto
pode ser lido e entendido racionalmente; foi o que fiz.
 Então – raciocinou Christian – quando os humanos evoluírem, os jogos de azar não serão mais
possíveis?
 Não, não serão mais usados. A evolução humana levará todos a aguçar a intuição que, associada a
um mental poderoso, tornará todas estas práticas obsoletas. Já existem alguns humanos fazendo isto, de
forma muito discreta, para ganhar muito dinheiro.
Kuius apontou para uma placa que indicava o acesso à rodovia estadual SP-354; Christian entrou à
direita e logo dobrou à esquerda, passando por cima da Dom Pedro I. A estrada, agora, era secundária e
não-duplicada; eles diminuíram a velocidade, até porque a região em torno era bastante urbanizada. A
noite já estava plena e eles entraram no primeiro posto de combustíveis bem estruturado que encontraram.
O lugarejo chamava-se Janiru e serviria para o descanso de algumas horas. Não havia estrutura para a
descarga dos dejetos ou abastecimento com água potável, e eles compraram vários galões de água mineral,
o que garantiria a viagem do dia seguinte. Os níveis de água servida – a água usada das pias –, e dos
248
dejetos corporais – fezes e urina que ficavam em tratamento químico –, não eram preocupantes e poderiam
esperar outra ocasião.
Depois de abastecer o tanque de combustível, Christian manobrou o veículo até um local discreto,
longe dos ruídos e dos olhares da rodovia. Os dois tomaram banho e prepararam o jantar que seria, naquela
noite, arroz integral, tofu refogado em shoyu e salada de alface; o tempero era, invariavelmente, gersal,
sumo de limão e azeite de oliva extra virgem. Sentaram-se à mesa silenciosamente, saboreando
lentamente a refeição simples, mas nutritiva.
 Temos de retornar ao tema das etapas evolutivas – começou Kuius.
 Sim, é verdade.
 Lembra onde paramos?
 Lembro: já falamos de Instrução, Tentações, Lava-pés, Flagelação e Coroação de Espinhos; e aí
entramos na Venda do Chico...
 E tudo aquilo aconteceu – disse Kuius sorrindo.
 Fico feliz que tudo tenha dado certo para aquele bebê.
 A etapa evolutiva seguinte é a Morte Mística. Esta etapa poderia ter-se concretizado para você na
forma de uma demissão do colégio, uma expulsão daquela comunidade, mas foi com um atentado à sua
vida que aconteceu. Aquela equipe de assassinos cumpria ordens de alguém que poderia simplesmente
ter pressionado o diretor para demiti-lo, mas escolheu uma ação radical e definitiva.
 Por que desta forma?
 Estes seres humanos são títeres de Sorat, em última instância. São influenciados pelas
249
personalidades desencarnadas, os seres que habitam o Mundo Intermediário e injetam pensamentos nos
humanos incorporados do Mundo Material. Bastou um pensamento mais agressivo, uma ativação do
medo ou uma sensação de soberba para que eles tomassem esta decisão.
 Você estava acompanhando tudo isto acontecer?
 Sim.
 E por que não impediu? Ou me avisou, pelo menos... Não falo isto como uma cobrança, mas para
entender o que se passou, Kuius. Qualquer um, creio que mesmo eu, teria o impulso de impedir que o
atentado se consumasse.
 Sim, é verdade. Mas uma atitude como esta teria impedido que a sua etapa evolutiva acontecesse,
percebe? Um impulso emocional, de salvá-lo do tiro, por exemplo, teria interrompido o processo
evolutivo e você teria de vivê-lo de outra forma, em outro tempo, compreende?
 Compreendo.
 Quanto a avisá-lo, tudo que era possível – sem interferir na evolução –, foi feito. Lembra que
preparou uma mochila, que estava ciente de que uma etapa estava finalizando, que não teve intenção de
fugir, que colocou os braços na frente da testa...
 O que me salvou a vida.
 Sim. Foi a ajuda possível e adequada.
 Entendi. Agradeço por tudo, Kuius.
250
 Não agradeça – falou firmemente – apenas cumpra sua parte na missão. Vamos em frente?
Christian acenou com a cabeça e o outro continuou:
 Após a Morte Mística existe o Sepultamento. Esta é uma etapa em que acontece o isolamento, a
solitude do corpo físico. Você deixa de existir fisicamente para aquele mundo antigo, para as pessoas que
vivenciaram suas etapas anteriores. Não ficam restos ou vestígios. Com você aconteceu em dois
momentos: o incêndio de sua morada – que transformou em cinzas sua passagem por lá – e a retirada de
seu corpo físico.
 Que foi onde você entrou.
 Sim. Havia necessidade de auxílio externo. Com tudo o que aconteceu você está morto para todas
aquelas pessoas e não existe um cadáver. O Sepultamento foi bem-sucedido: você está “enterrado” e não
há como encontrar seu corpo.
 Mas existe o delegado Pedro Palmérius...
 Sim, mas ele é inalcançável pelas tentações de Sorat. Foi escolhido justamente por isto. De
qualquer forma, você não deverá retornar àquelas paragens sob nenhuma circunstância.
 Sei disto... E depois do Sepultamento?
 A Ressurreição. É a etapa em que você ressurge para sua real missão; tudo que aconteceu antes foi
uma preparação para este momento, para esta etapa. A Ressurreição implica em você usar amor
incondicional com a humanidade, apesar de tudo que possa ter acontecido anteriormente. Você está
251
vivendo esta etapa evolutiva agora, Christian, ressurgindo para sua real tarefa – que será a sua última
etapa evolutiva no Quarto Globo, a Ascensão.
 Despertar nossos irmãos latentes.
 Sim. O serviço incondicional, altruísta e necessário a esta humanidade; o serviço que possibilitará
uma evolução coletiva de muitos seres; o serviço que criará as bases para a Sexta Era.
 A Sexta Era planetária... – murmurou Christian – a que vem depois da Guerra de Todos Contra
Todos.
 Sim, a guerra que só cessará com a nova mudança no eixo de rotação do planeta.
 E isto não pode ser alterado?
 Não. Uma mudança no eixo do Quarto Globo acontece em função de leis físicas de interação entre
os universos do Cosmos, nada mais do que isto. Os cientistas de hoje apenas compreendem as forças que
interagem neste sistema solar; basicamente conhecem leis de atração e repulsão – pouco mais que isto. A
ciência atual não consegue determinar com precisão se vai chover ou fazer sol no dia seguinte, percebe?
Num futuro próximo esta humanidade compreenderá com maior exatidão as interações entre cada
partícula do Cosmos e poderá predizer com clareza estas mudanças.
Christian olhou para a tela do notebook e abriu a lista de latentes restantes na Terra:
Enviado 8 – Latente
Data local da incorporação: 17 de agosto, 1973
252 Último endereço conhecido: Medina Velha, Fez, Marrocos
Coordenadas: latitude 34,0622°, longitude -4,9750°
Polaridade: Feminina
Nome civil: Laila Almurabet

Enviado 9 – Latente
Data local da incorporação: 19 de setembro, 1975
Último endereço conhecido: Boulevard Poissonnière, Paris, França
Coordenadas: latitude 48,8712°, longitude 2,3445°
Polaridade: Masculina
Nome civil: Jean Victor Dumas
Enviado 10 – Latente
Data local da incorporação: 21 de outubro, 1977
Último endereço conhecido: Barra do Gil, Vera Cruz, Bahia, Brasil
Coordenadas: latitude -12,9929°, longitude -38,6309°
Polaridade: Masculina
Nome civil: Christian Joaquim de Assis

Enviado 11 – Latente
Data local da incorporação: 23 de novembro, 1979
Último endereço conhecido: Vargem Grande, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
253
Coordenadas: latitude -27,4864°, longitude 48,4409°
Polaridade: Feminina
Nome civil: Jane Ostermann

Enviado 12 – Latente
Data local da incorporação: 25 de dezembro, 1981
Último endereço conhecido: Azenha, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Coordenadas: latitude -30,0593°, longitude -51,2114°
Polaridade: Masculina
Nome civil: Erico Fernando Quadros
Inevitavelmente veio-lhe à memória os sete pleiadianos anulados por Sorat, mas rechaçou o
pensamento: ocupar-se-ia disto no momento adequado.
Além dele próprio, havia mais quatro pleiadianos a serem despertados. Leu novamente os locais
onde supostamente estariam os Enviados latentes: Florianópolis e Porto Alegre no Brasil, Fez no
Marrocos e Paris na França. Percebeu que tinha um longo caminho pela frente.
 Estamos indo para Florianópolis? – perguntou.
 Sim. Amanhã pela noite deveremos estar lá. Um Enviado, em polaridade feminina, supostamente
ainda habita aquela cidade. É lá que começa sua nova e derradeira etapa evolutiva – sua Ascensão.
 São nove ao todo, então? Instrução, Tentações, Lava-pés, Flagelação, Coroação de Espinhos,
Morte Mística, Sepultamento, Ressurreição e Ascensão. Todos devem passar por estas etapas, Kuius?
254
 Sim. Este foi o Caminho que a Consciência Crística mostrou claramente à humanidade desta
Quinta Era. Cada um deve trilhar seu próprio Caminho, evidentemente, com suas peculiaridades.
 Como assim?
 Cada etapa acontece de forma distinta para cada pessoa; por exemplo: o Cristo foi duramente
açoitado e castigado na sua Flagelação. Ninguém precisa passar por esta etapa da mesma forma, mas terá
de viver a “dor do mundo” de alguma maneira, o sofrimento de nossos irmãos. Veja que não adianta
forçar o cumprimento de uma etapa – com a autoflagelação, por exemplo. Tudo acontece através da
guiança da consciência, e para cada um de forma diferente.
 Como as Tentações – concluiu Christian –, que são específicas para cada pessoa de acordo com
seus apetites e prazeres.
 Exatamente: não tem sentido testar uma pessoa com prazeres sexuais se seus desejos principais
são jogo e bebida, por exemplo.
 Sei, agora está mais claro: cada consciência deve superar as provas de cada etapa evolutiva de
acordo com a própria personalidade e grau de evolução.
 Exato. E as etapas sempre terão os mesmos princípios: a Instrução é uma prova de aceitação e
renúncia. Aceitar o ensinamento verdadeiro e renunciar às velhas crenças e hábitos. As Tentações são
provas de fortaleza e fé, ou seja, a pessoa mostra a si mesma que é forte o suficiente para não ser
comandada por desejos da personalidade.
 E por que fé?
 A fé de que existe algo superior à satisfação das vontades espúrias do ego, mesmo que não seja
255
claro naquele momento. A pessoa acredita e confia que superar as Tentações vale à pena – fé. A etapa de
Lava-pés é uma prova de humildade. Quando a pessoa resiste às mais provocantes tentações tende a
tornar-se orgulhosa de seu poder. Manter-se humilde, mesmo quando sábio e poderoso, é uma prova das
mais difíceis, onde muitos caem.
 É uma longa prova...
 Sim; a soberba nos ronda sempre. Já falamos da Flagelação, mas podemos acrescentar que é a uma
prova de empatia e compaixão, quando a pessoa identifica em si mesma o sofrimento do outro e
compreende claramente a sua necessidade. A etapa da Coroação de Espinhos é uma prova de perdão e
entendimento; a pessoa, mesmo aviltada, humilhada, persiste firmemente em compreender o que
realmente acontece e perdoa tudo e todos. A Morte Mística é uma prova de desapego de tudo o que
passou, sejam relacionamentos, cargos, posses etc. A pessoa não se prende a nada que possa vinculá-lo à
“vida” anterior, já que está “morrendo”.
 Como se fosse uma morte real, do corpo físico, onde deixamos tudo para trás.
 Sim; as pessoas têm de fazer isto em vida, como etapa evolutiva. O Sepultamento é a prova da
solitude. A pessoa “morreu” e não deixa vestígios; realmente desaparece. A solidão torna-se sua
companheira. Depois vem a etapa da Ressurreição, que é uma prova de amor incondicional. O ser já
superou a maior parte das provações, mas escolhe ressurgir para ajudar: o amor a todos os seres, sem
condições. E finalmente a última etapa evolutiva necessária nesta Quinta Era, a Ascensão, que é uma
prova de serviço evolutivo à humanidade. A pessoa realiza a sua missão no planeta de acordo com a
necessidade do plano evolutivo.
256
 Qualquer tipo de missão?
 Sim. A tarefa de uma pessoa, na etapa evolutiva final, pode ser dirigir um táxi, por exemplo. Ela
fará aquilo evolutivamente até o final da vida na matéria, feliz por saber estar ajudando da maneira correta
e realizada por ter certeza de estar no lugar certo.
 Entendo... E o que acontece depois da Ascensão, Kuius?
 A unificação definitiva. A consciência não percebe mais fronteiras, mundos, limites; está unificada
com a Fonte Primordial e não experimenta mais qualquer divisão. Você já tem continuidade nos mundos
deste planeta; após cumprir sua missão será uma consciência contínua no Cosmos.
Após a organização da cozinha, ambos foram para o descanso de algumas horas. Christian deitou-se na
cama de casal e Kuius ficou numa cama de solteiro na sala principal do motorhome. Algum tempo depois,
Christian ouviu uma voz lhe chamando:
 Vamos, meu irmão?
 Kuius?! O que aconteceu? Aonde quer ir?
 Vamos trabalhar. É hora.
 Mas... Mas... Pensei que iríamos dormir... Nós recém deitamos.
257
 Já estamos dormindo, Christian – disse Kuius calmamente.
O rapaz, que até então pensava estar sentado na cama conversando, percebeu que seu corpo estava
deitado, adormecido no leito.
 Caramba! Eu nem percebi... É como se eu... Se eu...
 Estivesse íntegro? Unificado? Sim, meu irmão, daqui em diante assim será. Você é uma
consciência unificada nos mundos Material, Intermediário e Imaterial do universo Terra, e não há mais
divisão ou separação no seu ser.
 Fantástico! Eu nem percebi quando o corpo físico adormeceu... Estive consciente a cada instante.
 E assim será quando finalizar a etapa física deste corpo: você simplesmente continuará sua jornada
nos mundos sutis, sem intervalos ou pausas.
 Bacana... E para onde vamos?
 Siga-me – disse Kuius.
Usando o poder da vontade os dois pleiadianos cruzaram o Mundo Intermediário sem se deter, e
adentraram o portal do Mundo Imaterial. O ambiente puro e harmonioso imediatamente fez-se dominante
e eles seguiram para a nave de Kuius. Há muito que Christian não comparecia àquele lugar, mas tudo era
como se recordava: o cone com a esfera translúcida dominando o ambiente, a simplicidade extrema e a
harmonia das formas. Eles estavam usando formas antrópicas, semelhantes às da matéria, e Kuius
orientou:
 Vamos adotar a forma pleiadiana de corpos, está bem?
O outro assentiu e num instante os dois estavam com o aspecto comumente utilizado no Complexo:
258
uma enorme gota invertida substituiu tronco e membros, enquanto uma pequena gota, também invertida
e pouco maior que uma cabeça humana, engastava-se na parte superior. O conjunto era simétrico,
harmônico e belo; flutuava e emanava uma radiação prateada.
 Quero que você receba um irmão das Plêiades, que vem saudá-lo, Equ-Mupou.
E dizendo isto, Kuius entrou em sintonia com a esfera da nave, que começou a brilhar mais
intensamente, estabelecendo um canal de comunicação com o Conselho dos Sábios no Complexo
Pleiadiano. A imagem de outro pleiadiano projetou-se no interior da nave, idêntica em forma a Kuius e
Christian, mas essencialmente diversa.
 Saudações, Kuius, meu querido irmão – disse o visitante.
 Saudações, Kitat, mestre e irmão – respondeu reverentemente.
 Saudações, Equ-Mupou. Teu retorno foi muito aguardado e me alegra que tenhas conseguido.
 Saudações, irmão – respondeu Christian, confuso com a nova presença.
 Kitat é membro do Conselho dos Sábios, Equ. Foi ele que me enviou na missão de despertá-lo; é
meu mestre e fonte de inspiração a todos nós.
Houve uma pausa em que Christian irradiou gratidão aos dois tutores; não havia necessidade de
palavras para aquilo. Kuius, percebendo que ainda não havia a identificação plena, continuou:
 O Quarto Globo conhece Kitat como Consciência Crística, o Cristo Jesus.
Se estivesse em corpo humanoide Christian teria se curvado de imediato em reverência, mas não
havia sentido para mesuras e gestuais naquele formato pleiadiano; nem eram necessários tais
procedimentos, haja vista a humildade e a simplicidade daquele ser magnânimo e divino.
259
 Fique em paz, meu irmão, fique tranquilo – encaminhou Kitat.  Não há razão para reverência:
apenas devemos devoção à Consciência que tudo criou, a Fonte Primordial. Não existe sentido em nos
devotarmos uns aos outros.
 Sim – balbuciou Christian – eu sei, mas foi uma surpresa inesperada... e maravilhosa!
 Estou aqui em nome do Conselho para dedicar-lhe nosso incondicional apoio – disse Kitat. 
Estamos à tua disposição, assim como está aberto o acesso aos Arquivos. A missão de Kuius terminou, e
ele retornará ao Complexo Pleiadiano. A tua real missão inicia agora, a Ascensão. Esta humanidade
necessita de muita orientação, de ensinamentos que os levem à verdade. Tua tarefa é despertar o maior
número de pessoas antes do final da Quinta Era, antes que as mudanças planetárias aconteçam. A
evolução de nossos irmãos do Quarto Globo está em tuas mãos.
 Farei tudo que estiver ao meu alcance, querido mestre.
 Kuius, irmão amado, nos encontraremos em breve – falou Kitat, já em tom de despedida.  Que a
Luz do Pai nos conduza a todos; fiquem em paz.
E a comunicação foi finalizada; os dois cultivaram aquele momento especial por mais alguns
instantes: a presença de Kitat, mesmo que apenas projetada à distância, deixou um rastro de amor, poder
e sabedoria – que agora continuava sendo assimilado pelos companheiros.
Kuius quebrou o silêncio:
 Você quer perguntar alguma coisa, Equ?
 Sim, quero: como vou fazer a comunicação com o Conselho e o acesso aos Arquivos se não terei
a nave?
260
 A Esfera ficará aqui, no Mundo Imaterial, disponível para isto – respondeu Kuius, referindo-se ao
globo que estava acima do cone e que funcionava como interface com o Complexo Pleiadiano.
 Ela consegue operar sem a nave?
 Sim, ela é autônoma. Quando não estiver na sua presença ela será invisível; bastará invocá-la e ela
o encontrará onde estiver.
 Inclusive no Mundo Material?
 Sim; mas haverá a materialização de uma forma esférica, o que poderá trazer-lhe problemas, caso
houver pessoas por perto.
 O mais seguro é fazer uso dela no Mundo Imaterial – concluiu.
 Correto; e você descobrirá que a Esfera tem outras funções, muito úteis por sinal.
 Quais?
 Ela mesma vai lhe dizer... no momento adequado. Podemos voltar, meu irmão?
 Sim, podemos... – concordou Christian.
E assim foi o último encontro deles na nave que levaria Kuius de volta às Plêiades.

Antes de o dia clarear o motorhome estava na estrada, rumo ao sul. O horário era providencial pelo pouco
movimento de veículos, mas trazia uma necessidade de atenção redobrada em função da escuridão que,
261
naqueles trechos de rodovias secundárias – muitas vezes mal sinalizadas –, facilitava com que os
motoristas se desviassem do trajeto correto. Christian seguiu em frente a oitenta quilômetros por hora,
sempre checando o posicionamento com o GPS do veículo. Quando o sol despontava no horizonte
maculado pela poluição da Grande São Paulo, os viajantes já estavam no Rodoanel – que contornava a
capital pelo lado oeste –, muito próximos da saída para a rodovia Régis Bittencourt, que os levaria até
Curitiba, a capital paranaense.
Os dois sabiam que seria o último dia juntos no Mundo Material, mas não havia tristeza ou angústia
– apenas o comprometimento em seguir cumprindo a missão que lhes fora designada. Ambos tinham
conhecimento de que seria mais uma etapa no caminho de cada um e que haveriam de encontrar-se
novamente. Eram irmãos, filhos do mesmo Pai, e o amor entre eles era incondicional; portanto, estarem
juntos não era uma condição necessária. Kuius retirou o estojo com a Assinatura e colocou no bolso de
Christian.
 Que está fazendo?
 A Assinatura deve ficar com você, Christian.
 Mas... mas... Você não vai precisar dela?
 Depois desta noite, não necessitarei de mais nada físico; a Assinatura será muito útil a você: use-
a sabiamente.
 Obrigado, Kuius.
 Outra coisa: sugiro que você utilize outro nome nesta etapa que inicia. Christian é um nome
marcante e alguém pode fazer a conexão.
262
 Outro nome? Tipo estes nomes de fantasia que o pessoal místico usa? Hisshan! Moab! Orvoton! –
enumerou, em tom de galhofa.
Kuius riu e voltou a falar seriamente:
 Não, nada tão chamativo. Lembre-se que terá de agir secretamente; sigilo será essencial. Pensei
em você adotar seu segundo nome.
 Joaquim?
 Sim; é um nome relativamente comum e que legalmente é seu. Caso tenha de mostrar algum
documento não haverá estranhamento.
 É... faz sentido. Nunca me trataram por Joaquim, sabe? Quer dizer, o seu Gomes do mercadinho
usava... Acho que gostava da sonoridade lusitana.
 Sabe por que você tem um nome composto, Christian mais Joaquim?
 Sim. Meu pai queria homenagear um dos maiores escritores do Brasil, que casualmente tinha o
mesmo sobrenome de nossa família: de Assis. Joaquim Maria Machado de Assis. Se dependesse de meu
pai, meu nome seria igual, mas minha mãe queria um nome moderno, que estivesse na moda.
 Christian.
 É; aí virei Christian Joaquim.
A conversa prosseguiu amena e agradável. Naquele momento eram apenas dois camaradas curtindo
a viagem, sem o peso da missão, sem ensinamentos, sem explicações e sem o espectro do tempo terrestre
que se extinguia para ambos: em poucas horas iriam separar-se e não haveria mais encontros.
O percurso aconteceu sem transtornos ou interrupções, apenas as paradas necessárias para o veículo.
263
O sol se punha à direita do veículo, emitindo raios que furavam as nuvens espalhadas no céu; as sombras
se projetavam longas na direção do oceano Atlântico. A BR-101, rodovia que atravessa todo o estado de
Santa Catarina pelo litoral, começava a margear as praias de pescadores e de banhistas. A Ilha de Santa
Catarina surgiu ao longe, e os dois pleiadianos puderam deliciar-se com a imagem efêmera daquele pôr-
do-sol pintando com luz e sombra a capital catarinense.
Cumpriram com lentidão os últimos quilômetros da rodovia até o acesso de Florianópolis, a chamada
Via Expressa, que liga a BR-101 às duas pontes sobre o mar. O trânsito no final do dia era intenso,
principalmente de veículos saindo da capital. Muitas pessoas que tinham seus empregos na ilha optavam
por morar na parte continental da Grande Florianópolis em função dos preços mais acessíveis. O resultado
desta condição eram congestionamentos enormes nas quatro pistas da ponte que entra na capital no início
da manhã, e na que sai, pela tarde. O motorhome estava no contrafluxo e eles entraram na ilha
rapidamente.
 Christian... Joaquim – corrigiu Kuius –, você conhece algum lugar que possamos estacionar o
motorhome?
 Alguma necessidade específica?
 Discreto, seguro e próximo ao mar.
 Bem... Eu conheço uma praia chamada Joaquina; pelo que lembro tem um estacionamento que fica
na beira da praia e nesta época deve estar deserta.
 Perfeito; vamos para lá.
Christian conduziu o motorhome com cautela pela movimentada avenida Beiramar Norte, seguindo
264
na direção da Lagoa da Conceição, uma lagoa de água salobre cercada por morros e dunas de areia. A
estrada de duas vias subia até o alto do morro – de onde se tinha uma visão privilegiada – e descia
serpenteando até a cosmopolita comunidade que se formara entre as águas da lagoa e os acentuados
declives cobertos de mata atlântica. No topo do morro, Christian apontou na direção leste e falou:
 A Joaquina fica naquela direção, onde há mais escuridão. São as dunas que restaram, as que
puderam ser preservadas até agora.
 E todas estas luzes são habitações de seres humanos... – falou Kuius em tom de resignação.
 Sim. Florianópolis cresceu muito nos últimos anos. Conheci esta ilha quando havia muitas praias
que você podia chegar apenas a pé ou de barco. Hoje existem condomínios de luxo subindo os morros,
invadindo áreas de preservação.
 Esta humanidade cresce descontroladamente em quantidade, da mesma forma que acontece com
algumas espécies do reino animal. Já vi isto acontecer em outras Eras e está acontecendo de novo, apesar
de toda a evolução material.
 O que pode ser feito, Kuius?
 Em relação a este modo de vida estabelecido? Muito pouco... Os humanos não querem mudar, e
eles irão neste ritmo até que algo maior os impeça.
 O final da Quinta Era.
 Sim. Até lá, nós assistiremos a isto: poucos consumindo muitos recursos; muitos com pouco acesso
a recursos essenciais; a exploração agressiva e cruel dos reinos inferiores; a artificialização do habitat
humano e de sua alimentação; a destruição gradativa das características que possibilitam a vida no
265
planeta; a emigração para cidades na órbita terrestre – uma pseudoelite emigrando para estas grandes
bases espaciais.
 Pseudoelite? Por quê?
 Porque será uma parcela da população que se diferencia apenas pelo saldo da conta bancária, e não
a parte mais evoluída e sábia da população.
 Isto tudo até o final desta Era?
 Sim... Nos próximos dois séculos... Até a Guerra de Todos Contra Todos e a mudança na inclinação
no eixo do planeta.
O silêncio caiu pesadamente na cabine do motorhome; o tema da conversa contrastava com a beleza
da paisagem externa: eles estavam na Avenida das Rendeiras, caminho de paralelepípedos espremido
entre edificações e dunas, e as águas rasas da Lagoa da Conceição. Os restaurantes que serviam as famosas
sequências de camarão – uma orgia gastronômica que sucedia pratos com peixes e camarões preparados
das mais diversas maneiras – já estavam abertos e recebendo clientes para o jantar.
Eles converteram à direita no final da avenida e seguiram diretamente pela estrada que terminaria na
praia da Joaquina, reduto tradicional da juventude ilhoa. Os últimos metros foram percorridos entre
enormes dunas, cujas areias invadiam, por vezes, a pista de rodagem. O estacionamento estava com os
portões abertos, sem vigilância ou viva-alma por perto. As únicas luzes eram as da iluminação pública
em parte do estacionamento e nas areias da praia, além de um restaurante que estava em funcionamento.
O motor foi desligado pela última vez com os dois irmãos pleiadianos a bordo. Um olhar demorado
entre eles marcava o final da jornada.
266
 Como vai ser? – perguntou Christian.
 Vou deixar o mar levar este corpo. O oceano é um bom guardião para isto...
Os dois voltaram os olhares para o mar; um azul-escuro profundo que era maculado apenas pelas
linhas esbranquiçadas das ondas que quebravam na beira da praia. Eles sabiam que o desapego ao corpo
físico tinha de ser vivido integralmente, e que não havia outra forma de proceder. O corpo físico tornara-
se a prisão da consciência e, se não acontecesse a finalização da etapa material – a morte física –, Kuius
não poderia retornar às Plêiades. No ponto evolutivo em que estavam os pleiadianos, um corpo físico era
apenas um instrumento necessário para algumas tarefas, e que devia ser descartado nalgum momento.
 Espero estar à altura desta missão... – falou Christian, mudando o assunto.
 Você está, Equ-Mupou, meu irmão. O Conselho dos Sábios não teria consentido se você não
estivesse. Que seu caminho seja iluminado pela Luz de nosso Pai, e que a Lei seja sua única guia.
 Seja assim para você também.
Os dois se abraçaram fraternal e demoradamente. Sabiam que não era uma despedida, mas apenas o
final de uma etapa na trajetória de cada um. A convivência física havia sido uma experiência nova e
agradável para os dois, mas ali finalizava.
Kuius virou as costas e saiu do motorhome, caminhando pela escuridão da noite ainda sem lua.
Andou até o final do estacionamento onde havia uma pequena edificação; entrou numa trilha no meio da
vegetação rasteira e subiu até o topo da duna. Não havia ninguém por perto, e aquilo era bom – todos
deveriam pensar que havia apenas uma pessoa no veículo. Despiu-se completamente e enterrou suas
267
roupas na areia, onde havia cobertura vegetal. Desceu correndo pelas areias movediças e macias da
Joaquina, aproveitando aquelas últimas sensações físicas: o atrito da areia com os pés, o ar frio no corpo
e, finalmente, a água gelada. Kuius não se deteve e correu até que foi possível; só então mergulhou contra
as ondas tão apreciadas pelos surfistas e começou a nadar. Seria uma jornada de várias horas, até alcançar
as correntes marítimas que levariam o corpo para longe da costa brasileira.
Imóvel no alto da duna, o pleiadiano Equ-Mupou, que tinha o nome terrestre de Christian Joaquim
de Assis, observava o irmão vencer a rebentação e nadar tranquilo nas águas do Oceano Atlântico. A lua
despontou no horizonte, iluminada e plena, criando uma avenida dourada onde havia apenas a turbulência
de um nadador dedicado; ele parou, como que pressentindo o observador na duna, e ergueu o braço direito
na derradeira saudação. Os pensamentos de ambos foram idênticos e simultâneos, ecoando como um grito
silencioso dentro deles:
 Que a Luz cruze nossos caminhos com brevidade, querido irmão.

Fim do livro 2 – Caminho


268
A série ERAS prossegue com o livro 3 – Ascensão
Depois de viver integralmente as Etapas Evolutivas exemplificadas pelo Cristo Jesus, o pleiadiano
Christian terá de cumprir a derradeira Ascensão – sua real missão na Terra. A eterna luta entre o Bem e
o Mal se materializam nas ações de Christian para libertar seus irmãos das Plêiades, e nos ataques que
Sorat engendra com seus seguidores.

269
Nosso endereço é <www.editoraamericana.com.br>
O e-mail para contato é <contato@editoraamericana.com.br>

Stephen Play é brasileiro e mantém uma página pessoal, <www.stephenplay.net>, que contém mais
informações sobre a série ERAS. Você pode enviar comentários, sugestões e críticas sobre esta obra pelo
e-mail stephenplay5@gmail.com.
270

Você também pode gostar