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A construção de uma agenda política negra1

Deivison Moacir Cezar de Campos

Introdução

O surgimento do grupo Palmares, no início da década de 70, em Porto


Alegre, significa um marco da reorganização dos movimentos sociais negros no
país, desarticulado pelo golpe militar. O grupo foi o responsável pela proposta
de adoção do dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi, como Dia do
Negro, em oposição ao 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura e, desde a
década de 30, Dia da Raça. A data seria nacionalizada em 1978, com a criação
do Movimento Negro Unificado (MNU), como Dia da Consciência Negra.

A proposta representou o principal fato político na reorganização dos


negros em movimento social, contendo uma nova postura frente ao processo
de marginalização e discriminação do negro na sociedade brasileira. A
substituição do 13 pelo 20 representaria simbolicamente o abandono de uma
postura passiva, seguindo a idéia de liberdade concedida, por um
posicionamento resistente, inspirado na experiência de Palmares.

Se os 70 representaram uma época de construção discursiva e


identitária, rompendo com a tradição de branqueamento como forma de
integração social, os anos 80 foram marcados pelas reivindicações dos
direitos, negociados a partir desse novo lugar social. O MNU, organizado em
núcleos estaduais, mas articulado nacionalmente, vai aproximar discursos e
cria os canais para a construção de pautas conjuntas. Essa organização vai
desembocar nas manifestações pelos 100 anos de Abolição incompleta, que
coincidiram com as discussões da Constituição cidadã, promulgada no mesmo
ano.

A pauta de reivindicações, construída durante a década de 80 e


parcialmente atendida no texto constitucional, servirá para os debates dos
anos 90. A regulamentação dos dispositivos constitucionais e a
institucionalização das reivindicações por cidadania mediarão as ações dos
movimentos sociais negros durante a década. Nessa década, ocorrerá a
Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que
marcou os 300 anos da morte de Zumbi.

A mobilização irá tensionar o governo brasileiro a institucionalizar as


discussões sobre racismo com a criação, na presidência de Fernando Henrique

1
Material didático. Disciplina EAD Estudos Afro-brasileiros e Indígenas. Canoas, Ulbra, 2016.

Jornalista, Doutor em Ciências da Comunicação. Coordenador do curso de Jornalismo da
Ulbra.
Cardoso, do Grupo Interministerial de Valorização da População Negra. O
processo de institucionalização, no entanto, ganhará materialidade com a
criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
em março de 2003 durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva. Essas
conquistas, no entanto, não podem ser pensadas fora da agenda construída
pelo chamado movimento negro moderno, iniciado nos anos 70, que manteve
a tradição de resistência ao contexto de opressão.

1 O surgimento dos novos Palmares

A história do Grupo Palmares, referência no processo de reorganização


do movimento social negro depois do golpe militar, e, principalmente, a
afirmação do 20 de novembro como Dia do Negro, segue um caminho marcado
por um primeiro ato restrito e localizado, do qual participaram 12 pessoas em
1971. A estadualização da proposta ocorre com o manifesto de 1972,
publicado em Zero Hora, e sua nacionalização se dará também pela imprensa.

Esta última etapa começa com o manifesto de 1974, publicado no


Jornal do Brasil, sendo seguida por Semanas do Negro, realizadas por
entidades paulistas, cariocas, baianas e minneiras. A consolidação se dá em
1978, com o surgimento do Movimento Negro Unificado, que adota a proposta
do 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. A opção por
uma perspectiva resistente centrado na imagem de Palmares e Zumbi em
detrimento de uma liberdade concedida vai produzir uma ressignificação
discursiva e identitárias.

Essa ação de subverter a esfera política e social, realizada pelo


Palmares e pelo movimento negro como um todo, deu-se principalmente pelo
viés cultural, por seu discurso romper com a ideia de uma cultura nacional
oficial. A subversão do discurso oficialista se dá através de três iniciativas: a
releitura da história do país, a reelaboração da identidade étnica e a tradução
dos ideais dos movimentos negros na diáspora e mesmo na África.

A releitura histórica, segundo o grupo, levaria os negros à tomada de


consciência de sua condição social. Ocorre, num primeiro momento, pela
recuperação de negros que participaram ativamente da história do Brasil,
passando num segundo momento a recuperar iniciativas de resistência ao
escravismo. Palmares e Zumbi, símbolos desde o primeiro momento, ganham
dimensão, por tornarem-se também modelos de estruturação de uma nova
relação entre os negros e de negociação com a sociedade: resistente e
comunitarista.

A identidade étnica negra, construída durante o período de escravidão


e mantida em manifestações como a religião, sofre uma reelaboração de seus
elementos simbólicos a fim de reafirmar a existência de uma cultura negra no
Brasil. Elementos esses que foram constantemente atualizados para garantir
as relações comunais. Assim ocorreu nas territorialidades negras, nas
manifestações culturais e nos referenciais simbólicos.

O terceiro componente apontado constitui-se na tradução dos


movimentos internacionais negros. Foram muitos os ecos que chegaram no
país. Também a luta pelos direitos civis e a contrária ao Apartheid são
elementos de influência. Ao traduzirem estas manifestações e não
simplesmente imita-las, o movimento negro brasileiro respaldou sua ideia de
uma cultura negra resistente e da existência de um poder negro, ligados a
uma tradição referenciada numa África mítica. Esse poder havia sido
demonstrado na prática nas guerras de libertação e construído em discurso
pelos movimentos estadunidenses, o Black Power.

O fato político estava definido desde os primeiros momentos do grupo


Palmares: não ao 13 e sim ao 20. As articulações ideológicas e identitárias
foram forjadas a partir dessa proposição, que trouxe consigo a mitificação de
Zumbi e a ressignificação do Quilombo. O mito de Zumbi dos Palmares
configura-se como ruptura com uma tradição estruturadora do pensamento e
das relações sociais. O processo vai ao encontro da proposição de Girardet
(1989) para quem o mito político pode surgir pela revolta contra uma ordem
social opressora em função, ou não, de um “traumatismo social”.

A estratégia de branqueamento havia falhado em sua ‘promessa’ de


integração e o discurso de democracia racial, mostrou-se sem fundamentação
prática. Restava a construção de uma nova alternativa, baseada agora na
afirmação de uma identidade negra. Proposto a partir desse contexto social, o
mito de Zumbi tornou-se então instrumento de reconquista de uma identidade
desconfigurada pelo escravismo e a marginalização social. Propõe-se então
uma integração socioeconômica por um viés negro para alterar o lugar de
cidadania relativa historicamente relegada ao negro.

2 Que negro é esse em Palmares?

A comparação entre os manifestos publicados pelo grupo Palmares em


1972 e 1974 possibilita uma boa análise da transformação de um discurso mais
culturalista para um mais político, da discussão teórica para a prática
militante. O primeiro documento busca apontar a situação de marginalização
em que o negro se encontra e as possibilidades reais de superação dessa
condição. Em 1974, com críticas bem mais contundentes, buscam explicação
também na submissão da maioria dos negros de classe média ao sistema que
lhe é imposto, principalmente aos que buscam alterar sua situação, através do
branqueamento social.

As justificas apresentadas pelo grupo em 1972 referem-se à construção


de uma base teórica consistente para o reconhecimento da tradição e da
história da presença negra no Brasil. Objetiva com isso alertar a condição de
aculturação sofrida historicamente, sendo, desta perspectiva, a reapropriação
dos elementos da cultura negra determinante para que o negro possa se impor
como ser humano completo.

No manifesto de 74, referem que a estrutura dominante nega o acesso


da população negra ao seu passado, ignorando sua cultura por força da
alienação. Para a superação desse processo, o grupo buscaria alertar, com
ações diretas nas comunidades, “no sentido de reavivar as verdadeiras raízes
culturais do negro brasileiro”.

A discussão sobre a historiografia oficial e a necessidade de revisão


desta está colocada como questão central nos dois manifestos. O primeiro
refere que os desvios e confusões são tantos que se criam reservas frente a
mitos que estejam em oposição ao sistema, como é o caso de Zumbi.
Reforçam, no entanto, a importância de Palmares que é visto pela história
oficial como ação civilizadora e não como um protesto social.

A crítica ao processo de apagamento da memória sobre o quilombo de


Palmares radicaliza-se em 1974. Segundo o manifesto, os fatos ligados a
Palmares teriam sido apagados pela cultura acadêmica, incluindo a
historiografia marxista, tida como omissa em relação a esse episódio e as
demais rebeliões negras. “Estavam tentado manipular o passado na África e
nas Américas para o resto do mundo” (Cortes, entrevista, CAMPOS, 2006).

A experiência de Palmares está no centro da proposição do grupo. Os


dois manifestos dedicam suas aberturas a análise do movimento quilombista e
a abordagem deste pela história oficial. Argumenta-se, no primeiro momento,
que Palmares foi desprestigiado oficialmente porque se trata de um
movimento de resistência duradouro na capitania mais rica da principal força
marítima do século XIV e XV.

A análise feita em 1974 propõe Palmares como fruto de uma “reação


constante e reiterada da escravidão”, uma estratégia de oposição ao sistema
escravista. Palmares é visto então como um “sistema social econômico e
político, baseado na igualdade dos membros” (GARCIA, 1974). A perspectiva
de resistência será retomada de forma consciente a partir de então como
princípio de atuação no combate ao racismo e a discriminação racial.

O uso da resistência como política negra provém do período do


escravismo. Os processos de insubordinação, revoltas e aquilombamentos não
podem ser entendidos fora de uma tradição, entendida como projeto de
política afirmativa possível. O pós-abolição igualmente será marcado pela
reconfiguração de sociabilidades e a reorganização dessas em territórios.

A marginalização e repressão dos libertos e as políticas de


branqueamento social vão marcar as relações nas primeiras décadas do século
XX. Os discursos de desumanização e a violência do estado manterão na
miséria e no silencio os descendentes de africanos sem direitos à cidadania
plena.

A ideia da existência de um “mundo negro” chegou ao Brasil ainda na


década de 30, através do grupo garveyrista 2 do jornal O Clarim da Alvorada 3. A
publicação era um dos meios de divulgação do movimento social negro do
período. O discurso do grupo, no entanto, não possuía grande repercussão,
pois a maioria das entidades negras adotava o branqueamento como modelo
de integração social.

Frente ao contexto opressor e de marginalização social, diferentes


iniciativas e projetos associativistas e culturais buscaram construir e promover
políticas de promoção de direitos para as comunidades negras, como a Frente
Negra [1931-1937] (BARBOSA, 2007), a União dos Homens de Cor [1943~1960]
(SILVA, 2003) e o Teatro Experimental do Negro [1944-1961] (NASCIMENTO,
2004). Também cumpriram um importante papel de ressignificação
identitárias os clubes negros, escolas de samba, imprensa entre outras formas
de estar em comum. A condição de ser sem pertencer, dupla-consciência
(DUBOIS apud GILROY, 2001), será confrontada a partir de diferentes
estratégias, culminando com o aquilombamento simbólico em Palmares.

3 Mobilizações e avanços

A estratégia de buscar na história a chave para compreender a


realidade da população negra brasileira pautou e dinamizou a atuação dos
movimentos sociais negros a partir dos anos 70. A evocação do 20 de
Novembro produziu uma identificação mais positiva de resistência do que a
Abolição. Por outro lado, os movimentos políticos, estéticos e artísticos, como
os movimentos blacks e iniciativas como a do Centro de Cultura e Arte Negra
(CECAN/SP), ofereceram elementos de autoestima a partir dos princípios do
black power e do black is beautiful. A combinação de resistência e autoestima
vai levar a mobilização política a partir dos novos referenciais identitários
para a reivindicação de acesso aos direitos e às esferas de cidadania.

2
Marcus Mosiah Garvey nasceu em 1887 na Jamaica. Fundou a Associação para o Progresso
Negro Universal, que contava com mais de um milhão de afiliados em 40 países em 1927.
Defendia a criação de uma nação autônoma e independente na África, chegando a investir no
desenvolvimento e colonização da Libéria. Lançou a Declaração dos Direitos dos Povos Negros
do Mundo, enaltecedor da etnia negra, encorajando a autoconfiança e o patriotismo africano.
As ideias de Garvey encontraram eco entre os líderes religiosos da Jamaica. A ele foi
atribuída uma profecia que previa a coroação de um rei negro na África, que conduziria os
negros do mundo inteiro a redenção. Os seguidores de Garvey na Jamaica reconheceram o
libertador em Ras Tafari Tafari Makonnen, proclamado rei da Etiópia em 1930, adotando o
nome de Haile Selassie I, dizendo-se legítimo herdeiro da antiga linhagem do Rei Salomão.
Numa leitura livre da bíblia, seria o messias que libertaria os negros do mundo inteiro e os
levaria de volta à terra de seus pais. (BEIER, 2005; GILROY, 2001).
3
Sobre a imprensa negra ver MOURA, 1983 e 1994; FERNANDES, 1978.
A repercussão do 20 vai desencadear uma série de iniciativas para
marcar a data a partir de 74, ano seguinte a entrevista do Grupo Palmares no
Jornal do Brasil. Ocorrem semanas do negro no Rio de Janeiro, no Centro de
Estudos Afro-Asiáticos, e em Salvado, na Sociedade de Estudos da Cultura
Negra do Brasil. Também neste ano, surge o Ilê Aiê, o primeiro bloco ligado à
negritude no carnaval baiano. No ano seguinte, serão realizadas atividades
também em Campinas e surge o Grêmio de Arte Negra e Escola de Samba
Quilombo. Ainda nesse período, Lélia Gonzales oferece o primeiro curso
universitário de Cultura Negra no Brasil na Escola de Artes Visuais da UERJ.

No processo de mobilização, o ano de 78 será paradigmático. O


assassinato sob tortura de Robson Silveira da Luz, um jovem trabalhador
negro, num distrito policial de Guaianazes e a proibição de quatro atletas de
voleibol frequentar a área social do Clube Regata Tietê, desencadeou um
movimento dos grupos então organizados que culminou com a criação do
Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. Dezenas de grupos e
entidades negras participaram ou subscreveram o documento de lançamento
do movimento, depois renomeado para Movimento Negro Unificado (MNU).

O lançamento do movimento ocorreu na escadaria do Teatro Municipal


de São Paulo e representou a ruptura pública e organizada com o
silenciamento do debate político sobre a questão racial. Um dos primeiros
projetos efetivos apresentado pelo MNU foi a criação do Parque Nacional
Serra da Barriga em 1980, região onde existiu o quilombo de Palmares. A
proposta mostra a importância e o impacto que a proposição do 20 de
Novembro teve para o movimento negro. O Memorial Zumbi foi o primeiro
grande projeto negro-acadêmico a ser apresentado. Também é deste ano a
proposta de Quilombismo de Abdias do Nascimento 4 que se torna um dos eixos
do pan-africanismo5.

A primeira sinalização do governo mediante a pressão do movimento


social negro pelo reconhecimento dos crimes do Estado durante o escravismo
e a falta de medidas reparatórias foi a instituição do Programa Nacional do
Centenário da Abolição, que é considerado o embrião da Fundação Cultural
Palmares, em 1986. A desapropriação de terras e a criação do Parque
Nacional Serra da Barriga no ano do Centenário da Abolição, 1988, como um
dos atos oficiais do governo para marcar a data, atendeu a mais essa
reivindicação movimento social negro.

A recusa ao 13 de Maio e o protesto contra uma abolição inacabada,


considerando a falta de políticas inclusivas, vão pautar as grandes
manifestações daquele ano, que iniciou com o desfile da Vila Isabel no
4
NASCIMENTO, Abdias. O QUILOMBISMO. Documentos de uma militância pan-africanista.
Petrópolis: Vozes, 1980.
5
O Pan-africanismo é uma ideologia surgida no século XIX baseada no sentimento de
solidariedade e de consciência de uma origem comum entre os negros do mundo. No plano pol
carnaval o Rio de Janeiro com o samba Kizomba, Festa Raça. A primeira
estrofe do samba6 de autoria do Martinho da Vila faz referência direta à
dicotomia 13 de Maio e 20 de Novembro e tornou-se trilha para os protestos.
“Valeu Zumbi” transformou-se num dos slogans do movimento social negro
que vão percorrer o ano que vai encerrar com a promulgação da Constituição
cidadã que vai apontar para políticas reparatórias.

O artigo 5º, que trata dos direitos fundamentais, reafirma que “Todos
são iguais perante a lei”, mas o texto avança e prevê punição às diferentes
formas de discriminação, define o racismo como crime inafiançável e
estabelece a igualdade de direitos no mercado de trabalho. Também no artigo
215, na seção Da Cultura, garante no parágrafo 1º que o “Estado protegerá as
manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”, além do
reconhecimento das áreas quilombolas (artigo 216 e artigo 68 das disposições
transitórias).

O texto constitucional, ao prever a punição para o racismo, aponta para


sua existência nas relações sociais, mesmo que não o declare. Além disso,
entende a necessidade de proteção das manifestações culturais das
populações consideradas minorias, tornando-se um novo parâmetro para a
discussão e atuação no espaço público. A criação da fundação Cultural
Palmares, ainda em 1988, constitui-se na primeira ação efetiva de reparação
do processo de marginalização das produções culturais negras. Ligada ao
Ministério da Educação, a fundação surge com o objetivo de promover e
preservar a contribuição negra à cultura do país, bem como identificar as
comunidades remanescentes de quilombo para fins de regularização de terras.

A década de 90, que inicia com a campanha “Não deixe sua cor passar
em branco”, visando o senso populacional, será marcada pelas manifestações
em torno dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. A principal atividade
ocorreu em 1995 com a Macha Contra o Racismo pela Cidadania e a Vida.
Superada a agenda de caráter punitivo, o movimento social volta-se para as
pautas reparatórias, considerando essas fundamentais para o enfrentamento
das barreiras simbólicas e concretas institucionalizadas na sociedade
brasileira.

A marcha buscou comprometer o governo publicamente com a agenda


de reparação, composta por um conjunto de ações de promoção de igualdade.
Como resultado da marcha, o Estado brasileiro reconheceu oficialmente,
através de pronunciamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso,
a existência de racismo e discriminação racial na sociedade brasileira.

6
“Valeu Zumbi / o grito forte dos Palmares / que correu terras, céus e mares / influenciando
a Abolição”
Também foram instituídos pelo governo grupos de trabalho nos ministérios da
Justiça e do Trabalho para apontar formas de promoção de igualdade.

As conquistas obtidas com a Marcha Zumbi dos Palmares foram


aprofundadas com o compromisso assumido pelo governo brasileiro durante a
III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata de Durban. A atuação como articulador na Conferência
comprometeu o governo a implementar ações de redução das desigualdades
raciais e políticas afirmativas principalmente na área da educação e trabalho,
além de uma série de medidas nas áreas da Justiça, Cultura e
Desenvolvimento Agrário.

A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o


Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e principalmente a Lei
10.639, que prevê a inclusão das temáticas etno-raciais na Educação,
instituídos e sancionada em 2003 respectivamente, também são resultado
desse processo histórico de luta e conquista de direitos dos movimentos
negros. Neste mesmo ano, são lançadas as Políticas Nacionais de Promoção da
Igualdade Racial que apresenta como objetivo

reduzir as desigualdades raciais no Brasil, com ênfase na população


negra. Trata-se, por evidente, de um objetivo cuja realização impôs
a definição de ações exequíveis a longo, médio e curto prazos, além
do reconhecimento das demandas mais imediatas, bem como das
áreas de atuação prioritária. Dispensável assinalar que o êxito dessa
empreitada dependerá de uma ação coordenada que conte com a
energia e o comprometimento de todas as esferas do governo e da
sociedade.

O Plano Nacional de promoção de Igualdade Racial, estruturado na


forma de objetivos, organizados em 12 eixos, foi sancionado em 2009. A Lei
12.288, de 2010, sancionou o chamado Estatuto da Igualdade Racial depois de
dez anos de tramitação (SEPPIR, 2015). O documento foi considerado um
retrocesso pelo movimento social pelo fato de tratar de maneira genérica
alguns pontos importantes, como as políticas de afirmativas e de reparação, e
por outro sobrepor legislações existentes, como a demarcação de quilombos

A partir do Estatuto, ocorreu a regulamentação do Sistema Nacional de


Promoção da Igualdade Racial, que visa implementar “políticas e serviços para
superar as desigualdades raciais no Brasil, com o propósito de garantir à
população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa de
direitos e o combate à discriminação e as demais formas de intolerância”
(SEPPIR, 2015). O sistema prevê a adesão de estados e municípios a fim de
descentralizar a implementação das políticas.
4 As políticas afirmativas

As políticas afirmativas são iniciativas de promoção da cidadania para


todos os brasileiros, respeitando a diversidade étnica e cultural. Tratam-se
portanto de ações frente a necessidade de enfrentamento das desigualdades
na “esfera de educação, cultura, esporte e lazer, saúde, trabalho, mídia,
reconhecimento de terras de quilombo, acesso à Justiça, financiamentos
públicos e outros”, conforme voto do ex-ministro do Supremo Joaquim
Barbosa, buscando “corrigir distorções e desigualdades derivadas da
escravidão e das demais práticas discriminatórias adotadas na esfera pública e
na esfera privada”.

As principais conquistas em termos de políticas afirmativas


reparatórias, no entanto, foram conquistadas na esfera pública da
administração federal. A lei 12.711/2012 estabelece políticas afirmativas nas
instituições de ensino federal. A política reserva 50% das vagas para alunos de
baixa renda oriundos da rede pública de ensino. Dentro deste conjunto, está
previsto um recorte racial, ou seja, reserva de vagas proporcionais ao
contingente de negros e indígenas da região, desde que os estudantes
atendam às exigências de renda e de ensino público.

A outra medida refere-se as cotas no serviço público federal. A lei


12.990/2014 estabelece a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos
públicos federais, incluindo autarquias e sociedades de economia mista
controladas pela União. As duas leis propõem promover a igualdade de
oportunidade de acesso no ensino superior para os jovens negros, alijados
historicamente destes espaços7. As medidas foram seguidas por alguns Estados
e municípios brasileiros.

Tratam-se, portanto, de iniciativas que constroem oportunidades para


as populações negras historicamente discriminadas e marginalizadas pela
origem étnico-racial. Apontam, portanto, para a desnaturalização dos
privilégios culturais da branquitude nos sistemas político, econômico e social,
construído durante o período escravista e mantidos nas relações sociais no
período republicano. Esses privilégios construíram o que se denominou
racismo institucional que se refere a um

fracasso coletivo de uma organização para prover um serviço


apropriado e profissional para as pessoas por causa de sua cor,
cultura ou origem étnica. Ele pode ser visto ou detectado em
processos, atitudes e comportamentos que totalizam em

7
Ver estudos do Instituo de Pesquisa Economica Aplicada (ipea.gov.br/igualdaderacial);
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge.gov.br ou
http://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros.html); revista
Exame (http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/8-dados-que-mostram-o-abismo-social-
entre-negros-e-brancos)
discriminação por preconceito involuntário, ignorância, negligência e
estereotipação racista, que causa desvantagens a pessoas de minoria
étnica (SAMPAIO, 2003).

O combate ao racismo institucional na área da segurança pública, que


tem como resultado o assassinato de mais de 70 jovens negros por dia, na
área da saúde, os índices de morte e falta de assistência entre os negros é
maior que entre os brancos, mercado de trabalho, educação e representação
pública, campo político partidário e midiático, tem orientado as ações do
movimento social.

Como apontou Floretan Fernandes (), o movimento negro tomou para si


a missão de “desencadear no Brasil a modernização do sistema de relações
raciais; e de provar que os homens precisam identificar-se de forma íntegra e
consciente, com os valores que encaram a ordem legal escolhida
[democracia].” A desconstrução dos racismos e das formas de discriminação
racial garantirão a efetiva integração dos negros na sociedade brasileira com
plenos direitos de cidadania.

5 Considerações finais

A perspectiva construída pelo movimento social, a partir do Grupo


Palmares, confrontou o discurso de democracia racial, estruturante da
sociedade brasileira.. O caráter de resistência foi reforçado ao defender a
substituição do 13 de maio [Dia das Raças] pelo 20 de novembro [Dia do
Negro] e a revisão da historiografia. Com isso, puderam afirmar um herói
então não reconhecido [Zumbi]. Também subverteram o conceito de nacional
para definição de cultura, afirmando a existência de um “mundo negro
brasileiro”.

A perspectiva adotada a partir do grupo de Porto Alegre, combinado


com iniciativas políticas e estéticas no restante do país, encontrou
repercussão, ecos e paralelos na aproximação com outros grupos negros em
diferentes lugares do Brasil. A proximidade dos discursos dos diferentes grupos
surgidos a partir de então, tendo como norte político o 20 de Novembro,
possibilitaram o surgimento do Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial (MNUCDR) em 1978, depois renomeado como Movimento
Negro Unificado (MNU), entidade de caráter nacional.

A afirmação de uma identidade negra iniciada na década de 70,


portanto, tornou-se referência para os grupos negros surgidos a partir de
então. A postura de resistência e negritude possibilitou a construção de uma
agenda política que fomentou entre outras coisas os protestos de 1988, cem
anos da Abolição, e de 1995, os 300 anos de Zumbi. Também é fruto desta
trajetória as conquistas de políticas afirmativas de reparação aos quase
quatro séculos de escravismo e um século de marginalização da população
negra.

Recapitulando
O movimento negro moderno, iniciado em meio à ditadura, redirecionou o
processo de integração do negro na sociedade brasileira, buscada desde a
abolição, mantendo a tradição de resistência. Rompendo com o projeto de
assimilação [branqueamento social], propõe um viés negro para negociar sua
inclusão, socialização e o acesso à cidadania através da construção de uma
identidade étnica afro-referenciada e de uma agenda política construída a
partir dos princípios de resistência e negritude e da busca por reparação. As
políticas afirmativas são iniciativas de enfrentamento das desigualdades
produzidas durante o período escravista e mantidas pela exclusiva valorização
da branquitude que originou diferentes formas de discriminação e o racismo
institucional.

Referências e Obras Consultadas


BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo:
Kilomboje, 2007.

BEIER, Roger. África para os africanos. Provocações Marginais. Metáphoras.


Edição 10. Ano1. [01/09/2005] Disponível em
www.metaphoras.com.br/ed10/provocacoes/

CAMPOS, Deivison Moacir Cezar de. O Grupo Palmares (1971-1978): um


movimento negro de subversão e resistência pela construção de um novo
espaço social e simbólico. 2006. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-
graduação em História, PUCRS, Porto Alegre, 2006.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São


Paulo: Editora Ática, 1978.

GILROY, Paul. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro:
Universidade Cândido Mendes, 2001.

GONZALES, Lélia. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Editora marco Zero, 1982.

MNU. 1978-1988, 10 anos de luta contra o racismo. São Paulo: (s.n.), 1988.

MOURA, Clóvis. Dialética racial do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita
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NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e


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Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000100019 Acesso
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SAMPAIO, Elias de Oliveira. Racismo Institucional: desenvolvimento social e
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Internacional de Desenvolvimento Local. V.4, n. 6, mar.2003. Disponível em
http://www.interacoes.ucdb.br/article/view/561

SEPPIR. [2015]. Políticas Nacionais de Promoção da Igualdade


Racial.Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial.
Disponível em http://www.seppir.gov.br Acesso em 13 set. 2015.

SILVA, Joselina. A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro


dos anos 40 e 50. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, 2003, n. 2.
Atividades
1 A partir dos estudos desenvolvidos nesse capítulo, marque (X) somente nas
assertivas verdadeiras.

A ( ) A perspectiva construída pelo movimento negro buscou reafirmar a


ideia de uma cultura nacional oficial.

B ( ) A releitura da história do país foi uma das estratégias propostas pelo


movimento social.

C ( ) Os movimentos sociais negam a existência de uma cultura negra no


Brasil.

D ( ) A identidade negra imita os movimentos internacionais dos anos 70 sem


outra influência

E ( ) Os movimentos negros reconheceram a importância das políticas de


branqueamento social fomentadas pelo Estado brasileiro.

2 Releia a segunda seção do capítulo, subtitulado de Que negro é esse em


Palmares? ,assinale (V) para as assertivas Verdadeiras e (F) para as Falsas:

A ( ) O manifesto aponta a situação de marginalização em que o negro se


encontra e as possibilidades reais de superação dessa condição

B ( ) Os manifestos defendem a ideia de que a estrutura dominante nega o


acesso da população negra ao seu passado.

C ( ) Os manifestos não discutem a necessidade de revisão historiográfica.

D ( ) O uso da resistência como política negra defendida a partir dos anos 70


é uma novidade na mobilização histórica dos negros contra a discriminação
racial.

E ( ) Frente ao contexto opressor e de marginalização social, diferentes


iniciativas e projetos associativistas e culturais buscaram construir e promover
políticas de promoção de direitos para as comunidades negras.

3 A estratégia de buscar na história a chave para compreender a realidade da


população negra brasileira pautou e dinamizou a atuação dos movimentos
sociais negros a partir dos anos 70. Aponte qual a principal revisão realizada
pelos movimentos sociais negros e faça uma análise sobre a proposição.

4 O ano de 1978 é considerado paradigmático para o movimento negro


brasileiro. Retome os acontecimentos deste ano e aponte a relação com a
revisão da historiografia proposta pelos movimentos negros.
5 Como o texto define políticas afirmativas e aponte duas das principais
conquistas alcançadas neste sentido?

Gabarito
1B

2 A (v) B (V) C (F) D (F) E (V)

3 Principal revisão: substituição do 13 de Maio pelo 20 de Novembro para as


manifestações da comunidade negra.

Análise: objetivo da proposição foi fomentar a resistência ao modelo de


marginalização e fortalecer uma identidade negra. Um desses elementos deve
ser a chave da análise.

4 Fatos: Criação do Movimento Negro Unificado que nacionaliza o 20 de


Novembro como Dia nacional da Consciência Negra.

Análise: vislumbrar os desdobramentos da construção de uma agenda


nacional.

5 Definição: As políticas afirmativas são iniciativas de promoção da cidadania


para todos os brasileiros, respeitando a diversidade étnica e cultural.
Principais conquistas: Lei de inclusão do estudo da cultura e história afro-
brasileira em todos os níveis de Educação; Lei de cotas na universidade; Lei
de cotas nos concursos públicos federais.

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