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Arte e Antropologia

A arte sempre foi interesse de antropólogos, seja de Frazer interessado nas


narrativas míticas ou de antropólogos mais recentes, pesquisadores das mais variadas
manifestações culturais modernas, sejam elas artes plásticas, musicais, literárias ou
corporais.

Existe um muro bem construído entre ciência e arte, a antropologia tem o caráter
desafiador de alguns momentos olhar de cima do muro para os dois lados; de captar
informações de um dos lados do muro e “fazer” ciência no outro lado do mundo; de se
jogar para um dos lados e esquecer do outro; e de derrubar muros conseguindo fazer
arte e ciência ao mesmo tempo, tirando o caráter contraditório dos dois.

Uma das relações mais comum da antropologia com a arte se dá na literatura, os


antropólogos realizam uma etnografia literária, fazem literatura e arte. O antropólogo
mais antigo a fazer isso é Frazer, mas foi Geertz que debateu o assunto e estabeleceu um
modo de fazer antropologia. Essa é uma das relações da antropologia com a arte.

Por um lado, temos a antropologia das imagens, os antropólogos viram o seu


olhar para as manifestações culturais expressas em imagens, sejam elas oficiais, em
grandes obras de arte em museus de arte, ou pichações nas ruas das cidades. Tentam
compreender a sociedade e a cultura a partir daquelas imagens, de quem as faz, como e
quando, qual a relação das pessoas com essas manifestações e como podem essas
manifestações descrever a sociedade.

O ser humano atribuir sentido as coisas por meio de som e imagem é algo que
ultrapassa fronteiras e torna-se um elemento central de estudo antropológico. Percebido
pelos pais da antropologia, de franceses vindo à américa do sul estudar os indígenas, de
ingleses indo à África compreender as sociedades para poder aplicar impérios ingleses
de sucesso; dos Estados Unidos estudando os melanésios.

Os antropólogos classificaram as sociedades em escalas de evolução.


Inicialmente, acreditaram que o estágio mais inicial da sociedade e ser humano já não
existia mais, mas que existiam os selvagens com uma produção artística pouco
elaborada; existiam algumas sociedades classificadas como eles como mais elaboradas,
e um dos fatores de análise era a arte; e o estágio mais avançado era a sociedade
ocidental, mais especificamente a Europa, com uma produção artística rica, estágio que
eles acreditavam que todos chegariam. Portanto, a Arte foi um dos fatores de análise e
classificação social.

Até chegarem ao ponto de que todas as artes eram válidas, não eram inferiores e
cabíveis de uma evolução para serem consideradas melhores, muita coisa aconteceu. O
ponto central foi passar a compreender essas sociedades como um todo social, a
comparação com a Europa foi descartada e o lugar com suas manifestações culturais
passou a ser estudada a partir de sua ótica. Ponto central para retirar as sociedades de
estágios evolutivos e diminuir um pouco com o massacre cultural justificado. Passar a
considerar os povos do sul do Brasil, como os Kaingang tão evoluídos ou artisticamente
capazes como os povos da Amazônia foi um grande passo. As cerâmicas amazonenses
encontradas com belas grafias eram consideradas muito mais arte que as cestarias dos
Kaingang. A cerâmica amazonense era considerada inferior que os artefatos dos astecas.
E obviamente toda essa produção era considerada inferior que as produções artísticas da
Europa. Um processo similar e concomitante acontecia com os povos africanos, que
rapidamente foram sendo dizimados para dar lugar a uma cultura dita como superior,
ensinada pelos ingleses e imposta como novo modo de vida. Cabe destacar, que mesmo
o massacre tendo sido intenso, violento e covarde, as manifestações artísticas foram
resistência nos povos, mesmo passando por descaracterizações, ela conseguia ser
reinventada e continuava sendo importante culturalmente.

A arte sofre um juízo de valor estético, classificando o que é arte ou não, se


antigamente isso acontecia classificando as pinturas europeias como arte, e as pinturas
em cerâmicas como infantilizadas. Hoje em dia, podemos ver essa classificação de
beleza em diferenças entre grafites e pichações, música clássica, ou até mesmo mpb
com um funk, uma literatura dos cânones com uma literatura periférica. Por essa relação
da arte com a estética que a antropologia torna-se praticamente um polo distante, a
estética coloca um juízo de valor na arte e isso não pode acontecer na antropologia,
portanto não cabe à antropologia da arte definir belezas e realizar classificações, mas
sim compreender aquela arte pelo indivíduo que a fez e pela sociedade em que está
envolvida.

Apesar de toda essa intensa necessidade de classificar o que é arte e o que não é,
com inúmeros fatores colocados como justificativas, não pode ser negado essas
manifestações como recurso de comunicação das sociedades de hoje e de antigamente,
mas não unicamente com valor linguístico.
Mais especificamente, a Antropologia da Arte tem como objeto de pesquisa os
artefatos estéticos e simbólicos. As imagens, como vídeos, fotografias, cinema são
objetos da Antropologia Visual que faz uso dos meios visuais, usando desses fatores
para refletir sobre certos fenômenos sociais. Ao longo do tempo, a antropologia visual
estendeu seu objeto de estudo de cinema e fotografias a desenhos animados, clipes de
música, fotografias de família, vídeos caseiros. Entendendo a arte enquanto fenômeno
do cotidiano, expressões sejam individuais ou coletivas.

A Antropologia Visual é uma área considerada inferior dentro da antropologia,


ganhando destaque atualmente. As críticas são sobre a cientificidade dos dados, mas
esta área de estudo questionou os cânones, transgrediu fronteiras. E tem se estabelecido
principalmente em países como o Brasil. Pode ser considerado Antropologia da Arte no
Brasil estudos como o de Roberto da Matta com sua pesquisa sobre o Carnaval, assim
como estudos de pichações e rap, e estudos de arte na etnologia ameríndia. Porém, a
antropologia da arte enquanto área de estudo é pouco estabelecida e isso se deve a um
passado positivista, ocorrendo uma divisão entre objetividade (ciência) e subjetividade
(arte). Nesse paradigma a arte só era viável na antropologia enquanto objeto de estudo,
mas não poderia ser usado para descrever uma realidade cultural. Clifford e Marcus nos
anos 80 questionam a separação entre antropologia e arte, tornando-se bibliográfica
básica para quem estudo na arte na antropologia.

É comum na antropologia estudos que variam entre ciência e arte, como se


precisássemos manter um paradigma positivista para validar o que fazemos. Ao estudar
literatura dentro da antropologia, me deparei com uma fronteira que eu acreditava estar
praticamente diluída, mas eu mesma estava determinada a não misturar ciência e arte.
Seria suficiente, acreditava eu, um único capitulo livre, artístico, literário, mas a
literatura, a escrita artística acabou invadindo a dissertação inteira, fazendo com que o
objeto de pesquisa deixasse de ser unicamente objeto e fizesse parte de uma construção
de conhecimento, me permitindo viver a pesquisa multissensorialmente. A antropologia
para mim deixou de ser só o olhar, o observar, passou a ser o escutar, o sentir no corpo e
na boca. Me permiti viver a arte que os artistas que eu convivia faziam, passei a
entender o espaço através da arte.

Dentro dos cânones a separação continua sendo uma exigência, mas numa
antropologia subversiva, uma antropologia latina, uma antropologia da arte periférica, a
arte se descreve por si só e pelo artista, o antropólogo se permite compreender o social
por meio dessa arte, dessa expressão. Saliento a importância de denominar arte as
expressões culturais de coletivos em situação de exclusão social. Conheci colegas que
enchiam o peito para afirmar que pichação e rap era arte e cultura, que se esforçavam
para justificar os motivos dessas manifestações serem consideradas assim, que faziam
questão de bater de frente com conceitos estéticos e de ocupar espaços em que
normalmente não os pertence. Na América Latina a arte é subversiva por si só, nas
periferias a arte mostra que pobre não tem fome só de comida, que os “outros” não são
sacos vazios onde podem ser preenchidos por arte canônica, mas sim são criadores,
produtores e divulgadores da própria arte.

Um antropólogo que se permite viver a arte trás nas suas pesquisas uma
experiência multisensitiva e multifocal para quem lê, trazendo para a construção da sua
etnografia elementos poéticos, sonoros e visuais. As imagens passam a fazer parte da
narrativa e não são meros exemplificadores visuais, as imagens contam uma história por
si só, os elementos sonoros trazem uma experiência que a escrita não dá conta de trazer.
Isso torna esse trabalho mais do que uma antropologia da arte, mas sim antropologia
artística. O antropólogo se torna um artista da sua própria produção cientista. A
fronteira entre artes e antropologia está cada vez mais vivida, pisada e sentida, a
fronteira existe e é importante enquanto tal porque ela produz um modo de subverter.

A antropologia da arte atualmente busca a arte no cotidiano, se torna


antropologia da arte um estudo feito num bairro a partir de fotografias de seus
moradores. Portanto muitas vezes o significado de arte é questionado, a arte faz parte do
dia-a-dia? É algo especial? O que faz a arte ser arte? Quem define isso? É papel da
antropologia pensar na concepção de arte?

Para Alfred Gell a relação da antropologia com a arte deve ser tensa, pois era
necessário criar novos paradigmas para essa relação (1998). A arte deve perder seu
caráter sacralizado para o antropólogo que a estuda. Ao considerar arte só aquilo feito
com essa intenção uma gama de produções não ocidentais passa a serem
desconsideradas. Desse modo, uma cestaria feita para colocar coisas não é a arte, porque
foi feita com uma função específica, comum e bem instrumental, não foi feita para ser
contemplada. Gell demonstra que instrumentalidade e contemplação não precisam
serem exclusivos, por exemplo uma cestaria tem um uso específico, guardar algo,
carregar algo, mas os traçados da cestaria têm a função de serem bonitas, de serem
contempladas, entre outras coisas determinadas pelo artista e seu meio social. A
dificuldade de elaboração, a distinção perante outros objetos, a excepcionalidade, para
Gell são características de arte. Para o autor a arte não pode ter função de linguagem, ele
propõe pensar a arte a partir da agency (uma tradução seria ação social), como um
sistema de ação “com a intenção de mudar o mundo em vez de codificar proposições
simbólicas a respeito dele” (GELL, 1998:6). Ele afirma que a arte deve ser vista
enquanto tal, um objeto que tem uma agency nas relações sociais, e não como um objeto
a ser lido e interpretado como um texto que tem algo a dizer. As críticas de Gell são
muito diretas a antropologia da arte de Geertz (1983). Para este último a arte enquanto
sistema simbólicos representa e transforma o mundo. Outro antropólogo que é atingido
com as críticas de Gell é Lévi-Strauss para quem a arte tem uma qualidade
comunicativa.

Se formos pensar numa antropologia da arte com tudo que os antropólogos


anteriores nos deixaram como legado: comunicação para Lévi-Strauss; criatividade para
Boas (1955); simbolismo para Geertz; agency para Gell. Alcançamos o ponto de tentar
compreender o papel da arte na sociedade e o que elas nos ensinam sobre interações
sociais, considerar ou não a arte como um agente nessas relações levará a resultados
distintos e nada desqualificados. A arte se torna não somente um objeto de pesquisa,
mas um modo de pesquisar e de expressar a pesquisa. A arte deve ser compreendida na
sua relação com os humanos, ela entra nessa relação social, ela se torna arte, é
compreendida como tal, ganha simbologia, comunica alguma coisa, cumpre uma função
e produz alguma ação na relação com as pessoas. Retirar a arte dessa relação social para
estudá-la deixa de ser antropologia, é preciso vê-la nessa interação humano-arte. É uma
problemática antropológica a relação humano-arte, os estudos que se propõem serem
uma antropologia da arte trazem essa discussão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOAS, Franz. 1955 (1928). Primitive Art. New York, Dover publications.
CLIFFORD, James & GEORGE, Marcus. Writing Culture. The poetics and politics of
Etnography. Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1986.
GELL, Alfred 1998. Art and Agency: an anthropological Theory. Oxford: University
Press.
GEERTZ, Clifford. Local knowledge: further essays in interpretive anthropology. New
York : Basic Books, 1983.

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