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O PUBLICO E O PRIVADO: teorias e configurações nas práticas educativas

Profa. Dra.Olinda Maria Noronha


Unicamp e Unisal – Americana(SP)

O que caracteriza o desenvolvimento histórico do capitalismo é fundamentalmente seu


processo conflitivo e contraditório que se articula e se expressa em uma multiplicidade de
configurações extremamente complexas e heterogêneas. Sua materialização histórica
dentro de uma dimensão de totalidade é, portanto, tanto estruturada quanto estruturante,
implicando em um duplo movimento: de conservação (reprodução das relações) e de
transformação(rupturas). Somente uma atitude metodológica dialética permite atingir e
compreender o alcance deste processo ao mesmo tempo conservador e transformador
que constitui a essência do modo de produção capitalista. Apreender aqueles aspectos
que podem significar a reprodução e a reiteração de elementos do sistema e outras
dimensões que podem representar a possibilidade de transformação e de ruptura com o
sistema constitui uma tarefa permanente no campo da investigação e da ação.
No campo da reprodução da forma histórica do capitalismo, desde a contribuição da
análise do marxismo, um dos elementos mais significativos para a compreensão deste
modo de produção é que o processo de acumulação e de autoexpansão constitui a
tendência dominante e inerente à sua forma de se concretizar historicamente. E no
interior deste movimento de acumulação e de autoexpansão que se produz o avanço
crescente do processo generalizado que tende a converter todas as esferas e relações
sociais em mercadoria. Como o modo de produção capitalista é configurado, desde a
matriz marxista, tanto como acumulação de riquezas, quanto como relações sociais,
seu processo de autoexpansão permanente tem como motor os conflitos e antagonismos
de classes que se manifestam historicamente tanto como relação de dominação ou de
subordinação quanto como relações de resistência e de transformação revolucionária.
A apropriação ou o monopólio dos bens produzidos pelo conjunto dos homens na história,
por um determinado grupo que detém o controle sobre os outros grupos antecede a forma
histórica do capitalismo. No entanto, com o surgimento do capitalismo e da propriedade
privada dos meios de produção este processo de monopolização e de controle dos bens
significativos passa a se acentuar e a ganhar um conteúdo particular que é o da
exploração, da acumulação e controle do estoque de bens – entre eles o conhecimento –
nas mãos de uma minoria. Os conflitos e as lutas por partilhar os bens produzidos
historicamente pelo conjunto dos homens passa então a ser uma constante na história da
humanidade se estendendo até a atual forma histórica do capitalismo globalizado pós-
fordista Este difunde a utopia modernizadora e democratizadora de que através do
acesso de cada indivíduo livre no mercado às informações disponibilizadas pelas novas
tecnologias de informação se produz automaticamente a socialização dos bens
produzidos. O que se observa é exatamente o contrário, não apenas não se socializam as
possibilidades de apropriação dos bens socialmente significativos(entre eles, o
conhecimento) , como vem se polarizando de modo progressivo o abismo entre os que se
apropriam dos benefícios produzidos pelo capitalismo e os que se pauperizam neste
movimento , aprofundando a polarização entre carência e privilégio ao mesmo tempo em
que são retirados os direitos conquistados mediados pelos conflitos travados na esfera
das relações históricas. Estes direitos estão saindo da esfera das relações Estado –
Sociedade Civil (que constituiu historicamente o âmbito do público) e passando
gradativamente para a esfera da sociedade civil que se estrutura atualmente como o
âmbito do público não-estatal, caracterizando uma espécie de (…)“ ‘descentralização
para baixo’, implicando financeiramente a comunidade na sustentação da escola para
além dos recursos públicos. Assim, em vez da ampliação de uma cidadania sócio-política
que democratize o Estado, podemos vir a conhecer a abertura de uma janela para uma
indesejável privatização compensatória ante o recuo do Estado em seu dever”.(CURY,
1998).
A trajetória de constituição do público e do privado na história da educação de modo geral
e na história da educação brasileira em particular, guardando as especificidades de como
o processo se produz nas formações sociais “periféricas” dentro do sistema capitalista
mundial, tem como um dos pressupostos centrais de análise a categoria trabalhada por
Gentili: monopólio do conhecimento.
“(…) Los procesos de monopolización del conocimiento atraviesan transversal y
horizontalmente el desarrollo histórico capitalista asumiendo múltiplas formas históricas.
Como tal, el monopolio del conocimiento constituye un núcleo invariante, permanente y
necesario para la reproducción y ampliación del sistema capitalista, o expresando en
otros términos, en un componente centra l(contradictorio y conflictivo) en la dialéctica
reproductiva que caracteriza el desarrollo histórico de las sociedades de clases”.
(GENTILI,1993)
É através deste impulso permanente de instalação e de consolidação no poder, que as
forças dominantes do capitalismo converteram o princípio educativo que tem como
fundamento o conhecimento, inicialmente usado para desatrelar as camadas pobres do
obscurantismo medieval, em um princípio de busca constante de exploração e de
manutenção das classes subalternas na condição de ignorância através do monopólio
dos conhecimentos socialmente significativos através da história. A educação
escolarizada tende a acompanhar este processo expressando o movimento conflitivo e
contraditório das classes sociais na busca e na oferta da educação escolarizada, bem
como as respostas institucionais que se materializam historicamente no público e no
privado como faces de um mesmo fenômeno. O monopólio do conhecimento constitui
deste modo o fundamento que tem orientado as iniciativas educacionais, as reformas e
até mesmo as teorias pedagógicas que caracterizam a história da educação brasileira.
A escolarização como um processo reconhecido socialmente que produz uma
aprendizagem desenvolvida através de um ensino de tipo formal e institucionalizado
(transmissão-assimilação-superação do saber socialmente elaborado) está relacionada
com a construção da sociedade de classes, com os conflitos inerentes à forma como a
sociabilidade é construída nesta sociedade, com a apropriação privada da terra e dos
meios de produção e com a luta pelo monopólio e controle dos conhecimentos. Nas
relações conflituosas que se estabelecem na luta de classes em busca de conquistas, os
setores populares nem sempre conseguem levar a melhor parte.
Desta maneira, o conhecimento é produzido de forma orgânica, articulado a uma relação
histórica determinada e concreta. Por este motivo a inserção maior ou menor dos
indivíduos à possibilidade de apropriação do estoque de conhecimentos, está
condicionada pela posição que estes ocupam na organização social da produção.
A partir do conceito de que é o trabalho que materializa a existência humana, porque é da
relação do homem com a natureza e com os outros homens que o homem produz e
satisfaz suas necessidades imediatas, bem como da possibilidade histórica da existência
do não-trabalho para alguns, surge a possibilidade de existência de uma classe ociosa. O
aparecimento desta classe ociosa propiciou a necessidade da escola como o “lugar do
ócio”. A influência clerical levou à forma institucional do “ócio com dignidade” (influência
clerical). Com o advento da sociedade moderna o saber passa a sofrer novos
requerimentos sociais tendendo a passar de espontâneo e assistemático, para
sistemático e metódico.
O liberalismo que se estrutura no século XIX busca traçar os limites à intervenção legitima
das maiorias, ou seus representantes via Estado, no império privado dos indivíduos
(maioria). A partir deste argumento do liberalismo é possível perceber que a burguesia
uma vez vencedora procure consolidar e legitimar “sua revolução”.
Para coroar as teses de “indivíduos autônomos” e de “contrato social”, a burguesia como
classe vencedora desenvolve a tese de que para que esse tipo de sociedade contratual
exista, é preciso que os indivíduos tomem decisões autônomas baseadas na própria
razão. Para que isso ocorra é preciso instruir o povo, porque as “luzes” precisam se
difundir de tal modo que as decisões tomadas por esses indivíduos livres sejam as mais
acertadas. Pra que não houvesse o risco de sofrer a influência de interesses particulares,
essas “luzes” deveriam ser difundidas por instituições públicas.
No âmbito econômico pode ser encontrado tanto o argumento da economia burguesa
conservadora que considera ser a instrução do povo desnecessária porque o tempo
dedicado à instrução seria tempo roubado da produção, quanto os que defendem a
liberdade de escolha.
Adam Smith, um dos formuladores da economia política postulou que as forças
econômicas impulsionadas pelas relações entre trabalho e capital só se desenvolvem
plenamente numa sociedade onde fosse possível às coisas seguirem uma espécie de
curso natural, onde ocorresse uma situação de extrema liberdade, onde cada homem
fosse totalmente livre para escolher a ocupação que quisesse e de mudar nos momentos
em que considerasse conveniente. Adam Smith identifica em sua formulação uma espécie
de “mão invisível” que faria com que a “luta pelos interesses dos indivíduos” (livre
concorrência) tivesse como resultado a satisfação dos interesses de todos em um
mercado permanentemente aberto.
Apesar da “igualdade moral” entre as pessoas, no âmbito da prática essa “livre
concorrência” acaba tendo limites estabelecidos que se estendem também ao campo da
instrução. É o que pode ser observado com a proposta da “educação em doses
homeopáticas”(Adam Smith), ou com a educação pública restrita à instrução (leitura,
escrita, cálculos básicos). Esta distribuição desigual dos bens sejam eles materiais ou não
materiais caracteriza o monopólio dos conhecimentos socialmente significativos.
O argumento da igualdade entre os indivíduos numa sociedade organizada sobre bases
desiguais acaba encontrando sérias objeções na prática. De onde se segue que “a
igualdade de todos os seres humanos como pessoas morais, só pode significar o direito
igual de ser diferente”.(Idem, ibidem).
A partir deste argumento a ideologia que fundamenta o liberalismo faz a seguinte
proposição para a prática: como os homens têm destinações diferentes e posições
diferenciadas no mundo da produção, a educação, por conseguinte deve também ser
diferenciada. A partir desses pressupostos sintetiza então sua posição ideológica da
seguinte maneira: “é impossível submeter a uma educação rigorosamente idêntica
homens cuja destinação é tão diferente”.(Idem, ibidem).
O princípio onde se embasa este argumento encontra-se na concepção da igualdade
natural e moral entre os homens preconizado pelo liberalismo ortodoxo. Dele deriva que
“o estado natural é um estado de distribuição desigual das contingências sociais”.(Idem,
Ibidem)
A superação deste processo de justificação da desigualdade a partir de critérios fundados
na diferenciação natural entre os homens se daria na medida em que se maximizasse a
igualdade na distribuição das contingências sociais de tal forma que a igualdade
fundamental entre os indivíduos pudesse realizar-se de maneira diferenciada.
A compreensão deste processo contraditório de distribuição das contingências sociais
diante de uma sociedade que se organiza tendo como um dos princípios centrais o
monopólio dos conhecimentos socialmente significativos, deve trilhar não tanto os
sistemas de ideias em si, mas principalmente procurar nestas ideias o reflexo e o estímulo
do real. Isto significa compreender como de época em época o objetivo da educação e a
relação educativa foram concebidos em função do real existente e de suas contradições,
indagar a opinião geral sobre o fenômeno escola, verificar o prestígio concebido ou
negado à figura do profissional da educação deve ser a tarefa primordial de quem
pretende investigar sobre o modo como a produção e a distribuição do conhecimento têm
sido realizadas historicamente.(MANACORDA,1989:6-7)
Nas observações de Gentili, não é nada novo sustentar que a história da humanidade
demonstra que o conhecimento é um instrumento de poder e que o conflito pelo acesso
(democratizado ou não) a suas instituições produtoras e difusoras é parte e expressão da
luta pelo poder econômico, político, cultural e jurídico. A luta pelo controle e o monopólio
dos saberes socialmente significativos, forma parte portanto do complexo processo de
acumulação e autoexpansão do capital que define a natureza mesma do capitalismo .
(GENTILI,1993)
Observa-se hoje a crença difundida pelo discurso dominante atual de que graças ao
desenvolvimento e autoexpansão livre do Mercado que se desdobra em todos os planos
da sociabilidade humana será possível chegar a sociedades democráticas movidas pela
Revolução Informática em escala mundial. Esta Revolução propiciaria as Sociedades do
Conhecimento onde o conhecimento e a informação estariam disponíveis e seriam
distribuídos a todos de forma democrática. Bastaria acessar as redes e de modo mágico
se daria a democratização dos saberes acumulados. Os organismos da política
educacional encarregados desta “distribuição” seriam uma espécie daquele personagem
que Gentili chama de “Robin Hood invisível e democrático” que garantiria a igualdade na
distribuição do conhecimento.
Utilizando-se esta diretriz heurística proposta por Gentili pode-se dizer que o Terceiro
Setor, as Ongs que não são cívicas a Taxa Tobin personificariam o Robin Hood pós
Terceira Revolução Industrial e o Mercado seria o Bosque de Sherwood onde um Robin
Hood invisível atuaria distribuindo democraticamente os saberes em forma de cesta
básica – para os menos favorecidos. Para quem ainda acredita em Contos de Fadas ,
Papai Noel e duendes isso talvez satisfaça e deixe em paz as consciências…
A esta crença ingênua, mas de grande eficácia político-ideológica difundida pelo ideário
econômico e político atual cabem várias objeções feitas por Gentili :
1. O capitalismo supõe uma particular organização histórica do monopólio dos saberes
socialmente significativos;
2. Este monopólio se produz e reproduz em um contexto de conflitivo antagonismo, sendo
estes últimos expressão de uma forma particular de materialização da luta de classes ;
3. O monopólio dos conhecimentos não se produz somente como “limitação educativa”,
supõe, pelo contrário, um complexo sistema de mecanismos institucionais de controle e
apropriação do conhecimento socialmente acumulado do qual participam as grandes
corporações multinacionais, o Estado, os partidos políticos, os sindicatos os
departamentos de P&D e as instituições educativas;
4. O monopólio do conhecimento constitui um processo histórico de apropriação privada
dos saberes socialmente produzidos e acumulados necessários à luta pelo poder social
em todas as suas dimensões;
5. O monopólio do conhecimento, no capitalismo histórico supôs e continua supondo- a
crescente e progressiva distribuição, produção e reprodução da ignorância para as
maiorias excluídas;
6. no interior das contradições produzidas pelo processo de autoexpansão do capitalismo,
“o capital alcançou um nível de desenvolvimento que elevou a limites extremos a sua
composição orgânica, causando um salto de qualidade em seu padrão anterior de
acumulação, nele incorporando, como pólo dinâmico principal, as formas simbólicas ou
informacionais de trabalho”.(DANTAS, 1996)
Neste ponto, o capital como valor que se valoriza a si mesmo, contraditoriamente teria
alcançado nesta sua nova etapa, a sua completa negação, tornando-se ironicamente ,
valor que se desvaloriza a si mesmo. A expressão maior de sua desvalorização no
entender de Dantas seria o fenômeno da “pirataria”. Os piratas se apropriam dos valores
secundários oriundos da poupança de tempo resultante do trabalho realizado em outro
nível da organização capitalista. Aqui o capitalismo enfrenta um dilema histórico :
precisa tornar disponível um valor de uso que é o tempo poupado, por outra precisa
obrigar o usuário deste valor a reconhecer e remunerar o tempo de trabalho empregado
naquela informação. Para resolver esse dilema(desigualdade entre o valor do trabalho
para quem o realizou e o valor do resultado para que o utilizará) o capital está se
reordenando institucional e juridicamente para evitar que o conhecimento e a informação
seja m usadas dentro de um processo de desvalorização crescente do capital(leis
unilaterais de direitos intelectuais impostas pelos Estados Unidos).
O monopólio do conhecimento socialmente significativos precisa refinar seus
modelos de monopolização diante da ameaça crescente dos novos Robin Hoods
tecnológicos (piratas) que penetram nas redes de informação “democratizando” e
banalizando as informações.
O problema central do capital hoje é apropriar-se de um valor que não é mercadoria, é
valor de uso que não contém valor de troca. Dantas observa que “para isso ele necessita
produzir uma sociedade cada vez mais capacitada, por seus níveis de renda e padrões
culturais, a desfrutar de valores de uso que incessantemente cria, renovando o consumo
e realimentando freneticamente o ciclo da produção material simbólica(realizada pela
indústria cultural, pelos meios de comunicação social e pela publicidade). Por isso o
capital produz mais exclusão social , em um outro tipo de patamar , produzindo uma
sociedade caracterizada por uma ”minoria tecnologizada” e uma grande massa
populacional cujo trabalho é destruído pela automação e desqualificação.

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