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ARTIGO

A CONSTELAÇÃO FAMILIAR É SISTÊMICA?

IS THE FAMILY CONSTELLATION SYSTEMIC?

SUELI MARINO RESUMO: A Constelação Familiar de Bert Hellin- ABSTRACT: Bert Hellinger’s Family Constella-
ger é ensinada como uma prática sistêmica tion is taught as a systemic practice, employed in
empregada em contextos terapêuticos e organi- therapeutic and organizational contexts, and as a
ROSA MARIA S. zacionais e como uma especialidade do Direito specialty of Systemic Law in the judicial system.
MACEDO Sistêmico no judiciário. O objetivo deste artigo é The objective of this article is to analyze and un-
analisar e compreender os principais pressupos- derstand the main theoretical assumptions of the
tos teóricos da Constelação Familiar comparan- Family Constellation comparing them with those
Pontifícia Universidade
do-os com os do Pensamento Sistêmico Novo- of the New Paradigmatic Systemic Thinking, in
Católica de São Paulo, SP,
-Paradigmático, a fim de ratificar ou apontar as order to ratify or point out the differences between
Brasil
divergências entre eles. A análise efetuada nos them. The analysis made us to conclude that the
levou a concluir que a Constelação Familiar não Family Constellation cannot be considered a sys-
pode ser considerada uma prática sistêmica, mas temic practice, but a technique based on the epis-
sim uma técnica baseada nos princípios episte- temological principles of modern science.
mológicos da ciência moderna.
KEYWORDS: Family Constellation; Systemic
PALAVRAS-CHAVE: Constelação Familiar; Tera- Family Therapy; Systemic Thinking; Family.
pia Familiar Sistêmica; Pensamento Sistêmico;
Família.

O QUE É CONSTELAÇÃO FAMILIAR?

É comum tomar a Constelação Familiar como uma prática sistêmica, no


entanto, o embasamento teórico desta afirmação não é claro tanto entre os inú-
meros cursos de formação nesta técnica, quanto entre conversas com os terapeu-
tas que a praticam. O objetivo deste artigo foi compreender quais os principais
pressupostos teóricos da Constelação Familiar e se esses podem ser considerados
como sistêmicos.
Neste tópico discutimos sobre a Constelação Familiar; no próximo, sobre as
aplicações recentes dessa prática, em seguida, compreenderemos os principais
fundamentos da Terapia Familiar Sistêmica e, por fim, refletiremos sobre o que
define se uma prática pode ou não ser considerada como sistêmica.
Segundo o dicionário Houaiss, a palavra “constelação” na língua portuguesa
pode ter o significado de um grupo de estrelas próximas, de um grupo de pes-
soas brilhantes, ou, ainda, “um conjunto de elementos que formam um todo
coerente, ligados por algo em comum” (Houaiss, 2009, p. 531). A primeira uti-
lização registrada do termo na literatura científica em língua portuguesa é de
Antonios I. Tekzis, no artigo “Constelação Familiar e Esquizofrenia”, de 1987.
Recebido em: 20/08/2018 Trata-se de um estudo que estabelece relação entre as dinâmicas familiares e a
Aprovado em: 30/09/2018 esquizofrenia em pacientes internados em hospitais psiquiátricos. O artigo não
oferece uma clara definição do que o lho talvez ainda seja a mais evidente,
A constelação familiar é
autor compreende como “constelação como é possível identificar nos tre- sistêmica?
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familiar”, no entanto, utiliza o termo chos a seguir: Sueli Marino

para fazer referência ao “grupo fa- Rosa Maria S. Macedo

miliar” dos pacientes hospitalizados, Graças à expressão sexual do amor,


nomeando a abordagem com famílias homens e mulheres deixam pais
como “Psicologia do Grupo Familiar” e mães para se tornar, como diz a
(Tekzis, 1987, p. 276). Em ambos os Bíblia, “uma só carne.”. . . O papel
casos, seja no vernáculo do dicioná- crucial que a sexualidade desempe-
rio ou na produção científica inicial, nha na união dos casais evidencia o
o termo constelação serviu exclusiva- primado da carne sobre o espírito,
mente para indicar ligações entre ele- bem como a sabedoria da carne.”
mentos e entre pessoas. (Hellinger, 1998 p. 48, grifo nosso)
A apropriação do termo confor-
me utilizado contemporaneamente Se lembramos nossas experiências
no Brasil deriva da produção de Bert como membros da família amplia-
Hellinger (1998). Em abril de 2001, da, poderemos nos ligar ao destino
este terapeuta alemão ministrou um ou ao mistério além do mundo da
workshop em São Paulo intitulado “O mesma forma que nos ligamos aos
amor que cura e o amor que adoece”, membros de nossa família, como
no qual apresentou sua técnica “Cons- se fôssemos irmãos de sangue na
telação Familiar”. Este evento tinha o companhia dos santos. (Hellinger,
objetivo de divulgar o primeiro curso 1998 p. 189, grifo nosso)
de formação em Constelações Fami-
liares no Brasil promovido pelo IAG Aqui, o nível da filosofia e da psico-
- Int. Arbeitsgemeinschaft für Syste- terapia é substituído por um outro
mische Lösungen nach Bert Hellinger mais amplo. Nele nos experimen-
e V. Munique, Alemanha. tamos como entregues a um todo
O histórico de vida de Hellinger re- maior, que temos de reconhecer
trata as influências religiosas em seu como último e abrangente. Esse ní-
trabalho. Quando criança recebeu de vel poderia chamar-se religioso ou
seus pais uma educação cristã que o espiritual. Mesmo nele, contudo,
tornou imune às ideias do nazismo. mantenho a postura fenomenoló-
Essa educação primária reverberou gica, livre de intenções, de medo e
anos depois com sua formação em Fi- pressuposições, apenas presente ao
losofia e Teologia. Foi por conta dela que se manifesta. (Hellinger, 2010,
que exerceu o sacerdócio durante p. 18, grifo nosso)
20 anos, com destacada experiência
como missionário entre os zulus. Pos- Com relação ao uso do termo
teriormente, abandonou o sacerdócio Constelação Familiar, é importante
para se casar e iniciou sua carreira frisar que a tradução em alemão fami-
como terapeuta, incluindo em seus lien stellen é “colocar a família”. Ela é
estudos outras influências, como a ensinada como uma técnica sistêmica
Psicanálise, a Gestalt, a Análise Tran- fenomenológica e tem como foco a
sacional e a Terapia Familiar. Todas solução de conflitos. Na formação de
essas referências foram fundamentais consteladores (terapeuta que trabalha
para a elaboração de sua prática, mas com essa técnica) busca-se que es-
a influência religiosa em seu traba- tes estejam conectados com o se que

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denomina como “Movimento do Es- to, a ordem e o equilíbrio (Hellinger,
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pírito”, um campo de sabedoria que 1998, 2010). O pressuposto da ordem
nos orienta na vida. Nas palavras de indica que os primeiros a chegarem
Hellinger: numa família têm preferência perante
os outros: os mais velhos em relação
O movimento do espírito, tal como aos mais jovens, a primeira esposa, os
o vivenciamos em nossas viagens filhos do primeiro casamento e assim
interiores, é um movimento que se sucessivamente. O pressuposto do
dedica a todas as coisas, tais como pertencimento compreende que todos
são. Ele não seria imaginável de ou- têm o direito de pertencer à família,
tro modo. Se tudo o que se move é estejam vivos ou não. O equilíbrio é
movido por esse espírito, como pode outro princípio importante e sugere
existir algo fora desse movimento que o sistema familiar impulsionará
ou que não seja querido por ele? as pessoas a agirem de maneira tal
Portanto, quando esse movimento para reequilibrar o sistema diante de
nos envolve, ele nos toma consigo qualquer ameaça ou problema.
nesse movimento de concordância Os problemas vividos por uma pes-
com todas as coisas, tais como elas soa, segundo a Constelação Familiar,
são, exatamente como são. Por con- são denominados como “emaranha-
seguinte, quando excluímos algo dos” e indicam existir alguma inter-
em nós ou em outros, ou quando ferência nas ordens do amor (per-
nos excluímos ou excluímos outros tencimento, ordem e equilíbrio).
do amor, perdemos a conexão com Esses emaranhados têm relação com
esse movimento de amor do espíri- algum tipo de exclusão, injustiça, luto,
to. (Hellinger, 2008, p. 40) doença grave, rompimento de víncu-
los, adoção, suicídio e até brigas por
Segundo Hellinger (1998, 2008, herança. O papel do constelador será
2010), existe uma alma familiar que identificar o emaranhado e restabele-
une todas as pessoas da família, inde- cer no sistema familiar do constelante
pendente de estarem vivas ou mortas. (pessoa que expõe seu problema no
Em seu livro Viagens Interiores escla- grupo de constelação) o fluir das or-
rece que: dens do amor. As pessoas do grupo
que estão assistindo ao trabalho serão
A alma também nos une a outras convidadas pelo próprio constela-
pessoas. Em primeiro lugar, ela nos dor ou pelo constelante para atuarem
une à nossa família: a nossos pais, como representantes do sistema fami-
irmãos e antepassados, ela nos une liar e a dramatizarem situações onde
a eles como se tivéssemos uma alma foi percebido o problema. O constela-
comum, uma alma maior. Nossa dor, então, com base nessa percepção
alma pessoal atua em função dessa relacionada com algum aspecto dos
alma maior que, por sua vez, atua na emaranhados, dirige a representação
alma que vivenciamos como pesso- e direciona as falas dos atores com
al. (Hellinger, 2008, p. 38) frases específicas predeterminadas
como: “querida mamãe (ou papai),
Para a Constelação Familiar, todos por favor, me olhe com carinho”, “eu
da família são influenciados pelo que te reconheço”, “você sempre terá um
nomeia de “as ordens do amor”. As lugar no meu coração”, “eu te reveren-
ordens do amor são o pertencimen- cio”; e faz intervenções a partir do que

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percebe desse campo de sabedoria pecificações da prática variam. Nas
A constelação familiar é
ou movimento do espírito. sessões individuais o constelador tra- sistêmica?
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Na Constelação Familiar trabalha- balha com bonecos ou almofadas e es- Sueli Marino

-se não só com a geração atual do cons- ses objetos personificam movimentos Rosa Maria S. Macedo

telante ou constelado (cliente), mas e diálogos que reproduzem a dinâmica


com várias gerações passadas, inde- relacional da família. Todo esse pro-
pendente do conhecimento da história cesso é conduzido pelo constelador –
ou convivência com elas; as informa- que assume os diálogos de acordo com
ções necessárias surgem durante o tra- sua percepção sobre a história da fa-
balho a partir da percepção do cons- mília do constelante (constelado).
telador conectado com o movimento Na prática em grupo cada parti-
do espírito e dos representantes que cipante pode escolher se deseja ser o
agem, sentem e pensam exclusivamen- constelante ou apenas participante.
te influenciados pela alma familiar da Não se faz entrevista prévia e nem após
pessoa que será trabalhada. o trabalho. Quem decide qual pessoa
Em relação aos papéis de gênero, a e qual relacionamento familiar será
Constelação Familiar delimita o que trabalhado é o constelador, que baseia
é melhor para o sistema familiar, nas sua decisão a partir da própria percep-
palavras de Hellinger: ção sobre o que considera ter “mais
força” como problema sistêmico.
O amor é, em geral, bem-servido O término do trabalho acontece
quando a esposa segue o marido quando se encontra a solução do pro-
no seu linguajar, na sua família e blema do constelante e todos no siste-
cultura, e quando aceita que seus ma se sentem em seu lugar e em har-
filhos o sigam também. Essa con- monia uns com os outros. Vale a pena
cessão torna-se natural e boa para esclarecer que, segundo essa técnica, é
as mulheres se seus maridos gover- importante deixar que a alma familiar
nam no interesse do bem-estar da trabalhe o sistema familiar do conste-
família e compreendem a misterio- lado; isso justifica a regra de não se
sa lei sistêmica de que o masculino oferecer à pessoa trabalhada nenhum
serve o feminino... Além da hierar- tipo de acompanhamento terapêutico.
quia estabelecida pelo tempo e pela Logo depois de uma constelação é co-
importância, a divisão de funções mum o constelador pedir que se evite
também desempenha um papel na comentar sobre o que aconteceu para
escolha do parceiro que irá liderar. que o efeito sistêmico se fortaleça.
Embora isso em muitos países esteja A Constelação Familiar é consi-
mudando, as famílias com as quais derada e ensinada como uma prática
trabalhamos em geral funcionam sistêmica, no entanto, fica a pergunta:
melhor quando a mulher assume o que se entende ao afirmar que ela é
a responsabilidade principal pelo sistêmica? O autor não esclarece teo-
bem-estar interno da família e o ricamente o que chama de sistêmico,
homem se encarrega de sua segu- uma vez que sua técnica se dedica
rança no mundo exterior, sendo mais à prática do que à teoria. No en-
seguido aonde quer que vá. (Hellin- tanto, refere-se à família como um sis-
ger, 1998, p. 65, grifo nosso) tema que integra os antepassados, seus
descendentes e os que estarão por vir.
Por ser uma técnica cuja aplicação Neste sentido, podemos compreender
pode ser individual ou grupal, as es- que “sistêmico” nesta técnica é o que

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se vincula a acontecimentos da histó- com essas leis favorecem que a vida
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ria familiar desde os antepassados que flua de modo equilibrado e har-
reproduzem padrões de comporta- mônico; quando transgredidas,
mento, exclusões e conflitos familiares ocasionam perda da saúde, da vi-
vivenciados na problemática do clien- talidade, da realização, dos bons
te hoje (Marino, 2018). relacionamentos, com decorrente
Em virtude de sua ênfase nas prá- fracasso nos objetivos de vida. A
ticas, a técnica tem se expandido e al- constelação familiar é uma aborda-
cançado diferentes linhas de atuação. gem capaz de mostrar com simpli-
Na próxima seção discutiremos esses cidade, profundidade e praticidade
novos espaços com destaque ao SUS e onde está a raiz, a origem, de um
ao setor jurídico. distúrbio de relacionamento, psi-
cológico, psiquiátrico, financeiro
e físico, levando o indivíduo a um
APLICAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA outro nível de consciência em rela-
CONSTELAÇÃO FAMILIAR ção ao problema e mostrando uma
solução prática e amorosa de per-
Atualmente no Brasil a Constelação tencimento, respeito e equilíbrio.
Familiar tem grande repercussão em A constelação familiar é indicada
contextos terapêuticos privados, em para todas as idades, classes sociais,
instituições/organizações, e mais re- e sem qualquer vínculo ou aborda-
centemente na saúde pública (SUS) e gem religiosa, podendo ser indi-
no sistema judiciário. cada para qualquer pessoa doen-
No SUS, por meio da Portaria nº te, em qualquer nível e qualquer
702 de 21 de março de 2018 do Minis- idade, como por exemplo, bebês
tério da Saúde na Política Nacional de doentes são constelados através
Práticas Integrativas e Complementares dos pais. (Portaria nº 702/2018,
– PNPIC1, incluíram-se novas técnicas s/p., grifo nosso)
de atenção à saúde, entre elas a Cons-
telação Familiar. Esse documento apresenta um breve
Como podemos observar na pró- histórico sobre a Constelação Familiar
pria (Portaria, 702/2018): e sua aplicação e afirma a inexistência
“de qualquer vínculo ou abordagem
Desenvolvida nos anos 80 pelo psi- religiosa” e faz uso da palavra “incons-
coterapeuta alemão Bert Hellinger, ciente” substituindo a palavra “alma”,
que defende a existência de um in- o que nos faz questionar se essa subs-
consciente familiar - além do in- tituição seria uma estratégia literária
consciente individual e do incons- para tentar dissimular a influência da
ciente coletivo - atuando em cada formação religiosa do próprio Bert
membro de uma família. Hellinger Hellinger ou uma tentativa de passar
denomina “ordens do amor” as leis maior veracidade à prática. Como vi-
básicas do relacionamento humano mos anteriormente, a Constelação
- a do pertencimento ou vínculo, a Familiar não somente tem influência
da ordem de chegada ou hierarquia, da formação religiosa do autor como
e a do equilíbrio - que atuam ao reproduz em sua prática preceitos da
mesmo tempo, onde houver pessoas religião cristã.
1
http://bvsms.saude.gov.br/
bvs/saudelegis/gm/2018/ convivendo. Segundo Hellinger, as Na Portaria nº 702 promete-se iden-
prt0702_22_03_2018.html. ações realizadas em consonância tificar a raiz de qualquer problema

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emocional, físico, de distúrbio relacio- (grifo nosso) III - providenciar que
A constelação familiar é
nal, psiquiátrico, psicológico ou finan- as atividades relacionadas à conci- sistêmica?
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ceiro, o que poderia levar à negligência liação, mediação e outros métodos Sueli Marino

no atendimento da saúde do cidadão consensuais de solução de conflitos Rosa Maria S. Macedo

induzindo a interrupção de tratamen- sejam consideradas nas promoções


to médico. e remoções de magistrados pelo cri-
Diante do exposto surgem alguns tério do merecimento; IV - regula-
questionamentos: os profissionais que mentar, em código de ética, a atu-
trabalham com a Constelação Fami- ação dos conciliadores, mediadores
liar receberão supervisão e orientação e demais facilitadores da solução
teórica para lidarem com a realida- consensual de controvérsias. (Reso-
de multiversa das pessoas atendidas lução nº 125/2010)
pelo SUS? Como o Ministério da Saú-
de avalia que essa técnica garantirá a Se a Resolução 125/2010 “estimula
prevenção de doenças, se é a primeira práticas que proporcionam tratamen-
vez que ela é aplicada neste contexto? to adequado dos conflitos de interes-
Se técnicas previnem, também podem ses no âmbito do Poder Judiciário”3,
provocar enfermidades, dependendo como o “Projeto Constelar para Con-
do procedimento, de como se pratica ciliar”4 do TJDFT, também sugere a
e do caso. regulamentação de um código de ética
Além do SUS, o Conselho Nacional para a atuação dos conciliadores. No
de Justiça divulga em seu site vários entanto não deixa claro como o judi-
fóruns no Brasil que utilizam a Cons- ciário irá cuidar dessa questão junto
telação Familiar como técnica para aos juízes consteladores ou conste-
promover acordos judiciais; o uso é ladores contratados; uma vez que os
justificado pela Resolução 125/2010 profissionais do judiciário não foram
do CNJ. No entanto, até a presente capacitados em sua formação profis-
data não encontramos nenhuma men- sional para lidarem com questões sub-
ção específica à Constelação Familiar, jetivas, como darão suporte emocional
o que nos faz refletir sobre a possibili- aos cidadãos? Como se garante que as
dade de que sua utilização ocorra pela questões emocionais dos juízes não in-
analogia ao foco “solução de conflitos” fluenciarão suas condutas na própria
como a prática é apresentada. constelação e no processo jurídico?
A Resolução 125/2010, Capítulo II O sistema judiciário não estaria im-
no art. 6º2 declara sobre a atribuição pondo uma técnica que tem influência
do CNJ: religiosa cristã em detrimento das ou-
tras crenças religiosas? Sendo o Brasil 2
hhttp://www.crpsp.org.
I - estabelecer diretrizes para im- um país laico, sua constituição garante br/interjustica/pdfs/outros/
plementação da política pública de essa liberdade de escolha? Resolucao-CNJ-125_2010.pdf
tratamento adequado de conflitos a O Estado, por meio do sistema judi- 3
http://www.cnj.jus.br/
serem observadas pelos Tribunais; ciário, pode interferir na privacidade noticias/judiciario/85256-
II - desenvolver conteúdo progra- de seus cidadãos em prol da redução constelacao-familiar-vara-
no-df-alcanca-61-de-acordo-
mático mínimo e ações voltadas à de processos jurídicos promovendo
com-metodo
capacitação em métodos consen- acordos influenciados pela posição de
suais de solução de conflitos, para poder dos juízes que aplicam a técnica? 4
http://www.cnj.jus.br/
servidores, mediadores, conciliado- O sistema judiciário – quando in- noticias/judiciario/82949-
projeto-constelacao-familiar-
res e demais facilitadores da solu- centiva juízes a atuarem no fórum resolve-conflitos-por-meio-de-
ção consensual de controvérsias; como consteladores e representantes conciliacao

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da lei – pode assegurar que os cida- mudança: a do Pensamento Sistêmico
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dãos terão livre arbítrio para decidi- Novo-Paradigmático.
rem se desejam ou não fazer acordo? Vasconcellos (2002) diferencia
E os cidadãos podem se assegurar que os pressupostos epistemológicos da
seus direitos foram preservados? Os ciência tradicional e os da ciência
fóruns do Brasil não estariam se trans- nova-paradigmática (pós-moderna)
formando em espaços colonizadores e considera o Pensamento Sistêmico
de uma suposta religião correta? Novo-Paradigmático como o novo pa-
Os fóruns de juízes consteladores radigma da ciência.
não estariam se transformando em A ciência tradicional baseia-se nos
palcos de desigualdade de gênero en- princípios da simplicidade, da estabili-
tre homens e mulheres, na medida em dade e da objetividade. O princípio da
que a técnica acredita que a mulher simplicidade compreende os fenôme-
deve seguir os passos do homem e que nos numa relação de causa e efeito; a
possui um papel específico de “guardiã estabilidade considera o mundo como
do bem-estar da família” enquanto que algo estável e, como tal, assegura sua
o homem deve se responsabilizar por previsibilidade, reversão e controle, e
sua segurança externa? As mulheres o princípio da objetividade garante a
podem confiar na isenção dos juízes neutralidade do observador diante dos
consteladores ao incentivar acordos? fenômenos (Vasconcellos, 2002).
Como o Estado garantirá que os direi- O Pensamento Sistêmico baseia-se
tos das mulheres serão preservados? no princípio da complexidade, da ins-
Esses questionamentos nos levam tabilidade e da intersubjetividade. O
à necessidade de esclarecer o conceito princípio da complexidade considera
de sistêmica. No próximo tópico dis- a existência de múltiplas variáveis e
cutiremos os principais pressupostos destaca a importância dos contextos
epistemológicos da Terapia Familiar ao estudarmos um acontecimento
Sistêmica. ou fenômeno; é impossível, portan-
to, afirmar determinada causa e con-
sequente efeito. A instabilidade nos
TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA coloca diante da imprevisibilidade da
vida, uma vez que está em constante
Segundo Grandesso (2009), as pri- transformação. A intersubjetividade
meiras abordagens sistêmicas foram admite que a realidade depende do
sustentadas pela Teoria Geral dos observador e este é coconstrutor des-
Sistemas (Bertalanffy) em 1975 e da ta; dito de outra maneira, é impossível
Cibernética (Wiener) em 1961. Essas um conhecimento objetivo da vida
abordagens representaram uma mu- (Vasconcellos, 2002).
dança paradigmática na medida em Nas palavras de Macedo, Ku-
que propunham que o processo psi- blikowski, e Moré:
coterapêutico se centrasse no aspecto Ao entrar no campo da Clínica tanto
relacional e contextual, uma vez que para atender a demanda em contextos
até então as terapias eram focadas ex- públicos ou privados, ou para pesqui-
clusivamente no indivíduo e sua sub- sar aspectos da vida da população com
jetividade. vistas à promoção de saúde e melhoria
Inúmeras abordagens surgiram e da qualidade de vida, o profissional
com o avanço das ciências a terapia clínico deve estar convencido que vai
familiar sistêmica passou por nova trabalhar: com a instabilidade, inter-

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subjetividade e a imprevisibilidade repetir ou não de uma geração para
A constelação familiar é
das situações vividas como defende o outra (Cerveny, 2001). sistêmica?
31
paradigma científico da pós-moder- Na abordagem sistêmica, as dinâ- Sueli Marino

nidade. O ponto central do trabalho é micas relacionais não podem ser con- Rosa Maria S. Macedo

a crença na mudança, com as incerte- sideradas em termos de polaridades


zas de que mudanças surgirão a partir opostas e fixas para homem e mulher,
das inter-relações estabelecidas no en- masculinidade e feminilidade que
contro Clínico, muito embora não se demarcam posições de superiorida-
possa prever que mudanças serão pos- de ou inferioridade. Nas palavras de
síveis em função das experiências de Macedo:
vida do cliente. Desse ponto de vista é
importante ressaltar a competência do Considerando a influência do contex-
profissional no respeito à diversidade, to em que raça, classe social, gênero,
sua responsabilidade ética na constru- religião, cultura, fase de vida e idade
ção conjunta da realidade. (Macedo et são fatores intervenientes na constru-
al. 2018, p. 21) ção do significado atribuído às ações
A família, segundo a Teoria Sistêmi- de cada um, só se justifica uma postu-
ca, não é um sistema, mas, como em ra profissional com flexibilidade para
todos os fenômenos, pode ser enten- considerar cada situação, com a rela-
dida como um sistema pela possibi- tividade que lhe cabe. Assim, as rela-
lidade de aplicação de suas leis à sua ções entre os gêneros adquirem uma
estrutura e função. Assim, do ponto diversidade que não permite genera-
de vista sistêmico, a família é um todo lizações atreladas ao sexo como causa
organizado cujos membros estão em de determinados comportamentos.
constante interação. Ao olhar para (Macedo, 2009, p. 67)
uma família do ponto de vista sistê-
mico, não são focados os indivíduos, Como vimos ao longo do artigo,
seus membros, mas sim as relações pensar na família como um sistema,
entre eles. O terapeuta, por sua vez, refletir sobre os padrões repetitivos de
faz parte do sistema terapêutico da fa- interação, identificar um desvio no que
mília ou do casal, no entanto, não se são consideradas as ordens do amor,
coloca numa posição de expert sobre ou mesmo a causa de exclusão num
ela (Grandesso, 2000). Estar incluído sistema familiar, não são suficientes
no sistema significa não interferir de para designar uma técnica como sistê-
fora dele, mas agir como parte dele em mica, justamente pela inexistência de
função de sua subjetividade que dirige um modelo universal de família.
a visão que tem da família e justifica Ao considerar a Constelação Fami-
sua inclusão no sistema. Isto é, o tera- liar no Brasil como uma prática de so-
peuta, observador, passa a fazer parte lução de conflitos independentemente
do observado, o que exige a reflexivi- se aplicada na saúde, na organização
dade do observador sobre si mesmo ou judiciário, não se levou em conta
na situação. as diferenças culturais e sociais entre
Os padrões de repetição manifes- uma realidade europeia e a nossa cul-
tados entre as gerações se dão por tura brasileira, como a utilização de
transmissão intergeracional e refe- frases prontas para serem repetidas
rem-se às questões de lealdade fami- pelas pessoas trabalhadas como “eu
liar, relacionadas com crenças, valo- te reverencio”, “eu te honro”, em que
res e mitos passados que podem se não se tem a preocupação de saber se

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fazem parte do repertório linguístico parte integralmente da alma familiar
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da pessoa ou da família em questão. daquela pessoa, ou seja, para a Cons-
Ao se instituir como uma técnica in- telação Familiar, não existe nenhuma
tegrativa para prevenção de doenças, influência do constelador e nem dos
não se considerou a diversidade da representantes no que acontece numa
realidade da população assistida pelo constelação; acredita-se na neutralida-
SUS; foram tomados como padrão de de dos representantes e do constelador
referência os emaranhados da Conste- que se coloca como um expert que co-
lação Familiar e não as especificidades nhece a verdade sobre aquela família e
da diversidade cultural de nosso país; sabe o que é bom para ela no sentido
ignorou-se a influência religiosa do de corrigi-la. Age, portanto, de acordo
autor tanto no contexto jurídico quan- com um modelo preestabelecido de fa-
to da saúde; estimulou-se a desigual- mília ideal.
dade de gênero, uma vez que, para essa Na Constelação Familiar esses pa-
técnica, o papel da mulher está fun- drões de repetição são compreendidos
damentado nas funções sociais que a como emaranhados que podem repre-
restringem ao âmbito privado e como sentar doenças ou problemas mal re-
reprodutora e cuidadora da família e solvidos entre as gerações, identifica-
ao homem como protetor; negou-se a dos quando não estão de acordo com
subjetividade do constelador e dos re- as leis do amor de pertencimento, de
presentantes, uma vez que tudo o que ordem e de equilíbrio (Hellinger, 1998,
ocorre numa constelação é influencia- 2008, 2010), ou seja, algo que aconte-
do pela alma familiar do constelado e ceu no passado determina o presente,
nada diz respeito às crenças pessoais e explicando a causa e consequente efei-
dificuldades emocionais do constela- to, princípio da simplicidade da ciên-
dor nem do terapeuta. cia moderna. Na terapia familiar sis-
Quando a Constelação Familiar têmica os padrões de repetição estão
identifica no presente uma proble- relacionados com a lealdade ao siste-
mática na vida de uma pessoa e a ma familiar e podem ou não se repetir.
relaciona com um conflito vivencia- A partir do exposto, não é possível
do por alguém de gerações passadas considerar a Constelação Familiar
está buscando a causa do problema, como sistêmica, uma vez que em sua
ou seja, o princípio norteador que prática ou teoria os pressupostos do
rege essa intervenção fundamenta-se Pensamento Sistêmico não se fazem
na simplicidade e na causalidade da presentes; não basta o uso do ter-
ciência moderna. E quando o cons- mo “sistêmica”, requer uma postu-
telador faz uma interferência no sis- ra terapêutica que acompanhe seus
tema familiar do constelante com a princípios. Podemos concluir que a
intenção de reparar alguma perda, Constelação Familiar é uma técnica
conflito ou exclusão na família age de fundamentada nos pressupostos da
acordo com o princípio da estabilida- ciência moderna.
de – que o faz acreditar no controle e Todas as questões mencionadas nos
na reversão do sistema familiar elimi- colocam diante da nossa responsabi-
nando o emaranhado. lidade ao replicarmos técnicas tanto
O princípio da objetividade da ciên- no que diz respeito ao estudo episte-
cia tradicional também se faz presente mológico da teoria, ao procedimento
ao se acreditar que tudo o que acon- da prática e ao nosso posicionamento
tece com a família do constelante faz ético enquanto profissionais.

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 62, p. 24-33, dezembro 2018.


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