Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Maiara Gouveia
Nosso trabalho tem por objetivo estudar a plasticidade em Cesário Verde, poeta
português da segunda metade do século XIX, autor de uma poesia inovadora e singular.
Fernando Pessoa define o plástico de um modo que nos interessa. Vejamos: “Segundo
característico da objetividade poética é aquilo que podemos chamar a plasticidade; e
entendemos por plasticidade a fixação do visto ou ouvido como exterior, não como sensação,
mas como visão ou audição. Plástica nesse sentido, foi toda a poesia grega e romana, plástica
poesia dos parnasianos, plástica (além de epigramática e mais) a de Victor Hugo, plástica, de
novo modo, a de Cesário Verde. A perfeição da poesia plástica consiste em dar a impressão
exata e nítida (sem ser exatamente epigramática) do exterior como exterior, o que não impede
de, ao mesmo tempo, o dar como interior, como emocionado.” (Pessoa 1974: 384, 385)
É importante situar a poesia que ora estudamos no contexto histórico e social em que
se realiza: o cenário europeu do século XIX apresenta-se como espaço de alterações sociais e
inúmeros conflitos. O fim desse século de capitalismo triunfante caracteriza-se pela
consolidação do poderio britânico, fazendo da Inglaterra símbolo das potências industrial e
colonial e modelo às outras nações. Não podemos deixar de comentar acerca da luta operária
que nasce da organização de grupos mais ou menos unificados a partir da difusão das idéias
anarquistas e socialistas no continente; enquanto isso, Portugal realiza um progresso artificial:
apesar da revolução dos transportes, com a implementação de estradas de ferro e aquisição
de locomotivas, o advento da navegação à vapor, etc, e da dinamização dos meios de
comunicação, a economia continua dependente, e a base que sustenta as relações econômicas
do país continua, predominantemente, agrária. (Serrão: 1957)
A plasticidade da poesia cesarina retrata de maneira surpreendente o caráter desse período de
transição: a maleabilidade visual permite ao poeta a construção de momentos imagéticos que
se dissolvem em outros, criando um meio intermediário entre a fotografia e a pintura,
beirando o cinematográfico[1]. A revelação de uma imagem instantânea retirada do real
(fotográfica) apresenta-se mediada pela subjetividade, um 'eu' interagindo com o mundo e
dele extraindo cenas que despertam sensações e/ou sentimentos. As imagens ganham formas
e tons específicos para acentuarem aquilo que evocam; o observador recria a realidade como
faz o pintor. Por outro lado, as imagens dessa poética estão sempre em movimento, o 'eu'
perambulando entre aquilo que vê e o modo como vê assemelha-se, muitas vezes, a uma
câmera flagrando fragmentos de realidade.
É muito interessante avaliar essas características: demonstram que a poética cesarina não
pode ser observada dentro de um único aspecto. Mas é o aspecto plástico que ressalta; o
mutável; o trânsito entre linguagens; o meio híbrido e maleável de uma obra cujo fluxo entre o
sentimento e a observação criam uma teia cognitiva, um universo abrangente e peculiar.
Desse modo, surge uma obra original cuja dificuldade em situar em uma única estética não é
casual. Essa poesia, embora possua muitos elementos do realismo e possa estabelecer
relações com a pintura, sobretudo impressionista, supera a observação e precede a visão
moderna: visão que foca o transitório, o tempo de alterações velozes e contínuas em que o
indivíduo encontra-se em constante conflito, fragmentado e perplexo diante da realidade.
Cesário consegue captar os "cacos" do real, os "cacos" do indivíduo. O espaço, o tempo e o
homem tornam-se pedaços de uma colcha de retalhos, mas retalhos em movimento, criando
diversas figuras num caleidoscópio de uma época turbulenta e também indefinida.
***
Como situar essa poesia da imagem e do novo? Já dissemos que existe uma grande dificuldade
em fazê-lo, no entanto, muitos estudiosos procuraram encontrar a melhor forma de definir a
poética que ora analisamos. Jorge Luiz Antonio, cujo trabalho também trata da visualidade
presente na poesia de Verde através das relações com a fotografia, com o cinema, mas
sobretudo com a pintura, enquadra Cesário no Realismo Impressionista. Segundo ele, haveria
inclusive razões históricas para enquadrá-lo nessa estética, tendo em vista que todos os
biógrafos do poeta português assinalavam que, em 1881, o poeta passara a conviver com os
artistas e literatos que se reuniam no Leão de Ouro, na Rua do Príncipe, sob a designação de
“Grupo do Leão”. (Antonio 2002: 67)
Acreditamos que se algum enfoque da poesia de Verde pudesse inserí-lo em alguma estética,
seria essa a mais acertada, pois reconhece a extrema importância da impressão causada pelas
imagens retiradas da realidade como forma de captação e apreensão do exterior. Por outro
lado, há dificuldade em inserir essa poética em determinada corrente, pois existe um
entrelaçamento de diversos elementos estéticos, o que nos revela a discordância entre os
inúmeros estudiosos do poeta nesse ponto, e, em sua fortuna crítica, veremos diferentes
interpretações de sua originalíssima linguagem. Simultaneamente prosaica e formal, utiliza um
tom quase sempre seco; cria imagens surpreendentes; escolhe temas corriqueiros, etc.
Podemos afirmar ser um momento crucial à literatura portuguesa o aparecimento de Cesário
Verde. A modernidade latente reflete o gênio de um poeta que soube captar com muita
perspicácia as nuances mínimas do real, acompanhando seus movimentos, repetindo na arte o
dinamismo e a flexibilidade dos novos tempos cuja instabilidade, própria da transição, é, no
entanto, bastante fértil.
É justamente a modernidade de Cesário objeto de estudo de Carlos Cunha (1955), em um
ensaio no qual procura demonstrar a individualidade desse poeta. Para ele, a "observação
como fonte de percepção dos objetos" constitui "a pedra de toque" dessa individualidade e
ressalta da oposição cidade/campo. Considera o bucolismo de Verde "pragmático", "anti-
idílico" e que o sentido do útil é a novidade, a modernidade desse bucolismo. Outro ponto
importante discutido sobre a poética em estudo é a "libertação da imagem das analogias
racionais e o hermetismo" que definiriam a poesia moderna. Menciona o "valor estético"
convertido em "valores morais", aproximando o olhar do poeta daqueles oprimidos pela
injustiça social e resultando em uma exaltação do povo.
Apesar de nosso recorte, não podemos deixar de mencionar alguns dos estudos importantes
sobre essa obra, rápida e sucintamente.
Joel Serrão (1957) observa um processo de integração à cidade que se dá, progressivamente,
ao longo da produção cesarina e que resulta num posterior retorno ao campo. Helder Macedo
(1975) enxerga também um processo progressivo, mas, em seu ponto de vista, a visão do
campo modifica-se no decorrer do aprimoramento estético e tem sua maior expressão no
poema “Nós” em que a idealização bucólica é de todo suprimida, dando espaço ao campo real.
Segundo ele, o poema “Provincianas” encerra uma "perspectiva ideológica despersonalizada e
radicalizada", e, apesar de inacabado, deixa entrever possibilidades e desperta dúvidas quanto
ao direcionamento da poética de Verde, caso não tivesse morrido.
Joel Serrão (1957) inicia sua análise dando um panorama histórico das mudanças em Portugal
(revolução dos transportes e da comunicação, perda da colônia brasileira, lançamento das
estradas de ferro, etc) e de que maneira estabelecem o conflito, principalmente em Lisboa,
"centro por onde a civilização européia coeva e a mentalidade progressista se introduzia":
conflito entre o progresso que altera a aparência do país mas não altera o provincianismo de
grande parte dos portugueses. O estudo é visto pelo próprio Serrão como um trabalho
"incompleto, provisório, imperfeito, principalmente provisório", mas possui um excelente
painel da obra cesarina, tendo em vista que apresenta todos os poemas e suas variantes, a
data e o local em que foram publicados pela primeira vez e reflete, profundamente, acerca da
organização realizada por Silva Pinto ao editar O Livro de Cesário Verde com exclusão de
poemas, alteração de títulos e versos, levantando o problema de como compreender os
critérios utilizados na edição, critérios que permanecem incertos. Deixemos de lado, por
enquanto, a discussão acerca do livro organizado por Silva Pinto e ressaltemos a importância
das alterações rápidas e profundas do século XIX para constituição dessa poesia precursora do
moderno.
Carlos Cunha (1955) considerou Cesário Verde: "Esteta baudelaireanamente requintado, com
mórbidas antenas para a apreensão do extravagante e do sinistro...", e Joel Serrão (1957)
também comparou o poeta português ao francês. Para ele, Baudelaire não sofria a crise de
estar ligado ao campo, de ser um camponês encerrado na cidade. Considera, ainda, que a
passagem abrupta dos poemas inspirados no tom brincalhão e irônico de João Penha ao
"escandaloso" universo poético de Baudelaire foi, em grande parte, motivo da impopularidade
de seus versos porque: "Nem a Lisboa 74 era a Paris de 55, nem as lisboetas, que começavam a
sair sozinhas a rua, eram as mulheres que passam através da Fleurs du Mal." Os críticos
lisboetas provincianos não poderiam compreender e aceitar um tipo de poesia liberto dos
valores burgueses.
***
Dois poemas servirão de base ao estudo da plasticidade na poesia de Cesário Verde: “Num
Bairro Moderno” e “O Sentimento de um Ocidental”, pelo fato de apresentarem uma estrutura
totalmente permeada pela transformação, transformação que dialoga com o caráter mutável
da época em estão inscritos e representada pela visualidade exposta em um fluxo de imagens
sucessivas. Juntos realizam uma síntese dos principais pontos de vista pelos quais podemos
analisar essa obra.
Em “Num Bairro Moderno”, a figura feminina estabelece o contraste entre campo e cidade e
altera o estado de espírito do narrador; a presença da luz é essencial nesse poema, compondo,
juntamente com o olhar do 'eu' poético, a metamorfose imagética, possibilitando a associação
já citada ao pictórico impressionista (voltaremos a ela no decorrer do estudo). A transmutação
observada no poema é engendrada através da visão do "fragmento de campo" reconhecido no
cabaz da vendedeira. Essa visão dissipa a apatia e a doença e recria a humanidade, trazendo
saúde e vitalidade à realidade citadina. Em contrapartida, em “O Sentimento de um Ocidental”
a cidade absorve o narrador através de uma noite crescente. Essa noite é o pano de fundo
tenebroso em que as injustiças sociais, a doença associada ao modo de vida na capital, a
sensação de prisão e sufocamento inspirada pelo ambiente urbano, engendram a
transformação que caminha, gradualmente, para a plenitude do pasmo e do arrefecimento.
***
Em “Num Bairro Moderno”, logo no primeiro verso temos a demarcação do instante, dez horas
da manhã; em seguida, o cenário é apresentado: o bairro com ares de modernidade
entrevistos na “larga rua macadamizada”. O tempo e o espaço são determinados em uma
espécie de enquadramento como se um pintor acabasse de escolher o lugar e a hora do dia
para registrar com sua paleta. Vejamos:
Na terceira estrofe, o aparente contraste das “tonturas duma apoplexia” do caminhante com o
“conchego saudável” ao redor constituem uma ironia, ele desce “sem muita pressa” para o
“emprego” (notem, ele desce para o “emprego”, não para um trabalho) seguindo com a
mesma lentidão da vida ao redor:
A indiferença das classes mais privilegiadas diante dos desfavorecidos aparece na figura do
criado atirando um cobre “lívido, oxidado”: a escolha de uma personagem inserida no
contexto burguês como um serviçal dissipa qualquer possibilidade de interpretação
maniqueísta. Cesário critica a afasia predominante no espaço dos privilegiados, mas que
perpassa todos os setores sociais, podemos observar isso em outros poemas, como em
“Cristalizações”, por exemplo: “Mal encarado e gordo, um pára enquanto eu passo;/Dois
assobiam, altas as marretas/Possantes, grossas, temperadas de aço;/E um gordo, o mestre,
com um ar ralaço/E manso, tira o nível das valetas”. Quando mostra o criado “muito
descansado” ou o mestre de obras com “ar ralaço e manso”, o poeta descreve a ausência de
atitude de toda a sociedade diante de uma realidade injusta. Em “Contrariedades”, temos:
“Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,/Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho/Diverte-
se na lama”. Nesses versos notamos claramente a ausência de idealização do povo, não há
aqui os miseráveis cheios de heroísmo dos românticos, mas o “populacho” pacífico, multidão
de alienados divertindo-se na lama.
Na obra de Verde parece haver uma grande associação entre o resignado e o mórbido,
presente desde o início de seus trabalhos. Em “Setentrional”, poema da primeira fase (1873-
1874), a companheira triste, ao esconder o “rosto de marfim/ no véu negro das freiras
resignadas”, suscita no 'eu' poético a mesma sensação de sepultamento, e ele passa “calado
como a morte”. Nesse momento, podemos citar o estudo de Margarida Vieira Mendes (1987).
Para ela, “Toda a poesia de Cesário Verde torna perceptível e palpável a paixão que gera: a
rejeição da morte”, a partir desse eixo discorre acerca dos elementos que delatam a vontade
de sobreviver, em que cada poema é a “agregação e conjunção de forças vitais”.
A vendedeira curvada ao peso de sua canastra traz consigo “a horta aglomerada” e suas
emanações sadias:
Subitamente - que visão de artista! É o clímax dessa narrativa poética. Uma verdadeira
epifania: o vislumbrar de um novo ser - a banalidade é convertida em encantamento
modificando o estado de espírito do narrador e o próprio ambiente. Processo semelhante
ocorre no poema “A Débil”, é a partir de uma visão transfiguradora que a realidade ganha o
ânimo, a força, o entusiasmo. Até mesmo a expressão “visão de artista” pode ser comparada à
“vista de poeta” capaz de fazer enxergar na figura feminina “uma pombinha tímida e quieta”, e
na multidão, “um bando ameaçador de corvos pretos”. Mas deixemos de lado, por ora, a
comparação entre os dois poemas (que renderia boas páginas) e continuemos dentro do
bairro moderno onde, agora, o ritmo adquiriu um excesso de rapidez: as imagens espocam
sucessivas, aparecem “aromas, fumos de cozinha”, de repente, há um corte e vemos outra
cena: “Com o cabaz às costas e vergando/ Sobem padeiros, claros de farinha”, e, por fim, um
frenesi em algumas portas em que se tocam campainhas. Se novamente a luz, como em uma
tela genuinamente impressionista, auxilia a compor as formas de um ser humano “que se
mova e exista/ Cheio de belas proporções carnais”, a rapidez das telas seguintes lembram o
cinema em sua exposição frenética de fotografias num instante, recriando o movimento
capturado pela câmera. Por outro lado, os tons e as formas capazes de deixar serem vistos
“uma cabeça numa melancia/e nuns repolhos seios injectados” irão nos fazer lembrar dos
quadros de Giuseppe Arcimboldo, artista quinhentista famoso pelas telas nas quais vegetais
são transformados em figuras humanas.
Mas o pintor milanês era um maneirista, e, portanto, a intenção de suas obras era criar
distorções da realidade, e não registrá-la em seus menores aspectos, como é o caso do nosso
autor português. Quando enxerga "colos, ombros, bocas, um semblante/na posição de certos
frutos", o poeta apenas associa formas, acentua as sensações de vitalidade, cria texturas,
evoca sabores e cheiros, procura fazer com que possamos sentir, de fato, aquilo que nos
mostra. Mas, certamente, na extravagância da imagem, na importância predominante da
feição exterior das coisas em detrimento do abstrato, podemos encontrar outras semelhanças
entre ambos.
Após a epifania, na qual o vulgar é transmudado em “visão de artista”, em momento mágico
produtor da metamorfose do marasmo em movimento e da inércia em vida, o desfecho do
poema nos deixa uma impressão de vigor, como se o próprio processo de recriação da
humanidade fosse uma convalescência conseguida através do frescor das frutas e verduras, do
golpe de naturalidade contido na “horta aglomerada”.
É notável a transformação dos tons esmaecidos de matizes transparentes em cores mais fortes
adivinhadas no verde do ramo de hortelã e na alface e explicitada no dourado do céu. O
“corpo orgânico” manteve seus aromas e sua multiplicidade de coloridos. A jovialidade da
vendedeira ao pedir ajuda, a falta de desprezo com que é atendida, o “enorme esforço
muscular” realizado para levantar o cesto, tudo reflete “as forças, a alegria, a plenitude” de
uma mudança drástica de estado de espírito. Os versos “Que brotam dum excesso de
virtude/Ou duma digestão desconhecida” revelam um humor brincalhão, muito diferente
daquele observado no início do poema, na terceira estrofe, em que o tom irônico revela o
desgaste, o fastio do narrador.
“(...) no contexto do poema, a familiar metáfora morta que é a frase ‘ maçãs do rosto’ é
galvanizada para uma nova vida pela sua associação implícita com a fruta real no cabaz da
rapariga” (Macedo 1975: 153).
A segunda cena dessas três estrofes é o quadro do garoto espirrando água na planta como
quem separa o joio do trigo ou como quem “borrifa estrelas”, a claridade da pequena tela nos
remete novamente ao impressionismo, à luminosidade cristalina. Depois, o canto infantil do
canário, as emanações salutares, “os raios de laranja destilada”, tudo nos transmite a alegria e
o sabor do rejuvenescido:
“A criança vê tudo como se fosse uma novidade; está sempre ébria. Nada se assemelha mais
àquilo que chamamos inspiração do que a alegria com a qual a criança absorve a forma e a cor.
Ousarei ir um pouco mais longe; afirmo que a inspiração tem certa relação com a congestão, e
que todo pensamento sublime é acompanhado de um impulso nervoso que ressoa até o
cerebelo. (...) o gênio não é senão a infância reencontrada, sem restrições, a infância dotada
agora, para se exprimir, de órgãos viris e de espírito analítico, que lhe permitem ordenar o
conjunto de dados involuntariamente recolhidos.” (Baudelaire 1993: 16)
Nas duas últimas estrofes, a regateira adquire audácia, ergue o peito orgulhosa. O contraste
entre a disposição altiva e o corpo franzino coberto pela chita parecem, aos olhos do
observador, uma “desgraça alegre” provocadora: as “couves repolhudas, largas” comparadas
às “grossas pernas dum gigante” acentuam o humorismo da última imagem, o poema finda em
um tom cômico, divertido. O tédio e a apatia são de todo dissipados, até mesmo a vendedeira
parte vaidosa como se, ao portar a “verdura rústica, abundante”, fosse ela mesma
transformada em um ser robusto, como se tomasse emprestado “o novo corpo orgânico”
gerado pela “visão de artista”.
***
As questões que levaram os russos a revolucionarem o cinema, no início do século XX, foram
semelhantes, embora em outro contexto. O importante, em nosso enfoque, é demonstrar
como a estesia cesarina se aproxima da concepção estética de gênios como Dziga Vertov e
Serguei Eisenstein, confirmando o uso de uma imagética surpreendente capaz de antecipar
recursos revolucionários de uma linguagem sequer iniciada.
“NÓS declaramos que os velhos filmes romanceados e teatrais têm lepra (...)
Para Eisenstein, nos contrastes e contigüidades entre dois planos, seria possível gerar um
terceiro, diferente dos dois primeiros. Em outras palavras, a construção do sentido se efetuaria
a partir da combinação de elementos antitéticos e análogos, criando um novo conceito do real:
o procedimento foi denominado “montagem dialética”. (Eisenstein: 1983)
As concepções estéticas descritas possuem grande afinidade com o processo entrevisto nos
versos do “Sentimento dum Ocidental”, nos quais a “negação do presente” e a “aceleração de
sua morte” são uma forma de combater o velho ponto de vista “romanceado e teatral” de uma
nação arraigada a valores provincianos. A apreensão do exterior ajusta oposições e analogias
para criar um panorama do cenário lisboeta da segunda metade do século XIX.
A cor londrina indica, ainda, a relação entre o cárcere urbano e o modo de vida da civilização
inserida no contexto industrial.
Mesmo nas edificações inacabadas, o observador enxerga “gaiolas, com viveiros”, a figura
explicita a disseminação das "prisões" pela capital portuguesa, e, simultaneamente, atribui um
feitio de animalidade ao conglomerado popular, reafirmado na comparação dos carpinteiros a
morcegos. A símile também acentua o clima aterrorizante do passeio noturno.
As três estâncias seguintes são apresentadas feito uma rápida sucessão de pinceladas num
painel. O movimento amalgama a fluência do rio viscoso e das obreiras na mesma tela: o
esvaziamento dos arsenais e oficinas. A associação recorrente da massa operária ao
animalesco irrompe na visão do cardume.
“Graças a esta sua atração pelo banal e vulgar, pelos aspectos sujos e desagradáveis da grande
urbe opressiva e anônima, a poesia de língua portuguesa facilmente ingressa seu corpo inteiro
na era industrial. Com isso, começa a ruir o edifício das Verdades e Belezas eternas; com
Cesário, o espaço poético passa a ser dominado pelo transitório e efêmero, de onde se origina
uma imagem da existência como fragmentação e dispersão, em que a consciência individual se
vê permeada pela presença objetiva da realidade circundante, que, ao mesmo tempo, repele e
fascina.” (Moisés 1982: 4)
II
Agora o transeunte encontra-se em uma noite fechada: a vista das prisões, da velha sé, das
cruzes, serve à composição do panorama nebuloso de um mundo que vai, gradativamente,
transformando-se em ambiente funesto. Concomitantemente, a cidade vira uma espécie de
prensa, imprimindo no espírito o abismo da realidade. Assim, na segunda estrofe, o acender
das luzes faz com que o narrador desconfie de um aneurisma, uma dilatação circunscrita a
alguma das veias coronárias, e capaz de causar a morte. O coração se enche e se abisma: a
imagem concentra enorme significado, pois todo o percurso narrativo nos encaminha ao
sentido de arrefecimento e clausura inspirado pelo alargamento da percepção da urbe em
seus menores aspectos.
O som das grades no aljube dos primeiros versos parece ressoar no tanger monástico e devoto
dos sinos da quinta estrofe. O encarceramento de velhinhas e crianças no lugar destinado aos
marginais realiza enorme crítica social, e as mulheres de “dom”, aquelas raramente encerradas
no calabouço dos desfavorecidos, são, provavelmente, as mesmas encurvadas diante das
vitrines dos ourives; sua postura arqueada é semelhante a das floristas e costureiras. Entre
essas moças responsáveis pelo adorno colorido das casas ou pelo figurino das “elegantes”, há
comparsas e coristas, colaboradoras de algum espetáculo: nenhuma escolha é fortuita em
Cesário Verde, ao apontar as funções exercidas pelas trabalhadoras, designa o fato de terem
elas um papel subalterno, de serem coadjuvantes na tragicomédia humana.
O cárcere urbano é refletido no “recinto público e vulgar”, onde a exigüidade é ardida como o
fruto da pimenteira, sobretudo quando aproximada ao monumento do mundo épico, de
proporções guerreiras. O fato de a escultura estar circunscrita ao espaço trivial salienta a
condição presente, muito distante de qualquer grandiosidade, ou de uma tendência combativa
contra a iniqüidade. Essa apatia aparece nos poemas cesarinos vinculada ao doentio; assim, à
“acumulação de corpos enfezados” converge a idéia de inércia civil.
III
As burguesinhas do catolicismo
Então, de modo brusco, aparece um forjador de objetos cortantes manejando um malho como
se estivesse realmente utilizando seu instrumento para romper o acúmulo enfermiço de
trevas, surge num golpe súbito de cor: “rubramente”.
Em outro corte inesperado surge uma padaria, e no “cheiro salutar e honesto a pão no forno”,
outra hipálage: a honestidade e a saúde estão nos trabalhos manuais, nos trabalhos
independentes da indústria. E, enquanto a visão desse segmento de vitalidade incita no
narrador a vontade de extrair da análise e do real um “livro que exacerbe”, as vitrines das
casas de confecção atraem um “ratoneiro” em uma oposição ambivalente entre a aspiração do
'sujeito' e a ambição do gatuno, entre o ansiado e o conseguido.
Assim, torna-se impossível pintar com versos “magistrais, salubres e sinceros” qualquer lirismo
desse mundo decadente: de “longas descidas”. Soaria falso executar uma pintura romântica
difundindo reflexos tão parcos de luminosidade natural. Parafraseando Dziga Vertov, os velhos
poemas romanceados e teatrais têm lepra, e Cesário o sabe.
Mas é necessário manter as aparências: na figura das duas damas vemos a personificação dum
tempo de valores corrompidos em que o velho e o novo se igualam, representam a mesma
sociedade decrépita em sua necessidade de maquiar a vida.
Para disfarçar a própria realidade, a nação portuguesa se dobra ao modelo estrangeiro, feito as
“elegantes/ curvadas a sorrir às montras do ourives” da segunda parte do poema.
Que grande cobra, a lúbrica pessoa
Na última parte de "O Sentimento dum Ocidental" o homem está trancado, de modo
irreversível, no ambiente terrível de espectros e figuras monstruosas de Lisboa. Mesmo o
oxigênio comprime feito o "céu baixo e de neblina" da primeira seção: o próprio ar se tornou
um tapume extenso no meio das "trapeiras", tralhadoras semelhantes ao poeta no ofício de
recolher farrapos do espaço urbano. Mas o poeta enxerga, em cada retalho, o pano roto da
realidade.
Dentro desse universo esfrangalhado, mesmo os astros choram e têm olheiras; o farol parece
ter olhos sangrentos; e a "quimera azul de transmigrar" intensifica o contraste entre a vontade
mais íntima do indivíduo e as ruínas do lugar onde caem parafusos, ringem fechaduras, tudo se
esfacela e desmorona. Repentinamente, entre as pautas bifurcadas do caminho de fachadas,
(caminho de aparências ambíguas), ouve-se, ao longe, o som machucado e aziago de uma
flauta. A melodia provoca o desejo de não morrer nunca, de conseguir a perfeição: um modo
de vida mais simples, transparente, em que a pureza e a claridade dissipariam qualquer
resquício de sombra, trazendo "a raça ruiva do porvir", colorindo o futuro. Viriam filhos ágeis,
livres como pássaros, e a possibilidade de explorar todos os lugares: "Madrid, Paris,
S.Petesburgo, o mundo!". Seria possível, assim, escapar da densidade e das cadeias desse
ambiente tenebroso; seria possível encontrar a fluidez das "vastidões aquáticas", enfim,
libertar o espírito e alcançar a plenitude.
Mas a "correnteza augusta" foi apenas uma breve miragem, ainda há o calabouço, onde até
mesmo os gritos de socorro foram estrangulados, fomos definitivamente comprimidos,
emparedados pelas muralhas da realidade; o sonho foi desvanecido, interrompido pelo
imediato reconhecimento do "vale escuro".
Em seguida, vemos a imagem grotesca das vísceras dos bebedores tristes nos "ventres das
tabernas", em um processo metonímico de extrema originalidade. Os versos possuem
tamanha intensidade, que a náusea estimulada pela visão parece adiantar o vômito dos
cambaleantes. Essas duas figuras tristes não provocam no observador-narrador o receio de um
roubo, ou porque inspiram somente piedade, ou porque não há nada mais a ser retirado dum
'sujeito' em profundo desalento. Os caminhantes se afastam, e, como em outros momentos do
poema, há um corte brusco da cena. Os aspectos mais nauseabundos e perversos do exterior:
a sujeira, a doença, a marginalidade e a ferocidade desses atributos, são entrevistos na figura
amarelada dos cães que parecem lobos. Consecutivamente, enxergamos os guardas, eles
servem de chaveiros na prisão de algumas ruas. Logo depois, nos reencontramos com as
prostitutas, tossindo e fumando; os "roupões ligeiros" identificam, metonimicamente, a pressa
com que suas roupas são retiradas.
No fim desse longo poema dividido em quatro seções de onze quadras, o "desejo absurdo de
sofrer" da primeira estância ressurge no refluxo sinistro das marés de fel do sofrimento
humano, convertendo a sensação de assombro e clausura do indivíduo em representação de
uma dor coletiva.
***
Baudelaire, no último parágrafo de "O Pintor da Vida Moderna", disse algumas palavras sobre
o pintor Constantin Guys que bem podem ser aplicadas ao nosso poeta, e, com elas, daremos
desfecho ao estudo presente:
"(...) ele cumpriu voluntariamente uma função que outros artistas desprezaram, e que cabia
sobretudo a um homem do mundo cumprir; procurou por todo lado a beleza passageira, fugaz,
da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar a modernidade. Muitas
vezes estranho, violento, excessivo, mas sempre poético, soube concentrar nos seus desenhos
o sabor amargo ou capcioso do vinho da vida." (Baudelaire 1993: 61)
BIBLIOGRAFIA
ANTONIO, Jorge Luiz (2002). Cores, Forma, Luz, Movimento: A Poesia de Cesário Verde. São
Paulo: Musa Editora/ FAPESP.
BATALHA, Maria Cristina (1999). Num Bairro Moderno: O olhar enviesado da periferia
européia: Matraga, revista da Pós-Graduação do Instituto de Letras, UERJ.
BAUDELAIRE, Charles(1993). O Pintor da Vida Moderna, trad. Teresa Cruz. Lisboa: Vega.
BUESCU, Helena Carvalhão (org) (1986). Colóquio/Letras outubro, revista. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian.
CUNHA, Carlos (1955) Cesário, poeta moderno. Lisboa: Braga, Of. Gráficas Livraria Cruz (Quatro
Ventos).
EISENSTEIN, Serguei. (1983) In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Trad.
Marcelle Pithon. Rio de Janeiro : Graal/Embrafilme.
FERREIRA, Maria Ema Tarracha (1983). Introdução, em O Livro de Cesário Verde, Lisboa,
Editorial Verbo.
FIGUEIREDO, João Pinto de (1986). A Vida de Cesário Verde, 2ª ed. Lisboa: Editorial Presença.
FILHO, Rodrigo Octavio (1972) Espelho de Duas Faces. Rio de Janeiro: Livraria São José.
MACEDO, Helder (1975). Nós: uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Plátano Editora.
MENDES, Margarida Vieira (1987). Poesias de Cesário Verde, 3ª ed. Lisboa: Editorial
Comunicação.
MOISÉS, Carlos Felipe (org.) (1982) Cesário Verde: Poesia Completa e Cartas Escolhidas. São
Paulo: Cultrix.
(1986) Cesário Verde, o poeta do instante que passa, em O Estado de São Paulo, jornal,
Suplemento Cultural, 06 de setembro, p.6-7.
OLIVEIRA, Luís Amaro de (1944). Cesário Verde: novos subsídios para o estudo de sua
personalidade. Perfil e Ensaio. Coimbra: Nobel.
PESSOA, Fernando (1993) In: BERARDINELLI. Cleonice (org.). Obras em prosa. Rio de Janeiro.
Editora Nova Aguilar S.A.
SERRÃO, Joel (1957). Cesário Verde: interpretação, poesias dispersas e cartas. Lisboa: Editorial
Minerva.
___(1986) O essencial sobre Cesário Verde. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda.
VERTOV, Dziga. (1983) In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Trad.
Marcelle Pithon. Rio de Janeiro : Graal/Embrafilme.
NOTA