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P U B L I C A DA E M A B R I L D E 2 0 2 0

F R E E D O M O N H O L D
COVID-19, FEAR WILL NOT STOP US
PUBLICADA EM ABRIL DE 2020

F R E E D O M O N H O L D
COVID-19, FEAR WILL NOT STOP US
louisvuitton.com
EDITORIAL
AMOR EM TEMPO DE CORONAVIRUS
Num período em que o mundo editorial viu canceladas a maioria das produções
fotográficas pelas questões de saúde mundial, os modelos Bibi Baltovic e
Adam Bardy, casal de namorados a viverem na Eslováquia, foram fotografados
para uma das duas capas da Vogue Portugal, pela lente de Branislav Simoncik.
O amor, o beijo, símbolos da liberdade, agora suspensa, como um registo
histórico do momento que a Humanidade atravessa. Porque a capa de uma
publicação também deve ser vista como uma cápsula do tempo, que guarda
a imagem da máscara simbólica que suspendeu o beijo, o abraço, a união
por que todos ansiamos agora, e recordaremos mais tarde, ao olhar
para trás. Para que nos lembremos de nunca tomar nada por garantido.

humanos excecionais e cumpridores. Conter a propagação do vírus,


responsabilidade individual e social é um dever de TODOS, dos que
se podem dar ao luxo de ficar em casa como dos que têm a coragem
de continuar a trabalhar, seja em que área for. Este não é o momento
para sermos mais do mesmo, não é o momento para a hipocrisia. Não
é o momento para aproveitar brechas de oportunismo individual e,
"I’ll tell you ainda menos, político. Não é o momento de nos dividirmos, não é o
what freedom momento de querermos ter razão em vez de usarmos a razão. Não é o
is to me: no fear." momento de usar a razão sem emoção. Não é o momento de apedrejar
Nina Simone quando só precisamos de voltar ao tempo de abraçar. 
É o momento de sentirmos medo, sim, mas não o pânico que
paralisa. Perceber do que temos realmente medo, de olhar de frente
para esse mesmo medo, para que se possa transformar nalguma
forma de ação. Medo e coragem sempre andaram de mãos dadas. O
medo está diretamente ligado à sobrevivência, e aos instintos mais
básicos que existem para nos proteger. Tudo o que não controla-
mos pode conduzir-nos a um desespero autêntico. Morte, doença,
nredada numa rede de comunicação virtual, nos milhares de emails, catástrofes naturais, a dor da perda podem mergulhar a nossa li-
mensagens de WhatsApp e videochamadas necessárias para fechar berdade num fundo existencial, mas o desespero e o medo podem
esta edição, toda a equipa da Vogue estava longe de imaginar que ser emoções construtivas, o prelúdio de qualquer conquista, a da
o tema Liberdade, escolhido há mais de seis meses, para a edição própria liberdade. O momento de nos libertarmos do tanto a que
de abril, viria a ser coroado com a ironia de um vírus chamado nos apegamos, incluindo as nossas próprias neuroses, ideias pré-
Corona, que nos privaria da liberdade que tomávamos como garantida -concebidas e esperanças ilusórias, o momento de repensar tudo e
todos os dias, sobretudo nos gestos mais simples e invisíveis que só a de nos recriarmos, que não é possível nos moldes confortáveis de
privação tornou enormemente conscientes.  uma existência imperturbável. O inesperado assusta, a mudança
E tudo parece estar suspenso, até que a vida real deixe de parecer assusta. O medo é uma reação, a coragem uma decisão.  
ficção. Sentimo-nos personagens num filme cujo guião até nos é A coragem de mudar, a coragem de reerguer e começar do zero
familiar, à medida que as ruas e prateleiras dos supermercados ficam tudo o que for necessário, a coragem para estender a mão sem
vazias, o desinfetante para as mãos escasseia e as pessoas compram medo a quem precisa, a coragem para amar e partilhar em tempos
tudo o que se possa imaginar, na antecipação de um cenário apocalíp- difíceis é a única que pode curar. 
tico, enquanto os hospitais se tornam verdadeiras zonas de guerra. A vida, tal como a conhecemos, está em pausa. A liberdade, tal
Não deixa de ser assustador, tanto para quem não percebe nada do como a recebemos, também. Mas a liberdade não é algo que se receba
que está a acontecer como para quem percebe e vê um pouco mais ou um dado adquirido, é algo que se redescobre, redesenha e conquis-
a dimensão real e as implicações futuras... Porque, afinal, o guião ta, todos os dias. O maior paradoxo da liberdade é a sua interação
FOTOGRAFIA: BRANISLAV SIMONCIK.
é-nos familiar, sobretudo o guião que a própria história da Humani- com o destino, onde o acaso e as nossas escolhas convergem para
dade tem escrito e reescrito, demasiadas vezes, como se insistisse nos tornarmos quem somos. A liberdade está no que decidimos
em ensinar-nos alguma coisa que parece impossível de se aprender. fazer com as cartas que temos, mas as cartas são as que recebemos.
Mais viral do que o próprio vírus é o medo que infetou uma sociedade "Tudo pode ser retirado a um homem", escreveu Viktor Frankl,
inteira, um mundo inteiro, ligado pela tecnologia e pela comunica- psiquiatra austríaco e sobrevivente do Holocausto, no seu tratado
ção social, que mais do que passar mensagens relevantes, insiste numa sobre a busca humana por um significado, "tudo menos uma coisa,
reportagem em direto de baixas ao minuto, de informação útil mistu- a última das liberdades humanas: decidir a sua atitude em qualquer
rada com desinformação alarmista, que não peneira o essencial do cenário de circunstâncias, escolher o seu próprio caminho." l
sensacionalismo, que alimenta vorazmente um medo cego, o verdadeiro
pânico, que nos priva mais da liberdade que a própria pandemia. E é esse
pânico, precisamente, que poderá causar mais baixas que o próprio vírus. Sofia Lucas
A consciência e a responsabilidade, individual e coletiva, que deveriam Diretora da Vogue
iluminar de alguma forma o caminho, parecem fundir-se com funda-
mentalismo e histeria, propagados sobretudo pelas redes sociais, onde
todos procuram um speaker's corner, um púlpito de atenção, para julgar,
apontar dedos, e sobretudo para nos vangloriarmos enquanto seres English version
KENDALL JENNER

Abril
2020

9 0 I have a dream.
Um portefólio com obras
que carregam mensagens.
O artista JR em imagens
e na primeira pessoa.
1 0 6 Aquele obscuro objeto
de liberdade. Nem sempre
uma obra de arte é uma
obra de liberdade artística.
Por Rossana Mendes Fonseca.
1 2 Editorial
1 1 0 Viva a Liberdalarvidade.
1 8 Ficha Técnica Viva o direito a comermos
2 0 Backstage o que quisermos. Nas
8 6 E-shop quantidades que quisermos.
3 0 4 To be continued Por Nuno Miguel Dias.
Fotografia de Evelyn Bencicova.

IN VOGUE
2 4 Tendências. Transparências,
BELEZA
clássicos reinventados, diz que 1 1 6 Afloração. Quando as
até os corsets e os espartilhos cores das flores ganham rosto.
são liberdade esta primavera. Fotografia de Fernando Gomez.
Cabelos e maquilhagem
3 0 Assuntos internos.
de Rosa Matilla.
Esta tendência não
tem nada a esconder. 1 2 6 Sangue do meu sangue.
Conjuguemos o verbo
3 4 Shopping. Vermelho-
menstruar, sem vergonha.
-revolução, tops de topo
Ponto final, período.
e uma corrente de relógios
e pulseiras livres de regras. 1 3 0 Ask an expert. Se dúvidas
houvessem, sobre a pílula,
4 0 I want to break free.
ficariam esclarecidas agora.
Quatro exemplos de momentos
em que a Moda rasgou barreiras 1 3 4 Nip(ple)&Tuck. Diferenças
e coseu uma nova história entre o mamilo masculino
para a indústria.
4 4 À Solta. Estes acessórios
são livres de cair no seu vestuário.
LIFESTYLE
7 8 Roteiro. O que ver,
e o feminino. Spoiler alert: não há.
#sóquenão.
1 3 8 Feel the nipple. Ir ao seio da
Fotografia de Pedro Ferreira. o que ler, o que fazer. questão sem medos de censura.
Nesta sequência de imagens, é
5 4 Fashion for freedom. 8 2 Livre, leve e solta.
um free the nipple sem blur, cruzes
Quando a Moda se torna política Não há fronteiras na
ou barras pretas. Fotografia
– e um símbolo de revolução. musicalidade de Mayra Andrade –
e maquilhagem de Kate Mur.
5 8 Licence to reveal. nem condicionantes na
voz que empresta a este

188
Este espaço concede desejos:
ir do interior para o exterior. discurso direto para a Vogue.
6 0 Livre de clichés. 8 4 Honey Dijon: a pista
Quando a liberdade também de dança como revolução. Só falta
é não desistir da sustentabilidade. acrescentar a este título que esta
6 2 The Matrix. Simulação “mulher trans e negra”, como se
ou verdade? Enquanto decide, descreve, é, além de Dj e designer,
crie o guarda-roupa à altura ativista. Por Tiago Manaia.
da realidade que escolher. 8 8 Shopping. Com duas
Fotografia de Andreas Ortner. letrinhas apenas também se
Styling de Elke Dostal. escreve liberdade: WC.

LISBOA | PORTO
LONGCHAMP.COM
Abril
2020

2 2 8 Liberdade, essa luz


no horizonte. Acha que sabe
o que é não ter liberdade? Se tiver
menos de 56 anos, não sabe –
mesmo em tempos de pandemia.
Perceba o que isto quer dizer.
Por José Couto Nogueira.
2 3 2 Uma viagem à volta
da liberdade. Cresceu livre?
1 5 0 Território neutro. Body Sempre livre? Mesmo livre?
neutrality: uma liberdade além do Será que a liberdade de agora
body postivity. Por Andreia Pedro. é liberdade plena?
Fotografia de Michael Bodiam. 2 3 6 Mood bored. A liberdade
1 5 4 A raiz da questão. entre quatro paredes em tempos
Quando o cabelo é uma tela de aborrecimento. Fotografia de
em branco e gostamos mesmo Pavel Golik. Styling de Lil Burlac.
é de o assumir tal como está. 2 6 2 Don’t f*ck with my freedom.
1 5 7 Test Drive. Desperdício zero My body, my choice.
é dar mais que um fim a um Fotografia de Teresa Barboza.
produto – e estes são multiusos. 2 6 6 Teoria da Relatividade.
1 5 8 Entrelaçados. Ler este texto A liberdade numa ilusão de guarda-
vale mais que cem escovagens. -roupa que não tem espaço, nem
Fotografia de Pedro Ferreira.
1 6 0 Páginas pela liberdade…
Livros para tempos livres –
VOGUE
1 7 0 Quarentena. Fazer um
tempo. Fotografia de Arcin Sagdic.
Styling de Sina Braetz.
2 8 8 Vai partir o Expresso
e para outros tempos também. desfile de moda dentro de casa? Liberdade. A Liberdade de
1 6 2 Bela (não) adormecida. É possível. Fotografia de Linda Expressão numa discussão
Não é à toa a expressão “sono de Leitner. Styling de Michaela Konz. histórica. Por Nuno Miguel Dias.
beleza”. Fotografia de Irving Penn. 1 8 4 Liberdade em tempos de Fotografia de Ania Wawrzkowicz.
1 6 4 Lado B. Eutanásia. cólera. Este artigo teria sido muito 2 9 2 Tudo. Tudo. Tudo.
Uma conversa que não discute diferente se tivesse sido escrito Um desabafo em imagens sobre
só a morte e a vida, discute no início do mês, e não agora. tudo o que vamos fazer lá fora.
também direitos. 1 8 8 Breaking Amish. Fotografia de Onin Lorente.
Fotografia de Bea De Giacomo. Um guarda--roupa, um Rumspringa Styling de Patrick Lief.
e muitas liberdades. A maior?

170
A de escolha. Fotografia de Ricardo
Santos. Styling de Joel Alves.
2 1 0 Antes de tudo, livre.
A liberdade e o livre arbítrio
em discussão.
2 1 4 Expressão de Liberdade.
Ser, pensar, dizer e vestir o que
quiser, sem se preocupar com
o que os outros acham. É isso.
Fotografia de Renée Parkhurst.
Styling de Olga Yanul.

Capas
À ESQUERDA: Bibi Baltovic e Adam Bardy @ Exit Models com
máscara em algodão, Lukas Kimlicka. Fotografia de Branislav Simoncik.
À DIREITA: Lily Stewart com vestido em crepe georgette
com cristais e camisa em algodão, ambos Michael Kors Collection.
Fotografia de Renée Parkhurst. Styling de Olga Yanul.
SOFIA LUCAS Diretora PUBLISHED BY CONDÉ NAST

Moda
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Redação
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Alda Couto REVISÃO DE TEXTO Chief Data Officer Karthic Bala
Érica Cunha e Alves TRADUÇÃO Chief Client Officer Jamie Jouning
Paula Bento ASSISTENTE DE REDAÇÃO
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President Oren Katzeff
Arte
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João Oliveira DIRETOR DE ARTE
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Nuno da Costa ILUSTRAÇÕES
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Fotografia e Vídeo Jonathan Newhouse
Branislav Simoncik DIRETOR DE FOTOGRAFIA
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Catarina Almeida EDIÇÃO DE VÍDEO WORLDWIDE EDITIONS
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Produção de Moda Vogue Collections, Vogue Hommes
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BACKSTAGE

A união faz a força


Mesmo que seja à distância. Numa altura em que a equipa da
Vogue Portugal foi forçada a trabalhar a partir de casa, com
alguns elementos na redação para garantir que a máquina
não parasse, preparar a edição que hoje tem nas mãos foi um
processo um tanto atípico: mais de 2.000 e-mails trocados,
mais de 1.500 mensagens no WhatsApp, e mais de 300
chamadas e reuniões. Ainda que seja
possível fazermos uma revista quando
estamos afastados, nunca nada substituirá
o contacto humano e a comunicação que
acontece quando estamos todos juntos,
em equipa, no conforto da nossa redação.

O que poderia
ter sido
À parte dos sete editoriais que poderá ver nesta
edição, estavam programados mais seis que, devido
ao surto do COVID-19, acabaram por ser cancelados.

FOTOGRAFIA: LINDA LEITNER; NOÉMI OTTILIA SZABO; FRED MORLEY / GETTY IMAGES.
De stylists e modelos que não conseguiram viajar
aos press offices que foram forçados a fechar as suas
portas, o impacto desta pandemia também se fez
sentir na indústria da Moda. Mas uma coisa é certa:
juntos, sairemos dela com mais força que nunca.

Abril, mês da liberdade


Quando o tema desta edição foi discutido e decidido há vários meses – haveria
melhor assunto para o mês de abril, o mês em que celebramos a nossa liberdade
enquanto país, do que a própria liberdade? – estávamos longe de imaginar
que este seria o cenário em que nos iríamos encontrar. Irónico? Diríamos antes relevante: num momento
em que estamos confinados às nossas casas, impedidos de ver e abraçar os nossos amigos e familiares,
impossibilitados de sair à rua a menos que seja estritamente necessário, ou a lutar na linha da frente
desta pandemia (a vocês, obrigada), nunca foi tão importante falar sobre liberdade. Da mesma forma
que nunca foi tão importante reconhecermos o quão preciosa, delicada e necessária é a nossa liberdade.

2 0 vogue.pt
IN
VOGUE REALIZAÇÃO: ANA CARACOL ASSISTIDA POR EDUARDA PEDRO. FOTOGRAFIA: PEDRO FERREIRA.

TENDÊNCIAS
SHOPPING
COMPORTAMENTO Carteira LV Pont 9 em pele e metal, € 2.580, Louis Vuitton. Collants em mousse, € 5,95, Calzedonia.
INVOGUE TENDÊNCIAS INVOGUE TENDÊNCIAS

ANDREAS KRONTHALER FOR VIVIENNE WESTWOOD


VERA WANG

SHUSHU TONG

DION LEE
1

FOTOGRAFIA: IMAXTREE. REALIZAÇÃO DE ANA CARACOL E EDUARDA PEDRO.


Soltar Amarras
Barbatanas [está a ver o Jaws? Não tem nada a ver], atilhos, espartilhos, tudo o que era
imprescindível na época Vitoriana do século XIX, mais tarde imprescindível nos anos 30 com
as pin-ups e depois o New Look de Christian Dior, regressa agora, para a primavera de 2020,
completamente renovado. A lingerie deixou de estruturar e apertar, para atingir a silhueta dita
MUGLER

“perfeita”, e passou a fazer parte da modelagem das peças, assumindo o papel de protagonista
6
em vários looks. Exibicionismo barato? Longe disso: nunca fez tanto sentido soltar amarras –
metafóricas ou reais – como hoje em dia, em que se fala de liberdade de género, psicológica,
sociológica, etc. As passerelles tomaram a mensagem de forma mais literal, colocando a criatividade 2 4 5
e a liberdade de mãos dadas e sempre com a imaginação posta em nós, mulheres,
homens, o género que for. O que importa é o que nos faz sentir completos e livres.

1. Performance de Kinbaku, por Amaury Grisel, Tamandua Engstrom e Dasniya Sommer. 2. Corset em algodão
e renda de seda, € 755, Dion Lee, em Farfetch.com. 3. Sapatos em pele e metal, € 565, Jil Sander. 4. Saia em tule
e organza de seda, € 985, Simone Rocha, em Net-a-porter.com. 5. Camisa em algodão, € 680, Alexander McQueen. 7
6. Pulseira em aço, Saint Laurent. 7. Carteira Flamenco em pele, € 2.334, Loewe, em Modaoperandi.com. 3

English version
vogue.pt 2 5
INVOGUE TENDÊNCIAS INVOGUE TENDÊNCIAS

KIMHEKIM

MICHAEL KORS COLLECTION


ANNAKIKI

CAROLINA HERRERA
FOTOGRAFIA: FREDERICO MARTINS; IMAXTREE. REALIZAÇÃO DE ANA CARACOL E EDUARDA PEDRO.
1

Novo Clássico
Facto: já não estamos no final do século XIX, altura em que as mulheres se envolveram em
trabalhos laborais e deixaram de lado as saias para darem lugar àquela peça que hoje não podemos
viver sem: as calças. Tal como estas, tantos outros básicos do vestuário foram surgindo e
MAX MARA

ganhando adeptos nas coleções femininas. Os anos passaram, as lutas pela emancipação feminina
acumularam-se e, ainda que essas ainda estejam longe de cessar, a evolução de mentalidades e
a liberdade de expressão foram ganhando espaço para crescer e se estabelecer, assumindo-se e
conquistando terreno – e guarda-roupa. A Moda sempre teve um papel importante na sociedade 3 4
e os dias que correm ratificam-no, talvez até com mais veemência: os designers, as marcas e as
passerelles são veículos de mensagem e crítica e uma amostra de novas visões para a sociedade.
Esta primavera mostra que os clássicos já não são o que eram e surge com looks completamente
6
abertos a novas mentalidades e desafios. Os blazers usam-se desde o XS ao super-XXL
e coordenam-se com tudo! E, quando dizemos tudo, leia-se liberdade de escolha.

1. Editorial Family Affairs da edição de Dezembro de 2019 da Vogue Portugal, por Frederico Martins e Michele
2
Bagnara. 2. Camisa em algodão, € 1.310, Junya Watanabe, em Net-a-porter.com. 3. Calções em lã fria, 5 7
€ 510, Sacai. 4. Saia em algodão, € 790, Burberry. 5. Casaco em lã fria, € 1.890, Alexander McQueen.
6. Carteira Meteor 2.8 Jitney em pele, € 1.125, Off-White c/o Virgil Abloh. 7. Sapatos em pele, € 845, Louis Vuitton.
FOTOGRAFIA: D.R.

English version
vogue.pt 2 7
INVOGUE TENDÊNCIAS INVOGUE TENDÊNCIAS

KIMHEKIM

GUCCI
VALENTINO

LOEWE
1

FOTOGRAFIA: IMAXTREE. REALIZAÇÃO DE ANA CARACOL E EDUARDA PEDRO.


PREEN BY THORNTON BREGAZZI

Só com o véu
O corpo é o espaço que habito e a roupa as camadas de tinta que o pintam. E se imaginarmos
essas camadas como um jogo de sobreposições, num despir em modo bonecas matrioskas? 2
Não é preciso: construímos as paredes deste espaço em vidro e elas próprias nos despem – fosco,
blurred, vívido, usando e abusando das transparências como uma segunda pele que nos protege, 6
mas que também nos revela. Ame-se ou odeie-se, expor o âmago com uma fina camada de seda ou
tule é ter liberdade para se revelar sem se exibir, mostrar-se sem preconceitos, mas reservando-se
o direito a segredos. Transparências é pendurar a liberdade de expressão no guarda-roupa.

1. Fotografia da coleção Ellas, por Karen Paulina Biswell. 2. Luvas em malha de lã, € 1.090, Christian Dior. 4 5
3. Sandálias em pele e tule de seda, € 695, Dolce & Gabbana, em Net-a-porter.com. 4. Calças em chiffon de seda,
€ 745, Dolce & Gabbana, em Mytheresa.com. 5. Casaco em sarja de algodão e organza de seda, € 2.250, Fendi.
3
6. Camisa em organza de seda, € 1.500, Gucci. 7. Carteira Eva em acrílico, € 806.33, L’Afshar, em Net-a-porter.com. 7
FOTOGRAFIA: D.R.

English version
vogue.pt 2 9
INVOGUE TENDÊNCIA

Assuntos Internos
Numa altura em que somos aconselhados a ficar em casa,
é interessante constatar que uma das tendências mais
fortes da estação convida a despir, a mostrar, a revelar.
Seja através de transparências, de decotes, de rendas ou
de materiais translúcidos, esta primavera pede um novo
sexy. Que é, acima de tudo, sinónimo de uma liberdade,
e de um empoderamento, há muito desejados. Por Ana Murcho.

FOTOGRAFIA: SILVER SCREEN COLLECTION / REG LANCASTER/DAILY EXPRESS / YVES LE ROUX/GAMMA-RAPHO / DAVE BENETT / GETTY IMAGES.
que aconteceria se uma das minhas raparigas tentasse
ser sexy?” A pergunta foi lançada por Alessandro Michele,
exímio em transformar mulheres emancipadas em versões
modernas de avozinhas cool, após o desfile primavera/ve-
rão 2020 da Gucci, em setembro passado. Era uma espécie
de provocação, e surgia após aquilo que muitos rotularam
como um “acordar de quatro anos de dormência.” Afinal,
nos últimos tempos, a casa italiana tinha-nos habituado
a um certo restraint, que ficava a anos-luz da sexualidade
explícita de Tom Ford (diretor criativo entre 1990 e 2004) e
da sensualidade bling-chic de Frida Giannini (que comandou
a maison de 2006 a 2014). Mas não desta vez. Dúvidas houvesse, e o
look que inaugurou o seu leque de propostas para a estação quente foi
um macacão preto em cetim com a parte de cima feita de tule – tule
transparente, entenda-se. Se a peça, em si, já parecia uma afronta
– pelo menos aos mais acérrimos defensores do chaos magic –  os
acessórios que completavam este inesperado combo (sandálias de
tacão vertiginoso, meias vermelhas de rede, gargantilha de veludo
com o que parecia ser um escaravelho colado) anunciaram o que já
suspeitávamos. Esta é a forma do italiano gritar, alto e bom som, “a
sensualidade está de volta.” Não o disse assim, claro, mas justificou
o volte-face como uma forma de se reinventar. “A Moda tem uma
função: fazer com que as pessoas possam caminhar por um campo
de possibilidades… sacralizando todas as formas de diversidade e
alimentando as habilidades indispensáveis de autodeterminação.”
Que é como quem diz, o meu corpo é o meu templo e visto o que
No sentido dos ponteiros do relógio: bem me apetecer. 
vestido em chiffon de seda com plumas,
Yves Saint Laurent, Paris, 1968. Kate É por isso que, para esta temporada, a Gucci propõe uma série
Moss na festa do concurso Look of the de elementos até agora ausentes da era Michele: decotes profundos,
Year, em Londres, 1993. Jane Gainsbourg,
acompanhada pelo marido, Serge
saias que parecem véus, rachas pronunciadas, mini-corpetes em
Gainsbourg na estreia do filme Slogan, renda, slip dresses realizados no que parece ser um mix de látex e
Paris, 1969. Um dos retratos mais renda, fatos em chiffon (chiffon transparente, lá está)… tudo a anos
icónicos da atriz italiana Sophia Loren,
com uma camisa de noite que deixa luz do look pensionista reformada a que nos habituou nestes cinco
(quase) tudo a nu, circa 1955. anos ao leme na maison italiana. “Tenho receio de me aborrecer”,

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INVOGUE TENDÊNCIA

Da esquerda para a direita: Gwyneth Paltrow, em Fendi,


no palco dos Golden Globe Awards, em janeiro passado.
A atriz americana Zendaya à chegada da 71ª edição dos
Emmy Awards, em Los Angeles, 2019. Lily-Rose Depp na
passadeira vermelha dos BAFTA, os prémios do cinema
inglês, que decorreram na capital londrina em fevereiro.

afirmou numa entrevista concedida


após o desfile. “Tenho sempre de ex-
perimentar algo novo.” E esse algo
novo é, passe a redundância, um novo
sexy, que vai em linha de conta com os
tempos. Numa era pós #MeToo, em
que as mulheres recuperam o direito
à escolha (dizer “não” é, mais do que
nunca, tão importante e valioso como
dizer “sim”, e isso vale para qualquer
área das nossas vidas) é importante
não esquecer o poder disso a que os

GUCCI
ingleses chamam de sexiness. “O maior
choque foi [o facto de] Michele ter
adotado a sensualidade. Ele tem pre-
ferido as distorções e as peculiarida-
des, mas não hoje”, escrevia a jorna-
lista Nicole Phelps no site da Vogue

FOTOGRAFIA: DANIELE VENTURELLI/WIREIMAGE; ROBYN BECK/AFP VIA GETTY IMAGES; SAMIR HUSSEIN/WIREIMAGE. IMAXTREE.
Runway, relembrando as referências
à cena S&M, à herança equestre da

LOEWE
casa, e a opção por elementos como
o vinil, a renda e as rachas. Até as car-
teiras, como a Gucci Horsebit, que vê
estampada a frase “Gucci Orgasmique”,
corroboram este novo mood. Mas será
que Michele está sozinho nesta nova
forma de fazer roupa sexy?
A resposta é apenas uma: não. Das cinzas dos últimos três/quatro Basta consultar o motor de busca Tagwalk (uma espécie de Google
anos ressurge uma mulher forte, que não tem vergonha em assumir (e da Moda) para perceber que assim é. Tudo o que esteja intimamente
mostrar) o seu corpo e que se sente bem ao fazê-lo – não pelos outros, ligado a sensualidade ocupa os lugares cimeiros das centenas de
mas por si. Depois de uma série de batalhas, da igualdade de géneros, “Global Fashion Week Trends” estudadas por aquele site: cut outs (numa
à igualdade de tamanhos, raças, idades e orientações sexuais, chegou tradução direta, aberturas), quarto lugar; nudity (nudez), nono lugar;
a altura de nos despirmos de preconceitos. Isso vê-se, por exemplo, corset (corpetes), décimo primeiro lugar; bra (sutiã), décimo sétimo
no papel que a roupa interior agora ocupa nos nossos armários. A lugar. E não, nada disto tem a ver com sexo. É tempo de valorizar
lingerie, que até há pouco tempo servia apenas para usar escondida, o artesanal (daí as rendas e os bordados), os tules e as crinolinas,

PREEN
resguardada, tem agora lugar de destaque nos looks mais importantes as sedas e as organzas, as peles e os algodões orgânicos. Transfor-
da estação – os sutiãs foram protagonistas nos desfiles da Dior, da mados em bustiers, em bodies, em saias lápis, em calçõezinhos XS
Givenchy, da Lanvin, de Rejina Pyo, de Alexander Wang. É um novo (ou XL), em tudo o que justifique uma certa postura, e atitude, por
power dressing. É uma declaração de independência. É uma nova forma parte de quem os usa. É espreitar as coleções primavera/verão, e
de conquistar a tão desejada autodeterminação feminina – sim, através escolher: os hot pants de Tom Ford, os bodycon dresses de Thierry Mu-
do sex appeal. Exemplos? Veja-se Gwyneth Paltrow nos últimos Golden gler, as transparências de Loewe (e de Molly Goddard, e de Simone
Globes: aquele vestido de tule era uma ilusão de ótica que ocultava a Rocha, e de Nina Ricci, e de Helmut Lang, e de Dolce & Gabbana)
sua roupa interior, o seu corpo tonificado e as suas joias de milhões de as rachas vertiginosas de JW Anderson e de Off-White, a lingerie
dólares; ou Zendaya, nos Emmy, num corset verde em renda Vera Wang, com conotações dominarix de Olivier Theyskens… Já vimos isto

VALENTINO
a provar que já não é uma menina da Disney; ou então  Lily-Rose Depp, antes? É possível. Mas agora vemo-lo de uma posição diferente.
cuidadosamente destapada por Chanel, nos últimos BAFTA. Obra do Continuamos a ter sensibilidade e bom senso. Só que agora temos
acaso? Nada disso. Aliás, está cientificamente provado que todas estas um poder que anteriormente não tínhamos. É por isso que tudo
escolhas de guarda-roupa fazem parte de um “movimento”. isto é tão refrescante. E tão libertador. E tão sexy. l English version

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INVOGUE SHOPPING

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REALIZAÇÃO DE ANA CARACOL, ASSISTIDA POR BEATRIZ MAFRA. FOTOGRAFIA: GETTY IMAGES.
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Revolução Vermelha
Há quem diga que vermelho é paixão, poder e energia, há quem afirme
que está associado ao espírito revolucionário e há ainda quem defenda
que aumenta a autoestima. A Vogue assina por baixo e acrescenta o termo
“alerta” - alerta de que a mulher que enverga aquele vestido (ou saia, 1. Carteira em pele, € 59,95, United Colors of Benetton. 2. Vestido em malha de algodão, € 522, Elisabetta Franchi.
ou casaco, o que for) está totalmente segura das suas escolhas e das 3. Brincos em pó de terracota e latão, € 29,99, Mango. 4. Blusa em algodão, € 39,95, Massimo Dutti. 5. Vestido em crepe de
seda, € 6.500, Michael Kors Collection. 6. Carteira em pele, € 1.980, Gucci. 7. Sutiã Balconette em renda, € 29,90, Intimissimi.
suas ações. The woman in red é muito mais que um mito erótico ampliado 8. Wristlet em pele, € 850, Tod’s. 9. Saia em algodão, € 89,90, Guess. 10. Hoodie em algodão, € 149, Weekend Max Mara.

pela cultura pop. É, acima de tudo, sinónimo de afirmação e atitude.


11. Calções em pele, € 890, Longchamp. 12. Vestido em seda, € 297, Twinset. 13. Top de bikini em poliamida, € 30, Calzedonia.
14. Carteira em pele, € 1.390, Marni. 15. Camisa em pele, € 399, Stand Studio. 16. Alfinete em musselina de seda, € 920, Chanel.

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INVOGUE SHOPPING

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JW ANDERSON

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FENDI

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REALIZAÇÃO DE ANA CARACOL FOTOGRAFIA: D.R.


CHRISTOPHER KANE
LOEWE

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Top 16
São curtos, sexys e muito femininos. E, por isso mesmo,
não queremos que passem despercebidos, esquecidos por 1. Em seda, € 109, Agent Provocateur, em Matchesfashion.com. 2. Em seda, € 295, Dries Van Noten. 3. Em tule e renda, € 158,
baixo da roupa ou no fundo da gaveta do armário. Vamos Myla London, em Matchesfashion.com. 4. Em cetim de seda, € 550, Givenchy. 5. Em algodão, € 100, Peony, em Net-a-porter.com.
6. Em seda, € 15,95, Zara. 7. Em algodão e seda, € 610, Kaite. 8. Em linho, € 292,86, Miguelina, em Net-a-porter.com
trazê-los para os looks do dia a dia – sem pudor e com 9. Em algodão estampado, € 545, Dolce & Gabbana. 10. Em seda revestida a lantejoulas, € 165, Norma Kamali. 11.Em seda

muito estilo. Escolha o seu. Nós damos uma ajudinha.


estampada, € 620, Versace. 12. Em algodão, € 585, Jason Wu Collection, em Net-a-porter.com. 13. Em pele, € 220, Alaïa. 14. Em
malha de algodão, € 500, Balmain. 15. Em malha de seda, € 720, Alexander McQueen. 16. Em algodão estampado, € 870, Erdem.

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INVOGUE SHOPPING

9 1. Relógio Star Legacy com caixa e bracelete em aço e movimento


automático, € 3.300, Montblanc. 2. Relógio One Amazing com caixa e
bracelete em aço e mostrador em madrepérola com cristais, € 159, One.
3. Relógio Nautilus com caixa e bracelete em aço, mostrador em opalina
e movimento mecânico, € 31.640, Patek Philippe. 4. Relógio Classic
Fusion com caixa e bracelete em ouro rosa e movimento automático,
€ 45.850, Hublot. 5. Relógio DateJust 36 com caixa e bracelete em aço
4 e movimento automático, € 6.950, Rolex. 6. Relógio Panthère de Cartier
com caixa e bracelete em ouro rosa e movimento quartzo, € 20.500,
Cartier. 7. Pulseira Me em prata, € 79, Pandora. 8. Colar Stay Lucky, Stay
10 Happy em ouro amarelo com diamantes, € 2.600, Tous. 9. Colar em
metal, € 695, Dries Van Noten. 10. Colar Dunya Praia em metal banhado
a ouro, € 530, Tohum Design. 11. Colar Diva’s Dream em ouro rosa com
madrepérola e diamantes, € 65.700, Bulgari. 12. Pulseira Happy Hearts
Wings em ouro rosa e madrepérola com diamantes, € 1.980, Chopard.

Relações
abertas REALIZAÇÃO: ANA CARACOL E EDUARDA PEDRO. FOTOGRAFIA: D.R.
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Quantas vezes nos sentimos amarrados, acorrentados


6 ou presos, mesmo que tenhamos teoricamente toda a
liberdade do mundo? E quantas vezes, estamos conectados
a algo e nunca nos sentimos tão livres?! Agarrados ou não,
a liberdade pode ser um momento, um período de tempo,
a ousadia de usar um colar, um relógio, uma peça de valor
sentimental. A liberdade pode estar numa sequência
de elos, que prende no pulso – e no coração.
12

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INVOGUE HISTÓRIA

I want to break free  


Foi um par de calças, uma minissaia, um vestido em malha metálica.
Foi uma pausa no relógio, uma recusa em seguir as normas, uma
nova forma de olhar para as regras. Na indústria, a liberdade foi
aquilo que a liberdade quis ser. Afinal de contas, se a Moda não
rompesse com as costuras, seria sequer Moda? Por Mónica Bozinoski.
Viktor & Rolf,
primavera/verão 2015

Coco Chanel, 1937


falasse mais alto do que a US, “a cultura feminina corre
crise, Coco Chanel começou de forma ampla no cenário da
a trabalhar com o jersey, um Moda do século XXI. Está no
material até à data reservado topo de uma importante Casa
apenas para a roupa íntima francesa; permeia a sublevação Nas duas imagens, o último
masculina. Mais do que isso, de independentes jovens desfile ready-to-wear de
Jean Paul Gaultier, em 2014
Gabrielle revolucionou a self-made e de gerações de
silhueta feminina da época empreendedoras estabelecidas:
– numa altura em que a uma multifacetada massa
sumptuosidade dos vestidos crítica de mulheres que
com espartilho era a norma, trabalham constantemente Viktor & Rolf,
primavera/verão 2014
a criadora desafiou os códigos para mudar uma indústria para
ao introduzir as calças (uma melhor. Aquilo que é notável
peça que se destinava apenas é o modo como falam sobre o READY-TO-NOT-WEAR
ao género masculino), os sentimento, a sua capacidade Dizem que as más notícias coleções, não oferecem nem velocidade rápida, com muitos
vestidos direitos, o little black ágil de intuir o tempo em que viajam rápido, mas na era a liberdade nem o tempo deadlines e uma competição
dress (por ser associada ao vivemos, e a sua silenciosa da Internet viajam mais à necessário para encontrar feroz – e, à semelhança de
luto, a cor foi uma estreia na mas constante mudança do velocidade da luz. Pelo menos ideias novas e inovar.” Se a Gaultier, citaram a restrição
Moda) o clássico fato Chanel mundo da Moda no sentido foi essa a sensação que os mensagem de Gaultier já era da criatividade como um dos
e, anos mais tarde, a carteira de derrubar os maus e headlines de 15 de setembro de clara o suficiente para perceber motivos para abandonar esse
2.55, que devido ao facto de velhos comportamentos 2014 causaram à indústria da que o passo acelerado a que mesmo negócio e dedicarem--
poder ser usada ao ombro institucionais”. Num mundo Moda e aos fiéis seguidores da a indústria estava a andar se unicamente à Alta-
também libertava as mulheres onde as mulheres continuam O último desfile mesma – 38 anos depois de ter começava a deixar ficar a -Costura. “Sentimos uma forte
Givenchy, Alta-Costura ready-to-wear de Jean
primavera/verão 2018
- pela primeira vez podiam a lutar, a imagem da Liberty Paul Gaultier, em 2014
apresentado o seu primeiro liberdade criativa para trás, o necessidade de nos voltarmos
andar com as mãos livres. Leading the People de Eugène desfile a solo, Jean Paul Gaultier enfant terrible decidiu levá-la mais a focar nas nossas raízes
Quando as mulheres exigiram Delacroix é pintada com o abandonava a frenética veia longe poucos meses depois de artísticas”, defendeu Horsting.
Versace, Alta-Costura
outono/inverno 1997 LIBERTÉ, ÉGALITÉ, FEMINITÉ mais liberdade nos anos 60 e romantismo gótico de Simone do pronto-a--vestir, deixando ter anunciado a sua “reforma” “Sempre usámos a Moda para
Neste complexo universo que 70, Mary Quant e Diane von Rocha, com a sustentabilidade para trás a sua linha feminina do pronto-a-vestir. “Demasiadas comunicar, é o nosso principal
é a Moda, a liberdade pode Furstenberg responderam à de Stella McCartney, com a e a sua linha masculina. roupas matam a roupa... meio de expressão artística.
não se escrever por linhas reivindicação com duas peças distopia estética de Marine “É um novo começo. Vou poder A Moda mudou. A proliferação O ready-to-wear começou a
tortas, mas é possível que de libertação feminina – a Serre, com o minimalismo voltar a expressar a minha da roupa. Oito coleções por ser algo que nos restringia a
se escreva pelas criações de icónica minissaia e o famoso das irmãs Olsen e com a criatividade de forma completa temporada – isso equivale a nível criativo. Ao deixarmos
Coco Chanel, Mary Quant, wrap dress, respetivamente. sofisticação de Victoria e sem constrangimentos”, 16 por ano”, defendeu numa de o fazer, ganhamos mais
Diane von Furstenberg, Donna Quando as conquistas se Beckham, lado a lado com as explicou o designer ao entrevista com a Associated tempo e liberdade.” Talvez
FOTOGRAFIA: LIPNITZKI/ DANIEL SIMON/ GETTY IMAGES; IMAXTREE.
Karan, Rei Kawakubo, Miuccia multiplicaram, o guarda- mulheres que continuam a WWD, citando as pressões Press. “O sistema não funciona... tenha sido Raf Simons quem
Prada, Vivienne Westwood roupa feminino foi pelo remar o barco das grandes comerciais e financeiras como Não existem pessoas suficientes melhor resumiu o valor
ou Donatella Versace. Num mesmo caminho – com o Casas para a frente – Clare as duas grandes forças por para comprar. Estamos a fazer de uma criatividade sem
mundo onde as mulheres poder consciente de Donna Waight Keller na Givenchy, detrás da sua decisão. “Já há roupas que estão destinadas constrangimentos e restrições
(ainda) têm de lutar duas Karan, com a revolução Sarah Burton na Alexander algum tempo que encontrei a não ser usadas.” Ainda em quando, ao abandonar a
vezes mais do que os homens, subtil de Rei Kawakubo, McQueen, Maria Grazia a verdadeira realização em 2015, mais precisamente no direção criativa da Dior,
a liberdade – e a libertação com a beleza invulgar de Chiuri na Dior, Virgine Viard trabalhar na Alta-Costura, início de fevereiro, a dupla em 2015, desabafou “eu só
– também foi cosida pelas Miuccia Prada, com o punk na Chanel e Silvia Venturini e isso permite-me expressar holandesa Viktor Horsting e queria fazer roupa”. Mas sem
mulheres que não tiveram de Vivienne Westwood, com Fendi na Fendi. Ao seu jeito a minha criatividade e o Rolf Snoeren anunciou que liberdade – para pensar, para
medo de hastear bandeiras a sensualidade inteligente e à sua maneira, cada uma meu gosto pela pesquisa iria carregar no stop da linha refletir, para criar – a indústria
de revolução, de quebrar de Donatella Versace. Como delas é uma garantia de que as e experimentação. Ao ready-to-wear da Viktor & Rolf. da Moda – entenda-se, aquela
convenções, de rasgar limites, escreveu Sarah Mower no mulheres podem ser aquilo que mesmo tempo, o mundo Ao site WWD, e num discurso indústria da Moda que nos
de criar novos papéis. Quando artigo The Present Is Female: quiserem, vestirem aquilo que do ready-to-wear evoluiu semelhante ao de Jean Paul desafia, que nos obriga a olhar
a escassez de tecido durante The Designers Behind a Fashion quiserem, projetarem aquilo consideravelmente. As Gaultier, os designers definiram para além do óbvio, que
a Primeira Guerra Mundial Revolution, publicado na edição que quiserem. Haverá liberdade restrições comerciais, a par o pronto-a-vestir como um nos faz sonhar mais alto –
pediu que a criatividade de agosto de 2019 da Vogue mais bonita que essa? com o ritmo frenético das negócio que opera a uma ficará sempre a perder.

vogue.pt 4 1
INVOGUE HISTÓRIA O desfile para Gucci, Resort 2020
o outono/inverno 2018
da Vetements

À esquerda e em baixo,
Chanel, outono/inverno 2020

O outono/inverno
2020 de Tom Ford,
apresentado em
Los Angeles

Alexander Wang:
independente) em dois eventos
Collection 1, 2020
anuais, que adotariam uma
deixar de apresentar no sistema
clássico. Aborreci-me. Penso IN FREEDOM
nomenclatura sem estação – que é preciso entrar num novo (AND FASHION) WE TRUST
ao invés do típico “primavera/ capítulo. Os desfiles de Moda Do empoderamento de Yves
verão” e “outono/inverno”, não são a melhor ferramenta. Saint Laurent e Paco Rabanne
as propostas passariam a ser Fizemos desfiles num clube à revolução discreta de Coco
rotuladas com “fevereiro” erótico, num restaurante, Chanel e Miuccia Prada, sem
e “setembro” – e estariam numa igreja. Avançámos a esquecer a sensualidade
imediatamente disponíveis estação, mostrámos menswear desmedida de Thierry Mugler
depois dos desfiles, em linha e womenswear em conjunto. e Tom Ford, o minimalismo Em cima e ao lado,
com o see now, buy now. Como Tornou-se repetitivo e de Helmut Lang e Jil Sander, a Maison Margiela,
primavera/verão 2020
escreveu o BoF aquando da cansativo. Vamos fazer alguma fantasia realista de Pierpaolo
decisão, “a nova estratégia da coisa quando existir tempo Piccioli e o effortless chic (e
Burberry é uma resposta ao e necessidade. Será uma cool) de Phoebe Philo, Moda e
problema de longa-data do surpresa.” Nesse mesmo ano, liberdade sempre foram duas
calendário, um legado da era a dupla Jack McCollough e faces da mesma moeda – e, na
pré-Internet na qual os desfiles Lazaro Hernandez anunciou passerelle, essa gigante L word
eram concebidos como eventos que a Proenza Schouler iria continua a ser mote e motim.
Vetements, à porta fechada para que abandonar o calendário por Comecemos por Alessandro
primavera/verão 2020
imprensa e buyers pudessem ter completo, de forma a “seguir Michele, o homem que pegou
um preview da coleção, meses um modelo de negócio mais na Gucci e a virou do avesso.
NEM A TEMPO, NEM A HORAS antes de esta estar disponível em linha com a realidade do No bom sentido, claro. da América ameaçavam uma mulher e eu respeito de um duplo C. “‘Liberdade!’,
Se é verdade que a liberdade nas lojas. Em anos recentes, comércio de hoje”; um ano Para a coleção Cruise 2020 da um dos mais básicos essa escolha.” Quem também declarou Virginie Viard durante
nos ajuda a avançar, também é o crescimento dos meios depois foi a vez de Alexander Casa italiana, apresentada na direitos femininos, algumas olhou para a liberdade, um fitting no atelier Chanel na
verdade que é graças a ela que digitais tem posto uma pressão Wang dizer adeus ao calendário cidade de Roma em maio do peças foram adornadas ainda que com uma lente Rue Cambon, na véspera do
conseguimos dar um passo tremenda neste modelo, à oficial da Semana de Moda passado ano, o diretor criativo com imagens do sistema diferente, foi John Galliano. seu desfile”, escreveu Hamish
atrás – e, no caso da indústria, medida que os desfiles – de Nova Iorque, passando a optou por fazer aquilo que reprodutivo feminino, Para a primavera/verão 2020 Bowles no Vogue Runway sobre
isso pode significar abandonar agora instantaneamente apresentar as propostas da o próprio definiu como um enquanto noutras se podia ler da Maison Margiela – uma a coleção outono/inverno
o tradicional calendário das partilhados na Internet – se marca em junho e dezembro; “hino à liberdade”. “Foi muito o poderoso slogan “My body, my coleção centrada na liberdade, 2020 da Casa francesa. “Viard
também tradicionais Semanas transformaram em poderosos e em fevereiro do passado ano, importante organizar o desfile choice” (à letra, “o meu corpo, na esperança e no ativismo explicou que estava a falar do
de Moda. Nos últimos anos, eventos de marketing, deixando Kerby Jean-Raymond, a mente em Roma, numa altura em a minha escolha”) ou “May – o diretor criativo viajou tipo de liberdade wind-
não faltaram exemplos de as marcas sem ferramentas criativa por detrás da Pyer que é importante glorificar 22, 1978”, numa referência pelos livros de história e -in-the-hair que um cavaleiro
designers que decidiram rasgar para converter o buzz em Moss, confirmou ao The New este local como um local de à data em que o aborto foi recuperou algumas das mais sente enquanto o seu cavalo
o constrangimento de contar vendas de uma coleção que York Times que a marca iria ser liberdade. Todas as coisas legalizado em Itália. “As significantes figuras que percorre a paisagem. Essa ideia
horas e dias e optar por ainda não foi produzida”. um no show na Semana de Moda belas, que nos rodeiam, do notícias que tenho lido nos lutaram pela liberdade, de de libertação traduziu-se numa
Alexander Wang: abordagens certamente mais A abordagem foi não só de Nova Iorque. Designer atrás mundo pagão, estão ligadas jornais fizeram-me refletir no Marie Curie a Edith Cavell. coleção de peças espontâneas
Collection 1, 2020
livres. Em 2016, Christopher pioneira, como estabeleceu de designer, a revolução continua a uma liberdade que foi por facto de que as mulheres têm Como Galliano explicou no e amigas das mulheres, que
Bailey, então diretor criativo um novo estandarte de – só este ano, Tom Ford trocou vezes ameaçada. Tentei colocar de ser respeitadas. Deviam podcast The Memory Of..., “a abraçavam os códigos da
da Burberry, anunciou ao liberdade para questionar o calendário de Nova Iorque todas as personagens do ser consideradas como alguns primavera/verão 2020 da Casa ao mesmo tempo que
Business of Fashion que a os modelos tradicionais pela liberdade de Los Angeles, meu filme no melhor cenário homens se consideram a Margiela é sobre recordação, reforçavam os instintos
Casa britânica iria passar a da indústria e olhar para a onde apresentou o seu outono/ possível, onde possam ser si próprios. Deviam ter a sobre liberação, sobre ter pragmáticos de Viard para um
operar num timing totalmente Moda com uma visão mais inverno 2020, e Phillip Lim livres”, disse Michele sobre liberdade de escolher aquilo uma voz. Estas pessoas glamour confortável, tranquilo
FOTOGRAFIA: IMAXTREE.

diferente. Em termos contemporânea. Em 2017, decidiu cancelar o desfile a coleção, que se centrou na que querem. Pôr fim a uma lutaram para que tu pudesses e em nada disparatado.” Na
práticos, a decisão de Bailey Demna Gvasalia confessou outono/inverno 2020, em Nova ideia de liberdade de escolha. gravidez não vai arrancar a [ter o direito de] votar, por Moda, a liberdade é mesmo
traduzia-se numa fusão das à edição norte-americana Iorque, para “tirar um momento Ou, melhor, na defesa da flor que se encontra no ventre isso usa-o. Faz com que te assim – mais ou menos política,
coleções de womenswear e da Vogue que a Vetements para respirar” e “ter tempo própria escolha – numa altura de cada mulher. Às vezes, ouçam. É importante.” E em mais ou menos ativista,
menswear (tradicionalmente iria abandonar o tradicional para pensar no ato de criar em que as iminentes leis anti- as decisões são difíceis. março deste ano, a liberdade mais ou menos idílica.
English version apresentadas de forma modelo de desfile. “Vamos com felicidade outra vez”. -aborto nos Estados Unidos É a decisão mais difícil para chegou à indústria na forma Mas sempre liberdade. l

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INVOGUE ACESSÓRIOS

À Solta

Numa edição em que falamos de liberdade – pode parecer ironia, mas não é,
é apenas uma estranha coincidência, aquilo que os ingleses chamam de
serendipity – e estando o país em estado de alerta, com parte da população de
quarentena em casa, vamos olhar para lá das nossas janelas e ver os acessórios
da estação que andam à solta, sem vírus e sem maleitas, porque também são eles Carteira 1955 Horsebit, em pele, € 2.400, Gucci. Na página ao lado: vestido em jersey de seda estampada, € 1.700, Moschino.

que nos trazem cor, alegria e good vibes. Qualquer motivo serve para aprender
a lidar com estes tempos de cólera. Fotografia de Pedro Ferreira. Realização de Ana Caracol.

Carteira Balloon em pele, € 1.800, Loewe. Na página ao lado: carteira Paloma em pele e metal, € 695, Moschino.

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INVOGUE ACESSÓRIOS

Carteira em pele e metal, € 4.400, Chanel. Na página ao lado: carteira C-Bag em pele, € 1.500, Tod’s.

4 6 vogue.pt vogue.pt 4 7
INVOGUE ACESSÓRIOS

Saco em pele e corda, € 1.300, Prada. Na página ao lado: sapatos Swift em pele e neopreno, € 875, Louis Vuitton.

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INVOGUE ACESSÓRIOS

Carteira Video em pele e PVC, € 4.200, Louis Vuitton. Na página ao lado: carteiras Matelassé em pele, € 1.700, Miu Miu.

5 0 vogue.pt vogue.pt 5 1
INVOGUE ACESSÓRIOS

Carteira Peekaboo Iconic em pele, € 5.800, Fendi. Na página ao lado: sapatos em pele, € 690, Prada.
Assistente de realização: Eduarda Pedro. Assistentes de fotografia: Ana Viegas e João Tainha.

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INVOGUE ANÁLISE

Fashion for freedom


À luz dos movimentos que, nos dias de hoje, lutam por
liberdades ainda não adquiridas, o papel da mulher torna-se cada
vez mais vital e significativo. Mas o que (também) é relevante,
em todas essas movimentações, é a forma como a Moda
pode ajudar a quebrar fronteiras e preconceitos. Do direito
ao voto a guerrilhas políticas, ela esteve sempre lá. Por Ana Murcho.

 “No século XIX, as sufragistas eram caricaturadas como pouco


atraentes, mal-humoradas e matronas, perpetuando a ideia de que
as mulheres que queriam o voto eram figuras marginais, que não
deveriam ser levadas a sério.” Assim contava o jornal inglês The
Telegraph, em 2018. A maior parte da imprensa da época mostra-

FOTOGRAFIA: BUYENLARGE / FOX PHOTOS / HERITAGE IMAGES / PHOTOQUEST / ALEX WONG / DANIEL ZUCHNIK / MANDEL NGAN / GETTY IMAGES.
va-as “gritando e sendo levadas pela polícia.” Mas as sufragistas
cedo compreenderam o poder – e o impacto – de um guarda-roupa
cuidado. Desde a sua fundação que a Women’s Social and Political
Union (também conhecida por WSPU, foi uma organização militante
que lutou pelo sufrágio feminino no Reino Unido entre 1903 e 1917)
criada por Emmeline Pankhurst, encorajou as mulheres a parecerem
femininas e elegantes. Pankhurst imaginou, inclusivamente, um
esquema de cores que acabou por ser um marco triunfal na luta das
sufragistas: roxo significava lealdade e dignidade, branco simbolizava
m tempos de cólera, quando tudo é mais propício à análise
e à nostalgia, façamos rewind sobre uma história que nos
diz muito: a história das lutas femininas por direitos tão
universais que, agora, sentados no sofá por obrigação moral
e sanitária, talvez façam mais sentido que nunca. Estamos
privados da nossa liberdade mas sabemos que, após este
“estado de emergência”, tudo voltará ao normal – à partida,
tudo voltará ao normal. Podemos ir trabalhar. Podemos
vestir as roupas que quisermos (uma minissaia? why not?).
Podemos viajar. Podemos votar. Mas nem sempre foi assim.
A emancipação feminina, um combate em curso desde o
início dos séculos, tem um passado recente mais ou menos negro.
Quiseram calá-las. Fechá-las em casa. Ocultá-las das grandes decisões
da Humanidade. Só que não conseguiram. No final do século XIX,
as mulheres começaram a perceber que a palavra era uma poderosa
arma. E saíram para as ruas. A primeira convenção pelos direitos das
mulheres aconteceu a 19 e 20 de julho de 1848 em Seneca Falls, Nova
Iorque, nos Estados Unidos. Autoproclamando-se como uma reunião
para “discutir as condições e direitos sociais, civis e religiosos das
mulheres”, atraiu enorme atenção, tanto naquele país como fora dele,
e deu o mote ao movimento das sufragistas, que havia de lutar mais
de 50 anos para conseguir o direito ao voto. Foi nos EUA, e também
no Reino Unido, que acabaram por surgir diversos grupos que se
destacaram pela forma como usaram a Moda para disseminar as
suas ideias, e desejos, de Liberdade.

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INVOGUE ANÁLISE

inusitados que agora, como num fabuloso plot twist,  são consideradas são sempre um piscar de olho aos desejos de ambos os sexos. Mas
EM JANEIRO PASSADO, PELO
TERCEIRO ANO CONSECUTIVO, icónicas – empurrou-a para as páginas de gossip e, de certa forma, façamos, uma vez mais, uma viagem pelo tempo. No final do século
OS MEMBROS FEMININOS diminuiu a relevância da sua longa carreira dedicada ao serviço social. XIX, a ativista americana Amelia Bloomer defendeu o direito das
DO PARTIDO DEMOCRATA Tudo isto mudou quando assumiu o cargo de Secretária de Estado, mulheres usarem calças (mais concretamente, as bloomers) por baixo
AO CONGRESSO AMERICANO em 2009, a convite de Barack Obama, e mais ainda quando entrou na dos vestidos, e foi severamente criticada. Já nos anos 60 do século
DECIDIRAM USAR SUFFRAGETTE corrida à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, passado, o estilo unissexo diferenciava os hippies da classe média
WHITE NO DIA DO DISCURSO DO
em 2016. Em julho desse ano, quando fez o primeiro discurso como emergente. Vivia-se uma mudança de paradigma, e isso sentia-se.
ESTADO DA UNIÃO. O GRUPO
OPÕE-SE “À AGENDA ATRASADA candidata, já não era aquela mulher de scrunchies que descurava o Foi por essa altura que o The New York Times usou a palavra “unisex”
DO PRESIDENTE TRUMP.” aspeto como algo frívolo ou irrelevante. Por essa altura, Hillary pela primeira vez – mais concretamente, em 1968, para descrever um
era já a política experiente, de aspeto polido e presidenciável, que par de sapatos desajeitados da marca Monster. No Chicago Tribune, a
dizia “estou pronta, vamos trabalhar.” Daí a sua escolha, na altura, colunista Everett Mattlin lamentava o estado de coisas numa coluna
ter recaído num fato branco, de tailoring impecável, que não deixava intitulada The Age of Unisex: “Vocês sabem como é agora – o cabelo
margem para críticas – e que distraía, definitivamente, a conversa dos rapazes é tão longo quanto o das raparigas e as suas roupas são
sobre o seu aspeto físico e a centrava na mensagem que ela, Clin- igualmente sem forma e sem género. Elas usam botas e eles usam
ton, queria passar. No caso, e ao contrário do seu adversário, uma colares. As raparigas compram calças, blusas e casacos masculinos nas
mensagem de Liberdade. lojas masculinas, e não ficarei surpresa quando o contrário também
Chamam-lhe fashion activism e, dúvidas houvesse, após a semana se tornar realidade.” Depois disso, o conceito genderless percorreu um
de Moda de Nova Iorque, em janeiro de 2017, esse foi um dos temas longo caminho até aos dias dia hoje, em que há dezenas de marcas
mais badalados da temporada. O Council of Fashion Designers of que fazem desta libertação de géneros a sua razão de ser. Apoian-
America (CFDA) deu o mote, encorajando os participantes a usar pins do-se, obviamente, na crescente importância dos movimentos pela
cor-de-rosa onde se lia “Fashion Stands With Planned Parenthood” [em igualdade de género, por exemplo, esta é uma luta pela Liberdade que
referência à organização de saúde a que Trump declarou guerra], e o não conhece fisionomias nem etiquetas.
lema foi seguido à risca. Em Christian Siriano, uma modelo envergava De volta onde tudo começou. Em janeiro último, pelo terceiro ano
uma t-shirt que dizia “People Are People”. Jonathan Simkhai ofereceu consecutivo, os membros femininos do Partido Democrata ao Con-
camisolas onde se lia “Feminist AF” [iniciais para “as f*ck”]. Prabal gresso Americano decidiram usar suffragette white no dia do discurso
Gurung fechou o desfile com uma série de t-shirts com mensagens do Estado da União. De acordo com um tweet da deputada pelo Partido
como “Revolution Has No Borders” ou “I Am An Immigrant”. E os sinais de Democrata Brenda Lawrence, o grupo opõe-se “à agenda atrasada
alerta continuaram, da ironia de Public School (com o boné vermelho do Presidente Trump” que vai contra “a fundação que foi construída
“Make America New York” a fazer paródia ao chapéu de campanha de pelas mulheres pioneiras deste país." No passado dia 5 de fevereiro,
pureza, e verde representava esperança. As militantes da WSPU eram Trump) à roupa interior de Raul Solis, que suspirava “F*ck Your Wall”. uma enorme onda de branco invadiu o Capitólio:
incentivadas a usar estes tons como “um dever e um privilégio.” Nas ruas, multiplicavam-se os looks em que as palavras de ordem eram a presidente da Câmara dos Representantes,
Nos EUA, existia ainda o dourado, que personificava os girassóis a peça mais importante. Mas sem dúvida que, por aqueles dias, o mais Nancy Pelosi, destacava-se num branco imperial,
do Kansas, onde Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton, duas inesperado ato de subversão veio da conceituada revista W, que juntou sentada atrás do Presidente Trump e ao lado do
conhecidas sufragistas, faziam campanha. A moda pegou. Os grandes 81 personalidades da indústria num vídeo onde a única frase repetida vice-presidente Mike Pence, ambos de fato preto.
armazéns Selfridges vendiam fitas listradas tricolor para chapéus, era “I Am An Immigrant”. 2017 foi, em termos de ativismo, um ano de As outras mulheres ostentavam diferentes tons
cintos e crachás. O branco era, no entanto, a cor mais usada e, em renascimento. Sim, a t-shirt viral “We Should All Be Feminists”, da Dior, de creme, marfim, off-white e branco-pérola,
ocasiões mais importantes, como marchas, as participantes eram foi lançada nesse ano. Depois da inesperada vitória de Trump nas criando um ensurdecedor holofote que gritava
aconselhadas a vestir total white da cabeça aos pés, o que dava uma eleições de novembro de 2016, que tiveram uma onda de impacto em o seu descontentamento para com as políticas
visibilidade extra à causa. Foi uma opção inteligente de propaganda todo o mundo ocidental, as pessoas vieram para a rua gritar “basta”. do ocupante da Casa Branca. Também em 2019,
– um alfinete com as três cores supracitadas, estrategicamente co- E em várias ocasiões serviram-se da Moda para o fazer, fosse pelos na sua cerimónia de tomada de posse, Alexan-
locado, era sinal de uma partilha de valores; e os vestidos enfeitados pussyhats, que encheram as marchas pelos direitos das mulheres, em dria Ocasio-Cortez, a mulher mais jovem de
com rendas, as blusas de gola alta e as saias limpas que associamos março, ou pelo uso recorrente de t-shirts, que voltaram a ser a forma sempre a ser eleita para o Congresso, se vestiu
à era eduardiana eram facilmente modificados para este novo look mais direta de reagir à catadupa de notícias depois do Donald (não, de branco – exceto pelo seu batom vermelho,
que gritava por liberdade, nada mais que liberdade. Chegaram a isto não é um erro de formatação) se sentar na Sala Oval. Porque que se tornou a sua imagem de marca. Depois
ser feitos espartilhos confortáveis para aquelas que “marchavam tal como Katharine Hamnett já nos tinha mostrado nos anos 80, do evento oficial, partilhou no Twitter: "Eu usei
e discursavam.” As sufragistas, que no Reino Unido acabaram por também se pode lutar pela Liberdade assim, com uma simples t-shirt. branco hoje para homenagear as mulheres que
conseguir o direito ao voto em 1918, são um dos melhores exemplos Simples, também, é o futuro que se imagina, e que se quer, para a abriram o caminho antes de mim e para todas as
de união entre Moda e Liberdade. Moda. Porque se pensarmos naquilo que os criadores têm apresen- mulheres que ainda estão por vir. Das sufragis-
Foi, durante décadas, o alvo preferido dos paparazzi, que não per- tado nos últimos anos, um pouco por todo mundo – algures entre tas a Shirley Chisholm [primeira mulher negra
doavam as suas escolhas de vestuário, nomeadamente os acessórios o neutral e o sports-couture, o athleisure-chic e o minimal – facilmente eleita pelo Congresso dos EUA], eu não estaria
– aquele toque final que pode elevar ou destruir um look. No caso concluímos que a roupa, quando nasce, é para todos. Ou seja, que aqui se não fosse pelas mães do movimento.” Li-
de Hillary Clinton, era quase sempre o segundo caso. Enquanto foi talvez não seja descabido concluir que, daqui a umas décadas, isso berdade, nada mais que liberdade, dizem elas. l
“apenas” a mulher de Bill Clinton, a sua tendência para usar elásticos de coleções de homem e coleções de mulher será coisa do passado.
de cabelo – juntamente com as suas roupas de padrões, cortes e tons English version Pelo menos assim parece pensar Alessandro Michele, cujas propostas

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INVOGUE MARCA

ão, não, claro que não é novidade: transparências, te- Esta manifestação de liberdade – livre de condicionantes e livre de
cidos see-through, rendas que deixam revelar um pouco pudor – eleva a fasquia com uma nova camada de transparência, mais
mais, roupa interior que espreita por debaixo de um ousada, mais reveladora, mas também mais sofisticada, e ganha pon-
blazer, de uma blusa – ou que não espreita, impõe-se tos na red carpet, mas perde praticidade no dia-a-dia. O que não quer
como protagonista – é coisa do passado. Mas também dizer que perca pertinência: as transparências que revelam a roupa
do presente e do futuro. Basta pensar um pouco nos interior multiplicam-se nos guarda-roupas e a sobreposição agora até
anos 90 e na santíssima trindade (Christy Turlington, pode pedir um passo em frente na liberdade dos mamilos, colocando
Linda Evangelista e Naomi Campbell), bem como em a lingerie também ela com o seu quê de transparência. O #freetheni-
Kate Moss e Cindy Crawford, para vir à memória aquele pple nunca foi tão elegante. É claro que se pede algum decoro – sem
vestido em organza metalizada e camisolas coleantes ele também se perde sofisticação, mas o arrojo de uma blusa em tule
em chiffon negro que deixavam à mostra um sutiã opaco por cima de um bralette em renda pode parecer um pequeno passo
preto coordenado com carnudos lábios vermelhos. Mesmo na década no seu #ootd, mas um salto gigante para a liberdade de escolha – e
anterior, Cher já quebrava tabus passeando-se naquela (uma de mui- livre para (se) revelar. Aliás, pode esticar ainda mais essa liberdade
tas) silhueta icónica by Bob Mackie, que deixava pouco – ou nada – à de expressão se alongar a blusa a um vestido: agora que a primavera
imaginação, na cerimónia de entrega dos Óscares, em 1988. Mas o está aí, a leveza de um kaftan não só é permitida como encorajada.
séc. XXI não se coibiu de subir a parada com exemplos como aquele Um babydoll, um vestido em renda ou aquele camiseiro em chiffon são
naked dress Adam Selman de Rihanna nos CFDA em 2014, ou aquela todas hipóteses válidas para o calor que se avizinha e que só pede
fina camada Givenchy com cristais que deixava à vista a invejável duas coisas: a escolha acertada de lingerie e um material – tule, or-
figura de Beyoncé na MET Gala de 2015 – um pouco a lembrar aquele ganza, renda, chiffon, voile… – capaz de colocar a descoberto a sua (a
macacão-que-quase-não-estava-lá de Britney Spears, no videoclip de nossa) liberdade de expressão. Em matéria de interior, é deixar o seu
Toxic, em 2004. Também Irina Shayk, em Verona, no Intimissimi on Ice, instinto e conforto tomar conta: seja um sutiã básico ou um bralette
com aquele longo vestido translúcido com brilhantes com um decote que se assemelhe a um top, seja um balconette ou um body, o poder de
que abria caminho para o seu sutiã traçado da marca italiana, em escolha só está limitado pela sua personalidade. Ainda não se sente
2016, ou mesmo o Ralph & Russo branco, assimétrico e drapeado, confortável com tamanha audácia em matéria de dupla transparência?
de Bella Hadid, no Cannes Film Festival em 2017, mostram que as Válido na mesma. O importante nestas questões de empoderamento
transparências e a lingerie como protagonista – leia-se, como peça é a possibilidade de optar, de decidir, de arrojar – ou não. Mesmo que
exterior e não interior – não são coisas de outros tempos. Na ver- opte pelo interior opaco sobreposto por uma fina camada de transpa-
dade, é coisa de sempre. Não é à toa que a Intimissimi, referência em rência, o mais importante é que a mensagem fique transparente: uma
matéria de underwear, tenha lançado uma campanha em 2017 chama- mulher com licença para revelar. Se assim o quiser. ●
da Inside Out que toca mesmo nesta ideia da
lingerie enquanto outerwear, não como uma
questão de estilo, mas como uma questão de
empoderamento. Não foi também à toa que
convidou Catarina Furtado, reconhecida ati-
vista e defensora dos direitos da mulher, para
ser a sua embaixadora nacional, na altura.
Não foi à toa, também, que a apresentadora
aceitou - em nome do empowerment feminino.

Licence to reveal
Mas sem exibicionismos: a liberdade do guarda-roupa – e da primavera
– mostra que a beleza vem de dentro para fora em mais do que uma
FOTOGRAFIA: D.R.

maneira. Tecidos translúcidos como o chiffon e o tule revelam a lingerie Da esquerda para a direita: Body Charme Fatal em renda, €49,90,
body Crazy in Love em renda, €39,90, bralette The Garden Fairy, €35,90,
como protagonista, e a lingerie, por si, desvenda o corpo feminino e cuecas The Garden Fairy, €12,90, ambos da coleção Green, e babydoll

sem pudor. Show off? Não, é só show, mesmo. Ilustração de Nuno da Costa.
Lady Sheer em renda e tule, €29,90, tudo Intimissimi. Na página ao lado,
na ilustração: Body Lady Sheer em renda e tule, €49,90, Intimissimi.

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INVOGUE SUSTENTABILIDADE

Há cada vez mais marcas a apostarem numa política eco a 360º,


Livre de clichés de gases de efeito estufa e cerca de metade da
água, quando comparado com a viscose comum.
Outra vantagem é que o Lenzing é um tecido
priorizando não só a diminuição de poluentes e de consumo super macio e com regulação térmica, garante
(de energia, água, etc.), mas também a apologia da diversidade a Tencel, principal marca de fibras têxteis do
género. Agora, toda esta lista de pontos positivos
e integridade. E isso pode parecer lugar comum, mas não é. está numa gama de denim com uma variedade
É uma aposta na liberdade – de ter(mos) futuro. de lavagens – médias e escuras – e um outro
tanto leque de modelos, principalmente os de
cintura subida. Há até um macacão que a Guess
considera peça chave da estação. A coleção, que
tem propostas para mulher e homem, responde
à motivação do grupo em desenvolver com su-
cesso este projeto eco-sustentável e as metas de
2021, simplificando os processos de produção
Guess, estão a fazer parte de uma marca global que tem um impacto para otimizar a eficiência ambiental e reduzir
positivo no mundo, tornando-o num sítio melhor para as gerações ainda mais a sua pegada de carbono. “Ao longo
futuras. Para mim, é isso a essência da Guess”, reitera o CEO, no de 2016, começamos a nossa viagem em prol da
terceiro relatório de sustentabilidade do grupo, relativo a 2018-2019. sustentabilidade com o Our World, Our Brand – o
A promessa não se esgota em palavras: até 2021, a marca comprome- primeiro plano de sustentabilidade da Guess,
te-se a ter 20% dos seus materiais certificados com origem sustentável; agora adotado globalmente. Aceleramos o nosso
100% das lavagens do seu denim de acordo com as guidelines do Higg alinhamento enquanto empresa com os nossos
FEM Environmental Survey (o índice Higg mede e pontua, através objetivos de sustentabilidade, evoluindo o nosso
de um conjunto de ferramentas, a performance de sustentabilidade de negócio para satisfazer os interesses e expecta-
uma marca ou produto, em todas as suas fases); e uma redução de tivas de todos os acionistas – aqueles ligados
15% nas emissões de gases efeito estufa, entre projetos de formação ao nosso negócio a todos os níveis bem como
ustentabilidade. Atira-se a palavra como slogan, repetindo-a de equipas, inclusão e diversidade das pessoas que trabalham com de reciclagem com a colaboração dos clientes, e como a linha Guess as nossas comunidades locais e globais. Inspirados pelos princípios
vezes sem conta como se de repente tê-la e dizê-la fosse a marca, e uma aposta na responsabilidade social – com formação Vintage, que oferece uma seleção de peças em segunda-mão recolhidas do Conscious Capitalism, a minha visão para a Guess é recorrer à nossa
sê-la, despindo-a da sua essência para passar a ser um a vários níveis, da fábrica aos fornecedores e mais além. Objetivos um pouco por todo o mundo. Foi em 2017 que a Guess anunciou o paixão e usar uma abordagem com propósito para criar de forma
conjunto de letras que desresponsabilizam e rotulam. impressionantes para uma marca com quase 40 anos de mercado seu compromisso com a Agenda de 2020 relativo ao Sistema de Moda positiva um impacto no Nosso Mundo e na Nossa Marca”, remata
“É sustentável”, no questions asked, e de repente, aquela que se está a empenhar em reinventar hábitos de quatro décadas em Circular, com um programa de recolha que permite aos seus clientes Carlos Alberini. Às palavras do CEO, o relatório acrescenta ainda que
marca, aquele produto, aquela ideia é a nova coqueluche, prol da comunidade e do planeta. “Na Guess, o nosso compromisso devolverem roupas e sapatos que já não querem/usam, qualquer que a marca está “comprometida com os Objetivos de Desenvolvimento
seja em que área de conforto se mover. No questions asked. com a sustentabilidade é baseado em três princípios-chave”, conti- seja a sua etiqueta – neste momento, a iniciativa Resourced está apenas Sustentável das Nações Unidas”, 17 objetivos desenvolvidos em 2015
Mas sustentabilidade não é um rótulo, é uma responsa- nua o diretor. “Primeiro, acreditamos em operar com integridade; disponível nos Estados Unidos, mas será alargada a todo o mundo. para resolver os desafios mais prementes do Mundo e desenvolver um
bilidade. E não é algo que se adquire ou se é, trabalha-se. segundo, estamos comprometidos em empoderar as nossas equipas; Em 2019, chegou o Vintage, uma panóplia de peças Guess autenticadas futuro mais sustentável para todos até 2030. “As nossas metas para
E trabalhá-la dá trabalho, não acontece de um dia para o e terceiro, somos apaixonados por proteger o nosso planeta. Em procuradas um pouco por todo o planeta. Até agora, estes esforços 2021 contribuem para estas diretrizes e motivam os nossos esforços
outro. E as marcas maiores, aquelas que pendura no seu dois anos, desde que a Guess publicou o último relatório de susten- conjuntos representam uma redução de 10% na emissão de gases em nome do empoderamento dos nossos parceiros, incremento a
guarda-roupa há anos, sabem-no. As mais conscientes – as mais tabilidade, o interesse e a consciência do público cresceram imenso de efeito estufa, uma diminuição de cerca 26% no uso de energia sustentabilidade das nossas operações e comunidades globais e em
inteligentes – não vão desistir da caminhada só porque a mudança em matérias várias, desde as alterações climáticas à Moda circular, e emissões nos EUA e Canadá, e uma poupança de 780.000 kWh conectar os nossos consumidores com escolhas de moda mais sus-
não acontece da noite para o dia. Porque sabem que sustentabilidade dos direitos humanos à transparência, diversidade e inclusão. Nós graças à instalação de LEDs, que equivale a menos 300 toneladas tentáveis”, assegura a Guess?, Inc. “Estamos ainda comprometidos
é esforço. E também é a liberdade de ter a opção de escolha sobre compreendemos que uma mudança genuína e a longo-prazo é expec- métricas de emissões de CO2.  “Estamos também comprometidos em reportar de forma transparente o nosso progresso de acordo com
tomar esta decisão. “O mundo está a olhar para marcas icónicas tável e que temos de a assumir com a urgência e importância destas em encontrar materiais responsáveis, que representam a primeira estes objetivos e em conseguir garantias de terceiros para dar aos
como a Guess e a fazer perguntas cada vez mais exigentes sobre o preocupações ambientais e sociais hoje!” É por isso, também, que causa do impacto ambiental dos nossos produtos. Este compromisso nossos acionistas confiança na qualidade e integridade dos nossos
impacto que criamos em tudo o que fazemos.” Carlos Alberini é o a marca tem olhado cada vez mais para o upcycling e para a redução reflete-se na nossa cada vez maior e global coleção Eco.”  relatórios”. Em última instância, para que possam usar a palavra
CEO e diretor da Guess?, Inc., empresa que desde 2016 embarcou num do desperdício, lançando projetos como o Resourced, um programa A primeira coleção Eco da marca foi lançada em 2016 pela Guess sustentabilidade pejados de autoridade e consciência livre. l
compromisso com a sustentabilidade através da iniciativa Our World, Europe, sendo que a primeira linha do género a nível global chegou
FOTOGRAFIA: NADINPANINA / ISTOCK.

Our Brand, o primeiro plano de sustentabilidade da Guess, agora já três anos depois, em 2019, e continua a crescer. A primavera-verão
adotado pela marca globalmente. Com objetivos estudados e o tra- 2020 vê chegar mais uma aos espaços da marca, com a Eco Denim
balho de casa feito, a casa americana reforça o compromisso com collection, um novo passo em direção ao objetivo de garantir que 25%
uma coleção Eco Denim pensada para esta estação, a par dos esforços da sua seleção total de jeans seja eco até 2021. A linha exclusiva utiliza
contínuos em paralelo, como a aposta na inclusão, na diversidade e, fibras inovadoras como o Lenzing e o Ecovero, materiais fabricados a
claro, uma reforçada preocupação ambiental. “A nossa promessa é partir de fontes de madeira renováveis certificadas, bem como fibras
oferecer produtos de alta qualidade, desenhados com o ambiente de algodão orgânico e reciclado cujo impacto ambiental é menor por-
e as nossas comunidades em mente, para que os nossos clientes, que o uso de água e fertilizantes é reduzido. O processo de produção
os nossos parceiros e as nossas famílias saibam que, quando usam também é ecologicamente responsável: gera até 50% menos emissões

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INVOGUE MODA

Numa realidade simulada onde todos somos peões, preferia tomar


The Matrix
o comprimido vermelho ou o comprimido azul? Ser exposta a uma
verdade desagradável ou continuar numa simulação feliz? Honestidade
brutal ou serena ignorância? Se lhe dessem a possibilidade de escolha,
preferia viver numa liberdade difícil ou na numa falsidade tranquila?
Continuar como um “cultivado” e ser um Agent Smith ou encarnar Neo
e Morpheus? Nenhum. Escolha antes ser a Trinity. Pela liberdade, sim,
mas também pelo guarda-roupa. Fotografia de Andreas Ortner. Styling de Elke Dostal.

Macacão em crepe de seda, cinto em pele e metal e sandálias em pele, tudo BOTTEGA VENETA.

English version

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INVOGUE MODA INVOGUE MODA

Fato em camurça e camisa em organza de seda, tudo ACNE STUDIOS. Na página ao lado: casaco em tweed, CHANEL.

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INVOGUE MODA

Na página ao lado: casaco em pele, MAX MARA.

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INVOGUE MODA INVOGUE MODA

Casaco em algodão, BOTTEGA VENETA. Sapatos em pele e borracha, PRADA.

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INVOGUE MODA INVOGUE MODA

Casaco em seda e algodão, CHRISTIAN DIOR. Na página ao lado: tank em algodão, DRIES VAN NOTEN.
Calças e cinto (na cabeça) em jersey de algodão, ambos SALVATORE FERRAGAMO. Botas em pele, ACNE STUDIOS.

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INVOGUE MODA

Casaco em pele, NANUSHKA. Sapatos em pele, BOTTEGA VENETA.

FOTOGRAFIA: D.R.

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INVOGUE MODA INVOGUE MODA

Fato em lã fria, DRIES VAN NOTEN. Mules em pele, BALENCIAGA.


Fotografia: Andreas Ortner @ Schierke Artists. Styling: Elke Dostal @ Nina Klein Agency.
Modelo: Nina K @ Munich Models. Cabelos e maquilhagem: Uli Wissel.
Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.

FOTOGRAFIA: D.R.

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LIFE
STYLE
ARTES
REALIZAÇÃO: ANA CARACOL ASSISTIDA POR EDUARDA PEDRO. FOTOGRAFIA: PEDRO FERREIRA.

LIVING
DESIGN Objeto de decoração em cerâmica, € 18,90, Area. Collants em mousse, € 5,95, Calzedonia.
LIFESTYLE ROTEIRO

O que ver, o que ler, o que fazer. Por Ana Murcho.


Haja liberdade, agora e sempre.
Para vermos o que bem-nos-apetece.
 Nunca, nem nos nossos sonhos mais molhados, imaginámos que alguma vez fossemos dispor
de tanto tempo para Netflix and chill. Pois aí está ele. Um enorme, gigantesco, estapafúrdio, quase
irracional, buraco infinito de tempo. É provável que, depois disto (vamos tentar não incluir “a”
palavra em todos os textos) consigamos chegar ao fim das listas de filmes e séries proporcionados
pelas diferentes plataformas de streaming sem mais nada para desbravar. Porque uma coisa é
acumular desejos de binge watching, outra é estar em casa, pajama all day, e carregar no play assim
que cessa o horário de trabalho. Escrito isto, e porque sabemos que é quase impossível não voltar
Portrait empaqueté,
de Jeanne-Claude, 1963. a rever os culpados do costume – Friends, Sex And The City, Mad Men, Game Of Thrones, Breaking Bad,
Twin Peaks, The Sopranos – existem coisas mais recentes que vale a pena espreitar. Ou experimentar.
E não, não estamos a falar da 67.ª temporada de Grey’s Anatomy – mas também não estamos a julgar.
Better Call Saul, American Crime Story, Shameless, The Handmaid’s Tale, After Life são algumas das séries
com selo de qualidade que convém ver: é quase impossível não ficar colado à prestação (brilhante,
diga-se) de Bob Odenkirk como o infame Saul Goodman; às histórias, verídicas, contadas pelo
produtor Ryan Murphy e companhia (foi desse grupo que saiu O Assassinato De Gianni Versace); à
loucura de uma família pouco convencional, que passa a vida em bares, liderada pela primogénita,
Fiona; à distopia vivida por Offred (magistralmente interpretada por Elisabeth Moss), a partir de um
romance de Margaret Atwood; e ao soco no estômago que
é After Life, criada, produzida e realizada por Ricky Gervais
(e cujo tema, a morte, é retratado com uma sensibilidade
que ainda não conhecíamos no artista britânico). Deixemos
espaço, também, para outros títulos que por vezes são
negligenciados. Casos de Peaky Blinders, Bloodline, Grace And
Frankie, The Affair, Luther, Mindhunter, Sense 8… Precisamos
de mencionar Narcos, House of Cards ou Orange Is The New
Black? Nah… E filmes? Como estamos de filmes? Bom, talvez
Haja liberdade, agora e estejamos mal, com a quantidade de documentários bons
sempre. Para viajarmos que há por aí. A HBO acaba de estrear Kill Chain: The Cyber
War On America’s Elections, que prova (uma vez mais) que
mesmo sem sair de casa. o sistema eleitoral americano é altamente penetrável. A
 Imagine-se, sozinho, nos sumptuosos corredores do Palais Netflix, por seu lado, tem uma das docu-series mais relevantes
Garnier – que acolhe, desde 1875, a Ópera de Paris, fundada da atualidade, Pandemic: How To Prevent An Outbreak, que dá a
em 1669 por Luís XIV e uma das mais conceituadas do mundo. conhecer quem está na linha da frente para travar uma série
Parece impossível, não é? Não. Agora que estamos confinados de pandemias. Noutro espectro encontramos Knock Down
ao som das nossas quatro paredes, a Companhia disponibiliza The House, sobre uma série de mulheres que se destacaram
ao público os seus mais inesquecíveis ballets e óperas, na política americana e Feminists: What Were They Thinking?,
gratuitamente, através do seu site na Internet. Um riquíssimo sobre a história da luta feminista. Para encerrar este
arquivo, do qual fazem parte Don Giovanni, Carmen ou O Lago miniciclo com chave de ouro, regressemos aos clássicos que
dos Cisnes, passando por um ciclo de sinfonias de Tchaïkovski. nos fizeram jurar amor eterno à sétima arte – e a outros, a
Até dia 3 de maio, a programação está definida. Depois disso, tantos, amores... Porque qualquer copo de vinho, qualquer
logo se vê, porque nos tempos que correm é mesmo “um dia que teve os seus anos de ouro entre 1936 e 1972, acompanhou fim de tarde, é melhor na companhia d’O Padrinho, da saga
de cada vez.” Mais informações em https://www.operadeparis. todos os grandes eventos, personalidades e fait-divers, chegou Antes do Amanhecer, das quatro horas de E Tudo O Vento Levou,
fr/en. E já que falamos, e estamos, com tempo, porque não a todos os públicos, fotografou todos, e com todos, os génios, do amor absurdo (mas lindo, mas absurdo) de Annie Hall, do
perdermo-nos na Casa Azul, a casa-museu de Frida Kahlo – deu a conhecer as paisagens mais inimagináveis do planeta, terror gélido de Psico, da magia, e do sonho, de O Fabuloso
que fisicamente se encontra numa mui típica rua da Cidade do espalhou a esperança (aquele beijo, no dia D, em Times Square, Destino De Amélie. Encontramo-nos no cinema. Em casa.
México, mas que, agora, está à distância de um clique, graças foi publicado na Life), e deu voz a escritores do calibre de
aos Google Arts & Culture? Foi aqui que a artista “nasceu, Joan Didion. Nós só podemos agradecer esta pausa para nos
viveu, e deu o último sopro”, e a sua presença ainda se sente em perdermos nesta viagem virtual. É escolher, aqui: https://
cada recanto, seja pelos inúmeros objetos pessoais (vestidos, www.life.com/. Mas porque nem todos estamos no mesmo
FOTOGRAFIA: GETTY IMAGES; ISTOCK; D.R.

maquilhagem, acessórios) cuidadosamente conservados, seja comprimento de onda, também é possível fazer caminhadas.
pela decoração exótica, alegre, brutal. Em julho, celebram-se Sem sair do sofá. É essa a ideia do Google Treks, que permite
66 anos do seu desaparecimento, mas Frida, eterno símbolo de percorrer algumas das zonas mais remotas do globo sem largar
liberdade e resistência, continua viva. O Museo Frida Kahlo é a mantinha. Do Grand Canyon, nos Estados Unidos, a Petra, na
prova disso mesmo. Descubra-o aqui: https://artsandculture. Jordânia, passando pelo Monte Fuji, no Japão, este é o momento
google.com/partner/museo-frida-kahlo. Outras coisas para certo para planear a aventura que irá ter daqui a uns meses,
descobrir, e que têm tanto a ver com liberdade (nomeadamente quando tudo isto não passar de um sonho mau. Porque será
liberdade de expressão) como com esta revista que tem em isso que vai acontecer. Vá escolhendo os melhores ângulos para
mãos: o catálogo da Life Magazine, sem dúvida um dos mais as suas (futuras) fotos com 500 likes neste site: https://www.
interessantes documentos do velhinho século XX. A publicação, google.co.uk/maps/about/treks/#/grid. E boas viagens.

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LIFESTYLE ROTEIRO

Haja liberdade, agora e sempre.


Para escolhermos o que queremos ler. Temos Haja liberdade, agora e
tempo. Temos muito mais tempo. As horas, que no dia a dia pré-quarentena parecem
ser escassas, são agora algo elástico. Sentemo-nos então naquele buraco do sofá que
sempre. Para revisitarmos
já conhece os contornos do nosso corpo, e deixemo-nos ir. Aproveitemos o tempo, símbolos de outros tempos.
Foi transportada para os Estados Unidos da América em 300 peças,
esse que sempre nos foge, para saber mais sobre a liberdade, em todas as suas distribuídas por 214 caixas, num barco que esteve na iminência de
formas. Este até pode nem ser o top 10 para acabar com todos os top 10 mas estamos naufragar devido às águas tumultuosas. Quatro meses depois de ter
em crer que estes livros – ainda para mais agora – podem ajudar chegado a bom porto, A Liberdade Iluminando o Mundo foi inaugurada em
a descortinar o que temos andado a fazer com a(s) nossa(s) liberdade(s). Nova Iorque, mais precisamente na ilha da Liberdade, a 28 de outubro de
1886. Hoje, conhecemo-la simplesmente como Estátua da Liberdade – e
apesar do seu tom acobreado ter desvanecido para uma cor esverdeada, o
seu significado resistiu a todos os testes do tempo. Um símbolo maior de
THE CANDY BOOK BRAVE NEW WORLD, libertação, a estátua oferecida pela França aos Estados Unidos representa
OF TRANSVERSAL de Aldous Huxley, Libertas, a deusa romana da liberdade. Os sete espinhos na sua coroa
CREATIVITY: THE Harper Perennial simbolizam os sete mares e os sete continentes do mundo, traduzindo
BEST OF CANDY Modern Classics
MAGAZINE, (2004), € 11,36. um conceito universal de liberdade. Os seus pés encontram-se
ALLEGEDLY, posicionados em cima de uma algema e de uma corrente partidas, com o
de Luis Venegas,
Rizzoli (2020), € 70.
direito levantado, retratando a recusa da opressão e da escravidão. É um
dos símbolos maiores da liberdade, mas não é o único – afinal de contas, da cultura à arte, passando
pela música, pelo cinema, pela literatura e pela poesia, o ser humano nunca poupou elogios àquele
que é um dos seus direitos mais poderosos e frágeis. Em Berlim, permanecem os restos do muro que
dividiu a capital alemã durante 28 anos. Em Paris, a Bastilha, um dos marcos da revolução francesa
de 1798, que aconteceu sob o lema “Liberté, Égalité, Fraternité” (Liberdade, Igualdade, Fraternidade) e
o local onde, em 1830, foi edificada a Colonne de Julliet como homenagem à revolução. Em Lisboa, o
obelisco dos Restauradores, situado na praça batizada com o mesmo nome, que foi inaugurado em
1886 e que comemora a libertação portuguesa do domínio espanhol. Em Pretória, o Freedom Park,
um memorial construído em homenagem a todos aqueles que lutaram por uma África do Sul mais
livre e mais democrática. Em Filadélfia, o Liberty Bell, o famoso sino representante da liberdade e
MAN SEARCHING
da revolução americana, que tocou para chamar os habitantes da cidade quando a Declaração da
O DELFIM, de José FOR MEANING, Independência foi lida pela primeira vez em público, e no qual está inscrita a seguinte frase da Bíblia:
Cardoso Pires, de Viktor E. Frankl, “Proclamemos a Liberdade por toda a terra até que dela gozem todos os seus habitantes”.
BIS (2010), € 5,10. Ebury Publishing
(2004), € 9,94.
Esses mesmos conceitos – a liberdade de
expressão, a liberdade religiosa, a liberdade de ter
um nível de vida adequado e a liberdade de viver
sem medo – inspiraram o artista Norman Rockwell
a pintar as quatro liberdades de Franklin D.
A DESOBEDIÊNCIA
CIVIL, Roosevelt, baseando-se na sua própria perspetiva
de Henry David das mesmas: perspetiva essa que deu origem à série
Thoreau, Antígona
(2015), € 9,10.
The Four Freedoms, recentemente revisitada pelos
artistas Hank Willis Thomas e Emily Shur, que
FAHRENHEIT 451, OF LOVE & WAR,
de Ray Bradbury, de Lynsey Addario,
recriaram os cenários originalmente retratados por
Simon & Schuster Penguin Press Rockwell para transmitir um sentido de liberdade
(2012), € 16,73. (2018), € 18. mais diverso, mais inclusivo, mais complexo. De
1984, de George
Orwell, aqui numa Chimes of Freedom de Bob Dylan a I Want To Break Free
edição de capa com dos Queen, sem esquecer Freedom! ’90 de George
título "invisível",
Penguin Books Michael, a música também compôs os seus pedaços
(2013) € 9. de arte em nome da liberdade, criando hinos de
libertação que continuam a ecoar ainda hoje. Do
cinema à literatura e poesia, a liberdade foi também
destinatária de algumas das mais apaixonantes
e apaixonadas cartas de amor – afinal de contas,
ela é aquela que todos queremos. Mas de todos os
símbolos, é possível que este seja o mais genuíno:
FOTOGRAFIA: ISTOCK; D.R.

o cravo encarnado, a flor da nossa democracia, da


nossa revolução, da nossa liberdade. Aquela que
WE CAN'T DO THIS
queremos continuar a erguer em todos os 25 de
ALONE: JEFFERSON 25 DE ABRIL, 45 abril – e em todos os outros dias. Hoje, e sempre.
HACK THE SYSTEM, ANOS, de Alfredo
de Jefferson Hack, Cunha, Tinta da
Rizzoli (2016), € 65. China (2019), € 14,90. English version

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LIFESTYLE ENTREVISTA

Livre, leve e solta


Pouco importam as fronteiras ou as barreiras linguísticas. Na musicalidade de
Mayra Andrade ouve-se um mundo inteiro, cheio de influências, homenagens,
mas também frescura e personalidade. Antes dos concertos nos Coliseus,
de Lisboa e do Porto, Mayra Andrade falou com a Vogue. Por Joana Moreira.

difícil falar do seu percurso sem falar da geografia. É a mais forte e mais concentrada. Portanto, este disco é muito mais eu, um
materialização da expressão “uma pessoa do mundo”? eu despido. Os outros discos eram eu com as coisas que eu carregava
Sim, acho que está na definição do meu percurso, na definição naquele momento. Com os meus medos, com uma necessidade muito
da minha nacionalidade. Para já, porque como cabo-verdiana grande de render as minhas homenagens à música tradicional de Cabo
acho que sou a materialização deste encontro de culturas. Verde porque queria que o mundo me identificasse com aquele país.
Somos a primeira nação crioula do mundo, e a crioulidade Como cabo-verdianos temos uma necessidade muito grande de dar a
inclui muita coisa. E depois, o meu percurso de vida desde a conhecer o nosso país. Sou de uma geração em que Cabo Verde ainda
infância fez com que eu estivesse muito exposta ao mundo e não existia na maior parte dos mapas. Ninguém tinha ouvido falar. E
exposta a culturas diferentes. Isto definiu completamente a essa necessidade de identificação e reconhecimento traduz-se na forma
minha personalidade, a minha forma de ver o outro, de ver como fazemos aquilo que fazemos. Só que depois de fazer quatro dis-
a vida e também de fazer música. cos eu achei que podia ser mais livre e que podia emancipar-me disto.
Sente-se em todo o lado? Sim, o que não quer dizer que tenha Portanto, são apenas fases diferentes. Este disco tem também uma
vontade de viver em todo o lado. Mas para mim tudo o que é definitivo contemporaneidade muito maior do que os outros, os outros eram mais
assusta-me um bocado, e como a minha vida foi sempre a mudar, de tradicionais, brincava mais com o jazz e com uma cena mais acústica,
um sítio para o outro, e a vida que levo é completamente nómada, para mais de herança, embora eu sempre tenha composto nos meus discos.
mim nada é para sempre, eu vou muito com o flow da vida. Não sou Mas este tem uma cena muito mais global, muito mais ligada a um som
nada uma pessoa impulsiva, mas procuro manter-me sempre aberta africano contemporâneo, com essa influência do afrobeats e com ele-
e deixar-me desafiar pela vida. Às vezes temos os nossos medos e, à mentos da música tradicional, e com uma Mayra que ocupa um espaço
medida que o tempo vai passando, começamos a querer coisas mais muito maior dentro dos seus discos. Ou seja, estou-me um bocadinho
seguras, mas eu não sou nada assim, até acho que com o tempo tendo mais a marimbar para uma linhagem... Sou mais eu.
a dizer “não, ainda há imensas coisas que eu quero ver e fazer”. Acho É uma libertação. É uma libertação. Há uma emancipação muito
que me mantenho sempre neste chão, nesta areia movediça que me grande de amarras e expectativas do que as pessoas [possam dizer,
provoca e que acaba por influenciar imenso a minha forma de criar. como] “ah, mas cuidado, vê lá”. E mesmo as decisões que eu fui
Como é que alguém que não gosta de nada definitivo consegue tomando, as parcerias que eu fui fazendo, foram sempre de forma a
fechar e acabar um álbum? Pois! Porque é que fiz cinco anos de pôr o pezinho fora, o Reserva Pra Dois, com o Branko, o Nha Baby, com
palco antes de gravar o primeiro? Porque precisei de imenso tempo o Nelson Freitas, foram coisas que eu fui fazendo e oportunidades
para perceber o que é que eu queria dizer, de que forma é que eu que eu dei a mim mesma para sair do que eu fazia e pôr-me fora do
queria dizer. Entre os meus discos há um certo tempo porque eu meu contexto, arriscar. E perceber como é que o público recebia isso.
respeito o meu ciclo, e a gestação de cada disco. Como cada disco é Considera-se uma mulher livre? Considero-me uma mulher em
um retrato de um período da minha vida, eu tenho de viver. Com o vias de libertação. Sou muito mais livre do que biliões de mulheres
tempo, com a experiência, aceitei, ganhei essa humildade, que nos no mundo e considero-me uma pessoa sortuda e abençoada por ter
obriga a aceitar que cada disco é apenas o registo do momento, do nascido onde nasci, na família onde nasci, por fazer o que faço. l
que somos naquele momento. A partir do momento
em que está gravado já não é válido, a partir do dia se-
guinte já queremos outra coisa, já alterávamos alguma
coisa. Lanço um disco e um ano depois ouço e penso
“gostava de apagar as minhas vozes todas e voltar a
gravar”, porque já vivo as músicas de outra forma,
já as virei para todos os lados, já fiz 150 concertos
e já dou uma vida diferente às músicas. Mas pronto, www.baxter.it
temos de aceitar que estamos em perpétua mudança.
FOTOGRAFIA: BRANISLAV SIMONCIK.

Neste disco [Manga] canta em português e em


crioulo. Diria que encontrou agora a sua voz,
ou é apena a Mayra agora, neste momento? Em
cada disco tive o sentimento de estar a disponibilizar
um registo daquilo que eu era naquele momento. Com
tudo o que nos limita, os nossos medos. Claro que com
o tempo, e como mulher, há uma série de coisas que vão
ficando para trás e a nossa essência torna-se cada vez

8 2 vogue.pt
LIFESTYLE ENTREVISTA

Honey Dijon: a pista de


dança como revolução aura de Honey Dijon e a maneira como atiça a androginia pergunta. “As pessoas vestiam-se para dançar e
parece querer evocar o Nightclubbing de Grace Jones do início dançavam até que as roupas caíssem”, relembra.
Há mais de 20 anos que dá música às noites de Nova Iorque, cidade que a dos anos 80. A sua reputação não pára de crescer. É como A História acabou por revelar a importância social
transformou numa das mais curiosas figuras da house music. Dj, ativista, uma musa que parece ter vindo das caves mais marginais para salvar da house music, na maneira como democratizou a
designer, “mulher trans e negra”, assim se descreve Honey Dijon. o clubbing de uma padronização. Assim, conta-se que atuou de peito à
mostra no Panorama Bar do Berghain, em Berlim (onde a liberdade
pista de dança. Era o sítio onde os marginalizados
se juntavam sem julgamento. Foi nessas festas,
A sua mensagem deixa as margens do underground noturno e ganha sexual é celebrada e as câmaras telefónicas são proibidas). Num vídeo originárias de Chicago, que passou a juventude.
fôlego aos olhos do grande público. Porque as discotecas não são apenas para a Vogue Itália, em que veste roupas de Vivienne Westwood, Ho- “Tens de perceber, a house music foi criada por pes-
locais de diversão e hedonismo. Os pactos de liberdade, ao longo ney dança fazendo algo parecido. Está na realidade a celebrar o seu
corpo. “Ninguém fala da sexualidade trans, e ela é sempre vista de um
soas negras e queer e o mainstream não olhava para
essas culturas como agora”.
da História, também têm começado na pista de dança. Por Tiago Manaia. ponto de vista heteronormativo, nunca ninguém nos pergunta como Teve o primeiro trabalho aos 16 anos. Repunha
damos prazer aos nossos corpos. São sempre reduzidos aos órgãos stocks numa farmácia. “Isto significava que às vezes
genitais que temos, só que as pessoas têm sexo com diferentes tipos metia água nas prateleiras e outras vezes revistas.
de corpos. Fim da história.... Há pessoas que têm um pénis e mamas, Foi assim que descobri as silhuetas do Azzedine
outras têm músculos e uma vagina. E há sempre esta controvérsia: Alaïa e as fotografias do Gilles Bensimon. Fiquei
diz-se que as mulheres trans enganam os homens heterossexuais. obcecada com as imagens e de imediato comecei
Mas… Como se pode enganar alguém quando há atração?” a tentar perceber quem fazia o quê nas produ-
A artista vive atualmente em Berlim, cidade pela qual trocou Nova ções.” Pergunto-lhe se era popular na adolescência
Iorque. As avenidas sem fim tornaram-se demasiado corporativas e e Honey lembra-me que o termo não-binário é
gentrificadas, a festa ali já não tem o mesmo sabor. “Eu digo sempre relativamente recente: “Tem tipo cinco anos este
que nasci em Chicago e fui educada em Nova Iorque, para onde me termo, não? Portanto não tinha muitos amigos.
stás a salvo?” É a primeira pergunta que faço a Honey Dijon. mudei no final dos anos 90. Fui sugada pelo mundo da noite, ia sair Havia muita misoginia nos meios masculinos e patriarcais. Se eras
A nossa conversa telefónica começa com um nó na garganta. para dançar e fui aceite por ser quem era.” Honey é uma defensora uma pessoa feminina e te apresentavas como um rapaz, assustavas
As frases que pronunciamos são deixadas a meio. Evocamos da club culture que existia na era pré-internet. Sente que a conversa as pessoas.” Os seus amigos eram as revistas de Moda e os discos
artigos que lemos nos últimos dias. “Como se espalhou tão evocada por esta época deve continuar “As discotecas eram uma com as suas fichas de créditos. Deram-lhe aquilo a que chama uma
rápido o vírus em Itália?”, pergunta. O país está em estado maneira de teres acesso à tua comunidade, e também de sobreviver. educação. As publicações que lhe salvaram o quotidiano adolescente,
de sítio, morreram milhares pessoas. O estranho COVID-19, Na altura, a maioria das trans viviam à noite, ou eram sex-workers celebram-na agora. É frequente vê-la nas primeiras filas da Burberry,
que dizimou a Ásia, avança agora sobre a Europa e a América. ou atuavam como performers... As discotecas permitiam às pessoas ou de Rick Owens. Assinou diversas vezes a banda sonora dos desfiles
Em Lisboa, todos os locais abertos ao público fecharam. E, marginais ganhar dinheiro, e sobreviver. Existia ali um network, de de Kim Jones para a Louis Vuitton.
no momento em que falamos, um estado de emergência médicos ou profissionais de saúde que podiam ajudar alguém que Nova Iorque terá funcionado como um viveiro de contactos. Du-
prepara-se para ser decretado. Só o isolamento pode evi- tivesse HIV, por exemplo. As discotecas são sítios muito importantes rante anos, tocava nas noites da icónica Ladyfag. Na 11:11 e na Battle
tar a contaminação. Esquecer as mágoas na pista de dança para mim... E bom, na altura não vivíamos com esta noção de números, Hymn, a festa que se afirmou como um lugar de resistência quando
deixou de ser possível. Acabámos de entrar numa época em que não não dependíamos de quantas pessoas nos seguiam.” Honey refere-se Trump foi eleito ou quando, noutra parte da América, na discoteca
podemos dançar presencialmente uns com os outros. “Eu só quero às redes sociais. Já antes o eram mas, nesta quarentena, impõem-se Pulse, um massacre homofóbico foi cometido em junho de 2016. No
que o mundo se cure. Este vírus está a afetar tudo e todos, não olha como o principal meio de comunicação. “O nosso vocabulário, não era último ano, em colaboração com a Comme Des Garçons, lançou a
a camadas sociais ou raças. É difícil pensar como há duas semanas policiado. E talvez eu faça parte da última geração em que a identidade linha Honey Fucking Dijon. “É uma plataforma onde vou poder trazer
as nossas vidas eram tão diferentes, do dia para a noite tudo mudou. não depende de um concurso de popularidade. Agora é quase como se de volta universos de subculturas que desapareceram”. Nestes dias de
Quando passarmos este momento da História, o facto das pessoas as nossas vidas se tivessem tornado corporativas também”. A idade isolamento, trabalha na segunda coleção. No verão passado, Madonna
poderem estar juntas outras vez será certamente muito espiritual. E, de Honey permanece um mistério – terá nascido algures na década pediu-lhe um remix para a canção I Don’t Search I Find. “Foi profundo,
enquanto artista, quero ser uma facilitadora nisso.” de 70, época em que ouvia a sua mãe cantar Gospel aos domingos de ela está conectada a um momento da História que amo, e envolvida
A estranheza do início da nossa conversa telefónica desaparece, manhã. “Os meus pais faziam festas de garagem e eu ficava à entrada com o Keith Haring e o Basquiat. Os três estão ligados aos clubes
a voz de Honey volta a ganhar segurança. As suas frases podiam a ouvir as gargalhadas e a alegria daquilo tudo”. de Nova Iorque do início da década de 80, foi neles que começou a

FOTOGRAFIA: RICARDO GOMES.


funcionar como versos de uma música dançante tornada hino, bas- Por volta dos 13 anos, começou a arranjar bilhetes de identidade fal- cantar. E sempre foi tão vocal durante a epidemia da Sida e a favor
taria juntar-lhes a batida certa. “Quero que as pessoas sejam livres, sos e a aventurar-se nas primeiras investidas noturnas, a vestir-se para dos gays.” Honey vinca que só pretende misturar músicas de artistas
sexuais, quero que se vistam e se arranjem para sair, que se riam e ganhar outra idade. Honey descreve-me, então, a magia das primeiras que partilhem os seus valores musicais.
se excitem. Quero criar ambientes onde seja possível o abandono. É o festas de house music, que tinham dress codes específicos. “Foi através Há um vídeo de uma Boiler Room, em Melbourne, no qual Honey
meu propósito como Dj e não mudou desde que comecei há 20 anos.” dos black kids que imitavam os looks que viam em revistas que comecei Dijon junta o discurso I Have a Dream, do ativista Martin Luther King,
Nunca conheci Honey Dijon pessoalmente, dancei no entanto com a a ouvir falar da Moda italiana e francesa. Consegues imaginar o que às batidas da sua música. É arrepiante. O discurso de 1963 diz: “Te-
sua música até ao nascer do sol, à beira rio no Lux em Lisboa. Quando faz um miúdo black dos subúrbios com a L’Uomo Vogue em casa?”, nho um sonho que os meus quatro filhos pequenos viverão um dia
está na cabine de Dj, a sua longa silhueta agita-se tanto como as de numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pela
quem dança à sua frente. “Para fazer os outros dançar, tens de dançar qualidade do seu carácter.” Diz-se que a house music não é groove mas
tu também”, diz. Na sua última atuação, imparável, o público lisboeta um sentimento de liberdade. As batidas de Honey aproximam-se disto
gritava para que a música não cessasse. Honey, que se auto-intitula com convicção. Dançamos sozinhos agora, numa estranha quarentena.
“Mama” de todos os seus fãs, obedeceu. Queimava incenso na cabine. Quando isto tudo acabar, que resoluções cumprir? Quando voltarmos
O sol já estava alto no céu quando nos deu descanso. English version a dançar, como vai ser? l

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LIFESTYLE SHOPPING

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FOTOGRAFIA: MICHAEL TIGHE / DONALDSON COLLECTION / GETTY IMAGES.


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Aqui sou feliz,


perdão, livre
Não vale a pena negar. É na casa de banho que nos sentimos verdadeiramente 1. A atriz americana Sandra Bullock na (aparentemente) muito confortável casa de banho da sua residência
de Los Angeles, Califórnia, 1993. 2. Lavatório Gentile em mármore, € 5.322,41, em 1stdibs.com. 3. Robe I Love
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quatro paredes são a nossa bolha. Uma bolha que nos permite fazer € 2.000, Bang & Olufsen. 7. Conjunto de cinco toalhas Giacomo em algodão, € 236, Missoni Home. 8. Porta-

aquilo que quisermos sem os olhares de terceiros. A liberdade é sempre


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Hand Wash Resurrection Aromatique, € 31, Aesop. 10. Sanita Close-couples WC, Armani/Roca. 11. Submarino

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LIFESTYLE PORTEFÓLIO

I have a dream

FOTOGRAFIA: JR; RETRATO JR: LIU BOLIN.

As suas obras estão espalhadas por ruas, becos e avenidas de várias cidades,
um pouco por todo o mundo; estão abertas ao público que passa, livres dos
constrangimentos, e das limitações, de galerias e museus. É exatamente
isso que move JR, o artista e ativista francês que se esconde atrás de um
chapéu e de uns óculos escuros – as pessoas, as causas, a vida. Por Ana Murcho.

Autorretrato do artista francês JR. Paris, 15 de junho de 2015. Na página ao lado: JR e estivadores, com contentores como pano de fundo, erguem um
braço com 15 metros de altura. “Este punho é o símbolo da força dessas pessoas que ajudam a descarregar tudo o que usamos nas nossas vidas
diárias e a enviar tudo o que precisamos, essas pessoas que fazem a junção da terra e do mar.” // França, Le Havre, 12 de junho de 2016.

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LIFESTYLE PORTEFÓLIO

Collage de olhos no chão, atravessando a fronteira entre os Estados Unidos e o México, Tecate, 8 de outubro de 2017. Na página ao lado: collage de retrato de Kikito,
que na altura com um ano de idade, na fronteira entre os dois países. Vista do lado americano da fronteira. // Estados Unidos/México, Tecate, 6 de setembro de 2017.

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LIFESTYLE PORTEFÓLIO

California Correctional Institution (CCI), prisão de alta segurança em Tehachapi, Califórnia. JR e a sua equipa capturaram os retratos e as histórias de antigos
e atuais cidadãos encarcerados que estão focados na reabilitação, bem como de algum staff da prisão e, com a ajuda de todos, colaram-nas no espaço
recreacional da CCI. // Estados Unidos, Califórnia, Tehachapi, outubro de 2019. Na página ao lado, em cima: The Chronicles of New York City, Nova Iorque,
Estados Unidos. Instalação no mural no Domino Park, 3 de fevereiro de 2020. Em baixo: The Chronicles of New York City, Nova Iorque, Estados Unidos, 2019.

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LIFESTYLE PORTEFÓLIO

em momentos como este, o que acontece é que se fecham fronteiras, que são humanos... Foi por isso que abri um restaurante em Paris
Tínhamos pensado falar de liberdade, fecha-se isso, fecha-se aquilo, e é difícil, porque queremos parar uma com a ajuda do chef Massimo Bottura [Refettorio Paris] onde servi-
mas não assim. Tínhamos pensado em pandemia, mas, e depois, como é que se recupera disso? Porque está- mos jantares para pessoas em situações de vulnerabilidade social,
mencionar fronteiras, mas não assim. vamos a tentar abrir fronteiras... Acho que será um grande desafio.
Esta edição tem como tema central a liberdade. O momento em
refeições de três pratos [de ingredientes que de outra forma seriam
desperdiçados] num ambiente bonito, e eles sentem que os respei-
Tínhamos pensado em discorrer acerca que vivemos, curiosamente, também tem como tema central tamos. E, ao fazer isso, percebi o poder de uma refeição simples, o
dos limites da criatividade, mas não assim. a liberdade. O que significa, para si, liberdade? A liberdade é poder de uma bela apresentação. Como pessoa, sentes-te reconhecido
Vivemos tempos diferentes, por isso, um conceito muito relativo. Depende de onde nasceste, depende
de onde estás a viver... Alguns podem pensar que são livres e, no
e sinto que isso está no centro de alguns dos meus projetos. 
Pelo facto de estar nas ruas, a sua arte dá voz a muitas pes-
fazem-se entrevistas diferentes.  entanto, estão presos. É claro que em alguns casos, todos podemos soas que, por uma série de razões, de outra forma não teriam
concordar que uma pessoa não tem liberdade. Mas é um conceito como se exprimir. Porque é que as ruas são tão importantes?
realmente relativo. [...] Num país como a França, onde estou agora, Sempre andei pela rua, porque comecei a desenhar grafittis, mas
alguns podem dizer que se sentem livres, outros podem dizer que depois percebi que isso não era a melhor maneira de fazer os meus
não. E para aqueles que dizem que não são livres, quando viajo pelo projetos. Mas as ruas... As pessoas não saem de casa de manhã a
mundo, acho que não percebem a sorte que têm. [...] A liberdade é pensar ir visitar um museu; portanto, quando caminham para ir
um conceito para “seguir em frente”, em constante evolução. trabalhar, e são confrontadas [com arte] ficam completamente
A liberdade é, antes de mais, uma questão política? É um assun- surpresas, a reação é mais forte. 
to sem fim, porque mesmo em países como a Coreia do Norte... Para Que tipo de impacto é que gostava que o seu trabalho tivesse
mim, como francês, não sinto que eles tenham liberdade. E tenho a nos outros? Como artista, levantas questões. Não dás respostas.
a manhã em que falamos com JR, uma sexta-feira que não certeza que se perguntares à maioria das pessoas aqui, elas dirão o Quando inicio um projeto, não espero respostas, só espero discutir,
se decide entre nuvens cinzentas e céu azul de algodão, mesmo. Mas se fores lá, eles provavelmente dir-te-ão que se sentem questionar e ter mais interação humana. Mas o que é surpreendente
já Portugal e França vivem sob o manto das respetivas livres. É uma questão que depende de onde estás, da situação em que nos últimos 20 anos é ver o impacto que isso causa em muitas pes-
declarações de estado de emergência. Na sua página estás, e do que sabes. Isso também é muito importante. soas. Ver o impacto que isso tem [numa determinada] situação, ver
de Instagram, JR, o artista francês que, entre outras Parte da sua obra lida com as fronteiras impostas pela so- isso mudar por causa da arte. A arte pode mudar o mundo. A arte
distinções, foi galardoado com um TED Prize (em 2011, ciedade, tanto físicas como metafísicas. Podemos aprender pode mudar a perceção que temos sobre o mundo.
o que lhe permitiu criar um dos seus projetos mais di- alguma coisa com esta situação que agora vivemos, no sentido Tem um percurso notável. Consegue escolher uma conquista
nâmicos, o Inside Out Project) partilhava com os seus 1,5 em que pensaremos duas, três vezes antes de fechar fronteiras particularmente relevante? Nunca vejo coisas assim. Sinto que
milhões de seguidores o seguinte desafio: “Há alguns aos imigrantes que, no final de contas, só se querem sentir estou igual ao que estava quando comecei: que tudo pode ser feito.
anos, o monge budista Mathieu Ricard mostrou-me o seguros? Sou filho de imigrantes. Consigo perceber que o meu pai Estou sempre a desafiar-me. Estou sempre inseguro sobre o próximo
livro Motionless Journey com fotos que ele tirou da janela Parece que estamos a viver uma realidade paralela. É muito viajou para encontrar uma vida melhor. E aqui estou eu em França, projeto. E muitas vezes nem sei qual é o próximo projeto. O meu
enquanto estava confinado no Nepal durante um retiro de um ano. estranho. Vamos ter de voltar mais fortes. É nestes momentos que tive a sorte de crescer aqui. E emigrei para Nova Iorque e morei lá estado de espírito é sempre esse, desde o início.
Foi incrível ver quantas perspetivas diferentes podemos ter de uma definimos o que somos enquanto humanos e pessoas. E como nos nos últimos dez anos. Algumas pessoas vão embora porque não há Era isto que queria, em criança? Era este o seu sonho? Não!
única e pequena janela para o mundo exterior. [...] Hoje estamos apoiamos uns aos outros. Estamos a viver isto em tempos muito outra escolha, não há outra possibilidade, e algumas pessoas, como Não! Eu nem sabia que havia um trabalho para “ser artista”! Ninguém
confinados e devemos transformar isso numa experiência valiosa. diferentes do que há cem anos, quando não havia tecnologia, devemos eu quando fui para Nova Iorque, têm a chance de escolher e decidir na minha família era artista. Eu não sabia que havia escolas, não fiz
Solicitei aos meus alunos da Kourtrajmé Photo School em Paris ter isso em consideração. onde vão morar. O que quero dizer é que a conceito de migrantes nenhuma escola. Não era um plano ou um sonho. Não tinha referên-
que tirassem uma foto, a partir das suas casas, todos os dias, e que A tecnologia ajuda-nos a ficar mais conectados. Foi por isso sempre existiu na História da Humanidade e sempre existirá. Os cias, não conhecia Warhol ou Basquiat. Só soube quem eram muito
a publicassem com a hashtag #frommywindowframe. Claro que que lançou o desafio aos seus seguidores? Foi, antes de mais, Estados Unidos da América foram criados com imigrantes e pessoas mais tarde. Mas como não tinha isso à minha volta, essa pressão,
qualquer pessoa pode participar… Stay home, stay safe.” O apelo é um porque queria encontrar uma maneira de envolver os meus alunos, vindas de todo o mundo, e o que é incrivelmente impressionante é “precisas de fazer isso para seres um artista, precisas de fazer aquilo”,
reflexo da obra, e do percurso, de JR. Ninguém sabe dizer exatamente agora que estamos em casa. Disse-lhes: “bem, pessoal, vamos ter de que as pessoas que estão lá agora, a maioria delas, estão a dizer “não sinto-me muito mais livre. Como não sabia que havia regras para
quem é, de onde vem, nem quantos anos tem, e essa aura de mistério ser criativos, mas também vamos envolver outras pessoas, vamos queremos mais estranhos” e é quase como se nos esquecêssemos ser artista, sinto-me mais livre. Estou feliz que tenha sido assim. l
aguça a curiosidade sobre um artista que, na biografia disponível fazer algo que vocês possam fazer, mas que outras pessoas também
na sua página oficial, garante possuir “a maior galeria de arte do possam fazer”. E sempre que for possível, as nossas aulas serão em
mundo.” As ruas. Essas que nunca lhe falham. Foi lá que começou, direto, para que outras pessoas também possam desfrutar.
em 2004. Por acaso. Há-de garantir que nem sabia que era possível No fundo, existem sempre formas de nos desafiarmos a nós
ser artista. Mas o destino pregou-lhe esta partida, e ninguém se próprios. Mesmo estando em casa. Acredito firmemente que a
arrepende. Nem ele, nem nós. criatividade nos mantém sãos. E isso não significa que todos temos
Porque é que acha que isto, esta pandemia, está a acontecer? de ser artistas. Agora é altura de sermos ainda mais criativos, como
Acha que é possível explicá-la? Bom, sempre soubemos que uma [uma forma de] cura, como uma maneira de permanecermos sãos
pandemia como esta poderia acontecer. Já foi dito algumas vezes. e também como uma maneira de inspirar os outros.
Aconteceu algo assim há cem anos. Era apenas uma possibilidade, Na sua opinião, este momento irá mudar-nos, a todos, en-
mas nunca quisemos acreditar. Fizemos filmes sobre isso, imaginá- quanto humanos? Julgo que, definitivamente, isto nos irá mudar
mos este cenário muitas vezes. Há muitos programas de TV sobre de alguma forma. Depende de quanto tempo vai durar, como nos vai
pandemia... E aqui estamos. afetar, mas espero que isto nos mude de uma maneira boa. Porque, English version

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LIFESTYLE PORTEFÓLIO

Em cima: Wrinkles of the City. Los Angeles, Estados Unidos, 25 de fevereiro de 2012.
Em cima: Wrinkles of the City. Detalhe de Invalidenstrasse, uma rua de Berlim, Alemanha, 10 de abril de 2013. Em baixo: Wrinkles of the City, 15 de abril de 2013.
Em baixo: Inside Out: Native American Project. Instalação colocada entre as ruas Houston e Bowery, Nova Iorque, Estados Unidos, 2011.

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LIFESTYLE PORTEFÓLIO

Em cima: Giants. Rio de Janeiro, Brasil, Flamengo, 3 de agosto de 2016. Em baixo: JR e a sua equipa no rooftop da Casa Amarela.
Rio de Janeiro, Brasil, 28 de outubro de 2017. Na página ao lado: Giants. Rio de Janeiro, Brasil, 3 de agosto de 2016.

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LIFESTYLE PORTEFÓLIO

Em cima: Migrants. John Hancock Tower, Boston, Estados Unidos, 21 de outubro de 2015.
Em baixo: Unframed Project. Ellis Island, Estados Unidos, 15 de setembro de 2014. Na página ao lado: colaboração
com o New York City Ballet. Charlotte Ranson, bailarina. Nova Iorque, Estados Unidos, 30 de dezembro de 2014.

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LIFESTYLE PORTEFÓLIO

Inside Out Project. Medellin, Colômbia, 3 de fevereiro de 2012. Na página ao lado: num prédio da 11 Spring Street (uma rua icónica para a street art),
JR colaborou com o artista chinês Liu Bolin e tornou-se “invisível” à frente de um olho de Bolin. // Nova Iorque, Estados Unidos, 19 de março de 2012.

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LIFESTYLE ANÁLISE

Aquele obscuro
objeto de liberdade
Já alguma vez se perguntou de que é que se fala quando se fala de liberdade
artística? Invocamos vezes sem conta a sua parente próxima, a liberdade
de expressão, sobretudo quando sentimos que ela nos é subtraída. E, na verdade,
este denominador comum tornou-se o bem precioso mais reivindicado ao longo
da História, ora através de movimentos civis, ora de revoluções políticas,
ora de manifestações artísticas. Por Rossana Mendes Fonseca. Fotografia de Tommy Ingberg.

ão soubéssemos que era ela o mote da Revolução Fran- Segundo Paulo Mendes, artista plástico, independentemente de ser
cesa, ou que George Michael lhe dava voz nos anos 90, artística ou não, a liberdade é sempre o conceito mais poderoso e
saberíamos pelo menos que a liberdade é um direito importante de todos, sendo a capacidade-base para podermos refle-
inalienável, e que qualquer modo de expressão, artística tir de um ponto de vista crítico sobre tudo, do qual não deve existir
ou não, pode constituir o seu terreno de ação. Desta nada de intocável, aquilo que constitui o papel do criador. Contudo, o
forma, se liberdade de expressão é a possibilidade de também comissário de arte, com uma carreira de quase 30 anos, ma-
alguém, quem quer que seja, expressar a sua voz, a liber- nifesta uma certa inquietação relativa ao cerceamento de liberdade no
dade artística constitui a autonomia de um artista para contemporâneo. “Acho que, nos tempos que correm, há um problema
criar a sua obra. Estes dois conceitos intersetam-se no que me parece bastante grave, que é uma auto-censura que está a ser
seu sentido mais político, na medida em que todos os implementada por uma espécie de medievalismo contemporâneo”,
cidadãos podem ser parte interveniente e ativa na vida declara, comparando uma certa ingenuidade e idealismo que se vivia
cultural de uma comunidade. Não obstante, de modo a que esta vida quando começou a trabalhar, na década de 90, a algo mais insidioso
cultural esteja aberta a todos, é necessária a existência de condições, dos dias de hoje. “Hoje, há essa espécie de tribunais públicos. Por um
de meios e de instrumentos que promovam esse território de criação. lado, podem ter a vantagem de rapidamente colocar as coisas à frente
Apesar da incessável conversa sobre as diversas formas de liberdade, das pessoas, mas ao mesmo tempo há uma grande perversidade [na
a censura de movimentos, comportamentos ou quaisquer gestos ex- forma] como esses acontecimentos são julgados e são promovidos;
pressivos de um indivíduo (ou grupo) quer pela força governamental, como são distorcidos e pervertidos”, esclarece.
quer por agentes externos ao Estado, é reconhecidamente grave. O A liberdade artística foi uma das grandes motivações de April
que levou a uma ação concertada entre potências políticas de todo Wiser para criar a plataforma digital FFU (Foto Femme United). Com
o mundo, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade o objetivo de dar visibilidade ao trabalho fotográfico de mulheres,
das Expressões Culturais de 2005 da UNESCO, a partir da qual se têm pessoas não-binárias e trans, a fundadora conta que a razão pela
vindo a produzir relatórios anuais com propostas de implementação qual quis começar este projeto prende-se com uma série de suspeitas
e apoio aos sistemas de governação para a cultura. Por outro lado, iniciais sobre a falta de mulheres no setor da fotografia, que depois se
organizações internacionais independentes, como a Freemuse, apre- confirmaram. “Quanto mais falava com mulheres fotógrafas, mais me
sentam-se como agentes de defesa da liberdade de expressão artística. apercebia que não era algo da minha cabeça ou que apenas se tratava
Na plataforma digital desta organização, encontramos uma análise de eventos isolados”, explica. Aliás, a transformação constante desta
de casos de violação dessa liberdade, para os quais é proposta uma plataforma, de uma conta de Instagram criada em 2017 até à sua mais
leitura legalista que evoca princípios básicos dos direitos humanos, recente forma como site independente desde junho de 2019, deveu-se
como igualdade ou não-discriminação. grandemente às restrições e censura sofridas. “Foi um alívio termos

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LIFESTYLE ANÁLISE

a nossa própria plataforma e podermos escolher aquilo que quere- me assusta bastante, nomeadamente manipulações políticas. E isso
mos mostrar. Estava a tornar-se frustrante ter obras removidas com é bastante assustador, porque para nós ainda é um bocado invisível,
comentários das próprias redes sociais a indicar que publicávamos pois não consegues ter a percepção daquilo que é feito e o que se
pornografia, ou que as imagens eram sexuais ou vulgares. Imagino está a passar, mas depois tens os resultados. É uma espécie de mão
que alguns utilizadores também se tenham queixado das nossas invisível que está por trás e a qual não consegues perceber”, afirma
imagens, às vezes há pessoas que não compreendem ou concordam Paulo Mendes. April Wiser, por outro lado, encontra no meio digital
com a terceira vaga feminista.” e da Internet não só uma forma de chegar ao máximo número de
pessoas, mas também ao seu público-alvo. “É millennial e é jovem.
evolução tecnológica e a expansão dos media digitais trouxe- Adoro trabalhar com prints, mas para nós, em termos práticos, é a
rame uma série de novas questões e tentativas de repensar melhor opção”, refere. No entanto, a artista norte-americana não nega
a comunicação e a distribuição da informação. Se, por a perversidade de um sistema que assume como inconsistente e que
um lado, a disseminação e democratização da informação surgem dificulta a promoção e visibilidade de determinados trabalhos. “Aquilo
como algo positivo do ponto de vista da liberdade de expressão, por que eu e muitas fotógrafas feministas estamos a tentar compreender
outro lado, o seu excesso e fragmentação levam muitas vezes a uma é o porquê de aceitarem determinadas imagens de outras contas que,
inconsistência e dispersão no modo como se constitui essa mesma de acordo com as suas próprias ‘linhas de conduta da comunidade’
expressão. Exemplos dessa distorção, como fake news, são conhecidos violam essas regras. E quando tentamos publicar imagens com a
pela manipulação política evidente e, sobretudo, perigosa. “Acho que mesma ‘quantidade’ de nudez, removem as nossas imagens”, declara.
obviamente as novas tecnologias têm montes de vantagens e tens aces- “Acho que a liberdade enquanto palavra, de certo modo, está amea-
so a muita coisa, mas há uma espécie de euforia da qual não partilho. çada, não de maneira direta. Claro que há liberdade, mas essa liberdade
Não me parece que seja tudo positivo, e tenho muitas dúvidas relativas tem muito que se lhe diga”, comenta Paulo Mendes, cujo trabalho artís-
às novas gerações e como é que elas vão usar as novas tecnologias. tico já sofreu ataques de censura directos — obras como a Portuguesa
Acho que têm a vantagem da rapidez, e de fugir da ditadura dos media Monochrome (bandeira de Portugal a preto e branco hasteada à janela do
e do status quo. Se a informação não corre por determinadas redes, antigo edifício AXA em plena Avenida dos Aliados, no dia 25 de abril
pode correr por outras. Esse lado é que é interessante porque podes de 2013) ou O 25 de Abril existiu? (outdoor proposto à Câmara Municipal
criar curto-circuitos com aquilo que, de certo modo, podem querer de Lisboa, no âmbito do projecto Quartel, Arte, Trabalho, Revolução, em
fazer calar. Tens a possibilidade de ter uma voz amplificada por essas 1999). “O problema desta liberdade é que não é uma liberdade total.
redes mas, por outro lado, há toda uma manipulação que é feita e que Muitas vezes, as pessoas não se manifestam por uma questão de medo.
E o medo tem a forma da dependência económica, tem a forma de que as pessoas entrem ali e sintam que foram locais de trabalho, onde
conivências sociais, tem muitas formas possíveis. Esses e outros layers está um outro trabalho. Gosto de trabalhar com essa desmistificação
subterrâneos são muito importantes para condicionar o pensamento daquilo que é o contexto da arte contemporânea”, expõe. 
e a ação das pessoas, dos quais nunca se fala porque são coisas muito À semelhança do artista português, também April Wiser reclama na
invisíveis, quase mesquinhas do dia a dia, mas, no fundo, são muitas arte um lugar de observação e de crítica política e social, cuja relação
dessas coisas que fazem com que as pessoas não reajam e não tomem estreita com a História é de extrema importância no modo como se
outras posições”, defende. A censura auto-infligida como produto de manifesta. “A arte é uma forma de comunicação e é História. O ativismo
uma vida despolitizada pode levar à intimidação e à consequente falta e o comentário social são ambos frequentemente revelados e expres-
de manifestação sobre questões políticas emergentes. “A função dos sos através da arte. A história da arte é como aprendemos sobre a
artistas nos diferentes momentos sócio-políticos é a de pôr areia na mentalidade das pessoas relativamente àquilo que acontece no mundo.
engrenagem, no sentido de a fazer travar. Ou, usando outra imagem, Não é só estética. Suprimir isto é suprimir a liberdade de expressão,
é a de esticar a corda ao máximo e perceber quais são os limites do que é um direito humano fundamental.”  Paulo Mendes concorda. “As
sistema”, refere o comissário de arte, cuja exposição Trabalho Capital, pessoas estão predispostas a perceber outras realidades, se tiverem
inaugurada a 7 de março na paisagem industrial da antiga Fábrica Oli- essa possibilidade. Agora, essas possibilidades são-lhes vedadas de
va de S. João da Madeira, remete para a figura histórica do operário. uma forma, muitas vezes, relativamente subtil. Exactamente porque
“Acho que uma coisa que sempre me interessou é o modo como os o sistema sabe engendrar maneiras de lhes demonstrar que isso não
artistas plásticos ou os criadores são olhados enquanto operários. acontece. […] As exposições para mim são como segmentos da vida, e
"ACHO QUE UMA COISA QUE SEMPRE
ME INTERESSOU É O MODO COMO Interessa-me a figura do operário enquanto uma espécie de símbolo de a vida é isso tudo. “Se conseguires mostrar às pessoas que há maneiras
OS ARTISTAS PLÁSTICOS OU OS uma determinada classe que tem que lutar por determinado objetivo diferentes de pensar, maneiras diferentes de olhar o mundo, e se só
CRIADORES SÃO OLHADOS ENQUANTO e tem que reivindicar junto de outras classes as melhores condições isso lhes for pedido, já estás a fazer algo que é muito importante, que
OPERÁRIOS. (...) UMA ESPÉCIE DE para o seu trabalho e para a sua condição de vida”, declara. A relação é retirá-las de uma leitura rotineira do mundo”. Afirmação que nos
SÍMBOLO DE UMA DETERMINADA com a história dos espaços que ocupa e com as pessoas da comu- parece em nada avessa àquilo que a criadora do coletivo feminista
CLASSE QUE TEM QUE LUTAR POR nidade que outrora habitavam esses espaços é, para Paulo Mendes, propõe: “Por vezes, a arte é a única saída que temos, a única voz que
DETERMINADO OBJETIVO E TEM QUE
uma grande parte do seu trabalho. “Eu já ocupei, ao longo dos anos temos. É um modo de encontrar solidariedade na injustiça, é uma
REIVINDICAR JUNTO DE OUTRAS
CLASSES AS MELHORES CONDIÇÕES em que fui trabalhando, várias fábricas e tento sempre usar também forma de fortalecimento, é um modo de começar uma conversa sobre
PARA O SEU TRABALHO E PARA A SUA esses espaços enquanto invólucros com memória. Não são espaços coisas às quais as pessoas por vezes viram as costas. É uma absoluta
CONDIÇÃO DE VIDA" - PAULO MENDES mortos, que não têm memória, é exactamente o contrário. Eu quero necessidade para a humanidade.” l

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LIFESTYLE GOURMET

Viva a
Liberdalarvidade
Empunhemos cartazes com palavras de ordem: “Quero
repetir três vezes a minha feijoada”, “Não às doses
para turista” ou “Pode levar o prato, chefe, eu como da
travessa”, nas ruas das nossas cidades. Digamos não aos
regimes, ainda que alimentares. Lutemos pelo nosso
direito de não sermos vegetarianos, veganos ou outra
coisa qualquer que não seja aquilo que nos bem apetece.
Por Nuno Miguel Dias. Fotografia de Evelyn Bencicova.

xcetuando aquele meme com uma foto do Estaline e a frase nas palhas deitado, que fecham portas para dar
“Humor Negro é como a comida. Nem todos têm”, que tem lugar a hamburguerias da esquina, do bairro,
piada mas não é para todos, podíamos estabelecer aqui um gourmet, de assinatura, do chef e de “quem vier
paralelismo entre política e comida. À extrema-esquerda, por bem venha venha também” acabar com a
o veganismo. No seu oposto, os crudivoristas. Entre eles, tipicidade de uma cidade, afugentando os seus
avançando gradualmente, iríamos dos vegetarianos aos ado- castiços para os arrabaldes, onde ao menos os
radores da proteína animal. Exacto, são regimes. Alimentares, snack-bares ainda têm pastel de bacalhau sem
porque os outros só recebem esse epíteto se, no seu seio, queijo da serra. A liberdalarvidade é bela. In-
as liberdades forem suprimidas. Porque é disso que aqui se questionável. E ai de quem argumentar contra.
trata. Hoje, com quase tudo ao nosso alcance nas prateleiras Como naquele belo dia 11 de novembro de 1947
dos mais generalistas aos mais especializados supermer- em que Winston Churchill terá dito, na Câmara
cados, somos livres de comer o que queremos. De seguir o regime dos Comuns: "A democracia é a pior forma de
alimentar que mais nos agrada ou que consideramos, empírica ou governo, à exceção de todas os outras”, mas
cientificamente, ser o mais benéfico para a nossa saúde. Depois, há os desta feita com uma bifana a respingar mostarda
que se estão completamente a borrifar para o regime alimentar que e gordura para o chão e brindando com o que
melhor os serve. Gostam de comer, ponto. São os novos-alarves, os estiver à mão.
democratas da ingestão. Querem provar de tudo e que tudo chegue Ainda esta semana houve um despiste numa
a todos. Exigem liberdalarvidade, que é um direito que nos assiste, nacional portuguesa. Até aí, nada de novo. Um
inalienável e universal. Que nunca mais nos impeçam de, no mais camião TIR ficou suspenso de um viaduto. Tudo
ordeiro casamento, invadir o buffet do copo de água ainda antes dos normal. O motorista ficou bem, sem qualquer
noivos inaugurarem o salão com aquela chata e repetitiva valsa de ferimento. Menos mal. Só que o veículo transportava cerca de trezen-
um austríaco (Áustria, esse lugar onde se pelam por um schnitzel, que tos porcos para o matadouro. Mais de uma centena jazia, lá em baixo.
tem um nome exótico mas não passa de um panado sensaborão) e Muitos deles mortos ou imóveis, amontoados, uma massa cor-de-rosa
pasmarmos diante da cascata de camarão ou do leitão com a maçã compacta aqui e ali, muitos mais espalhados acolá. À medida que al-
MODELO: NATALIA SYKOROVA

golden de Alcobaça na boca (quem inventou esse adereço devia, ele guém, filmando à socapa, faz zoom, é possível ver dezenas de animais
próprio, ser condenado a comer schnitzel ao almoço e ao jantar para em agonia, ensanguentados, moribundos, uns com patas fraturadas,
o resto da vida). Que não nos roubem o encanto que é não conseguir tentando erguer-se, outros com a coluna partida, incapazes de fazer
escolher, já de tinto manhoso em copo baço, e mirando a vitrine da mais que afocinhar na terra, em desespero. O pior não são as imagens.
tasca lisboeta, entre as iscas de cebolada, o bacalhau panado, a orelha É o som. Não são grunhidos. São gritos. Centenas. Num uníssono
cozida, as petingas de escabeche ou até o enfadonho ovo cozido poe- ensurdecedor. Não é preciso ser-se vegetariano para não conseguir
ticamente pousado sobre um prato de sal grosso, qual menino Jesus ver mais de metade deste clip. Mas por vezes, esses poucos minutos

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LIFESTYLE GOURMET

processo tão industrial e com gestos tão mecânicos que seria preciso á o vegetariano, bastante mais suave naquilo que são as
sermos muito ingénuos para achar que, diariamente, não há dezenas restrições (ou a falta de liberdade de escolha), está naquele
de animais que estão “mal-mortos” quando são esquartejados, assim lugar ingrato, onde eu não desejaria estar. Os seus amigos
como por vezes falta um ou outro parafuso numa linha de montagem vegan olham-no com o desdém próprio de quem se acha superior, cri-
de automóveis. Chegamos ao talho e apontamos, pronto, já está, não ticando, muitas vezes entredentes, o respeito meramente parcial pelos
há culpa, não há dor. Estamos, hoje, muito longe do tempo em que animais: “Não os come, mas explora-os”. Para os amigos omnívoros,
cada casa alimentava o seu porco com o objectivo de fazer, lá para o que acabam de jantar com aquela poça de sangue no prato depois
final do ano, a mui tradicional matança, que aprovisionaria a despensa, de conseguirem comer, sozinhos, uma posta mirandesa tamanho
não sem antes dar origem a uma festa para a vizinhança e quem se Grizzly Bear, é aquele “chato” que não se pode levar aos restaurantes
prestasse a ajudar. A proteína animal era pouca. Quase reservada que a malta frequenta porque, coitado, acaba sempre por ter de se
para dias especiais. A frugalidade era tão obrigatória que, no tempo contentar com uma omelete de queijo e ninguém tem paciência para
do Estado Novo, houve gerações criadas a Sopas de Cavalo Cansado uma omelete de queijo à quinta omelete de queijo seguida naquelas
(vinho quente, pão e açúcar). Porquê? Porque não havia liberdade. semanas em que há jantares de grupo todos os serões, como no
Nem de escolha, nem da outra. Hoje, felizmente, podemos ser aquilo Natal ou nas férias no Alvor. É para isso que estão cá os flexitaria-
que nos der na real gana. No que toca a regimes alimentares, claro. E nistas. Para “isso”, ou seja, para lançar mais achas para a fogueira. O
em mais uma ou outra coisinha, vá. flexitarianista é, em teoria, um vegetariano na maior parte do tempo
são o tempo que basta para que, em consciência, mudemos o nosso que, de quando em vez, mordisca carne ou para não interferirem no normal curso da natureza. Visivelmente
regime alimentar. Eu, como tantos outros, pelo-me por um enchido a liberdade dos animais? Não é uma liberdade? Há liber- peixe. Na prática, é aquele nosso amigo que desnutridas (e um nadinha andrajosas) as crianças também foram
tradicional. Vibro com umas bochechas estufadas. Deliro com uns dade humana e liberdade animal? Regem-se cada uma por está a fazer um esforço enorme para deixar, entrevistadas, e descobriu-se que não conheciam outra realidade e
rabos (caudas, para os mais maliciosos) de coentrada. Tenho saudades princípios diferentes? Ficamos chocados quando um cão definitivamente, de comer carne. Passa a se- tampouco frequentavam um estabelecimento de ensino. Neste caso,
de ovos com mioleira, que nos faziam mais “espertos”, diziam-nos em está numa quinta, preso a uma corrente de dois metros porque é mana a orgulhar-se de ingerir brócolos com a liberdade de escolha da mãe talvez tenha ditado que as suas crias
crianças (não resultou, mãe, mas obrigado) assim como a cenoura fazia um animal de estimação, mas está tudo bem quando um porco está um fio de azeite e espargos grelhados, sopa fossem privadas da mesma, mas para o saber teria de se esperar que
“os olhos bonitos”. Mas garanto, juro por tudo, palavra de escuteiro, confinado numa jaula de dois metros por um e meio porque se destina de grão com croutons e feijoadas de seitan, estas chegassem à idade do livre arbítrio. E eu não estava com muito
de honra e sei lá mais o quê, se fosse obrigado a matar um animal para à nossa alimentação? Não há gente com porcos de estimação? Não publicando entusiasticamente os resultados tempo. Já o crudivorista, que eu pensava ser um moço que comia
comer, tornar-me-ia o mais credível veggie numa fração de segundo. há culturas que comem cão? E quanto àqueles animais que vivem da sua “queda para chef” nas redes sociais. cenouras cruas mesmo sem ter como objectivo um bronze invejável
E há quem saiba como nós, os “carnívoros de cidade”, funcionamos. numa liberdade ilusória, que são os grandes pastos dos Açores ou Depois convidamo-lo para jantar fora a um ou que saía da mercearia mordiscando um molho de grelos de nabo,
Um exemplo… Todas as Páscoas, o pai de um amigo meu, criador de de outras verdejantes paragens quaisquer, para produzirem leite que sábado à noite e ele pede uma dose de lagar- era afinal um sinistro quarentão que entrou num talho especializado
ovelhas, sabendo que sou adorador incondicional de borrego (filho de só existe se estiverem em constante reprodução, sendo que as crias tinhos, dois bitoques e, para a sobremesa, em carne de caça para comprar um coelho bravo. Depois, escolheu
alentejanos tem de o ser, almejando por um naquinho da mais nobre lhes são retiradas assim que nascem? Ou os touros, que percorrem um pudim Abade de Priscos que saiba espe- um lugar isolado num parque infantil para, com uma faca romba que
carne, sob pena de deserção) anuncia que pretende oferecer-me um livremente os montados ribatejanos mal adivinhando o seu fim, numa cialmente ao toucinho na sua constituição. mal penetrava em tanto pêlo, abrir a barriga do animal e começar
exemplar. Só tenho de ir lá, perto de Portalegre, escolher o animal e aju- arena debaixo dos aplausos dos aficionados? Ou se redefine o termo Depois liga-nos na manhã seguinte dando a comer as suas entranhas, exclamando para a câmara, com a boca
dar a matá-lo. O primeiro trecho da proposta agrada-me sobremaneira. liberdade ou, por outro lado (que é o mais acertado), a liberdade é um conta que está “ligeiramente indisposto”. ensanguentada: “Só como animais selvagens porque não se alimen-
A última parte obriga-me a recusar. Mas eis que a proposta ameniza a conceito universal. Com base neste princípio, temos a liberdade de Perguntamos-lhe então porque se prestou tam de rações”. Foi um momento lindo. As crianças que andavam no
cada ano que passa. Agora só tenho de lá ir “escolher” o bicho. O resto ser, por exemplo, veganos. Quando não nos permitimos que nenhum ele a tão épico exagero. Ao que responde: baloiço lá ao fundo, com um ar tão chocado porquanto aposto que
faz ele. “Pois, é que, não vai dar”, exclamo sempre. Eu, qual Herodes, animal seja explorado para o nosso desfrute alimentício. Não haverá “Porque me apeteceu. Sou livre”. se lembrarão daquela imagem para o resto da vida, é que são capazes
a apontar o dedo para aquele que deve perecer para meu consumo? uma só morte com o objetivo de nos alimentar (para um vegano, a Certa vez, vi um documentário sobre de não ter gostado muito.
Eu a decidir quem vive e quem morre? No can do. É esse confortável carne cheira a sangue, independentemente do seu tempero, já o dizia regimes alimentares que opunha veganos Eis que, 46 anos depois da nossa liberdade, ganha a pulso, nos pri-
distanciamento que nos permite ser tão pouco frugais no consumo Morrissey no Meat is Murder dos The Smiths). Os ovos destinam-se à exagerados a crudivoristas excessivos. Co- vam da mesma. Que vil criatura no-la roubou? A Dieta Mediterrânica.
de carne. Vermelhas, brancas, peixe, marisco, até cefalópodes (o polvo reprodução das diversas espécies avículas e não para o nosso palato. mo nunca julguei que pudessem ser totais Acabaram-se as entremeadas grelhadas, as feijoadas que trouxemos
e o choco têm uma inteligência equiparável à dos macacos ou à dos São, inclusivamente, e mal comparando, a menstruação da galinha, opostos, redobrei a atenção. No âmbito dos de Terras de Vera Cruz, a mão de vaca com grão que importámos do
golfinhos), afinal comemos quase tudo o que mexe e, pior, a todas as esclareça-se. O leite é o alimento que uma mãe oferece à sua cria, primeiros, retratava uma família (mãe e dois Paquistão, o arroz com tudo e tudo com arroz que encantou Garcia de
refeições. Porque há quem faça o trabalho sujo. Há quem os crie, em não o reforço de cálcio para os humanos, que o podem encontrar em filhos pequenos) que se quedavam debaixo Orta, o botânico que, ao serviço dos Reis de Portugal, ia nas galeras
espaços confinadíssimos e mediante toda a espécie de maus tratos, há mil e uma espécies vegetais, se aprendessem a comer de uma forma de uma macieira. Esperavam que os frutos para descobrir novas espécies (e descobriu), o peixe cozido com todos,
quem os transporte e, no final, há quem os mate, supostamente com saudável. É discutível? É! Mas somos livres de escolher e isso está caíssem para os poderem ingerir e depois o bacalhau com batatas. Acabou a cozinha de fusão de séculos que é a
métodos mais “humanos” que a habitual facada no coração, mas num para lá de qualquer discussão. depositavam os caroços no mesmo local, Gastronomia Portuguesa. Peixe? Só grelhado ou de caldeirada. Carne?
Muito pouca e sem sal, substituindo-o por ervas aromáticas. Legumes
e fruta? Só sazonais. Por isso, estamos proibidos de consumir uma
saladinha de pepino e tomate no inverno, temperar o nosso pato com
laranjas no verão ou mordiscar morangos no outono. Estamos, meus
HÁ LIBERDADE HUMANA E LIBERDADE ANIMAL? REGEM- caros, acorrentados. Na teoria, pelo menos. Na prática, podemos já
SE CADA UMA POR PRINCÍPIOS DIFERENTES? FICAMOS de seguida, e porque é tempo delas, encher uma panela, com banha
CHOCADOS QUANDO UM CÃO ESTÁ NUMA QUINTA, PRESO
derretida no fundo, de favas com chouriço, moira e muito entrecosto.
A UMA CORRENTE DE DOIS METROS PORQUE É UM ANIMAL
DE ESTIMAÇÃO, MAS ESTÁ TUDO BEM QUANDO UM PORCO A não ser que tenhamos de estar fechados em casa, a racionar ali-
ESTÁ CONFINADO NUMA JAULA DE DOIS METROS POR UM E mentos. Como quando se está em guerra. Mas isso seria impossível
MEIO PORQUE SE DESTINA À NOSSA ALIMENTAÇÃO? English version de acontecer em plena Europa, certo? l

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Sunset, € 16, ambos Face Stockholm. Batom Matte Revolution, no tom Sexy Sienna, € 32,
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máscara de pestanas Diorshow Pump & Volume, nos tons Pink e Coral Pump, tudo Dior. Batom Matte Revolution,
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Base Dior Forever, no tom 0N, € 50,90, corretor Backstage Fix It Flash Luminizer, no tom 001, € 39,95, lápis de sobrancelhas
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no tom Pillow Talk, € 32, Charlotte Tilbury. Pó solto Dior Skin Nude Loose Powder, no tom 020 Beige Clair, € 44,90, Dior.

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Blush em creme, no tom Salvador, € 28, Face Stockholm. Batom Matte Revolution, no tom Sexy Sienna, € 32, Charlotte
Tilbury. Pó solto Dior Skin Nude Loose Powder, no tom 020 Beige Clair, € 44,90, Dior. Na página ao lado: Base Dior Forever,
no tom 0N, €50,90, corretor Backstage Fix It Flash Luminizer, no tom 001, € 39,95, ambos Dior. Blush Pressed Powder
Blush Compact, no tom Raspberry Shimmer, Graftobian. Batom Liquid Suede Cream, no tom Pink Lust, € 8,45, NYX.

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Brown x Morag Myerscough, € 29, Bobbi Brown. 3. Sombra de olhos, no tom Mint Condition, € 20, MAC. 4. Sombra de olhos, no tom Istha, € 22,50,
Nars, exclusivo Sephora. 5. Gloss Shimmer Gelgloss, no tom 01 Kogane Gold, € 26, Shiseido. 6. Blush Backstage Rosy Glow, no tom Pink, € 37,50, Dior.
Na página ao lado: base Dior Forever, no tom 0N, € 50,90, corretor Backstage Fix It Flash Luminizer, no tom 001, € 39,95, lápis de sobrancelhas
Diorshow Brow Styler, no tom 021 Chestnut, € 27,90, tudo Dior. Máscara de pestanas Lash Booster, € 34, Face Stockholm. Sombras da paleta
Ultimate Shadow Palette Brights, € 19,10, NYX. Batom Matte Revolution, no tom Sexy Sienna, € 32, Charlotte Tilbury.
Modelo: Bethany Dewaal @ Blow Models. Cabelos: Rosa Matilla by M.Ö.N Icon Team e com produtos GHD.
Maquilhagem: Rosa Matilla com produtos Dior e Real Techniques. Manicura: Rosa Matilla com produtos OPI.

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BELEZA PERÍODO

Sangue do meu sangue


Eu menstruo, tu menstruas, elas menstruam. E apesar de todas nós,
e mais meio mundo como nós, menstruarmos, ainda é horripilante
escrever isto, dizer isto, quanto mais discutir isto... Por Ana Murcho.
menina por favor saia da sala.” Não me consigo mexer. Os a ele e a mim, uma criança de cinco anos que ainda nem sabia o
risinhos e as gargalhadas semi-histéricas de há um minuto que era isso de sangrar mês sim, mês também. Se a linguagem lhe
deram lugar a um silêncio confrangedor. Todos olham parece excessiva, pode ficar por aqui. Até ao último ponto final não
para mim, ninguém olha para mim. Um ato absolutamente encontrará metáforas bonitinhas. A ideia é chamar os bois pelos
natural, quase mecânico, acabou por desencadear uma nomes. Menstruação, período, corrimento fisiológico de sangue e
aula interrompida, uma expulsão, uma queixa. “É uma falta tecido mucoso do revestimento interior do útero pela vagina. Porquê
de respeito para comigo e para com os seus colegas.” Tudo insistir nisto? Porque, no geral, a sociedade ainda encara todas estas
por causa de um nariz entupido. Tinha o nariz entupido, palavras como algo “sujo”. Existem demasiadas conotações culturais
precisava de um lenço de papel, vasculhei a mochila e, em e religiosas que pretendem diminuir as mulheres que estão “naquela
vez do dito lenço, tirei um penso. Um penso higiénico. altura do mês” (outra expressão insuportável de ouvir) como sendo
Ato contínuo, pu-lo em cima da mesa, e o meu colega do “menos puras.” Veja-se, por exemplo, a política adotada pela maioria
lado fez uma graçola qualquer, daquelas que se fazem quando se tem das redes sociais, que estimulam a difusão de práticas de higiene –
14 anos – porque, sejamos justos, que adolescente é que não perderia sejam normas de saúde a adotar, apoios a ONGs ou marcas de copos
a cabeça perante tal objeto tão esotérico? A piadola (que apaguei da menstruais – mas que recusam qualquer imagem onde uma gota de
memória) justificou a minha distração como vil e má, e fui prontamente sangue surja perto de uma vagina. Foi o que aconteceu com a poeta
convidada a abandonar o local onde apenas estão os puros de espírito. Rupi Kaur, que em 2015 viu uma fotografia sua apagada, aparentemente
“O que é que lhe passou pela cabeça, Ana?”, perguntou-me mais tarde porque as suas leggings, e os seus lençóis, tinham sangue. 
a diretora de turma. Nada. Não me passou nada pela cabeça. Ou por  Incomoda. E incomoda tanto que até o emoji do período foi tema
outra, passaram-me várias coisas, uma delas porque raio é que fui de acesa discussão. Aquando da incursão do dito símbolo, em 2017, a
expulsa de uma aula à pala de um penso higiénico. Fiquei cheia de escolha recaiu sobre um par de cuequinhas acompanhadas por sangue
pena de não o ter tirado da mochila de propósito.  (e o que mais haveria de ser?), mas tal aberração foi rejeitada pela Uni-
 O minúsculo universo onde nós, mulheres, nos movemos, está code Consortium – a organização que coordena o desenvolvimento e a
cheio de histórias destas. Só eu devo ter umas cinco ou seis, entre promoção do Unicode, ou seja, desses caracteres que nos habituamos
o episódio do liceu e a “aparição”, leia-se, o momento em que per- a usar três em cada duas palavras – por isso, a opção final pendeu para
cebi que não éramos lá muito iguais aos homens. Lembro-me de, a inocente gotinha de sangue que agora temos e que, convenhamos,
pirralha, assistir ao desespero da minha mãe na pastelaria onde poderia ser qualquer coisa, porque gotas de sangue há muitas, basta
tomava o café todos os dias, quando inadvertidamente tirou um fazer um corte num dedo. E vemo-las aos molhos, se pensarmos na
penso higiénico da carteira e o pousou em cima do balcão (está visto quantidade de sangue não censurado que nos habituámos a ver, desde
que na nossa família existe toda uma ligação entre o dito objeto e cedo, em filmes de “ação e aventura”, em noticiários… Sangue não
o ato de o retirar de malas). “Ó dona Odete, sente-se bem?”, atirou censurado, claro. “Eu não tenho dúvidas nenhumas que a única coisa
um dos empregados, a desviar a atenção do sucedido. Ela sentia-se que faz com o sangue menstrual seja considerado nojento é o facto
bem. Só se tinha enganado, e em vez de três moedas tinha pegado na de sair de uma vagina. Os homens estão sempre a sangrar na televi-
coisa-que-nenhum-homem-quer-ver. Ficou tão incomodada (somos são/anúncios/filmes: ou porque são heróis num filme, ou porque são
peritas em autocensura) que quase posso jurar que pediu desculpa soldados na guerra, ou porque andam à porrada e são muito fortes.

FOTOGRAFIA: IMAGNO / GETTY IMAGES.

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BELEZA PERÍODO

Lembremo-nos que Eva não só veio de uma costela de Adão, como MENSTRUAÇÃO, PERÍODO, nos calções. Os calções eram brancos. Ela teve muita vergonha e foi-  á, no entanto, uma luz ao fundo do túnel. E é do tamanho
comeu uma maçã vermelha e por isso todas as mulheres do mundo CORRIMENTO FISIOLÓGICO DE -se fechar na casa de banho. Lavou os calções na água do autoclismo, da Escócia. Isto porque o parlamento escocês aprovou,
têm um sangramento vaginal que as castiga pelo pecado da primeira SANGUE E TECIDO MUCOSO DO secou no secador de mãos e meteu papel higiénico nas cuecas. Isto é no final de fevereiro, um projeto de lei para disponibilizar
mulher no mundo. Ainda nos envergonha tanto porque continua a REVESTIMENTO INTERIOR DO ÚTERO o cúmulo da vergonha de estar menstruada. Aconteceu em Inglaterra. produtos de higiene feminina de forma gratuita a todas as mulheres.
PELA VAGINA. PORQUÊ INSISTIR
ser o não-segredo mais bem guardado do mundo. Toda a gente sabe Ainda hoje penso nesta história com regularidade. Isto fez com que O plano do Governo, designado “Period Products Bill” – com um custo
NISTO? PORQUE, NO GERAL, A
que existe, mas ninguém fala, ninguém vê, é como se não existisse. SOCIEDADE AINDA ENCARA TODAS criasse uma espécie de ‘pasta’ no meu cérebro com vários aconteci- anual de implementação de cerca de 29 milhões de euros – consiste
Mas existe sim. Eu menstruo, nós menstruamos, e crescemos todos ESTAS PALAVRAS COMO ALGO “SUJO”. mentos deste tipo, meus e de outras pessoas.” A pasta de Tota deu em oferecer, gratuitamente, tampões e pensos higiénicos em lo-
no mesmo lugar: uma vagina que menstrua.” As palavras são de Tota origem à minissérie da RTP, onde se dá voz a diferentes gerações de cais públicos previamente designados. A medida fará da Escócia o
Alves, 29 anos, uma das realizadoras da minissérie documental O Meu mulheres – que tiveram experiências diferentes na sua relação com primeiro país do mundo a avançar com uma regulamentação deste
Sangue, estreada no passado dia 4 de março na RTP Play. Ao longo de o período – e onde se pergunta, acima de tudo, porquê? Porque é que tipo, e tem como objetivo combater o “period poverty”, designação
três episódios com cerca de dez minutos cada, exploram-se alguns ainda temos vergonha de falar neste assunto? Não é preciso procurar dada aos altos níveis de pobreza, e consequente falta de meios de
dos tabus associados àquilo que devia ser uma coisa natural, um não- muito. A minha amiga D. sabe três ou quatro coisas sobre o período. higiene, que afeta todas as mulheres que não conseguem suportar
-assunto, e que permanece um gigantesco elefante de porcelana nesta Tem 36 anos. Começou a menstruar aos 12. Pensando bem, deve saber… as suas necessidades básicas durante a menstruação. Na verdade,
loja chamada planeta Terra. Bastante ativa nos social media em tudo o 279 coisas, que são as vezes que já sentiu na pele o que é estar “naquela apesar de ser um país daquilo a que nos acostumámos a chamar
que diz respeito a menstruação, tem perspetivas bastante claras sobre altura do mês.” Andamos para trás no tempo. “Lembras-te quando me de “primeiro mundo”, uma em cada cinco mulheres escocesas não
o que está errado na forma como pintamos o problema. “O que mais apareceu pela primeira vez?”, pergunta-me. Lembro-me. “Liguei-te em consegue comprar produtos de higiene íntima, garantiu um estu-
me entristece é a comparação da menstruação com as fezes. É a prova pânico. Achei que me estava a esvair em sangue. Tu dizias-me que era do divulgado pela associação Women for Independence, em 2018.
mais evidente do nojo que há em relação a um sangue que é bom, que normal, eu insistia que ia morrer, que não podia ser.” Eram outros tem- A pesquisa revelou também que 45% das inquiridas já terá usado
faz parte da vida de todas as pessoas, é natural e limpo. Incomoda-me pos. Não havia Internet. Não se falava destas coisas (não é que hoje se “papel higiénico, jornais, meias, toalhas ou roupas antigas” como
que haja tanto repúdio e que ainda se utilizem palavras como ‘impura’ fale muito). Pergunto-lhe se acha que há um estigma à volta da palavra alternativa aos tradicionais produtos de higiene, leia-se, pensos,
ou ‘suja’ para descrever uma pessoa que está menstruada.” “período.” Responde-me, segura: “Há. Recuso-me a dizer essas coisas tampões ou copos menstruais. Noutras vitórias, ou melhor, noutros
tipo ‘o Benfica joga em casa’ ou assim. Estou com o período, ponto.” campeonatos, o documentário Period. End Of Sentence foi galardoado,
depois nada ajuda. São os anúncios que continuam a mostrar E com os pensos e tampões, como é? “Ah, isso é ainda pior. Ao meu em 2019, com o Óscar de Melhor Curta Documental, provando que
o período como sendo um líquido azul – para se ter noção do marido, que é todo esquisito, faz-lhe imensa confusão ver tampões. nem todos os temas-tabu estão condenados a caixas de Pandora
quão grave é a situação, só em 2010 é que a marca de tampões Tenho de esconder. Com as minhas colegas, e com amigas com quem eternamente fechadas. O filme, realizado por Rayka Zehtabchi,
Always lançou uma campanha em que o dito spot era vermelho; a ideia estou mais à vontade, não tenho problemas. Digo que vou mudar de conta a história de um grupo de mulheres indianas que produzem
foi de um estagiário que trabalhava para a agência de publicidade Leo tampão. Não quero saber.” Nisto tudo, o que é que a chateia mais? “Que produtos de higiene – combatendo assim o (gigantesco) estigma
Burnett, que detinha a conta da Always, e que apenas estava a desen- partam do princípio que estou assim ou assado porque estou com que existe contra a menstruação no seu país e conquistando alguma
volver o seu portefólio pessoal. O seu chief creative officer (que Deus o o período. Aquelas coisas ‘ai, agora está de mau humor porque está independência financeira – e convenceu os membros da Academia.
abençoe) achou a ideia tão boa que acabou por publicar o trabalho com o período’, ou ‘está insuportável, deve estar com TPM.’ Há uns Agora só falta sermos nós, mulheres, a darmos o próximo passo.
– num ato de coragem, já que recebeu um coro de protestos. São os anos, numa feira, entrei num restaurante e o empregado começou a E se noutra vida me cruzar com aquela professora e voltar a tirar,
preços exorbitantes dos produtos de higiene feminina – é fazer as desatinar e às tantas disse-me ‘você só pode estar naquela altura do por engano, um penso higiénico da minha mochila – e, loucura das
contas a quanto gastamos a partir do momento em que começamos a mês.’ É uma falta de respeito.” Neste caso, não é só o país que temos, loucuras, o colocar em cima da mesa – sou eu que faço questão de
menstruar. As pesquisas sugerem que uma mulher sangra, em média, é o mundo que temos. O problema é global. me levantar e sair da sala de aula. l
entre 2.250 a 3000 dias ao longo da vida. Em Portugal, tampões, pensos
higiénicos e copos menstruais pagam uma taxa mais reduzida de IVA
(6%), mas no resto da União Europeia há uma enorme disparidade, com
países em que os valores ascendem aos 27% – na mesma medida que
o tabaco ou o café –, apesar de serem bens de primeira necessidade.
Não vamos mais longe, porque em países como a Índia, as mulheres
ficam isoladas quando estão com o período, mais de um terço das
raparigas no sul da Ásia não vai à escola durante essa altura, e no Sri
Lanka dois terços das meninas nem sequer está consciente do que
é a menstruação antes de se deparar com ela. Valerá a pena lembrar,
por esta altura, que nada disto é uma escolha? Que ninguém acorda
uma manhã e decide começar a sangrar a cada 28 dias? 
 “Ao longo dos últimos anos fui ‘colecionando’ histórias dentro da
minha cabeça. Histórias minhas, histórias de outras mulheres. Houve
uma em particular que me marcou muito. Há uns oito anos, uma colega
de trabalho foi fazer compras a um shopping e, quando estava na fila de
uma loja, disseram-lhe ao ouvido que tinha uma mancha de sangue English version

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BELEZA ASK AN EXPERT

Todo-poderosa
O surgimento da pílula anticoncecional nos anos 60 foi um marco
importante na liberdade das mulheres. Hoje, há dúvidas que
persistem. Elsa Milheiras, ginecologista na Clínica de Santo António -
Hospital Lusíadas Amadora, esclarece as mais comuns. Por Joana Moreira. Para quem é que a pílula pode fazer sentido
face a outros métodos contracetivos?
No geral, para todas as mulheres sem contraindicações para a sua utilização e que
a prefiram como método contracetivo. Em particular, naquelas sem contraindicação,
onde pode ser usada como “medicamento”, mesmo que não haja necessidade
contracetiva. Os benefícios não contracetivos podem ser uma mais-valia em
casos de irregularidades menstruais (hemorragias intensas, dores menstruais
marcadas, síndrome pré-menstrual, prevenção da enxaqueca menstrual), alterações
hormonais com hiperandrogenismo, acne ou hirsutismo (excesso de pelos),
doenças ginecológicas (hemorragias devidas a miomas, dor pélvica causada
por endometriose), prevenção da formação de quistos ováricos funcionais.

Como se deve encontrar a pílula certa? Deve sempre ser receitada


por um médico ou basta recorrer a um farmacêutico?
O melhor é ser sempre um médico, preferencialmente ginecologista, que conheça bem a
paciente em termos de história pessoal e familiar. O benefício é maior aconselhando-se
com o farmacêutico do que não recorrendo a nenhum profissional de saúde, mas não é o
ideal. Um especialista saberá personalizar adequando doses e compostos para conseguir
o melhor resultado não só em termos de contraceção, mas também de benefícios não
contracetivos. Algumas vezes a melhor solução não é encontrada à primeira e tem de
se tentar outra composição diferente. Ter um registo do histórico de prescrições e dos
motivos que levaram a proceder a alterações é fundamental e só acontece num médico
assistente regular. Porém, o mais perigoso é quando alguém decide iniciar a mesma pílula
da amiga ou de um familiar sem uma avaliação prévia especializada. Pode tratar-se de
uma mulher com uma contraindicação clara para o uso da pílula que não só vai estar
a usá-la sem supervisão como pode estar a correr sérios riscos de saúde e de vida.

Quando se esquece de tomar a pílula deve-se tomar dois comprimidos


no dia seguinte?
Esquecendo-se de uma única pílula, esta deve ser tomada logo que a mulher se aperceba
FOTOGRAFIA: DARYL SOLOMON / GETTY IMAGES. do esquecimento. Dependendo de quando se lembra, pode acabar tomando duas
pílulas no mesmo dia … Se a toma da pílula esquecida ocorrer até 24 h depois não
há necessidade de contraceção adicional.

A pílula pode ser tomada de forma continuada, ignorando o intervalo semanal?


A toma contínua tem muitas vantagens, como diminuir as hemorragias, adiar a
menstruação numa determinada data, reduzir as dores de cabeça associadas ao período,
diminuir a síndrome pré-menstrual, etc. A grande desvantagem é a maior frequência
de spotting (sangramento escuro, escasso) e pequenas hemorragias irregulares.
Além do mais, tranquilizem-se as utilizadoras: não diminui a fertilidade!

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BELEZA ASK AN EXPERT

Os medicamentos anulam a eficácia da pílula?


Quando o metabolismo da pílula é acelerado, a sua eficácia diminui.
Qualquer medicamento que aumente a atividade das enzimas hepáticas
responsáveis pela sua metabolização causa uma diminuição do efeito
contracetivo das pílulas. Por exemplo: alguns anticonvulsivantes usados,
por exemplo, no tratamento da epilepsia (fenitoína, carbamazepina,
entre outros), o antibiótico rifampicina – nunca se provou que qualquer
outro antibiótico pudesse afetar a metabolização dos estrogénios
presentes na pílula, apesar da crença generalizada no sentido contrário;
antifúngicos como a griseofulvina; a Erva-de-são-joão ou Hipérico ou
Hipericão, eventualmente, embora as evidências sejam limitadas.
Há alguém, com determinadas características, que não deva tomar a pílula?
Genericamente, não é recomendada na gravidez, tumores hormonodependentes e
situações que aumentem o risco tromboembólico. A lista detalhada de contraindicações
absolutas é longa e inclui situações como: gravidez em curso, hemorragia genital A pílula faz engordar?
anormal sem diagnóstico conclusivo, doença cerebrovascular ou coronária (AVC, É uma questão que preocupa muitas mulheres, embora a evidência e a análise dos estudos
angina de peito, enfarte…), trombose venosa profunda ou embolia pulmonar, assim que existem não sugiram que a toma da pílula, quer a combinada quer a que tem apenas
como situação clínica predispondo a acidentes tromboembólicos, hipertensão com progestativos, esteja relacionada com aumento de peso. Além do mais, algum ganho de
valores iguais ou superiores a 160/100 mm Hg, doença cardíaca valvular complicada peso faz parte do desenvolvimento normal durante a adolescência e as mulheres tendem a
(hipertensão pulmonar, risco de fibrilação auricular, história de endocardite bacteriana ganhar algum peso ao longo da vida independentemente de usarem pílula ou não. Logo, a
subaguda), neoplasia hormonodependente (da mama ou outras), doença hepática preocupação com aumento de peso não é uma razão válida para não tomar a pílula.
crónica ou em fase ativa (exclui portadores sãos), tumor hepático, enxaqueca com aura
em qualquer idade e sem aura após 35 anos, tabagismo (a partir dos 15 cigarros/dia) em
idade superior a 35 anos, nos primeiros 21 dias pós-parto, mesmo que não amamente. A pílula provoca secura vaginal?
Existe uma outra lista de contraindicações relativas que incluem hipertensão controlada, Sim, pode causar. Há uma percentagem variável de utilizadoras
dislipidemia, diabetes, etc. em que as situações devem ser decididas caso a caso. de contracetivos orais que se queixa deste efeito secundário.

Há mulheres que admitem querer deixar de tomar a pílula por ter "demasiadas
hormonas". O que é que acha deste argumento e, qual é, na sua opinião,
o melhor método contracetivo? Ou depende de caso para caso?
A pílula tem alguma influência na fertilidade? O melhor método contracetivo é aquele que tem mais vantagens para a paciente individual
Essa é uma questão persistentemente colocada pelas pacientes e um dos mitos contra os que estivermos a aconselhar. Não consigo generalizar. Os contracetivos orais sofreram
quais tem sido mais difícil lutar. Não há nenhuma evidência de que a toma de pílula diminua uma redução marcada no conteúdo de estrogénios e progestativos desde que surgiram pela
a fertilidade, podendo até causar alguma melhoria, por exemplo ao diminuir a incidência primeira vez no mercado e sobretudo na última década, conduzindo a uma redução muito
de doença inflamatória pélvica. Todavia, é um facto que a fertilidade diminui com a idade significativa nos efeitos colaterais e nas complicações cardiovasculares. Como resultado,
e, se uma mulher resolve tentar engravidar após 20 anos a tomar a pílula, não estará estas preparações são uma opção contracetiva segura e confiável para a grande maioria
propriamente no auge da sua fertilidade quando decide fazê-lo. O que não quer dizer que das mulheres, de tal modo que neste momento não existem limites de idade para o seu uso
tenha menor fertilidade do que outra mulher da mesma idade que nunca usou este método. nas mulheres saudáveis e não-fumadoras, podendo ser o seu método até à menopausa.

A pílula está associada ao aumento de cancro do colo do útero?


Sim, pode estar associada a um aumento modesto de risco de cancro do colo do útero e da
mama, risco esse que diminui à medida que mais anos passam sobre a suspensão da toma.
Por outro lado, reduz o risco de cancro do ovário, do endométrio e até do cólon. English version

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BELEZA CORPO

Feel the nipple


No meio é que está a virtude e este centro do seio não podia ser
mais virtuoso. Despido de preconceitos – afinal, ela tem e ele
também – não descrimina cores, tamanhos ou religião. Todos
temos: diferentes na forma e tom, iguais em conceito. Bem, nem
sempre iguais, às vezes pixelizados, mas nas próximas páginas
não há censura que limite a liberdade de movimentos do corpo.
Do mamilo e mais além. Fotografia e maquilhagem de Kate Mur.

Emulsão refirmante para o corpo Body Firming Emulsion, € 114,35, Sensai. Pigmento no tom Silver
Fog, M.A.C., misturado com o óleo para o rosto Dior Prestige L’Huile Souveraine, € 301,50, Dior.

English version
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Lookfantastic.pt. Gel para misturar pigmentos Alcohol Base Mixing Medium, M.A.C. Na página ao lado: emulsão refirmante para o corpo Body Firming
Emulsion, € 114,35, Sensai. Pigmento no tom Silver Fog, M.A.C., misturado com o óleo para o rosto Dior Prestige L’Huile Souveraine, € 301,50, Dior.

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FOTOGRAFIA: D.R.

FOTOGRAFIA: D.R.

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tons Rose e Old Gold, € 19,45 cada, tudo M.A.C, em Lookfantastic.pt. Gel para misturar pigmentos MAC Pro Mixing Medium Gel, M.A.C.
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Modelos: Masha Mirzoyan e Martha Tolpman. Assistente de fotografia: Alexandr Konovalov.
Pós-produção: Rampaju. Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.

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BELEZA REFLEXÃO

Nip(ple)&Tuck É por causa deste e de outros capítulos que tais que incontornavelmente
tinha de começar um movimento como o Free the Nipple, que também
Se lhe mostrarmos dois close ups muito aproximados de mamilos, é uma hashtag consequente das censuras de social media, mas foi antes
sabe distinguir o feminino do masculino? Claro que sim. O da um apelo tornado filme (2014) que surgiu em 2012. A campanha faz
mulher é o que está pixelizado e o do homem não. Ou então é o parte do movimento político e cultural Topfreedom (que procura
mudar as leis de forma a que as mulheres possam estar de peito nu
que não está lá porque o “conteúdo foi removido por violar as em locais públicos onde os homens também o fazem ou, pelo menos,
regras da comunidade”. Como é que se pode avançar para uma levantar as restrições sobre a obrigatoriedade feminina de ter o peito
sempre coberto – a questão da amamentação em público é uma das
igualdade de género quando, em simples pormenores do corpo, suas batalhas) e foca-se nesta ideia de que os homens podem estar
iguais, a nossa versão é ofensiva e a do outro não? Por Sara Andrade. topless em público, mas quando é uma mulher, é considerado sexual ou
indecente. O movimento quer sublinhar a injustiça do double standard e
argumenta que deveria ser legal e culturalmente aceitável mostrar os
mamilos femininos sem pudor – uma vez que os masculinos também
têm esse privilégio. O filme homónimo que se lhe seguiu tinha como
objetivo chamar a atenção para a questão da igualdade de género de
forma a promover uma discussão sobre uma América que glorificava
a violência e reprimia a sexualidade, considerava Lina Esco, a realiza-
dora: “Sabias que uma criança americana vê mais de 200.000 atos de
violência e mais de 16.000 homicídios na TV antes dos 18, e não vê um
único mamilo de mulher?”, provocou, num artigo de opinião publica-
do no The Huffington Post. Enquanto a longa-metragem estava a ser
filmada, Esco foi partilhando alguns teasers no Facebook com a hashtag
#freethenipple. Em 2013, a plataforma removeu esses pequenos videos
alegando que violavam as guidelines da rede, uma atitude que só incre-
mentou a onda de apoio ao movimento, e à película, nomeadamente
por parte de personalidades famosas: Lena Dunham, Miley Cyrus e
Rihanna foram apenas alguns dos nomes que partilharam fotos nas
redes sociais a apoiar publicamente a iniciativa de Lina.
ão precisamos de tornar isto num texto sobre a igual- – apenas – meio segundo, as transmissões em tempo real passaram, o longo dos anos, as mulheres têm sido presas ou acu-
dade de género – ela estará, de qualquer modo, implí- a partir daí, a ser transmitidas com um atraso de cinco segundos, sadas de exposição indecente, comportamento lascivo
cita –, mas precisamos de tornar isto num artigo que para se poderem prevenir situações destas com planos de outros ou por importunarem a paz apenas por mostrarem os
questiona: porque é que o mamilo feminino é assim tão ângulos. Overreaction? Inserir emoji com o eye-roll, por favor. Mas o seios, mesmo em jurisdições onde a lei não o proíbe. Em 2015, a
vilão? Uma espécie de Voldemort, perdão, aquele-cuja- pior ainda estaria para vir: apesar de o país e o mundo se dividirem campanha chegou à Islândia, onde uma estudante ativista postou
-foto-não-será-partilhada, das redes sociais e do nosso entre os que acreditavam na gravidade do episódio e os que achavam uma foto sua em tronco nu e foi assediada por tê-lo feito. Num ato
quotidiano? Porque é que um homem pode correr em a polémica exagerada, o backlash do incidente que ficou conhecido de solidariedade, Björt Ólafsdóttir, membro do Parlamento, fez o
tronco nu num parque e uma mulher é ostracizada por como Nipplegate significou para Janet ver o seu portefólio musical mesmo. Em 2016, duas jovens foram presas por exposição indecente
amamentar em público? Porque é que um é livre e o banido da MTV e VH1 e todas as rádios Viacom, ao mesmo tempo ao crasharem em topless uma apresentação do senador e candidato
outro é imoral? Claramente, pelo seu poder maligno: que a CBS e a MTV (cadeia que transmitia o jogo e canal responsável Bernie Sanders, em Los Angeles. Passaram 25 horas numa prisão e
nunca se viu coisa tão pequenina a censurar imagens pelo entretenimento de half time, respetivamente) foram multadas processaram depois o departamento policial pela acusação injusta,
de Instagram, fechar contas de Facebook, a causar tamanho alarido em 550 mil dólares pela Federal Communications Comission (multa porque nunca tinham estado verdadeiramente nuas, uma vez que
e até a desferir golpes numa carreira. Que o diga Janet Jackson, que anulada em 2011). Um rol de danos colaterais seguiram-se, ainda, não tinham mostrado a área genital.
em 2004 descobriu da pior maneira a magnitude da influência de para Jackson, incluindo a entrada no Guinness como estrela mais Os eventos Free The Nipple multiplicaram-se um pouco por todo
uma maminha despida: no famoso espetáculo de intervalo do Super pesquisada à conta da notícia, ser alvo de vendetta pessoal do CEO da o mundo, mas o mamilo da questão nunca deve ter chegado às redes
Bowl, a atuação da cantora com Justin Timberlake acabava com o CBS depois do evento, que durante anos tentou arruinar a carreira sociais. O bom disso é que aguçou a criatividade dos seus users, porque
artista a rasgar metade do corset Alexander McQueen que Jackson da cantora (expôs mais tarde o The Huffington Post), e ainda passar censurar mamilos para não se ser censurado parece ser uma forma
usava, ao mesmo tempo que fechava o tema musical Rock your Body por uma embaraçosa e condescendente entrevista, pouco depois do de arte: cruzes, blur, corações, flores, desenhadas ou verdadeiras,
com “you’ll be naked before the end of this song”. A profecia funcionou incidente, no Late Show com David Letterman, na qual queria promo- barras pretas… há formas tão inventivas de se esconder um nipple – de
e o que se revelou foi o seio a descoberto com um piercing no ma- ver o álbum, mas 15 minutos foram gastos pelo host a deixá-la num mulher, claro – quanto a imaginação permitir. Uma ginástica criativa
milo de uma muito surpreendida Janet – Timberlake jurou depois desconforto difícil de testemunhar, revivendo de forma cómica (só desencadeada pelas diretrizes de comunidade do Instagram e do
que o que queria era apenas deixar visível o sutiã vermelho que a que não) aquele episódio sem graça. Por causa de um mamilo. E as Facebook, que autorizam mamilos femininos em pinturas e escultu-
entertainer tinha por baixo. Por causa deste mamilo, que apareceu represálias a Justin Timberlake? Ainda este parágrafo não acabou ras, mas não na fotografia (a não ser no contexto da amamentação
em direto para cerca de 147 milhões de espectadores por apenas e já não se lembra que ele fazia parte da história. e maternidade – apenas autorizadas a partir de 2014 por pressão de

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BELEZA REFLEXÃO

ocorrem. “Estamos a tentar refletir as sensibilidades dos abrangentes O MAMILO FEMININO É


e diversos países e culturas por todo o mundo nas nossas políticas”, CONSIDERADO UMA ZONA
explicou, para justificar a perseguição a esta parte do corpo (e não ERÓGENA E É SEXUALIZADO
só). E essa busca pelo agrado a uma audiência vasta denuncia um PELA SOCIEDADE HÁ ANOS,
MUITO ANTES DO SOCIAL MEDIA
problema que é, claramente, mais profundo: o mamilo feminino é O COLOCAR COMO ZONA NON
considerado uma zona erógena e é sexualizado pela sociedade há GRATA. O PROBLEMA ESTÁ EM
anos, muito antes dos social media o colocarem como área non grata. O NÓS, QUE AINDA O OLHAMOS
problema está em nós, que ainda o olhamos como pornográfico e não COMO PORNOGRÁFICO
como anatómico. Talvez se o Instagram não removesse um post com E NÃO COMO ANATÓMICO.
mamilos femininos explícitos, um qualquer utilizador denunciá-lo-ia
por se sentir “ofendido”. Mas de virgens ofendidas está a censura
cheia. E a questão é tão caricata e tão pequenina que há quem diga
que Jennifer Anniston é a original gangster do movimento Free the
Nipple porque Rachel Green, a sua personagem de Friends (1994-2004),
tinha muitas vezes o contorno dos mamilos – wait for it – bem visível
debaixo dos seus tops e camisolas: “Sim, não sei o que te dizer sobre
isso”, comentou à Vogue em 2017. “É uma daquelas coisas, acho. Eu
uso sutiã, não sei o que te dizer! E não sei porque é que é suposto
termos vergonha deles – é assim que os meus seios são!”

emos vergonha deles ou ficamos ofendidos por eles? Talvez


um pouco de ambos: quando crescemos a pensar que temos
de os tapar, os dois sentimentos estão intrinsecamente
ligados – não os mostramos, porque não devemos; não os queremos
ver, porque não os devemos mostrar. Mas não devia ser um dever,
devia ser um direito – e uma escolha. E isto é importante: querer
ter o direito de expor mamilos sem double standards em relação à
população masculina não quer dizer que se ande topless diariamente.
Eu quero que não haja diferenças no tratamento dos mamilos, mas
ativistas –, saúde ou num ato de protesto ou awareness para alguma escolho sair de casa com uma camisola ou um vestido ou uma blusa. que nem todos temos… essa podes mostrar. Eu nunca entendi como
causa). Aliás, se pesquisar a hashtag #nipple, ela não lhe é devolvida. Acima de tudo, procura-se uma normalização dos seios da mulher, é que isso funciona.” E estes dois pesos e duas medidas são tão gri-
Felizmente, o #freethenipple é e tem mais de quatro milhões de posts – em oposição à sua vilanização. Nomeadamente no que concerne a tantes por isto: porque se o cerne da questão é igual, porque é que a
mas quase todos eles de mamilos tapados… É óbvio que o bom senso amamentação, que é um direito e uma função perfeitamente normal na perceção não o é? Parece um preciosismo à luz de outros problemas
é requisitado quando se trata de mostrar o peito desnudo, nem tudo maternidade e que não pode continuar a ser ostracizada por ser feita mundiais, mas é apenas o ponto de partida para uma discussão
é nu artístico (mas também, algumas – muitas – poses provocatórias em público. Uma criança a beber o leite da mãe é a vida a acontecer, maior: a igualdade de género. [Eu tentei não tornar este texto num
com roupa também não o são), mas quando uma Sharon Stone a preto não tem de ser escondida. Mas em 37 Estados norte-americanos – e artigo sobre a igualdade de género, mas ela está, de qualquer modo,
e branco na capa de uma Vogue Portugal com um mamilo exposto um rol demasiado vasto de países –, é ilegal para uma mulher mos- implícita.] Porque o Free the Nipple não é uma luta para de repente
que mal se nota é censurada, sabemos que ainda estamos longe de ter trar o peito, mesmo para amamentar um filho, expõe Lina Esco no passarmos a ir todas para a rua de seios desnudos, é uma campanha
uma inteligência artificial inteligente – e sensível. Quando imagens The Huffington Post. Na Austrália, por exemplo, as leis de atentado cujo foco é a igualdade e o empowerment de todos os seres humanos por
como essa são vistas enquanto atentado ao pudor e as milhares de ao pudor apenas se aplicam aos genitais, mas as polícias locais têm igual. É uma missão para que as mulheres possam reclamar os seus
imagens de homens em tronco nu se mantiverem tão incólumes autoridade para excluir uma mulher em topless de um sítio público, corpos, a sua sexualidade e a sua segurança de volta. É sobre pensar
como aquele prato de pasta Alfredo que comeu naquele restaurante citando leis de comportamento ofensivo ou de criar distúrbio público. abertamente sobre a questão da igualdade e, consequentemente, da
instagramável, a linha entre decoro e censura dissipa-se. Acima de No Reino Unido, pode fazer-se topless na praia, mas há leis que proíbem liberdade, servindo-se da anatomia humana para demonstrar que
tudo, a arte sofre, porque muitos fotógrafos e artistas que trabalham a exposição do peito. Em Portugal, o nudismo nas praias nacionais homens e mulheres são iguais. E que merecem os mesmos direitos,
com este tipo de fotografia veem-se condicionados na partilha do não tem enquadramento legal, a lei é omissa em pormenores, mas mesmo em algo que pareça tão frívolo quanto andar topless. “Se se
seu trabalho sob pena de verem o seu post removido ou, mais grave, se houver queixas, a Polícia intervém. tornar legal para uma mulher mostrar os mamilos em público, achas
a conta cancelada. No final do ano passado, uma série de artistas e Mas estamos a desviarmo-nos. Ainda não falámos de uma nuance honestamente que todas as mulheres vão andar despidas por aí da
ativistas reuniram-se nos escritórios do Instagram em Manhattan para interessante deste assunto e que nos leva à questão do início do cintura para cima?”, questiona Esco. “Free the nipple é sobre ter
tentar encontrar um compromisso, mas sem sucesso. “Não estamos a artigo: “O mamilo, a parte que não podes mostrar, é o que toda a escolha.”, remata. Free the nipple é menos, muito menos sobre as
tentar impor o julgamento [do Instagram] à forma como os mamilos gente tem”, argumenta Miley Cyrus ao apresentador de televisão políticas de Instagram e mais, tão mais – é só, na verdade – sobre
devem ser vistos em sociedade”, comentou Karina Newton, diretora Jimmy Kimmel. Cyrus é conhecida por quebrar constantemente as igualdade. E liberdade. “Free the nipple é só uma plataforma”, disse
de public policy da plataforma, ao New York Times, em novembro de guidelines das plataformas sociais, provocando a inteligência artificial a realizadora à i-D, em 2016. “Não é uma coisa minha, é uma coisa
2019, admitindo ainda que o sistema não é perfeito e que há erros que English version do Instagram com fotos suas em tronco nu. “Mas a parte da maminha, de todos. Todos temos a responsabilidade de passar a palavra”. l

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BELEZA ANÁLISE

Território neutro
No campo de batalha da aceitação corporal surgem novas fronteiras.
Depois do body positvity, o body neutrality é o novo movimento
que vai além do corpo para que possamos fazer as pazes com ele.
Mas será esta a solução? Por Andreia Pedro. Fotografia de Michael Bodiam.

ma o seu corpo? Para grande parte das pessoas a resposta e uma das principais lições que aprendi é que a imagem corporal está
não é fácil ou literal. A nossa relação com o nosso corpo longe de ser uma questão trivial – é uma questão feminista. Sim, cada
é complexa e torna-se difícil resumi-la a uma respos- vez mais homens também têm problemas de imagem corporal mas,
ta simplesmente afirmativa ou negativa. Cada vez mais no todo, as mulheres ainda lutam muito mais com a sua aparência
conceitos começam a surgir para definir a forma como e isso tem consequências bem reais que contribuem bastante para
podemos ver o nosso corpo e viver em paz com ele. Mas, as desigualdades de género. Por exemplo, estudos demonstram que
e se a solução for retirar a atenção que damos ao nosso é menos provável que as raparigas levantem a mão na sala de aula
corpo e nos focarmos para além dele? Esta é uma das quando se sentem inseguras em relação à sua aparência. As mulheres
premissas do body neutrality, o conceito de neutralidade são menos propensas a pedir um aumento no trabalho”. 
corporal que tem vindo a ganhar força nos últimos anos e À Vogue Portugal, Anuschka explica que “a neutralidade corporal é
que oferece uma alternativa à tão conhecida body positivity, um movimento social cujo objetivo é reduzir o grande significado que
que preconiza a ideia de que devemos amar o nosso corpo, tal como é dado à atratividade física na nossa sociedade. Vai para além da posi-
ele é. Para Anuschka Rees, obrigarmo-nos a amar a nossa aparência tividade corporal porque não só contraria os ideais de beleza do nosso
é um reflexo da sociedade em que vivemos. “Eu descreveria a minha tempo, mas também todos os aspetos da sociedade que continuam a
relação com o meu corpo como apreciativa e saudável, mas nunca diria promover a beleza como essencial, como algo a alcançar, e a aparência
que ‘amo’ certas partes do meu corpo – aliás, sou bastante contra a de uma pessoa como indicativa do seu valor”. Para a alemã, reduzir
crença de que uma imagem corporal saudável significa ‘amar’ a nossa a neutralidade corporal à simples ideia de nos sentirmos neutros em
aparência. Eu não ‘adoro’ as minhas coxas ou as minhas mamas mais relação ao nosso corpo é uma visão redutora e errada do movimento.
do que os meus pulmões ou o meu sentido de equilíbrio. A ideia de “O objetivo do body neutrality não é sentirmo-nos ‘neutros’ em relação
que nos devemos esforçar para ‘amar’ a nossa aparência é só mais à nossa aparência. Iremos sempre gostar de algumas partes do nosso
um produto de como sobrevalorizamos a beleza enquanto sociedade”.  corpo mais do que de outras; em alguns dias, semanas ou anos, vais
Formada em psicologia, a alemã decidiu escrever o seu mais recente achar-te mais atraente, noutros nem tanto. O objetivo da neutralidade
livro, Beyond Beautiful, como uma forma de autoterapia depois de ter corporal é o de neutralizar o impacto que a forma como pensas acerca
passado grande parte da casa dos vinte em dieta após dieta, fanática da tua aparência tem na tua vida, no teu bem-estar e nas tuas decisões”.
por beleza e a comparar-se com outras pessoas no Instagram. O livro
é um guia prático para ser feliz e confiante num mundo obcecado com
a imagem. “Tudo na nossa cultura sugere que o valor de uma mulher
depende da sua aparência. Este facto associado a ideais de beleza
DESIGNER: JANINA PEDAN.

irrealistas equivale a que muitas mulheres se sintam inseguras acerca


da sua aparência e convencidas de que as suas vidas poderiam ser
melhores se elas fossem mais bonitas”. Para a autora, o facto de serem
as mulheres quem mais sofre com problemas de aceitação corporal
acarreta grandes consequências sociais. “Conversei com mais de 600
mulheres para o livro, além de muitos especialistas de diferentes áreas

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BELEZA ANÁLISE

Positividade, com
Mente sã - em qualquer corpo conta peso e medida Deixar as etiquetas de lado
Foi exatamente para mudar a forma como muitas mulheres veem o O movimento body positive começou nos Estados Unidos durante os Para a modelo e influencer portuguesa Catarina Corujo, tentar definir
exercício físico que Tally Rye lançou o seu livro Train Happy, um guia anos 60 para mostrar as barreiras que as pessoas gordas enfrentavam, a aceitação corporal de diversas formas pode ser contraproducente.
de exercício intuitivo para todos os corpos. “Senti que havia uma rejeitando a cultura das dietas e das cirurgias de emagrecimento e “Sinceramente... quando começam a existir muitos conceitos à volta
grande conversa que precisava de acontecer no mundo do fitness. reivindicando direitos para quem tinha excesso de peso. Segundo a do mesmo, voltamos a cometer o erro de categorizar as pessoas. Na
Tantas pessoas com quem eu tinha interagido, eu incluída, tinham revista Time, a palavra “gorda” foi, na altura, reapropriada pelas mu- teoria, [o body neutrality] é um ótimo conceito, no sentido em que
caído em muitas armadilhas na sua jornada de fitness e eu queria lheres do movimento para passar a ser usada como uma descrição e reconhece não só o positivo como também o negativo que conside-
ajudá-las a evitar isso mesmo. Durante muito tempo, eu associei não como uma forma de insulto. Anos mais tarde, o conceito ganhou ramos existir, ou seja, está tudo bem se não gostas da tua coxa como
ser saudável a perder peso e então mudava a forma como eu comia nova força por via das redes sociais, com muitas mulheres a usarem-no ela é, simplesmente não te condenes por isso. Este conceito surgiu
e fazia exercício para poder emagrecer. Isto tornou-se obsessivo e para definir a sua relação com o seu corpo. A partir daí, não demorou por uma necessidade de aliviar uma pressão de estar sempre otimista
insustentável e, o que eu não estava a perceber, era que saúde não é muito até que as marcas começassem a usar a positividade corporal com o corpo que temos. Isto é de longe a realidade: nem a pessoa
sinónimo de abdominais. A saúde é multifacetada e o exercício é só a seu favor. Stephanie Yeboah é uma ativista pela fat acceptance, um mais positiva está sempre otimista! E está tudo bem se não gostas de
ambém Sara Taveira, psicóloga clínica na Oficina da Psico- uma parte de um grande puzzle.” Para a personal trainer inglesa, ser conceito que promove a aceitação da gordura. “A fat acceptance é o algo em ti, está tudo bem aceitar isso e abraçar a tua individualidade
logia, afirma que a neutralidade corporal vai muito além da saudável ou fit não se encaixa num modelo único. “Significa trabalhar movimento social que pretende mudar as ideias antigordura nas como também está tudo bem se quiseres mudar. Para mim, é isto.
nossa aparência. “Neutralidade corporal é um movimento com o nosso corpo para nos sentirmos o melhor que conseguimos. atitudes sociais ao sensibilizar para os obstáculos que as pessoas Respeitar quem somos, almejar quem queremos ser...  por nós, e
de auto-aceitação corporal, de valorização da nossa diversidade en- Isto será algo único para cada indivíduo, especialmente para pes- gordas enfrentam. Não só de um ponto de vista estético, mas também não por pressão externa.” Catarina é uma das principais vozes para
quanto indivíduos, onde a aparência não é sinónimo do nosso valor soas com deficiência, doenças crónicas e com diagnósticos de saúde legal, médico, económico e social”, explica. A blogger de lifestyle e moda a aceitação corporal em Portugal. Descreve a aceitação do seu corpo
pessoal, mas apenas um fator pequeno, que até é muito influenciado mental que muitas vezes não se enquadram nos padrões de ‘saúde’ adotou o termo depois de sentir que o movimento de body positivity como a “montanha russa” da sua vida. “Eu sofro de vertigens, mas tem
por modas, tendências e sociedades. A nossa beleza e valor pessoal que veem. Penso que o mais importante é usar o self-care para fazer já não fazia sentido para si, pois já não se via representada nele. sido a viagem mais louca e inconstante que já fiz, sem dúvida alguma.”
passam a estar ramificados por vários componentes de nós mesmos o que é melhor para ti, sendo a nossa saúde mental a prioridade.” “Antes de o movimento ter sido adquirido por marcas e pelos media, Na sua conta de Instagram, inspira os seus quase 29 mil seguidores
e não apenas pela parte externa, designadamente pela aparência. Nas redes sociais, Tally fala de forma honesta da sua jornada de acei- a positividade corporal era um espaço seguro para mulheres gordas a aceitaram-se tal como são, algo que a faz sentir-se grata e feliz.
Este movimento vem tirar o foco do corpo, o lema é ‘desfocar’ para tação pessoal e defende uma abordagem individual e intuitiva. “Penso celebrarem os seus corpos, partilharem as suas histórias e celebra- “Este processo é uma batalha conjunta, sou muito transparente nas
outras áreas de valorização pessoal, numa perspetiva mais maleá- que vivemos numa sociedade que objetifica os corpos, especialmente rem a singularidade da sua aparência. O movimento foi inicialmente coisas boas, mas também no menos bom e gosto de ter pessoas por
vel da nossa autoestima, e não tão rígida e extremista de ‘amo ou os das mulheres. Isto deve-se muito ao patriarcado e aos padrões criado por mulheres gordas, negras e de origem judaica, mas agora perto que se identifiquem com aquilo que eu estou a passar e que me
odeio’”. Do ponto de vista da saúde mental, a neutralidade corporal corporais e de beleza que este promove. Tudo isto só tem vindo a ser o movimento generalizou-se e ficou saturado para além do ponto de possam ajudar a ser a minha melhor versão – e não, não almejo ser
traz vários benefícios, com alguns especialistas a defenderem que exacerbado pelas redes sociais, que cada vez mais são obcecadas com a retorno. O movimento agora existe predominantemente como um uma pessoa perfeita, apenas a dar o melhor que conseguir. É muito
esta pode ser mais benéfica do que a positividade corporal. Sara imagem. Agora, não temos só celebridades para nos compararmos, ago- sítio para corpos privilegiados, onde constantemente se marginaliza fácil falar em massagens e maquilhagem, mas não é assim tão fácil
Taveira clarifica. “Não sei se é mais fácil ou difícil, pois tudo isto é ra temos influencers ou até mesmo os nossos amigos.” Para a britânica, e ignora os corpos que fundaram o movimento. O movimento de body falar do peso que é tirar o corpo da cama num dia mau, o esforço
subjetivo e muito individual. O que a investigação nos tem mostrado neutralidade corporal não tem a ver com a forma como classificamos positivity criou todo um novo padrão de beleza que é predominante- que é contrariar um pensamento cruel sobre ti mesma, o quanto tu
nos últimos anos é que, sem dúvida, a aceitação é o primeiro passo o nosso corpo, mas sim com a importância que lhe damos. “Não tem mente branco, com barriguinha, rabo com curvas, cintura pequena e te tens que contrariar para te permitires ser vulnerável contigo mes-
para a mudança, que o desfocar cognitivo nos permite uma reflexão a ver com amar ou odiar o nosso corpo, mas sim com encontrar um ancas largas. Agora, o movimento celebra mulheres gordas, mas ainda ma. Não é assim tão fácil encarar-me no espelho e dizer-me que sou
mais compreensiva de todos os componentes. É como apreciar um ponto ideal onde tu o aceitas, respeitas, mas não é algo em que estejas assim com tamanhos pequenos que ainda apresentam sex appeal para suficiente, que sou bonita, que tenho valor. Não é fácil parar o meu
quadro a 30 centímetros de distância do mesmo ou a dois metros. a pensar o tempo todo. É compreender que o meu corpo é só a concha as massas, ao oposto de comemorar pessoas mais gordas que são pensamento e ficar a sós com os meus pensamentos mais negros.
E que padrões mais maleáveis e plásticos de nos vermos a nós mes- em que eu habito e que a parte mais importante de mim é como eu sou muitas vezes marginalizadas e desprezadas pela nossa sociedade.” Em O amor-próprio é mais do que banhos de espuma, é confrontação, é
mos, aos outros, e ao mundo que nos rodeia, parecem trazer mais por dentro e como eu escolho mostrar isso ao mundo”. Tally acredita relação à neutralidade corporal, Stephanie considera que é um bom conforto, apoio… É um resgate a nós mesmas.” Entre a positividade
bem-estar e saúde psicológica”.  que a neutralidade corporal pode ser uma alternativa mais realista à movimento, apesar de não fazer parte do mesmo. “Na teoria, o body e a neutralidade, Catarina prefere deixar os conceitos de lado e olhar
Mas por onde começar? Para quem quer praticar neutralidade narrativa positiva preconizada pelo movimento body positive. “Penso neutrality seria um excelente modelo, visto que se baseia em vermos para a mensagem que considera mais importante. “Na prática, prefiro
corporal, a psicóloga explica que o primeiro passo é perceber como que, para quem já detestou o seu corpo e lutou contra ele durante muito o nosso corpo como um veículo e uma entidade que serve para nos abster-me de categorias e dizer em voz alta: tu és quem tu quiseres
é que normalmente encaramos o nosso corpo. “Acima de tudo é tempo, a ideia de, de repente, acordar e amar o seu corpo possa ser manter vivos, sem adicionar nenhum tipo de sentimento positivo ser, defeitos e qualidades incluídas – e isso é e será sempre… lindo. Eu
preciso ganharmos consciência destes processos e automatismos completamente irrealista. Em vez disso, a neutralidade corporal ajuda ou negativo. Isto seria o conceito ideal para seguir na nossa vida nunca senti a pressão do otimismo constante associado ao conceito
em nós, dos sentimentos e pensamentos associados às nossas vi- a tirar o foco do nosso corpo e chegar a um ponto de aceitação para quotidiana. No entanto, a neutralidade corporal não pode resultar do body positivity, mas senti a pressão de ter de respeitar um padrão
vências, neste caso especificamente às nossas vivências com o nosso que possamos usar essa energia e espaço mental para buscar outras enquanto ainda existir gordofobia, o ódio à gordura. Se não existisse 86-60-86 durante anos e doeu o suficiente o peso do estigma, do
corpo. Ganhando esta consciência, obrigando-nos a parar o nosso coisas pelas quais sejamos realmente apaixonados”.  esse ódio, talvez as pessoas se sentissem mais seguras em relação ao estereótipo, das categorias. Já chega. Sejamos livres.” l
‘piloto automático psicológico’, podemos então identificar quando seu corpo, e não haveria necessidade de positividade forçada porque
estamos a ser críticos connosco mesmos, categorizar essa crítica, não veríamos o nosso corpo como ferramenta de ódio.” Stephanie
desfocar-nos da mesma e substituí-la por pensamentos mais adap- considera que a neutralidade corporal depende muito do tipo de corpo
táveis sobre nós mesmos.” Em termos objetivos, outra maneira de em que vivemos. “Penso que o body neutrality é mais fácil de adotar para
colocar a neutralidade corporal em prática é ao avaliar os motivos pessoas que vivem num corpo que é socialmente aceite. Se viveres
por detrás da nossa alimentação e da prática de exercício físico. “Uma num corpo que ainda é sujeito a ódio, discriminação e negatividade,
forma muito concreta é, por exemplo, praticar desporto ou comer de aí já se torna mais difícil.” 
forma saudável pelo prazer que isso nos dá, pelo facto de nos fazer
sentir bem, ao invés de ‘porque temos de o fazer’ ou com um foco
excessivo na perda de peso ou body sculpture. E muito menos fazer
exercício a contar calorias, mas sim adotar uma atitude de apreciar
apenas o presente, o aqui e agora.” English version

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BELEZA CABELO

uando Jane Fonda irrompeu pelo palco na última cerimó- número, é mais importante como tu te sentes por dentro do que a
nia dos Óscares, o falatório não demorou. Não pelo seu cor do teu cabelo!” Apesar de tudo, a verdade é que Grece recebe
sorriso ou pelo seu vestido magnífico – que, curiosa- sobretudo elogios na rede social onde é seguida por mais de 250
mente, já havia usado em 2014 –, mas pelo seu cabelo. É mil pessoas. “Muitos vão na linha do #goals, de mulheres de todas
que Fonda surgiu com o cabelo completamente cinzento. as idades e isso faz-me feliz, saber que sou relacionável para muitas
Porém, mesmo antes de a atriz abraçar a beleza do cabelo mulheres!”, diz. Para Grece Ghanem, o aumento da visibilidade e
grisalho, já o #GreyHairMovement tinha despertado no da diversidade de mulheres como ela, nos media, tem encorajado
Instagram, com mulheres por todo o mundo a partilhar a que outras mulheres se aceitem – e ao seu cabelo branco. Mas
a sua mudança capilar. Ou melhor, a sua aceitação capilar. não esconde que as mulheres continuam a sentir pressão com a
Grece Ghanem tem 55 anos e é um fenómeno de popu- manutenção capilar. “Tal como com qualquer outro aspeto na be-
laridade. Basta espreitar a sua conta no Instagram para leza. Assumir o cabelo branco não é uma decisão fácil, mas é uma
perceber porquê. A começar no estilo, onde não faltam decisão que só nós podemos tomar, temos de escolher o que nos
peças Céline da era de Phoebe Philo [na altura ainda se usava o faz felizes! Em última instância, a cor do meu cabelo não revela a
acento] passando pela atitude, e terminando no seu bob completa- minha idade, mas sim o meu mindset!”, diz.
mente branco. “Lembro-me de ter 28 anos quando vi o meu primeiro
cabelo branco. É de família, a minha mãe também começou a ter “Senti-me livre. Absolutamente livre.”
cabelos brancos muito nova”, conta à Vogue. Natural da Libéria, mas Não tinha sequer 30 anos quando Silvina Neder
a viver em Montreal, no Canadá, Ghanem já colaborou com marcas reconheceu fios brancos na sua farta cabeleira.
de beleza tão distintas como By Terry, MAC ou Kérastase. A decisão “Não me lembro do meu primeiro cabelo branco
de ostentar a sua cor de cabelo natural surgiu de forma espontânea. porque tenho muito cabelo (risos). Mas foi du-
“Foi muito relacionada com o meu estilo de vida. Sou uma pessoa rante os meus vintes...”, conta à Vogue. Nascida
muito ativa, adoro nadar, e não queria ter marcações mensais no na Argentina, mas a viver em Londres, Silvina
cabeleireiro para pintar as raízes. Nas primeiras vezes ainda pintei largou uma profissão ligada ao marketing e, aos
as minhas raízes, porque era morena, mas depois lentamente fiz a 50 anos, tornou-se modelo e atriz, tendo já fei-
transição para umas luzes loiras platinadas para se misturarem com to parcerias com marcas como a Pantene. Não
os meus novos fios cinzentos e cobrir os escuros. Faz agora cinco esconde: o seu cabelo pode ter dado uma ajuda.

FOTOGRAFIA: IMAGNO / GETTY IMAGES.


anos que não faço nada com a minha cor de cabelo. Tenho orgulho “Comecei por fazer umas luzes, não me lembro
em dizer que é 100% natural!” Hoje, o cabelo é “um símbolo da mi- se era por querer ter o cabelo mais claro ou se
nha própria individualidade! Ao contrário do que algumas opiniões queria esconder o cabelo branco, mas depois nos
aleatórias possam dizer, não me faz parecer mais velha, faz-me meus trintas estava sempre a pintar o cabelo,
sentir única!”, garante. É que as opiniões quanto ao seu cabelo (e à sempre. Eu tenho muito cabelo e o meu cabelo
decisão de não o esconder) não são unânimes. “Enfrentei a oposição cresce muito. E os meus brancos estão sobretudo
de pessoas, de amigos e de familiares que tinham dificuldade em à frente. Por isso eu tinha de fazer coloração,
acreditar que eu estivesse disposta a deixar o meu cabelo cinzento no máximo, a cada três semanas”, conta. “Estava

A raiz da questão
numa idade tão jovem e com um rosto e uma personalidade jovem a trabalhar, trabalhava em marketing na altura,
(...) Algumas pessoas gostam dele [cabelo], outras não. É normal e fazia imensas horas, e ainda tinha de arranjar
não espero outra coisa. Já recebi alguns comentários no Instagram tempo para ir ao salão fazer coloração (...) Era
a dizer que se eu pintasse o cabelo pareceria muito mais nova. Para como uma escravatura. Lembro-me de, dos meus
eles, a minha resposta vai ser sempre: a idade para mim é só um trintas aos quarentas e picos, trabalhar imenso

O que é que a levaria a deixar de pintar os cabelos brancos?


Duas mulheres deixaram de ser escravas dos padrões de
beleza (e do cabeleireiro) e assumiram, orgulhosamente,
os fios grisalhos – com zero arrependimentos. Por Joana Moreira.
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BELEZA CABELO BELEZA MULTIUSOS

Todos adoramos um bom truque – ou simplesmente


Test drive
descobrir que uma coisa dá também para outra. Como estes
“ASSUMIR O CABELO BRANCO produtos, que servem para muito mais do que imaginámos.
NÃO É UMA DECISÃO FÁCIL, MAS
É UMA DECISÃO QUE SÓ NÓS
Eis três novidades para usar livremente. Por Joana Moreira.
MESMAS PODEMOS TOMAR,
TEMOS DE ESCOLHER O QUE
NOS FAZ FELIZ!”GRECE GHANEM
Promete: Um bálsamo de beleza tudo-em-um para reparar e nutrir
a pele fragilizada. Palavra de editora: Das várias formas de
usar este produto, a minha eleita foi sem dúvida enquanto máscara
noturna. Apliquei uma camada fina no rosto e decote, mesmo antes
e aquilo que tinha sempre de fazer era pintar o cabelo, fosse para ir
de ir dormir. Ao contrário do que a embalagem sugere, não removi
de férias, fosse para o que fosse. Se tivesse alguma coisa importante,
o resíduo excedente. No dia seguinte, a minha pele tinha absorvido
uma reunião de trabalho, tinha sempre de pintar o cabelo à última
todo o produto e estava hidratada e muito confortável. Para quem
da hora”. Com muito cabelo e um crescimento rápido, Silvina vivia
goste de texturas ricas, este pode ser um bálsamo a ter em conta.
em constante aflição. “Em três, quatro, ou seis dias eu já conseguia
No meu caso, usá-lo como bálsamo ou primer seria demasiado.
ver um bocadinho de branco na minha base do cabelo. Era super,
Apesar de tudo, como primer hidratante devo dizer que cumpre o seu
super obcecada com isso”, confessa.
papel, sem qualquer conflito com a maquilhagem que lhe sobrepus.
Bálsamo de beleza tudo-em-um Happy Skin, € 37,40, Teaology.
as a sua obsessão viria a ser posta à prova com novos
obstáculos. “Quando vivia em Buenos Aires tinha o ‘meu’ “ia parecer mais velha”, “tomei a decisão de
salão, e o tipo conhecia-me, eu ligava-lhe, marcava, era uma forma tão segura que nada me fez mudar
muito fácil e prático. Mas quando me mudei para Espanha tive de de opinião”. A transição não foi um mar de Promete: Um stick de efeito cooling, frio,
encontrar um novo sítio para ir, e era mais difícil”. Silvina ainda rosas. Foram precisos vários meses até que que garante descongestionar e reduzir
tentou fazer tudo sozinha, isto é, pintar o cabelo em casa. Porém, o branco tomasse conta de toda a cabeleira. os sinais de fadiga na zona do contorno
muitas tentativas e muita roupa e toalhas destruídas depois, acabou Enquanto em Londres, conta, ninguém queria dos olhos instantaneamente.
por desistir. Anos mais tarde, mudou-se para Londres, onde hoje saber, “naqueles três, quatro meses em que o Palavra de editora: Todos os
reside, e logo percebeu que não era só à língua que tinha de se estava a deixar crescer, fui à Argentina e todos produtos de beleza em formato de bastão
habituar. “A logística era muito diferente. Aqui eu tinha de marcar os meus amigos diziam ‘tens de ir ao salão, que possam ser aplicados on the go sem
a coloração com duas semanas de antecedência. E duas semanas eu marco-te’. E eu dizia: ‘Se não gostas, não ter de se tocar com as mãos no produto
antes eu não sabia como é que a minha cor ia estar! Além de que era olhes para mim’”. em si ganham espaço facilmente na
muito caro, para os valores a que eu estava habituada na Argentina Só que os meses passaram, e o grisalho minha carteira. Não só por uma questão
e Espanha. Era uma loucura. Uma loucura gastar esse dinheiro, 100 ganhou protagonismo. “O cabelo branco come- de higiene (nem sempre temos as mãos
libras (cerca de 108 euros), 200 libras (cerca de 217 euros) a cada 3 çou a dominar o meu cabelo e as pessoas diziam ‘estás fantástica, limpas ou locais adequados para o fazer),
semanas? Era assim”, conta. adoro o teu cabelo’”. Ao mesmo tempo, em Londres despertava a mas também porque a aplicação é muito
Das suas viagens, Silvina ia guardando memórias. “Via mulheres tendência do cabelo cinzento. “Aqui toda a gente faz muita coisa mais cómoda. Agora imagine um stick
com cabelo branco em Nova Iorque, Paris ou em cidades trendy, e diferente e miúdas jovens estavam a começar a pintar o seu cabelo gelado, sempre gelado, que pode aplicar
pensava sempre: ‘elas são tão elegantes, isto vai-me ficar bem’. de cinzento! Tive uma colega de trabalho que me disse ‘oh, pensei a qualquer altura do dia, tanto sob
Sempre fui uma pessoa de questionar. Porque é que os homens, que o tinhas pintado de propósito’. E eu ‘não, estou a deixar crescer como sobre a maquilhagem? Resultado:
se os virmos com cabelo branco, são charmosos, e nós parecemos o cabelo.’ E ela disse-me ‘oh, isso é incrível’”, relata. Apesar dos Promete: Um stick iluminador multiusos que aplico-o não só na zona periocular, como
velhas? Porquê? Isso é muito machista”, diz. Na sua terra Natal, o elogios (agora gerais), Silvina não esquece o mais importante: “Eu promete ser isso mesmo – para usar de múltiplas em todas a zona do rosto que queira
pensamento era dramaticamente distinto. “Diziam-me ‘não, Silvina, adoro. Sinto-me livre, absolutamente livre. Porque vou ao salão formas. Palavra de editora: Sabe aquela pergunta refrescar. Dias quentes, podem vir.
não podes ter o teu cabelo branco, vais parecer mais velha’. Os quando EU QUERO. Quando quero fazer um corte, quando quero clássica "que produtos de beleza levaria para uma Optim-eyes [refresh], € 29,90, Filorga.
meus amigos gozavam a diziam ‘vai ser o fim da tua vida sexual’ algo especial. Mas não tenho de ir a cada três semanas”. ilha deserta?" Os Baume Essentiel, da Chanel, entram
(risos)”. Mas Silvina não se conformou. “Sentia-me estúpida, a ser A liberdade de que Silvina Neder fala contrasta com a pressão facilmente nesse grupo. O novo tom, Golden Light, é
uma escrava do cabeleireiro todas as semanas. Sentia-me estúpida, que muitas mulheres ainda sentem para manter o cabelo imune à capaz de se adaptar a qualquer função. Aplico-o como
mesmo, porque é que os homens podem fazê-lo e eu não?”, questio- passagem do tempo. “Acho que [as coisas] estão a mudar, e isso [a iluminador, passando os dedos no produto e fazendo
nava. Mesmo contra os amigos que “diziam que eu era doida” e que pressão] existe muito menos na Europa e muito mais na América pequenas batidas nas maçãs do rosto e na cana do
Latina. Tenho amigas com 50 anos, e que são super super fit, mas nariz, ou como bronzer, aplicando-o diretamente
que se matam, perdem a vida no ginásio. E têm de ter o cabelo na pele (com o contacto direto do produto na pele
pintado, e usar sempre saltos altos. Aqui estamos mais livres. Mas consegue-se mais pigmentação) e esbatendo com
acho que está a mudar. Aquilo que vivemos aqui agora vai chegar à um pincel. Por último, fica maravilhoso aplicado
FOTOGRAFIA: D.R.

América Latina também”. Perguntamos-lhe se a liberdade depende diretamente nas pálpebras, como sombra de olhos
meramente da geografia, ou se envelhecer também pode ajudar. ultra luminosa. Basta deslizar o bastão e deixar as
"Sim, acho que ajuda. Porque és mais sábia e... Não queres saber pálpebras (e o look) brilhar. Baume Essentiel, no tom Golden
English version (risos). Mas é algo pessoal..." l Light, da coleção limitada Éclat Du Désert, € 42, Chanel.

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BELEZA CUIDADOS

Cuidar dos fios de cabelo é mais do


Entrelaçados
que encontrar o champô certo, evitar
a prancha ou aplicar sérum nas pontas
religiosamente. Estes são pequenos
passos que, em conjunto, trabalham para
um cabelo mais bonito. Por Joana Moreira.
Fotografia de Pedro Ferreira. Realização de Ana Caracol.

asmine, em Aladino, Cher, em Clueless, e até Ariel, n’A Pequena Escalpe, meu amor
Sereia – e com um garfo! – o faziam. Como é que, durante Escalpe, couro cabeludo, o que quer que lhe queiramos chamar, uma
anos, o mundo subliminarmente nos tentava dizer o quão coisa é certa: ele precisa da nossa atenção. Tratar do couro cabeludo
importante era escovar o cabelo e, mesmo assim, muitas é fundamental para que os fios de cabelo nasçam e cresçam bonitos
são as mulheres que, ainda hoje, não o fazem? Se está a e saudáveis. Há algumas edições, falámos-lhe da diferença que pode
ler isto e a ficar escandalizada com o facto de alguém ser fazer a simples utilização de um esfoliante ocasionalmente. Seja para
capaz de não pentear o cabelo, não fique. Só numa pequena refrescar o couro cabeludo ou remover as impurezas superficiais e
e muito pouco organizada sondagem na redação da Vogue resíduos de produtos. Basta manter no chuveiro e usar uma vez por
rapidamente se descobriu que várias eram as mulheres que semana ou de quinze em quinze dias, consoante a necessidade. Muitos
admitiam raramente pentear o cabelo. Outras, admitiam deles são à base de sal e alguns podem até substituir a utilização de
fazê-lo diariamente. Afinal, o que está certo? Resumida- champô. Todos permitem uma massagem não só prazerosa, mas que
mente, nenhum dos hábitos está errado. Mas é verdade que escovar estimula os folículos capilares e a flexibilidade
o cabelo com regularidade tem muitos benefícios. Primeiro, importa da pele. E por falar em pele... O que é o couro
deixar claro que escovar é diferente de desembaraçar. Para a segunda, cabeludo senão uma extensão da pele? Daí a
deve fazê-lo com um pente de dentes largos e ter paciência, para evitar existência de óleos específicos para o escalpe,
quebrar os fios. Para a primeira, continue a ler este texto. Contraria- que agora surgem em força, apesar de já se
mente à informação que muitas vezes é veiculada, escovar ou pentear comercializarem há décadas nas farmácias.
o cabelo não contribui para a sua queda. Pelo contrário, este gesto Aliás, no final dos anos 50, já existia o Complexe
pode até promover o crescimento, já que ajuda na microcirculação, 5, um produto da René Furterer para tonificar
ao estimular o fluxo sanguíneo capilar. Mas há mais. Uma escova e estimular o couro cabeludo. Este concentrado
de cerdas (idealmente de javali) e uma escovagem regular podem de óleos essenciais de laranja e lavanda existe
ser benéficas para eliminar sujidade do couro cabeludo, bem como até aos dias de hoje, e serve como pré-champô,
eventuais resíduos que ali se podem encrustar. Além disso, massajar devendo ser aplicado antes de lavar o cabelo,
o couro cabeludo com a escova ajuda também a distribuir o sebo de fazendo uma massagem de largos minutos e
forma uniforme. As glândulas sebáceas produzem este “óleo” que deixando atuar outros tantos. Depois, basta
nada mais é do que um condicionante natural para lubrificar o couro fazer uma lavagem dita normal. A utilização
ASSISTENTE DE REALIZAÇÃO: EDUARDA PEDRO.

cabeludo e o cabelo. E, claro, pentear é a melhor forma de o distri- deste tipo de produtos tem um efeito não só na
buir, e de tornar o cabelo mais saudável e brilhante. Se precisar de qualidade e vitalidade do cabelo, como no con-
mais algum argumento para ceder à escovagem, saiba que perdemos forto da própria pele do couro cabeludo, que,
cerca de 100 fios de cabelo por dia, pelo que penteá-los é também com o tempo, se torna mais elástica e menos
uma forma de os retirar de imediato (e não os deixar acumular até tensa. Agora, antes de se dedicar a atualizar a
os encontrarmos no ralo da banheira). Quanto à recomendação do sua shopping list, importa lembrar que se tiver
Da esquerda para a direita: esfoliante número de escovagens, esta é determinada pelo comprimento e pela algo a reter disto tudo é que além de escovas,
de couro cabeludo Solu Sea Salt Scrub textura do cabelo, mas os especialistas tendem a sugerir entre duas a óleos ou esfoliantes, por muito fantásticos que
Cleanser, € 25,30, Davines. Escova três vezes por dia. Não sugerimos isso, porque quem no mundo é que possam ser, o mais importante é a noção de
de cabelo, Y.S. Park. Concentrado
Complexe 5, € 35,32, René Furterer. tem tempo para tal?! No entanto, se não tem uma escova de cerdas, que o cabelo deve ser tratado, cuidado, e não
talvez seja altura de pensar nisso. English version só embelezado. l

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BELEZA NOVIDADES

Páginas pela liberdade...


Informados somos, também, mais livres.
Os novos títulos a acrescentar à estante propõem
isso mesmo, cada um à sua maneira. Por Joana Moreira. … de escolher
Todos os dias fazemos escolhas. Comprar um produto em vez de outro. Escolher um
produto em vez de outro. Fazer os próprios produtos é, para alguns, o nível seguinte
de um compromisso maior com a sua filosofia de vida. Este livro, escrito por duas
portuguesas, inclui receitas para criar produtos em casa (como máscaras de argila para
cada tipo de pele), mas também informação curiosa sobre as principais matérias-primas
usadas na cosmética, do gerânio à camomila, da melaleuca à aveia. Cosmética Natural – Um guia
para criar os seus produtos em casa, Fernanda Botelho e Dulce Mourato, da editora Manuscrito, na Fnac.

… de pensar
A britânica Caroline Hirons traz para o papel aquilo
a que já habituou os seus seguidores no Youtube e blogue
durante anos a fio: informação sobre cosmética, sem tretas.
Compreender listas de ingredientes e adotar uma postura
mais crítica quanto ao marketing de beleza são apenas
dois argumentos que fazem desta obra um livro.
Skincare: The Ultimate no-nonsense guide, Caroline Hirons, da editora HQ, na Amazon.

… de envelhecer
Quantas coisas prometeu a si mesma que nunca diria e que já se ouviu a dizer? Com
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muito humor, Caroline de Maigret e Sophie Mas escrevem sobre o que é reconhecer
a passagem do tempo, naquele que é um livro que se lê de uma assentada, numa
tarde, entre risos e constatações impossíveis de ignorar ou refutar. Se envelhecer é
inevitável, porque não fazê-lo da melhor forma? Este é um híbrido entre um guia com
conselhos práticos e um memoir de histórias tão familiares que poderiam ser suas.
Older But Better, But Older, Caroline de Maigret e Sophie Mas, da editora Ebury Publishing, na Wook.

… de ser
3 Sabemos que a nossa imagem corporal é altamente
influenciada pelo que nos rodeia. O que Anuschka Rees sugere
em duzentas páginas é uma verdadeira desprogramação da
mente para todas as expectativas irrealistas e estereotipadas
que o mundo (e cada um) tem para nós. Um livro que fala de
empoderamento feminino, da importância da terminologia
e de uma relação saudável com o nosso corpo.
Beyond Beautiful, Anuschka Rees, da editora Teen Speed Press, na Bertrand.

… de saber
Joanna Vargas, a responsável pela pele de Julianne Moore, Mindy Kaling,
Elisabeth Moss e dezenas de outras estrelas de cinema e televisão acaba de
compilar todos os ensinamentos num livro que, mais do que sobre cosmética,
FOTOGRAFIA: D.R.

é sobre estilo de vida. Se tem dúvidas sobre como criar uma rotina de
cuidados, que tipo de tratamento pode fazer sentido para si, ou que mudança
na alimentação pode fazer maravilhas à sua pele, esta pode ser a sua próxima
4 5 leitura de cabeceira. Glow From Within, Joanna Vargas, da editora Harper Wave, na Amazon.

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BELEZA SAÚDE

E quanto àquele copo de vinho depois de jantar? Talvez seja altura


de o repensar. “Uma bebida é ok, duas já não é bom. Vai influenciar
diretamente a qualidade do sono”, diz. “Pode até ajudar a adormecer,
mas reduz dramaticamente a qualidade do sono e do descanso, reti-
ra-nos dos estados mais profundos do sono podendo até forçar-nos
a acordar, e a não nos sentirmos cansados”, explica.
O uso da tecnologia é, para a investigadora norte-americana, um dos
grandes pilares que pode estar a condicionar o sono de tantas pessoas.
“90% da população diz que usa o telemóvel até ao momento em que
icou a ver mais um episódio daquela série mesmo mesmo adormece”, alerta. E quem diz o telemóvel diz a televisão ou outros
incrível e vai para a cama mais tarde do que contava. Deita-se, aparelhos eletrónicos. “Ver televisão não é uma forma eficiente para
não sem antes fazer um scroll rápido no Instagram, ver se não relaxar antes de ir dormir. Até porque, muitas vezes, o que estamos
tem notificações no Messenger ou alguma mensagem por a ver são as notícias, ou algo que nos pode causar insónia, ou stress,
responder no WhatsApp. Bem, já que está com o telemóvel mesmo antes de ir dormir, quando estamos a tentar abrandar o ritmo
na mão, mais vale ver se recebeu um e-mail importante (o que e a relaxar. Estes dispositivos também emitem luz azul, e essa luz é
tem se são duas da manhã?). Põe o despertador, no telemóvel a que diz ao nosso cérebro para acordar e ficar alerto de manhã. O
claro, mas apesar de ser com ele que acorda, não diz que não que queremos é evitar essa luz, da televisão ou do nosso smartphone,
a pelo menos três snoozes, para mais uns minutos na cama. e fazer coisas que nos relaxem”, diz. Antes de ir dormir, Rebecca
Bebe cinco cafés por dia, o ambiente no trabalho é uma pe- sugere “tomar um banho, ler um livro, acender uma vela. Além de
quena bolha de stress e... Não consegue dormir. Porque será? que a luz da vela é o que se quer quando vamos dormir. Queremos
Rebecca Robins é o que se pode chamar de uma verdadeira especialista algo aconchegante. A luz de uma vela é uma cor suave, um laranja ou
do sono. A investigadora norte-americana estuda o impacto do sono avermelhado. É calmante. Não vai querer amarelos ou azuis, isso são
na saúde há mais de dez anos. “Um dos principais mitos é acreditar luzes que alertam. Isso diz ao seu corpo que é altura de acordar. E é
que as pessoas se conseguem ‘safar’ com menos de sete horas. Este é provável que tenha dificuldade em adormecer. A solução pode, então,
o maior mito”, começa por contar à Vogue. “Normalmente, esta não é passar por “criar uma rotina relaxante antes de ir dormir, escolher
aquela pessoa que conhecemos diretamente, a nossa mãe ou irmã, é produtos de que gostamos e que nos ajudam a desligar, que tenham
alguém mais distante do género ‘este tipo consegue dormir só quatro aromas que são calmantes, como lavanda ou sândalo. Essas são estra-
horas e está ótimo’. Mas é um mito, e infelizmente se essa pessoa diz tégias que nos podem ajudar a desligar do dia intenso e a reclamar a
que só dorme essas horas, é muito provável que esteja a fazer uma noite para nós. Porque precisamos dela. Para descansar e recarregar
sesta durante a tarde. Porque não é fisiologicamente possível. Verdade baterias para o dia seguinte”, assegura.
seja dita, há exceções notáveis, mas a proporção desses indivíduos
que dorme apenas cinco horas e que é saudável, e está em boa forma, Atalhos para bons sonos
não chega a 1% da população”, atesta. Será o Presidente da República, Não lhe chamam sono de beleza em vão. É que
a quem, em todas as biografias e perfis, é atribuída uma noite de sono além de uma noite bem dormida ser capaz de fazer
de não mais de quatro a cinco horas, parte desse 1%? maravilhas pela nossa pele, a verdade é que a pró-
O que precisamos para uma boa noite de sono é, na verdade, muito pria indústria da beleza tem feito também muito
mais do que isso. O ideal é entre sete a oito horas, e de forma con- pelo nosso sono. A marca This Works populari-
sistente. Fugir desses valores é colocar a saúde em risco. “Temos zou-se com os seus produtos para borrifar na al-
provas extensivas de que dormir cinco horas ou menos de forma mofada antes de ir dormir. O Deep Sleep Pillow Spray,
consistente, aumenta o risco de condições de saúde adversas, como um dos mais vendidos, é composto por lavanda,
doenças cardiovasculares e mesmo a nível de longevidade”, garante camomila e vetiver, um mix que promete induzir
a investigadora. Só que, como em muitas coisas, quantidade não um estado de relaxamento que ajuda a adormecer
significa necessariamente qualidade. E no caso do sono, a qualidade mais rápido. Há quem não passe sem eles. Mas há
é determinante para o descanso real. “Outro mito é que o sono é um outras marcas, como a L’Occitane, que também
processo passivo, que vamos para a cama, estamos deitados, dormimos têm sprays com fragrâncias tranquilizantes para
e acordamos. Mas o sono é na verdade um processo com padrões, vaporizar no quarto, todas as noites, 15 minutos
diferentes estados, no início da noite temos o sono mais leve, depois antes de ir dormir. Mais recentemente, a Rituals,
vem o sono profundo, que é ótimo para a nossa capacidade cognitiva, que já possuía artigos do mesmo género, acaba de

Bela (não)
e tem este ritmo maravilhoso”, descreve Robins. Só que para chegar lançar uma linha totalmente dedicada ao sono. De
a esse estado (designado por sono R.E.M., rapid eye movement, em nome Sleep Collection, a gama faz parte da coleção
português “movimento rápido dos olhos”, porque estes movem-se e The Ritual of Jing – pensada para proporcionar o
a atividade cerebral é superior) não há atalhos, é preciso seguir uma melhor ambiente possível antes de dormir. To-

adormecida
sequência de fases, criando o ambiente certo para lá chegar. “Alguém dos os produtos têm um odor calmante, desde a
com um sono saudável consegue passar por todos estes estados e vela de massagem ao prático sérum em formato
acordar naturalmente”, diz a investigadora, garantindo que adormecer roll-on para aplicar nas testa, têmporas e pescoço
de imediato também não é necessariamente um bom sinal. “Se nos antes de ir dormir. Mas o destaque é mesmo uma
privarmos de comida, depois açambarcamos um prato de comida pequena almofada recheada de sementes de linha-
Andar às voltas na cama, demorar horas para desenfreadamente. Isso é um sinal de alimentação saudável? Ou é um ça e lavanda para colocar sobre os olhos e que,
sinal de demasiada fome? Por isso, pessoas saudáveis levam cerca de quando aquecida (pode levá-la ao microondas até
adormecer ou acordar a meio da noite. Sweet dreams 15 minutos para adormecer. É um processo. Adormecer de imediato um máximo de 30 segundos), ajuda no processo
aren’t made of this. Por Joana Moreira. Fotografia de Irving Penn. pode ser um sinal de que não estão a dormir o suficiente”, afirma. English version de relaxar e, se tudo correr bem, adormecer. l

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BELEZA

Última chamada
Morrer quando chega a nossa hora? Ou quando
decidimos que a vida, por si só, já é morte? Falar
da eutanásia é, também, falar de direitos. Incluindo
os que já temos. Por Joana Moreira. Fotografia de Bea De Giacomo.

nde há vida, a morte é uma inevitabilidade. Mas a decisão de a antecipar,


ainda que para poupar o sofrimento de alguém, é uma matéria que move
paixões, divide indivíduos e instiga o debate. Na Europa, os primeiros países
a descriminalizar a eutanásia foram a Holanda e a Bélgica, em 2002. Hoje,
a morte medicamente assistida não é crime em mais dois países europeus:
Suíça e Luxemburgo. Em Portugal, a eutanásia, ou morte assistida, o ato
que leva à morte de um doente por sua vontade, não está explicitada como
crime, mas pode incluir-se em três artigos do Código Penal: homicídio
privilegiado (artigo 133.º), homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º) e
crime de incitamento ou auxílio ao suicídio (artigo 135.º). Entre 2009 e
2019, terão sido sete os portugueses que foram morrer à Dignitas, na Suíça,
segundo o Jornal de Notícias, que, em fevereiro, adiantava que havia outros 20 inscritos
na associação sem fins lucrativos que "ajuda as pessoas a morrer com dignidade.”
A discussão não é nova, tampouco os seus argumentos. Entre os principais fun-
damentos de quem defende a despenalização da eutanásia está a possibilidade de os
doentes terminais poderem acabar com um sofrimento prolongado e sem fim à vista.
Além disso, também a questão dos direitos individuais, da dignidade e da liberdade de
escolha são as pedras basilares de quem acredita que a morte medicamente assistida
deve ser descriminalizada. Do outro lado, os opositores à eutanásia defendem que a
vida humana é sagrada e inviolável, muitas vezes com base em crenças religiosas ou
mesmo éticas. Outro argumento é o receio de a lei criar precedentes e levar a uma ba-
nalização da morte assistida, passando esta a abranger cada vez mais quadros clínicos.
Porém, a questão é complexa e ultrapassa a simplicidade dos argumentos acima
descritos. Não foi a primeira vez que o tema foi discutido em São Bento, mas foi, em
fevereiro, que se deu o primeiro passo para a despenalização da eutanásia em território
português, com a aprovação no Parlamento dos cinco projetos de lei, do BE, PAN, PS,
PEV e IL. Todos foram aprovados na generalidade (o do PS foi o mais votado, com
128 votos a favor), dando início a um processo legislativo longe de terminar. É que
depois da aprovação na generalidade, os projetos de lei seguem para a especialidade,
onde sofrem ajustes até se chegar a um texto final. Esse novo texto tem novamente
de ser votado na especialidade e, depois, ser submetido a uma votação final. Só então
é que a lei segue para Belém, onde o Presidente da República (que já disse que só se
pronunciará sobre o assunto no “último segundo”) a pode vetar, promulgar ou enviar
para o Tribunal Constitucional. Um processo moroso, apesar de muitos já cantarem
vitória com este primeiro passo.

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BELEZA

odos os diplomas aprovados se apoiam em princípios comuns: o indivíduo valências/equipas, por ausência de uma ou mais valências, sendo um sério obstáculo
que requer eutanásia tem de ter mais de 18 anos e um quadro clínico isento à acessibilidade a estes recursos como um direito humano e condição nuclear para
de doenças mentais; tem de fazer um pedido expresso, bem ponderado e de uma cobertura universal de saúde”, sublinha o estudo.
livre vontade, através de um médico, e tem de estar consciente e mentalmente capaz; a Mais. De acordo com o presidente da Associação de Cuidados Paliativos, muitos
sua situação clínica não pode apresentar quaisquer perspetivas de evolução favorável, doentes só têm acesso a cuidados paliativos nas últimas horas de vida. Em entre-
e o seu sofrimento tem de ser constante e insuportável; o médico a quem o pedido for vista à TSF, Duarte Soares explica: "É uma realidade que preocupa muito, porque
feito tem de conhecer bem o requerente, seguindo-se ainda um processo de certifica- passamos muitos anos a pedir mais camas de cuidados paliativos, percebemos que
ção com intervenção de outros médicos. A despenalização em todas as propostas de o Estado fez uma transferência do setor social, quase dando a ideia que não confia
todos os partidos abrange também quem pratica a morte assistida, nas condições da no setor social para prestar cuidados paliativos e apostou em trazer essas camas
lei, ficando garantida a objeção de consciência para médicos e enfermeiros. para o setor público. Mas havendo poucas camas de cuidados paliativos percebemos
Mas a aparente (nem todos votaram a favor dos diplomas) sintonia entre partidos que há camas que não são usadas... Dentro das poucas camas que há, temos baixas
não se estende necessariamente fora das portas da Assembleia da República. Em de- taxas de ocupação sobretudo no setor social. Não se trata só de uma questão de
clarações à Agência Lusa, minutos após a aprovação histórica, a bastonária da Ordem financiamento, o Estado tem de se preocupar em melhorar o que são as referen-
dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, considerou não existir “suficiente maturidade para ciações atempadas destes doentes e em desburocratizar estas referenciações." À
fazer esta discussão, porque há muito a fazer pela vida antes de fazermos pela morte”. mesma rádio, Duarte Soares defende que só é possível inverter este cenário se o
“Não temos uma rede de cuidados paliativos, não temos equipas domiciliárias para Estado fizer um investimento.
toda a gente, e, portanto, teríamos de começar por aí e, então, fazer essa discussão”, Se para muitos a questão da eutanásia não deve ser discutida em virtude da gravi-
alegou. Em 2018, quando o tema foi pela primeira vez votado no Parlamento, a Antena dade do estado dos cuidados paliativos em Portugal, para outros, cuidados paliativos
1 falou com Jan Berhein, um médico reformado especialista em eutanásia e um dos e eutanásia não são alternativas. Porque são coisas independentes. Os cidadãos nas
primeiros defensores da lei da eutanásia na Bélgica. “Primeiro que tudo, os cuidados condições acima descritas têm, desde 2012, o direito a cuidados paliativos. O que se
paliativos têm de ser oferecidos ao doente, e recusados. E isto acontece. Raramente, está a discutir agora em Portugal (e em Espanha, curiosamente) é a despenalização
mas nalguns casos acontece. Ou então aceites, mas sem resultados efetivos. Esta é a da eutanásia. “Em rigor, ninguém tem, nem na Holanda nem na Bélgica, o direito
primeira condição”, disse então à rádio portuguesa. à eutanásia (isso implicaria a obrigação legal e o respetivo dever de satisfação em
100% dos casos). Já é diferente o caso no direito aos cuidados paliativos, em que há
Do direito à prática o dever de os prestar sempre. O que existe, sim, nesses ordenamentos jurídicos, é
Há oito anos que o direito ao acesso a cuidados paliativos está contemplado na lei o direito ao pedido de eutanásia”, diz Miguel Oliveira da Silva, professor catedrá-
para “doentes em situação de sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, tico de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no livro
em fase avançada e progressiva, assim como às suas famílias, com o principal obje- Eutanásia em Portugal - Quem tem medo do referendo?. O mesmo autor, em entrevista ao
tivo de promover o seu bem-estar e a sua qualidade de vida, através da prevenção jornal Público, defende que “promover a despenalização da eutanásia quando 80%
e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual.” Mas da lei à prática das pessoas não tem acesso a cuidados paliativos é altamente incorreto do ponto
vai um longo caminho. O Relatório de Outono 2019, do Observatório Português de vista ético e da justiça e da equidade.”
dos Cuidados Paliativos (OPCP), analisou a cobertura da rede em Portugal e carac-
terizou os recursos humanos, com dados vigentes em 31 de dezembro de 2018. As A vida em standby
conclusões foram reveladoras: seis distritos sem nenhuma equipa e outros com Sabe-se agora que as Jornadas de Cuidados Paliativos 2020 foram adiadas “por mo-
taxas superiores a 100%. O estudo concluiu, tendo em conta o horário a tempo tivos de saúde pública e em obediência às sugestões das autoridades”, por causa do
inteiro ditado no SNS, de 40 horas semanais para os médicos e 35 horas para os COVID-19. E é, também, à conta do Coronavírus, que a discussão sobre a eutanásia
restantes profissionais, que estão em falta cerca de 430 médicos, 2.141 enfermeiros, saiu dos holofotes do país. O estado de pandemia obrigou à suspensão quase total
178 psicólogos e 173 assistentes sociais. Números alarmantes que se traduzem em dos trabalhos parlamentares, ficando a questão da eutanásia em absoluto estado de
pessoas que, na mais vulnerável altura das suas vidas, não estão a usufruir de um espera. As sessões plenárias agendadas foram canceladas, as comissões parlamentares
direito que lhes assiste. reduzidas aos mínimos. Como explica o Diário de Notícias, “as propostas sobre a
“Mantém-se a constatação da presença de uma Rede Nacional de Cuidados Paliativos eutanásia baixaram à comissão de Assuntos Constitucionais, que nomeou um grupo
com serviços especializados, mas com nível de prestação generalista. Tal afirmação de trabalho que tentará chegar a um texto consensual, a partir das várias propostas
sustenta-se no preconizado de que apenas com dedicação plena a cuidados paliativos que estão em cima da mesa. Mas esta tarefa não chegou a iniciar-se e só deverá ser
se poderá considerar que os cuidados prestados por estes profissionais se enquadram retomada quando o funcionamento do Parlamento voltar à normalidade.” À data de
no nível de diferenciação especializado (…). Embora exista evolução no número de publicação desta edição da Vogue, falar em normalidade é difícil, com os números
recursos desta tipologia de cuidados, continua-se com uma cobertura, estrutural e de infetados com Coronavírus em Portugal em clara ascensão, como de resto em
profissional, nacional e na generalidade dos distritos, muito abaixo do minimamen- todo o mundo. Com o processo legislativo ainda em curso, e a pandemia sem fim à
te aceitável a que acrescem profundas assimetrias, a nível distrital. Esta assimetria vista, resta-nos tempo, muito tempo, inclusive para pensar sobre as questões que
não garante uma abordagem especializada integrada e articulada entre as diferentes definirão o nosso futuro – como esta. l

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VO
GUE REALIZAÇÃO: ANA CARACOL ASSISTIDA POR EDUARDA PEDRO. FOTOGRAFIA: PEDRO FERREIRA.

MODA
FOTOGRAFIA
REPORTAGEM V em madeira, Vogue. Collants em mousse, € 5,95, Calzedonia.
QUARENTENA

Quando se é livre apenas entre quatro


paredes, a liberdade de expressão ganha
forma no vestuário. E as janelas, as
paredes, os cantos da casa servem de
montra para o mundo. Mesmo que seja
apenas o nosso, de pedra e cal. Com total
liberdade nas silhuetas, nos decotes e
recortes, na paleta cromática, tire aqueles
vermelhos esquecidos do fundo do armário
e limpe o pó aos negros, relembre-se de
alguns vestidos longos e de outras saias
curtas, aquelas botas altas e estas luvas.
Capriche no cabelo e na maquilhagem, nos
acessórios e naquele sobretudo dourado
– e saia para jantar. Na mesa da cozinha.
Porque a liberdade também pode ser
a da mente e a da criatividade – mesmo
quando confinada a um espaço.
Fotografia de Linda Leitner. Styling de Michaela Konz.

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Lenço em crepe de seda e calções em lã, ambos CELINE. Collants em rede, HUDSON. Sandálias em pele envernizada, CHANEL.
Casaco em pele, vestido em tule de seda, brincos e colar em metal, e sandálias em pele, tudo ALEXANDER MCQUEEN.
Vestido em cetim de seda, VALENTINO. Sandálias em pele, MIU MIU.
Vestido em seda, VERSACE. Botas em pele, CELINE.
Colete em lã bordado a lantejoulas e camisa em crepe de seda, ambos CELINE. Calções em crepe de seda, CHANEL.
Na página ao lado: casaco, saia e botas em pele, tudo PRADA.
Body em jersey de algodão e saia em algodão bordada a lantejoulas, ambos GUCCI. Botas em pele, CELINE.
Na página ao lado: sutiã em mousse, WOLFORD. Saia e sandálias em pele, ambos MIU MIU. Colar em metal e luvas em vinil, ambos GUCCI.
Lenço em crepe de seda, CELINE. Collants em rede, HUDSON.
Na página ao lado: casaco e saia em pele, ambos ALEXANDER MCQUEEN.

Fotografia: Linda Leitner @ Take Agency. Modelo: Eline Bo @ A Management. Cabelos e maquilhagem: Alex Lexa.
Retouch: Nina Mairer. Produção: Winteler Production. Assistente de fotografia: Carina Fleissner.
Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.

Veja o fashion film, aqui.


REFLEXÃO

Liberdade
em tempos
de cólera Temos mais acesso e mais possibilidades do
que nunca. Temos menos barreiras e menos
limitações do que nunca. Mas estaremos
realmente mais livres do que nunca?
Por Mónica Bozinoski. Fotografia de Felipe Posada.

uando o tema surgiu em cima da mesa, há algumas semanas, nenhuma doença, nenhuma pandemia. Enquanto escrevo esta
estava longe de adivinhar que estaria a escrever sobre ele amálgama de palavras, sentada nesta secretária onde cabe uma
neste lugar, nestas circunstâncias. Quando o tema surgiu em em vez de três, restringida a esta quarentena, a este isolamento,
cima da mesa há algumas semanas, estava longe de adivinhar a este distanciamento social, presente neste mundo que não
que estaria a escrever sobre ele numa secretária onde cabe é novo em nada, mas que parece inédito em tudo, relembro a
uma em vez de três. Quando o tema surgiu em cima da mim mesma que esta amálgama de palavras é sobre liberdade,

FOTOGRAFIA: FELIPE POSADA / @THE_INVISIBLE_REALM


mesa há algumas semanas, estava longe de adivinhar que estaria sobre ter ou não mais liberdade hoje, sobre estar ou não mais
a escrever sobre ele durante uma quarentena, um isolamento, livre hoje, sobre ser ou não mais livre hoje. Mas hoje, em pleno
um distanciamento social. Num abrir e fechar de olhos que teve rescaldo do decreto de estado emergência, em pleno rescaldo
tanto de lento como de frenético, a resposta que sempre acreditei das notícias que nos dizem aquilo que poderemos ou não fazer,
ter à pergunta “estaremos realmente mais livres?” começou a em pleno rescaldo deste cenário que associávamos a distopias
fazer um pouco menos sentido. Começou a parecer menos certa, e não à realidade, é quase impossível desassociar este vírus de
menos segura. Começou a levantar mais dúvidas, mais questões. todas aquelas questões sobre liberdade, sobre termos ou não
Num abrir e fechar de olhos que teve tanto de lento como de mais liberdade hoje, sobre estarmos ou não mais livres hoje,
frenético, o mundo deixou de sair à rua. Pelo menos, deixou de sobre sermos ou não mais livre hoje. Mais do que isso, é quase
o fazer fisicamente, pelos próprios pés. Num abrir e fechar de impossível desassociar este vírus de todas aquelas questões sobre
olhos que teve tanto de lento como de frenético, o mundo foi a nossa liberdade quando tudo isto passar, quando tudo isto for
obrigado a confinar-se a um único espaço. A limitar o exercício distante, quando tudo voltar ao normal – se é que teremos esse
de todas aquelas coisas que sempre pareceram tão inabaláveis, “normal” quando tudo isto passar, quando tudo isto for distante.
tão indestrutíveis. Num abrir e fechar de olhos que teve tanto de Quando o tema surgiu em cima da mesa há algumas semanas,
lento como de frenético, o mundo foi forçado a adotar um tempo estava longe de adivinhar que estaria a escrever sobre ele neste
diferente, um ritmo diferente. A pensar e repensar de forma lugar, nestas circunstâncias. Num abrir e fechar de olhos, que teve
diferente, a agir e reagir de forma diferente. Enquanto escrevo esta tanto de lento como de frenético, as liberdades que sempre tomei
amálgama de palavras, sentada nesta secretária onde cabe uma como garantidas deixaram de o ser. Ainda que temporariamente,
em vez de três, restringida a esta quarentena, a este isolamento, e ainda que não saiba exatamente por quanto tempo esse
a este distanciamento social, presente neste mundo que não é temporariamente será, deixaram de o ser. Enquanto escrevo esta
novo em nada, mas que parece inédito em tudo, relembro a mim amálgama de palavras, sentada nesta secretária onde cabe uma
mesma que esta amálgama de palavras não é sobre nenhum vírus, em vez de três, restringida a esta quarentena, a este isolamento,

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REFLEXÃO

Continuamos a fazer double tap no Instagram, a reagir à rapidez O QUE É QUE ACONTECE QUANDO
dos Insta Stories, a expressar o que sentimos com os poucos A CULTURA DE CANCELAMENTO
caracteres do Twitter, a reencontrar amigos no Facebook, a LIMITA A LIBERDADE DE
EXPRESSÃO E POTENCIA O
acumular grupos no WhatsApp. Mas o que é que acontece
MEDO DE FALAR LIVREMENTE,
quando a promessa das redes sociais nos começa a tirar mais SEM CONSTRANGIMENTOS E
liberdade do que aquela que nos dá? O que é que acontece quando RESTRIÇÕES? O QUE É QUE
a cultura de cancelamento limita a liberdade de expressão e ACONTECE QUANDO
potencia o medo de falar livremente, sem constrangimentos e A AUTOCENSURA LIMITA A
restrições? O que é que acontece quando a autocensura limita OPINIÃO, O PENSAMENTO, O SER?
a opinião, o pensamento, o ser? O que é que acontece quando
a desinformação instala um pânico tão profundo que nos faz
questionar a natureza dos nossos direitos mais fundamentais? O
que é que acontece quando a pressão de estarmos ligados minuto
sim, minuto sim, de termos a luz acesa minuto sim, minuto
a este distanciamento social, presente neste mundo que não é sim, de estarmos conectados minuto sim, minuto sim, limita empregaram indivíduos para moldarem opiniões online, um também encorajado. No entanto, as únicas opiniões desafiantes
novo em nada, mas que parece inédito em tudo, abro o site do a nossa livre vontade? O que é que acontece quando sentimos número que também representa um recorde elevado. Desde o ano que são toleradas são aquelas que encaixam numa visão afunilada
The Washington Post para ler um artigo publicado no dia 16 de que estamos a ser observados de forma cirúrgica e constante, passado, 33 dos países avaliados [no relatório] apresentaram do mundo.” Uns parágrafos depois, o artigo terminava com uma
março, escrito por Allie Funk e Isabel Linzer, e intitulado How sem sabermos bem como nem por quem? O que é que acontece um decréscimo na sua pontuação a nível de liberdade na defesa bastante clara: “Isto devia ser uma luta de todos. Sem
The Coronavirus Could Trigger A Backslide On Freedom Around The quando nos sentimos presos a algo que nos devia libertar? Internet, um critério que tem em conta os obstáculos no acesso liberdade de expressão não existe liberdade de pensamento, e
World. Traduzido para português, o título diz mais ou menos à Internet, a limitação de conteúdo e as violações aos direitos sem liberdade de pensamento não existe liberdade de todo”.
isto: como é que o coronavírus pode vir a desencadear uma m novembro do ano passado, o site Vox reportava dos utilizadores num determinado país. Apenas 16 dos países
recaída na liberdade em todo o mundo. Assustador? Ainda que que “a liberdade de expressão e a privacidade apresentaram melhorias na sua pontuação.” Um ano antes destes oje, na era em que temos mais acesso e mais possibilidades
neste momento possam existir bichos papões bem maiores, na Internet declinaram globalmente pelo nono dados, já o escritor Bruce Schneier tinha explorado a forma do que nunca, na era em que temos menos barreiras e menos
parece apenas legítimo dizer que este é daqueles que causa ano consecutivo, de acordo com o relatório como a vigilância mata a liberdade ao matar a experimentação, limitações do que nunca, o conceito de liberdade tornou-se
um bom (mau?) arrepio espinha acima. “Certas limitações às Freedom on the Net 2019 conduzido pelo watchdog num artigo publicado no site da Wired. “Sabemos que a vigilância mais complexo, mais subjetivo, mais difícil de decifrar. Hoje,
liberdades fundamentais são inevitáveis durante uma crise bipartidário e think tank Freedom House”, citando “o aumento tem um efeito arrepiante na liberdade. O comportamento das na era em que temos mais acesso e mais possibilidades do que
de saúde pública. Mas as restrições devem ser transparentes, da interferência nas eleições – tanto pelo governo como pessoas muda quando as suas vidas estão a ser vigiadas. Têm nunca, na era em que temos menos barreiras e menos limitações
necessárias e proporcionais para limitar o surto”, defendiam pelos atores civis – e o aumento da vigilância governamental, menos propensão a falar livremente e a agir individualmente. do que nunca, as perguntas que cercam esse mesmo conceito
Funk e Linzer, detalhando a forma como a atual pandemia ambos a disseminar nas redes sociais” como os dois motivos Autocensuram-se. Conformam-se. Isto é obviamente verdade de liberdade tornaram-se mais complexas, mais subjetivas, mais
estava a criar um cenário de desinformação, censura e principais para este decréscimo da liberdade na Internet. “Dos para a vigilância governamental, mas também é verdade para difíceis de decifrar. Enquanto escrevo esta amálgama de palavras,
eventuais abusos de poder. “Limitar temporariamente os 65 países avaliados no relatório durante o ano que passou, um a vigilância corporativa. Não estamos dispostos a sermos sentada nesta secretária onde cabe uma em vez de três, restringida
aglomerados de pessoas pode ser justificado, desde que as recorde de 47 países recorreram a ações policiais para prender quem somos quando estamos a ser observados.” E continuava: a esta quarentena, a este isolamento, a este distanciamento social,
autoridades sejam transparentes e forneçam detalhes sobre pessoas por publicarem discursos de natureza política, social ou “A privacidade incentiva o progresso social ao dar espaço presente neste mundo que não é novo em nada, mas que parece
quando é que as restrições vão ser levantadas. No entanto, religiosa online; 40 países apresentaram programas de vigilância a poucos para experimentarem, livres do olhar atento de inédito em tudo, penso e repenso. Temos mais liberdade do que
grande parte da vigilância e censura aumentada que tem avançados nas redes sociais; e em 38 países, líderes políticos muitos. Mesmo que não sejamos pessoalmente afetados pela nunca? Estamos mais livres do que nunca? Somos mais livres
acontecido em semanas recentes não vai ao encontro destes vigilância omnipresente, a sociedade em que vivemos é, e os do que nunca? É certamente irónico tentar responder a estas
critérios.” E continuavam: “Se os governos tiverem permissão custos pessoais disso são evidentes.” Se o passado não parece questões quando tudo o que me rodeia é incerto. Quando não
para impor restrições indefinidas e desproporcionais ao animador, o presente parece caminhar na mesma direção. Em sei quando poderei voltar a sentar-me numa esplanada, a entrar
acesso à informação, liberdade de expressão, direito de fevereiro deste ano, o The Times reportava a alarmante situação numa sala de cinema, a comprar um bilhete de avião e voar daqui
reunião e privacidade de forma a travarem o COVID-19, os da autocensura no setor artístico britânico, referindo-se à para fora. Mas o mundo que está do outro lado da janela pode
efeitos negativos vão estender-se muito além deste surto. notícia como algo chocante, mas não surpreendente. “Num esperar. Enquanto escrevo esta amálgama de palavras, sentada
As pessoas irão sofrer um deterioramento duradouro nas inquérito anónimo àqueles que trabalham nos setores artísticos nesta secretária onde cabe uma em vez de três, restringida a
suas liberdades mais básicas, e irão perder confiança nas e culturais, um em cada seis participantes respondeu que já foi esta quarentena, a este isolamento, a este distanciamento social,
instituições responsáveis pela proteção das mesmas. Isso sujeito a ‘ordens de proibição de publicação’ como forma de presente neste mundo que não é novo em nada, mas que parece
significa que quando a próxima ameaça à saúde pública tentar controlar ‘vozes dissidentes’, enquanto 80% sentia que inédito em tudo, penso na liberdade que já conquistámos e
acontecer, os governos e os cidadãos poderão estar ainda aqueles que partilham ‘opiniões controversas correm o risco de naquela que ainda vamos conquistar. Penso na forma como tantas
menos preparados para responder apropriadamente.” ser ostracizados a nível profissional’. Neste contexto, as opiniões vezes a tomámos como garantida. Mas nada é inabalável, e muito
A opinião publicada no The Washington Post pode soar controversas faziam referência a diversas coisas, desde defender menos indestrutível. Os tempos mudam. As vontades mudam. As
um tanto alarmista – ou, em vez disso, pode ser mais uma o Brexit a expressar uma visão sobre o debate trans e de género, ameaças mudam. Hoje é um comentário bloqueado, amanhã será
forma distinta de olharmos para o estado da liberdade na era questionar subsídios públicos, ou apoiar os Conservadores outra coisa qualquer. Os tempos mudam. As vontades mudam.
pós-Internet. Apesar de hoje estarmos confinados a um só ou qualquer outro partido de direita. A situação emerge de As ameaças mudam. Hoje é alguém que nos tenta controlar com
espaço, continuamos a ter acesso às infinitas possibilidades uma monocultura profundamente enraizada e rigorosamente desinformação, amanhã será outra pessoa qualquer. Os tempos
do igualmente ilimitado universo digital. Continuamos reforçada. (...) Estes setores deviam ser os alicerces da liberdade mudam. As vontades mudam. As ameaças mudam. Nós mudamos.
a experienciar esse mundo sem barreiras que é o nosso de expressão, nos quais o direito de expressar opiniões contrárias A liberdade também muda. Mas enquanto sentirmos que a temos,
ecrã. Continuamos a caminhar livremente pela Internet. English version e desafiantes à atualidade devia ser não só protegido, mas estaremos sempre mais livres. E seremos sempre mais livres. l

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BREAKING

AMISH

Se nunca tivesse tido acesso a uma vida


mais recheada de permissões – a da bebida,
de festas, de tecnologia – abdicaria dessa
versão mais simples do quotidiano pela
sedução destas tentações? Quando chegam
aos 16 anos, os jovens Amish, habituados
a um lifestyle conservador, desfrutam de
um período em que podem viver a vida
livre dessas diretrizes da comunidade.
O Rumspringa serve para conhecerem
diferentes experiências e explorarem
os estilos de vida de outros “mundos”
para tomarem a decisão de continuar
na comunidade ou serem para sempre
esquecidos por ela. Há uma opção mais
livre que a outra? À primeira vista pode
parecer que sim, mas não: serão apenas
diferentes, serão apenas decisões difíceis.
Porque a maior liberdade do
Rumspringa é a liberdade de escolha.
Fotografia de Ricardo Santos. Styling de Joel Alves.

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Top em licra e chapéu em algodão, ambos da produção. Saia em tule de seda, MARCIANO.
Vestido em crepe de seda, DIOGO MIRANDA. Chapéu em algodão, da produção. Sandálias em pele, FENDI, na Stivali.
Na página ao lado: vestido em lã e seda, CHRISTIAN DIOR, na Loja das Meias. Chapéu em algodão, da produção.
Top em licra e chapéu em algodão, ambos da produção. Na página ao lado: vestido em mousse, AUNÉ. Lenço em algodão, da produção.
Na página ao lado: vestido em crepe de seda, DIOGO MIRANDA. Chapéu em algodão, da produção. Mules em camurça, LUIS ONOFRE.
Vestido em algodão, BOTTEGA VENETA, na Stivali. Chapéu em algodão, da produção. Sandálias em pele, MIGUEL VIEIRA.
Cardigã e saia em malha de algodão, ambos FENDI, na Stivali. Camisola em mousse, AUNÉ.
Na página ao lado: vestido em algodão, VICTORIA BECKHAM, na Stivali.
Camisa em seda, CHLOÉ, na Stivali. Chapéu em algodão, da produção.
Vestido em crepe de seda e sandálias em pele, ambos MIGUEL VIEIRA. Chapéu em algodão, da produção.
Vestido em mousse, AUNÉ. Top em tule de seda e chapéu em algodão, ambos da produção. Na página ao lado: vestido em algodão,
JIL SANDER, na Stivali. Vestido em algodão, VINCE na Stivali. Chapéu em algodão, da produção. Sapatos em pele, GIANVITO ROSSI, na Stivali.
Vestido em cetim de seda, INTIMISSIMI. Top em tule de seda e lenço em algodão, ambos da produção.
Na página ao lado: vestido em linho, COS. Top em tule de seda e lenço em algodão, ambos da produção. Mules em camurça, LUIS ONOFRE.
Vestido em algodão, VICTORIA BECKHAM, na Stivali. Chapéu em algodão, da produção.
Na página ao lado: blusa e saia em algodão, ambos GOEN J, na Stivali. Chapéu em algodão, da produção.
Modelo: Linnea Rimberg @ Just Models. Cabelo e maquilhagem: Sara Fonseca.
A Vogue Portugal agradece a Duarte Figueiredo todas as facilidades concedidas. Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.
DEBATE

Antes de
tudo, livre
“Livre arbítrio não é ser livre.” Não sabemos se, quando congeminavam
o slogan da nova temporada de Westworld, os criativos da HBO tiveram
uma indicação divina do que viria a acontecer no mundo por estes dias.
Contudo, é um facto que, enquanto escrevemos, este é um dos temas em
cima da mesa de filósofos, pensadores, e simples mortais, todos inquietos
com uma sociedade – literalmente – virada de pernas para o ar. Por Ana Murcho.

odos os homens nascem livres. António é homem. António, distância de segurança para quem estiver à nossa frente, é preciso
no entanto, não é livre. O silogismo enviesado serve para ser “desinfetado” pelo pessoal que, estoicamente, se mantém
exemplificar, de forma simples – e simplista – o atual no local de trabalho, em breve talvez seja preciso justificar,
estado de coisas. Vivemos num país livre. Temos direito precisamente, que estamos na rua para ir ao supermercado
a um conjunto de liberdades que nos permitem ser, fazer, e à farmácia, e não a caminho de um qualquer botellón. 
pensar, agir, escolher, dizer, manifestar, adquirir, trocar, sonhar, Carlos Bernardo González Pecotche, pensador humanista
imaginar. Dentro de nós, sabemo-nos infinitamente poderosos argentino, explicava assim a diferença entre liberdade e livre
e donos do nosso destino. E da nossa razão. Isso, diz-nos a arbítrio: “A liberdade de culto, de palavra, de comércio, como a
cultura, a religião e a intuição, é-nos dado pelo livre arbítrio. São de caráter político, social ou económico, são produtos de uma
duas coisas distintas, claro. Enquanto uma tem a sua expressão manifestação que transcende o foro interno do homem. Essa
no mundo externo (liberdade), outra pertence à esfera interior liberdade é requerida por uma necessidade lógica da convivência
do indivíduo (livre arbítrio). Mas, no momento em que nos humana e é, ao mesmo tempo, imprescindível para que as
encontramos, confinados a meia dúzia de paredes que nunca nos faculdades do indivíduo encontrem um campo mais propício
pareceram tão sensaboronas, será que somos mesmo livres? para o seu desenvolvimento e função. Condená-lo a suportar
Será que o nosso livre arbítrio se mantém “ativo”? Será que uma opressão que o prive da sua liberdade é submetê-lo a um
ainda podemos fazer o que nos dá na real gana? São questões embrutecimento virtual. Pode um homem ser privado da sua
pertinentes, porque atos tão prosaicos como ir ao supermercado liberdade, não lhe sendo permitido mover-se à vontade; porém,
ou à farmácia carecem, agora, de um planeamento digno de um o livre arbítrio continuará a atuar internamente, já que ninguém
fuzileiro: é preciso protegermo-nos do ambiente à nossa volta poderá impedir a atividade dos pensamentos dentro de sua mente.
(experimente sair sem luvas ou máscara, vão chover comentários Cervantes, por exemplo, quando concebeu e escreveu na prisão
em forma de sussurros e olhares incrédulos), é preciso guardar a famosa obra em que sintetizou boa parte das observações que
tinha feito sobre a psicologia humana, deu uma prova evidente
de que não havia sido privado do livre uso de suas faculdades
mentais.” E advertia: “Não obstante, o livre arbítrio, ou seja, o
exercício da razão em correspondência direta com as demais
faculdades do sistema mental, pode ser reduzido ao mínimo e
FOTOGRAFIA: ISTOCK.

até anulado, se o homem é privado, desde a infância, do livre


jogo das funções da sua inteligência, sendo obrigado a fechar
a sua mente a toda a reflexão útil.” Resumidamente, afirmava
Pecotche – para quem a liberdade, aliás, era uma prerrogativa
natural do ser humano – “dentro da estrutura das leis que

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DEBATE

a falar de projetos individuais de existência reflexivamente


desenhados, mas de sonhos ou ilusões, por definição
inalcançáveis (como fazemos quando nos pomos a imaginar o
que faríamos com o dinheiro do Euromilhões, por exemplo).”
Mas voltando aos tempos que correm, sugerimos. “Voltando ao
exemplo do COVID-19, estranhamos os planos de contingência,
estranhamos ter de ficar confinados em casa, limitados nas
nossas vidas, porque nos habituámos a viver aparentemente
apenas de acordo com as nossas próprias avaliações dos nossos
gravitam sobre a consciência do indivíduo, a liberdade o emprego e ir viver para o campo; ou despedir-se para se projetos individuais – perdemos essa liberdade de avaliarmos dizer é que se a liberdade ou a capacidade de nos imaginarmos,
humana é a mais preciosa conquista.” Com origem no latim tirar um curso de cozinha para ser chef) não depende do grau as nossas ações apenas numa lógica auto--reflexiva, passámos de pensarmos o mundo e os outros, é desigual (porque depende
Libertas, a liberdade é geralmente encarada como “a condição de consciência desse processo de avaliação reflexiva dos seus a ter imposições na forma de avaliarmos o que fazemos, e na da distribuição desigual de recursos, poder e prestígio), então,
daquele que é livre”; a capacidade de agir de si mesmo; desejos (todas as pessoas ‘fazem contas à vida’, ou ‘balanços’); determinação do que podemos fazer. Temos uma imposição isto talvez signifique que a liberdade apenas se cumprirá na
autodeterminação; independência; autonomia (via Wikipedia). pelo contrário, essa eventual maior liberdade sentida está política e sanitária que nos corta – temporariamente – a igualdade, em todas as formas de igualdade.” Talvez seja por
Mas, tal como refere aquela biblioteca virtual, ela “também se relacionada com o universo de referência de cada indivíduo: liberdade de continuarmos o nosso projecto de vida.”  isso que nos habituámos a dizer que a nossa liberdade termina
pode relacionar com a questão filosófica do livre arbítrio.” E os recursos que tem à disposição para se imaginar, para se E assim, habituados a uma existência livre, debatemo-nos com onde começa a liberdade dos outros. “Prefiro dizer que a minha
é aqui que os dois conceitos por vezes se cruzam, e chocam. pensar, para construir um projecto de vida para si e para agir.”  um novo enquadramento para o nosso eu. Para onde devemos liberdade é igual à liberdade das outras pessoas – de qualquer
O destino. O destino é uma das coisas que vem à mente assim ir? Até onde podemos ir? “A liberdade não é algo natural ou pessoa”, contrapõe o sociólogo. Isso são outros quinhentos,
ernardo Coelho tem 41 anos, é sociólogo, que pensamos em livre arbítrio, e de certa forma em liberdade. ontológico. Pelo contrário, ela é sistematicamente construída que também devem ser (muito) discutidos, defendemos nós.
investigador e professor universitário. Qual será a sua relação com o destino. Como é que se faz essa e colocada à prova”, relembra Bernardo. “A liberdade é tão
Quando questionado sobre este tema, ligação? ”Talvez essa ligação se faça porque é relativamente frágil que precisa de estar consagrada na lei, por exemplo, na s notícias multiplicam-se. Os jornais escasseiam. As pessoas,
adverte que é um dos assuntos mais comum pensar-se o livre arbítrio e a ideia de destino como constituição da república, lugar onde se clarificam e definem se decidem sair à rua, encolhem-se. O papel higiénico tem
debatidos no meio em que se move. dois pólos opostos. No primeiro, os indivíduos teriam toda a os direitos fundamentais das pessoas.” Isso faz tanto ou mais níveis de procura nunca antes vistos. As máscaras cirúrgicas
Até que ponto é que o ser humano tem noção do seu livre liberdade – quase uma liberdade ontológica ao estilo de Sartre sentido agora, quando os diferentes “estágios” em que o país tornam-se bens de primeira necessidade cobiçados tanto
arbítrio? Será que é essa noção que condiciona, ou potencia, [para quem o homem é, antes de tudo, livre]. No segundo pólo, se encontra orientam, e delimitam, a nossa própria ação – e, no por dentistas como por influencers. Os apresentadores dos
as suas decisões? “Para se compreender a capacidade de reside a fatalidade, algo inultrapassável, um determinismo extremo, os nossos devaneios. “A liberdade é sempre o resultado noticiários em horário nobre parecem ser a nova consciência
ação das pessoas nas sociedades contemporâneas, temos absoluto. E, nos dias que correm, estranhos por causa do de lutas políticas e de transformações sociais. Nesse sentido, coletiva. As videochamadas são os abraços que ontem nos
de articular aquilo que os indivíduos fazem e as condições COVID-19, essa polarização ainda se torna mais evidente. Nós, todas as liberdades são coletivas. São conquistas coletivas esquecíamos de dar. Não podemos evitar, não há volta a dar, este
(temporárias, contextuais) em que o fazem. As pessoas do mundo moderno e altamente tecnológico; nós, indivíduos que devem ser vividas de igual forma por todas as pessoas. As texto não teria seguido o mesmo rumo se o mundo não vivesse
não serão simplesmente vítimas mas também não serão capazes de nos afirmamos em tantos planos da vida de todos os chamadas liberdades individuais não dizem respeito apenas a este sob a ameaça de um inimigo cujo rosto não conhecemos. O tema
totalmente livres das forças estruturais ideológico-simbólicas dias (profissional, amoroso, familiar, etc.); nós, que nos sentimos ou àquele indivíduo. São liberdades que se distribuem igualmente seria o mesmo, é certo; o foco, esse, seria outro. Mais filosófico,
(por exemplo, o género e as limitações que isso pode tão livres para tudo, afinal estamos confrontados com um vírus por todas as pessoas. Acho que o que tenho vindo a querer talvez. Para já, estas são as questões que nos tiram o sono. Por
exercer na definição dos projetos de vida das mulheres) ou que não controlamos e que nos determina e força a mudar a isso, terminamos com a pergunta de um milhão de dólares. Até
objectivas-materiais, das sociedades contemporâneas (acesso vida e os planos. Afinal, tão livres para tudo mas sem conseguir que ponto é que o homem moderno é realmente livre? “Os homens
a recursos económicos ou escolares/qualificacionais). As escapar a este destino.” Nem de propósito. E continua: “Mas, na e as mulheres são tão livres quanto lutarem pela sua liberdade e a
pessoas detêm capacidade de decisão sobre as suas vidas, verdade, na contemporaneidade a ideia fatalista de destino foi viverem. Isto é, serão tão livres quanto permanecerem vigilantes
decisões reflexivamente ponderadas e enquadradas nas suas substituída pela noção da construção – relativamente plástica e e reivindicativos em torno das desigualdades (económicas,
complexas circunstâncias de vida. Todos os indivíduos são mutável – de projetos individuais de existência. Esses projetos classistas, educacionais, de género, etc.) que distinguem
socialmente reflexivos, isto é, todos avaliam as suas ações, e aquilo que eles definem em cada um dos planos da nossa vida socialmente a forma como as pessoas podem pensar e agir. […]
projetos ou desejos de acordo com as suas contingências e (trabalho, amor, família, amizades, experiências, emoções, As pessoas detêm capacidade de decisão sobre as suas vidas, mas
condições objectivas de existência. Esse processo reflexivo lazer, etc.) constituem uma nova forma de destino sempre em são decisões reflexivamente ponderadas e enquadradas nas suas
para tomada de decisão ou para ação será comum a todas aberto, sempre em avaliação e ponderação. Estes projectos complexas circunstâncias de vida (que incluem acessos desiguais
as pessoas. O maior ou menor grau de liberdade da ação ou são reflexivamente montados e avaliados pelas pessoas de a recursos, poder e prestígio).” E com isto, o António do início –
na construção e reconstrução de um projecto individual de acordo com as circunstâncias e condições objetivas que se que, como já deve ter calculado, somos todos nós – fica no limbo
existência (por exemplo mudar de vida subitamente: largar vão vivendo e tendo ao longo do tempo. […] Não estamos porque vê a sua liberdade a modos que bastante condicionada. l

MAS, NO MOMENTO EM QUE NOS


ENCONTRAMOS, CONFINADOS
A MEIA DÚZIA DE PAREDES QUE
NUNCA NOS PARECERAM TÃO
SENSABORONAS, SERÁ QUE SOMOS
MESMO LIVRES? SERÁ QUE O NOSSO
LIVRE ARBÍTRIO SE MANTÉM “ATIVO”?
SERÁ QUE AINDA PODEMOS FAZER O
English version QUE NOS DÁ NA REAL GANA?

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EXPRESSÃO

DE

LIBERDADE

Ser livre e poder mostrá-lo. Verbalmente.


Por atos. Poder sair para onde quiser, falar
com quem quiser, ficar sozinha se quiser.
Poder cair e levantar, amuar e sorrir,
poder escolher, poder ouvir. E poder fazer
ouvidos moucos. Poder dizer, pensar,
sentir o que quiser. Poder vestir o que
quiser, quando quiser. Sem condicionantes.
Que é como quem diz, liberdade de não se
preocupar com o que os outros pensam.
E não ter problemas em assumi-lo.
Fotografia de Renée Parkhurst. Styling de Olga Yanul.

English version

Casaco em lã, VALERY KOVALSKA. Saia em seda, VERSACE. Botas em pele, BALENCIAGA.
Vestido em crepe de seda, CELINE. Na página ao lado: vestido em seda, SCHIAPARELLI. Anel em metal, CHRISTIAN DIOR.
Camisola em malha de lã e saia em crepe de seda com lantejoulas, ambos PRADA. Anel em metal e resina, ACNE STUDIOS.
Na página ao lado: vestido em lã e seda, LOUIS VUITTON.
Trench coat em algodão, ACNE STUDIOS. Calções em jersey de algodão e lantejoulas, DOLCE & GABBANA. Sandálias em pele, ALBERTA FERRETTI.
Na página ao lado: vestido em crepe georgette com cristais e camisa em algodão, ambos MICHAEL KORS COLLECTION.
Vestido em lã e seda, LOUIS VUITTON. Na página ao lado: top em jersey de algodão e sandálias em pele, ambos VERSACE.
Calções em lã fria e crepe de seda, CHLOÉ. Brincos em metal, DOLCE & GABBANA.
Vestido em crepe georgette com cristais e camisa em algodão, ambos MICHAEL KORS COLLECTION.
Na página ao lado: vestido em chiffon de seda e lurex, CHANEL.
Vestido em lã e botas em pele, ambos BALENCIAGA.
Modelo: Lily Stewart @ Lions NY. Cabelos: Kelly Peach. Maquilhagem: Charlotte Prevel. Manicure: Yoko Sakakura. Produção e set design: Carson Giles.
Lighting: Mike Misslin. Assistentes de fotografia: James Byron e Justin Sarinava. Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal. Veja o fashion film, aqui.
TESTEMUNHO

Liberdade,
essa luz no
horizonte Quem tenha hoje menos de 56 anos
– a maioria dos portugueses –
não sabe o que é não ter liberdade,
e, portanto, também não percebe
o que é tê-la. É daquelas situações
em que só entendemos o que
vale quando sentimos a falta.
Por José Couto Nogueira. Fotografia de Rebecca Reeve.

orquê 56 anos? Porque uma pessoa com essa idade tinha os poderes – as pessoas voavam baixo, sem olhar para o céu.
apenas dez anos em 1975, e não se pode lembrar de um Até nas ruas se sentia o ambiente constrangido, o ar pesado,
país completamente diferente do que temos agora. E não se os passantes recatados, olhos no chão, inibidos de algum sinal
trata apenas da mudança política. Porque, quando se fala em exterior do que pensavam. Ficaram conhecidos como os “anos de
liberdade, geralmente pensa-se nos direitos de cidadania; mas chumbo”, porque pesavam. Numa entrevista da época, o escritor
há muitas liberdades, algumas mais importantes, outras menos beat norte-americano William Burroughs falava dos portugueses:
toleráveis. Agora, por causa da pandemia, algumas liberdades “Quando vivi em Marrocos, conheci alguns. Reconheciam-
foram retiradas, mas outras permanecem. Recuemos. Viver em -se à distância, pelo peso que carregavam nos ombros.”
Portugal na década de 1960, era, digamos, viver num mundo com Mas essa era apenas uma das limitações, a mais abrangente,
muito poucas liberdades, algumas das quais nem dá para perceber porque incluía muitas das outras, que incomodavam no dia a dia,
agora como são essenciais para uma vida sem sobressaltos. A mesmo para quem só pensava no trabalho. Havia outra grande
situação não era apenas a ausência da liberdade política, aquela barreira, que era a moral. A Igreja Católica, religião oficial do
que geralmente se escreve com L maiúsculo. Essa, só por si, era Estado, impunha normas de comportamento restritivas às quais
a menos desgastante para quem não se interessava por esse hoje ninguém liga nenhuma, se é que sabe da sua existência.
assunto, como os poderes do Estado aconselhavam. Diziam- Desde 1821 que acabara a Inquisição, mas a “moral e os bons
-nos: “Não te metas em política”, ao que devíamos responder, costumes”, considerados elementos essenciais da paz social,
obedientes, “A minha política é o trabalho”. Então, quem punha impunha inúmeros castigos mesquinhos – promoções, vantagens
umas palas nos olhos, ou biombos no cérebro, e não se importava diversas, avaliação de probidade – que obrigavam as pessoas a
de não poder escolher os nossos dirigentes, nem sequer de os
criticar, podia viver a sua vida abaixo do radar da polícia política,
WEBSITE: WWW.REBECCAREEVE.COM

das polícias em geral e dos informadores disseminados no meio


dos incautos. Ao fim de décadas (desde 1933) de repressão do
pensamento, e muito menos agir contra as pessoas que decidiam
por nós os rumos do país, tinha-se entrado numa espécie
de dormência intelectual. Esmagados os contestatários dos
primeiros tempos, controlada a comunicação social, ignorado
o que se passava no mundo – até jornais e revistas “lá de fora”
eram apreendidos quando tinham alguma coisa que incomodava

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TESTEMUNHO

“portar-se bem.” Não podiam namorar à vontade, beijar-se e as amigas delas. Porque não havia outra possibilidade de para troça dos outros. Os ténis levavam-se num saco, para serem E a liberdade de criar, de escrever, de pintar, de dançar, de
abraçar-se em público, nem nos hotéis, onde era exigida prova contactar o género oposto – talvez em clubes de bairro, na usados exclusivamente nas atividades desportivas. Os cabelos representar? Todas as atividades culturais eram controladas, e
de matrimónio para alugar um quarto duplo. Não se podia presença das famílias desconfiadas. Nas reuniões de verão, delas eram cortados a direito pelos ombros, com ou sem franja, esse controle decorria há tanto tempo que estiolava a própria
sair até muito tarde, porque os lugares noturnos fechavam na praia ou na piscina, não se podia dançar de maneira os deles, curtos, “à homem”. Isto na década de 1960 quando, vontade de criar. A prova: no Congresso dos Escritores, ocorrido
às duas da manhã, nem se podia sair muito cedo com outra nenhuma, a não ser mantendo uma distância… sanitária. convém lembrar, no mundo exterior explodia o movimento hippie, depois da Revolução, onde estiveram presentes os maiores
pessoa, porque era sinal de que tinham passado a noite juntos As escolas eram segregadas, e só na faculdade se permitia cresciam os cabelos, coloriam-se as roupagens e fumavam-se nomes das letras, todos reconheceram que não tinham livros
num esconderijo qualquer. Todas estas proibições eram que eles e elas tivessem aulas juntos, mas os espaços comuns charros. Por cá, uma abstrusa campanha do Governo encheu proibidos na gaveta, pois a impossibilidade de os publicar tinha
minuciosamente detalhadas, para reprimir a inventividade de também eram separados. Tive uma namorada que foi das as ruas de cartazes com uma caveira: “Droga, loucura, morte”. feito com que não os escrevessem. A publicação de livros era
quem queria viver a (sua) vida. O “parece mal” tinha a força de primeiras mulheres a entrar para o Instituto Superior Técnico; Certamente que a maioria dos jovens nem sabia o que era “droga” estritamente controlada – não previamente, como acontecia
um decreto, aliás, existiam muitos decretos a regulamentar o problema é que não havia casas de banho femininas, nunca e as loucuras, escassas e reprimidas, eram uns copos de tinto a com a imprensa, mas depois de estar nas livrarias. Quando
a vida íntima. Por exemplo, o casamento. O divórcio só era se tinha pensado nisso. De qualquer maneira, poucas mulheres mais, numa noite entre rapazes numa casa de fados. Mortes, só se um editor saía com um livro que não agradava, era apreendido
possível para os casamentos civis (uma minoria) ou para os seguiam a carreira universitária – não que fosse proibido, mas fosse na Guerra Colonial que começou em 1961 em Angola, e que pela polícia, o que representava uma perda monetária enorme.
casamentos religiosos antes de 1940 – a data da Concordata geralmente quando chegavam a essa idade casavam e tornavam- se espalhou rapidamente para as outras “Províncias Ultramarinas”. Assim, os editores preferiam não arriscar, e os que arriscavam
com a Santa Sé, que “teocratizou” as atividades civis. E -se domésticas e mães. Excepto as hospedeiras e enfermeiras, pagavam-no caro. É famosa a história de uma conversa de César
os juízes tinham instruções para dificultar ao máximo os que não podiam casar. Ou as professoras, que podiam, mas guerra, aliás, distante mas omnipresente, Moreira Baptista, Ministro do Interior (hoje, Administração
divórcios legalmente possíveis. O filho de uma mulher casada, investigava-se primeiro as ideias e a profissão do futuro marido, tornou-se o desespero de várias gerações. Interna), que controlava a Censura. Disse ele a Snu Abcassis,
mesmo que já não vivesse há anos com o marido, tinha de ser não fosse do “reviralho” [oposição] ou um malandro. Cavaleiro Quando um “mancebo” (o termo oficial) dona da Dom Quixote: “Se publicar outro livro da Maria Isabel
registado com o marido como pai. E as mulheres não podiam de Ferreia, o legislador que escreveu as leis de exceção que chegava aos 21 anos, era metido num quartel Velho da Costa, mesmo que seja um livro de cozinha, fecho-
viajar sem autorização escrita e assinatura reconhecida desse regulavam a polícia política e os tribunais plenários, dizia que e treinado para matar. Depois, enviado -lhe a editora.” Todavia, alguns escritores conseguiram furar
marido, mesmo que separadas. Uma figura jurídica estranha, a uma mulher não devia trabalhar, mas, caso o fizesse, só em com mais 120 (uma Companhia) para um lugar inóspito onde, o cerco. Usavam alegorias, fábulas, maneiras de dizer sem
“separação de pessoas e bens”, decidida em tribunal, permitia lugares subalternos: secretária, telefonista, funcionária menor. diziam, tinha por missão defender a Civilização Ocidental ser dito. Mas José Cardoso Pires, honra lhe seja feita, não
as partilhas entre os desavindos, mas nenhum deles se podia Quem ia ao estrangeiro, viagens curtas de negócios ou de contra o comunismo e os ingratos dos negros, que não estavam escondia nada. Ninguém como ele descreveu o clima desses
casar novamente, nem sequer pelo “civil”. A segunda mulher férias, trazia as novidades de mundos diferentes. Revistas que devidamente agradecidos por serem explorados pelos colonos anos cinzentos. O Delfim e Balada da Praia dos Cães são livros
era assim uma “amante”, e o casal olhado com mau cariz. não chegavam cá. Um amigo meu tinha um contacto em Paris e queriam ser independentes. Estes princípios, como quaisquer indispensáveis para apreciarmos melhor o que temos agora.
que lhe mandava pelo correio ou por portador a Interview outros, são discutíveis; mas era uma traição discuti-los. Para os É doloroso recordar estes tempos. Um manto de teimosia
ara os jovens, que ainda não pensavam em casamentos, e a Rolling Stone, duas revistas americanas com as últimas descontentes e refratários havia batalhões disciplinares, enviados estúpida cobria o país. O discurso oficial que abarcava todas
havia limitações específicas. Namorados saiam juntos, tendências. E a Vogue francesa, com uma moda impensável para os piores lugares, onde o clima e o inimigo não davam as áreas do pensamento exigia que todos vissem as coisas
quando podiam sair juntos, sempre com um chaperon, para nós. O colorido, a pujança, de quem pode criar à vontade e tréguas. As conversas dos rapazes, invariavelmente, andavam da mesma maneira. Não era uma questão de ter ou não ter
ou então em grupos que diluíam as relações amorosas exibir o que lhe apetece. Ou discutir o que lhe passa pela cabeça. à volta desta equação: o enfrentar a guerra, o fugir do país e razão; não se podia pôr em dúvida, muito menos criticar, os
perante os estranhos. Em casa, nunca ficavam sozinhos O século XX decorria alegremente, mas não por cá. Porque nunca mais voltar. Fugir, era “a salto”, sem documentos, porque constrangimentos que condicionavam a vida diária e a perceção
sem a supervisão dum adulto. Existiam muito poucos clubes também não havia liberdade de vestir como se queria; não era o passaporte não se conseguia obter a partir dos 18 anos, já em do mundo. Havia esperança numa mudança? Não, não havia
noturnos (“boates”, na linguagem da altura) para dançar propriamente proibido por lei, mas os pais e os professores preparação para o matadouro. A guerra tornou-se uma obsessão muita esperança. O sistema parecia alapado em cima de nós
e conversar, e era normal os pais não permitirem aos velavam pela decência. Elas seguiam códigos de vestuário bem que condicionava as vidas e as carreiras. Ficar ou fugir? Casar, e nenhum movimento, nacional ou internacional, indicava
filhos frequentar esses sítios onde sabia-se lá o que podia definidos. Nada de saias muito curtas, decotes tentadores, gestos antes, ou depois? A passagem pela tropa era de cerca de três que a luz no horizonte se poderia aproximar. Depois, há um
acontecer. Em casa, nas pequenas reuniões de amigos, podiam provocantes. Eles, calções e botins, e a partir dos 16 anos com anos, dois deles nas colónias. Quem lhe escapava, por questões fenómeno psicológico difícil de explicar, mas muito concreto.
dançar, mas não muito encostados. Era aí que podíamos o casaco e a gravata da praxe. Os jeans não existiam, apenas técnicas militares (boa pontuação na recruta, por exemplo), era O autoritarismo do Estado estimulava o autoritarismo de
conhecer meninas – as irmãs dos nossos amigos e, talvez, alguns pais muito americanizados os traziam para os filhos, chamado novamente para uma segunda volta de dois anos. todas as instituições, desde as empresas, às escolas, à família.
Os patrões eram mandões, os professores irredutíveis, os
pais castradores. Não se podia isto, não se podia aquilo. Não
havia diálogo sobre assuntos de que não se podia falar. Estava
tudo decidido, tudo resolvido, sem margem para desbravar
O AUTORITARISMO DO ESTADO ESTIMULAVA O terreno, pensar fora da caixa. Rebeldia, loucura, opróbrio. Hoje,
AUTORITARISMO DE TODAS AS INSTITUIÇÕES, DESDE queixamo-nos de que os jovens são irreverentes, os artistas
AS EMPRESAS, ÀS ESCOLAS, À FAMÍLIA. OS PATRÕES
provocadores e que as pessoas, em geral, são sempre do contra.
ERAM MANDÕES, OS PROFESSORES IRREDUTÍVEIS,
OS PAIS CASTRADORES. NÃO SE PODIA ISTO, NÃO É verdade. Mas esta variedade, que inclui “bons” e “maus” é
SE PODIA AQUILO. NÃO HAVIA DIÁLOGO SOBRE o resultado da liberdade – de todas as liberdades que temos.
ASSUNTOS DE QUE NÃO SE PODIA FALAR. English version Melhor, muito melhor, do que viver naquela Idade das Trevas.

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TESTEMUNHO

Uma viagem
à volta da
liberdade Hoje, mais do que nunca, a
liberdade é a essência e o sustento
da minha geração. Num mundo
hiperconetado e hipersensível,
velamos por ela e atribuímos-lhe
as nossas interpretações enquanto
redescobrimos novos significados
para o conceito de prisão.
Por Mathilde Misciagna. Fotografia de Rebecca Reeve.

liberdade era uma coisa comum, quase sem importância. casual ao supermercado, é uma jantarada em casa das amigas,
Toda a gente era livre de fazer o que quisesse desde que não é um espetáculo de música, teatro ou humor, é uma viagem de
fizesse mal a ninguém, e isso era tão normal que as pessoas avião para Itália. Aprendi que sem lugares e sem pessoas, as
nem davam pela liberdade. Eram livres do mesmo modo nossas experiências não apontam para nada que seja tangível.
que respiravam e ninguém dá conta que respira, respira e Quando faço o exercício de pensar quando é que me sinto
pronto.” Ninguém dá conta que respira, respira e pronto. Esta é ou senti mais livre, a resposta está em quando tomei decisões
uma passagem do livro O Tesouro, de Manuel António Pina, que que refletiam a minha vontade pessoal, o viver a vida nos meus
me ficou impressa na memória. Posto isto, estaria a mentir se próprios termos. Senti-me livre quando decidi vir estudar e
dissesse que é fácil dissertar acerca do conceito de liberdade. viver para Lisboa, em 2013, quando aceitei ir de Erasmus para a
Não só pelas suas infinitas nuances e abordagens possíveis, mas Hungria, quando viajei sozinha para longe, quando me mudei para
porque a verdade é que, até à data, nunca me deparei com essa Londres para perseguir o meu sonho, quando aluguei a minha
necessidade mesmo por me achar inquestionavelmente livre. primeira casa, quando mudei de trabalho. Viver uma vida com
Ou, pelo menos, livre q.b. É impossível não referir que escrever significado e que seja gratificante para mim, isso é ser livre. Ser
sobre liberdade quando me encontro impossibilitada de sair de livre é poder desfrutar de tempo de qualidade com as pessoas de
casa numa situação sem precedentes e ligeiramente assustadora, quem gosto e, ao mesmo tempo, ter um trabalho que me preencha
é no mínimo curioso. E aqui estou eu. Aqui estamos nós, hoje, criativamente e ofereça liberdade financeira. Também significa
a tentar decifrar o significado de ser livre. Neste momento, ter tempo e flexibilidade para me ocupar com coisas que me dão
e para mim, ser livre é uma aula de Pilates in loco, é uma ida prazer e são do meu interesse, o que infelizmente choca com o
facto de vivermos numa cultura, quanto a mim insustentável,
do chamado hustle porn. Ou seja, glorificar longas e excessivas
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horas de trabalho e desvalorizar o tempo de lazer e os fins de


semana de cada um. Os limites entre trabalho, lazer, alimentação
e sono têm-se tornado demasiado confusos para os jovens da
minha idade. Onde é que começa e acaba cada parte da nossa
vida é uma questão à qual eu, pelo menos, não tenho capacidade
de responder. A liberdade tem, por isso, muitas perguntas.
Ser livre é sentir-se confiante para dizer não. Ser livre é lidar
com os nossos erros e sucessos sem precisar de responsabilizar

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TESTEMUNHO

ENQUANTO JOVENS, SABEMOS QUE OS


NOSSOS PAIS E AVÓS LUTARAM POR TANTAS
DAS NOSSAS LIBERDADES BÁSICAS:
A LIBERDADE DE NOS EXPRESSARMOS, DE
NOS MANIFESTARMOS, DE NOS MOVERMOS.
LUTARAM PELA NOSSA LIBERDADE DE ESCOLHER.
escape imediato do ambiente que nos circunda, oferecendo-nos
liberdade para pensar, entre outras coisas, sobre sexualidade,
género, raça e auto-expressão. Essa é a benção. Somos livres
de dar a nossa opinião sem que ninguém a tenha requisitado,
livres de exprimir aquilo que sentimos e de mover massas em
prol daquilo que defendemos, mas, por outro lado, estamos
presos a um ecrã onde uma grande percentagem do conteúdo
que consumimos é pura e simplesmente lixo. E esta é a
maldição. O que é que significa estar inativo nos tempos que
correm? E estar desconectado numa era de hiperconectividade
avassaladora e descontrolada? Estar inativo pode significar uma
ninguém por nenhum dos dois, a não ser nós mesmos. série de coisas, como ler, ver uma série, organizar o armário religião, lutamos contra a discriminação. Lutamos para que altura não tinha nada a ver com a população portuguesa atual.
Liberdade pode ter tantos significados e não me cabe a mim por cores; não interessa a atividade, interessa apenas que não possamos ser livres de forma responsável, mas sem o julgamento Era maioritariamente rural, analfabeta e obviamente muito
esmiuçá-los exaustivamente. Mas é preciso reconhecer que se sinta a necessidade de a partilhar no Instagram ou registá- e olhar crítico do outro. Talvez, daqui a muitos anos, os nossos influenciada pela Igreja Católica. A Igreja e o Estado Novo
eu, Mathilde, sou livre porque sou privilegiada. Porque se eu -la numa aplicação. Quando penso no aparato à volta das redes filhos e netos possam recordar as nossas conquistas (como o tinham uma matriz doutrinária e ideológica comum e já se
partilhar com o mundo a minha verdade, haverá alguém a sociais e, sobretudo, quando me interrogo acerca do meu Pride Month, por exemplo) da mesma forma, como um tesouro provou que a ditadura é quase sempre apoiada pela hierarquia
ouvi-la e a respeitá-la. Outras pessoas não têm esse privilégio. verdadeiro interesse por mais de metade das pessoas que sigo, valioso que têm de proteger, preservar e respeitar. Quando da Igreja. A verdade é que as mentalidades são o que mais
De falar sem pedir autorização. De dizer NÃO deliberadamente. aborreço-me e desisto. A verdade é que, embora nos queiram somos confrontados com o imperativo do ódio, por via de forças demora a mudar. Demoram a fixar-se e depois demoram muito
De escolher. Há pessoas no mundo que não podem levantar a erradamente induzir a pensar que temos de estar sempre a par políticas que conquistam o poder e proclamam tudo o que é a transformar-se. Por outro lado, a minha geração está ligada a
voz quando falam. E há outras, como eu, que podem gritar se do zeitgeist, não precisamos de conhecer os meandros de todas inimigo da liberdade, da alegria, do consenso e do júbilo, estamos um humanismo e sensibilização que não existiam há 40 anos.
assim o desejarem. É uma ilusão pensar que todos vivemos as controvérsias do Instagram ou estar na vanguarda de todos exatamente a declarar a urgência desta consciencialização. Isto da responsabilidade, que a minha avó referia tantas vezes,
em liberdade em 2020. E é difícil ver além do próprio umbigo os memes e tweets, para nos consideramos pessoas informadas leva-me a outra questão: devemos ter permissão para dizer tudo
quando estamos imersos numa cultura de espetacularização e muito menos para a nossa existência ter significado. Costumo iz-se que no tempo da ditadura qualquer pessoa vivia com o que quisermos sem repercussões? Os ativistas da liberdade
da existência, que encoraja a partilha constante da nossa dizer que o mundo não (nos) quer estar sempre a ouvir. Por medo. Os jornalistas, por exemplo, nunca sabiam se iam de expressão estão por toda a parte e o que devemos ou não
imagem, da nossa realidade, daquilo que estamos a fazer, onde vezes queremos silêncio. Como é possível ter sempre algo chegar a casa ao fim do dia ou se seriam presos pela PIDE. dizer é um debate aberto. A linha entre permitir a liberdade de
e com quem. Eu, eu, eu. A Internet é sem dúvida o maior e para dizer ao mundo, isto é, à nossa pequena audiência? Nos jornais, mais de metade do que era escrito era riscado expressão das pessoas e impedir o discurso de ódio que hoje
mais recente elemento disruptivo dos tempos modernos. Que Enquanto jovens, sabemos que os nossos pais e avós lutaram com o famoso lápis azul e, para cobrir os espaços em falta, presenciamos nas redes sociais tem-se revelado um pouco
impacto é que esta teve na nossa liberdade? Antes de fazermos por tantas das nossas liberdades básicas: a liberdade de nos os jornalistas eram obrigados a colocar imagens ou a abordar tremida, mas precisa de ser traçada, porque as consequências
sign up no Instagram, a única plataforma que tínhamos expressarmos, de nos manifestarmos, de nos movermos, de temas banais. Muitos caraterizam o dia 25 de abril de 1974 de permitir que as pessoas digam o que querem quando
para nos dirigirmos a uma audiência, independentemente escolhermos as nossas profissões, de conhecermos outras como o dia mais feliz das suas vidas. A minha avó materna, que querem, são muito graves. Para concluir, seria maravilhoso
do seu tamanho, era através de uma apresentação oral culturas. Lutaram pela nossa liberdade de escolher. Lutaram infelizmente já não está entre nós, nasceu em 1924. No ano da se todos tivéssemos um espírito livre em igual medida. Mas
na escola ou da representação numa peça de teatro. pela nossa liberdade de votar. Lutaram para podermos pensar revolução tinha exatamente 50 anos. Quando eu tinha 12 anos, é impossível. Essa mentalidade desafiadora também pode ser
e dizer o que queremos e não pensar e dizer o que alguém quer e era apenas uma pré-adolescente, ela tinha 83. Por isso, há chamada de luta contra o absurdo, a injustiça e o poder. Não
as a questão que me preocupa, para além que nós pensemos e digamos. E hoje nós lutamos pela nossas várias coisas que ela dizia que eu não compreendia muito bem, se pode travar essa batalha sem liberdade. A liberdade, de uma
do meu tempo de ecrã completamente pequenas liberdades, que diferem consoante os contextos mas uma delas ficou comigo: “O 25 de abril deu liberdade, mas forma geral, é a porta de entrada para questionar o consenso e
absurdo, é como é que posso ser livre se socioeconómicos em que vivemos. Lutamos pela liberdade não deu responsabilidade”. É certo que esta afirmação poderá desafiar o que nos é apresentado como verdade. Ou, para usar as
não consigo tirar proveito da tecnologia de sermos quem quisermos e vestirmos o que quisermos, não ser consensual, mas a minha avó era uma mulher bastante palavras do escritor e jornalista José Jorge Letria, “A liberdade
e dos ecrãs quando estes são realmente lutamos pela igualdade de género, raça, orientação sexual, séria e religiosa. Temos de nos lembrar que a população daquela é um livro sempre aberto na página ainda por escrever.” l
úteis e rejeitá-los quando não são? Se não consigo organizar
o meu dia sem que este se baseie numa passagem de ecrã em
ecrã? A Internet e as redes sociais, a era da informação, a era
da economia de acesso em que podemos ter tudo – desde
comida, cultura, roupa – entregues à porta de nossa casa são
uma benção e uma maldição. Os psicólogos tendem a atribuir
a ansiedade e a depressão de muitos jovens ao tempo que
despendem a publicarem-se a si mesmos nas redes sociais
ou a compararem-se com os demais, enquanto que muitos
de nós vemos as redes como plataformas que oferecem um English version

vogue.pt 2 3 5
MOOD

BORED

Sozinha em casa? A criatividade


aguça com a necessidade – e com o
aborrecimento também. O segredo é não
estar parada. Selfies old school com a ajuda
de uma câmara de outros tempos e um
espelho, ir até à Califórnia que é aquele
metro quadrado de chão que apanha
sol lá em casa, dezenas de mudanças de
outfit como se estivesse numa comédia
romântica e um slide pelo corrimão
(desinfetado) abaixo quando tudo o resto
falhar. Ainda assim, a loucura teima em
manifestar-se? Dispa. Vista. Repita.
Fotografia de Pavel Golik. Styling de Lil Burlac.

English version

Calças em lã fria, BALENCIAGA, em Mytheresa.com. Colar vintage em metal banhado a ouro, ATELIER ERATO BERLIN.
Blazer em cetim de seda, ACNE STUDIOS, em Mytheresa.com.
Top em malha de nylon, JACQUEMUS, em Mytheresa.com. Colar vintage em metal banhado a ouro, ATELIER ERATO BERLIN.
Na página ao lado: vestido em tule de seda, CECILIE BAHNSEN, em Mytheresa.com.
Camisa vintage em algodão, ATELIER ERATO BERLIN. Calções em denim, NATASHA ZINKO, em Matchesfashion.com.
Camisa vintage em algodão, ATELIER ERATO BERLIN. Calções em denim, NATASHA ZINKO, em Matchesfashion.com.
Vestido em cetim de seda com cristais, JULIA SEEMANN.
Na página ao lado: top em licra, STAUD, em Mytheresa.com. Calções em jersey de algodão, JACQUEMUS, em Mytheresa.com.
Blusa vintage em renda de seda, ATELIER ERATO BERLIN.
Camisola em mousse, MARINE SERRE, em Matchesfashion.com. Calções em lã fria, MAX MARA, em Matchesfashion.com.
Brincos e pulseira vintage em metal e resina, ambos VERSACE. Colar em metal com zircónia, da produção.
Camisa em tule de seda, 032C.
Camisa em tule de seda, 032C.
Na página ao lado: vestido em crepe de seda, 032C.
Tank em malha de algodão, da produção. Calças em denim, LEVI’S.
Fotografia: Pavel Golik @ 2DM Management. Modelo: Adel Yudina @ System Agency. Editorial realizado em exclusivo para Vogue Portugal.
ANÁLISE

Don’t f*ck with


ulher? Muito simples, dizem aqueles que gostam de
respostas simples: ela é um útero, um ovário; ela é
uma fêmea: esta palavra é suficiente para a definir.” As

my freedom
palavras são de Simone de Beauvoir e é com elas que uma
das autoras e pensadoras feministas mais influentes da
sua época (e da nossa também) inicia o poderoso The Second
Sex, publicado pela primeira vez em 1949. Passaram-se mais
de setenta anos desde então. Hoje, e ao contrário daquilo que
acontecia em 1949, as mulheres podem ter um cartão de crédito
Direito a não engravidar, direito a engravidar, direito a terminar uma em seu nome, estudar em universidades como Yale, Harvard e
gravidez. Direito ao controlo, direito ao prazer, direito à contraceção. Direito Princeton, falar abertamente sobre sexo, ter acesso à pílula e,
a não ser questionada, direito a não ser posta em causa, direito a não ser em muitos casos, abortar de forma legal. Passaram-se mais de
setenta anos desde então. Hoje, enquanto mulheres, temos mais
julgada. Direito à escolha. Seja ela qual for. Por Mónica Bozinoski. Fotografia de Teresa Barboza. liberdades, mais direitos, mais opções. Podemos comprar os
nossos próprios métodos contracetivos com os nossos próprios
cartões de crédito. Podemos ir para a faculdade, tirar um ano
sabático, ter uma carreira. Podemos ter uma opinião. Podemos
ter várias opiniões. Podemos ter voto na matéria. Podemos sair “Nos últimos anos, temos vindo a fazer inúmeros progressos
à rua, podemos protestar, podemos fazer exigências. Podemos no que diz respeito à aceitação e à inclusão: desde legalizar o
ser independentes, mas também podemos escolher não o ser. casamento homossexual a falar abertamente sobre misoginia e
Podemos ser solteiras, mas também podemos escolher ser racismo. Mas, em 2016, ainda existem alguma formas de viver que
comprometidas. Com uma pessoa, duas pessoas, três pessoas. são olhadas com julgamento e condescendência à la 1950 – uma
Com as pessoas que quisermos. Podemos viver sozinhas, mas delas sendo a vida de uma mulher sem filhos ou, pior, de uma
também podemos escolher partilhar o nosso espaço. Podemos mulher que não quer ter filhos. Existem muitas mulheres que são
casar, mas também podemos dizer que não ao matrimónio. pessoalmente afetadas pelo julgamento da sociedade no que diz
Podemos discutir a nossa sexualidade, o nosso prazer, os nossos respeito a este tema: aquelas que ainda não tiveram filhos, aquelas
desejos. Podemos engravidar e ser mães. Podemos não engravidar que querem ter filhos, mas que ainda não os conseguiram ter,
e ser mães. Podemos não engravidar e ser tão ou mais felizes. ou aquelas que nunca vão querer ter filhos – que é o meu caso.
Podemos pôr fim a uma gravidez sem pôr fim à vida. Podemos Visto que nunca quis filhos e que, consequentemente, laqueei as
não saber o que queremos e preservar a nossa fertilidade ainda minhas trompas aos 30 anos, deixando as etiquetas no meu útero
assim. Escrito assim, parece que podemos tudo – e podemos, inutilizado, é provável que a situação seja mais fácil para mim.”
podemos mesmo. Temos liberdades, temos direitos, temos Intitulado Why Is Society Still So Afraid Of Women Who Don’t Want
opções. Mas se temos as liberdades, os direitos e as opções, Children? (em português, “Porque é que a sociedade ainda tem tanto
porque é que continuamos a ter uma vozinha atrás da orelha medo das mulheres que não querem ter filhos?”), o testemunho
que não nos deixa esquecer a frase de Simone de Beauvoir: escrito pela jornalista Holly Brockwell no site da edição britânica
“Mulher? Muito simples, dizem aqueles que gostam de respostas da revista Grazia é um dos muitos atestados sobre a forma como
simples: ela é um útero, um ovário; ela é uma fêmea: esta palavra as mulheres que não querem seguir o caminho da maternidade
é suficiente para a definir.”? Se temos as liberdades, os direitos e ainda são vistas pela sociedade. “Já fui menosprezada, insultada
as opções, porque é que a sociedade continua a tentar determinar e ameaçada por causa da minha escolha, em grande parte porque
aquilo que devemos ou não fazer com os nossos corpos? falei sobre ela publicamente. Mas as atitudes que levam estranhos
Aquilo que devemos ou não querer para os nossos corpos? a enviarem-me mensagens no Facebook sobre eu ser promíscua
por querer ter relações sexuais com o meu parceiro sem a
preocupação de ter uma gravidez indesejada são as mesmas que
incentivam as pessoas a fazer comentários intrusivos e dolorosos
sobre mulheres que adoravam ser mães, mas que ainda não
chegaram aí. Aos olhos da sociedade, é impossível ganhar quando
BORDADO EM TECIDO POR TERESA BARBOZA. o tema é ter filhos. Não te é permitido ter nenhum (egoísta), não
podes ter só um (cruel) e certamente não podes ter ‘demasiados’,
especialmente se estiveres e usufruir dos benefícios deste país,
benefícios esses aos quais tens direito, para ajudar a suportar
os primeiros anos de maternidade. Parece que estamos com
pressa de ver toda a gente a engravidar, e qualquer pessoa que
esteja atrasada ou demorada pode esperar comentários e olhares
de falsa simpatia de quem quer que encontre pelo caminho,
sejam familiares ou estranhos.” Ainda que a maternidade esteja
profundamente enraizada na nossa sociedade, é certamente
problemático que algo tão pessoal seja visto como uma expetativa,
e não como uma escolha que cabe a cada mulher fazer ou não

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ANÁLISE

‘Mas serias uma excelente mãe.’ Ao que eu respondo: ‘Acredito ulher? Muito simples, dizem aqueles que gostam de
que não deves fazer algo só porque serias bom a fazê-lo.’ (Afinal respostas simples: ela é um útero, um ovário; ela é uma
de contas, também podia ser uma ótima funambulista, mas fêmea: esta palavra é suficiente para a definir.” Passaram-
nunca vamos saber.) Tive de corrigir familiares que me disseram, -se mais de setenta anos desde então. Como escrevia a
‘Espera até teres um!’ enquanto corria atrás de uma criança na revista The Atlantic em março deste ano, “das ‘leftover
sala. Preparei-me para ouvir monólogos sobre a forma como a women’ [um termo depreciativo popularizado pelo governo
maternidade tem sido a experiência mais significativa da vida chinês para descrever as mulheres com mais de 27 anos que
de alguém – como se esse esclarecimento fosse um trunfo não são casadas] da China às ‘baby machines’ [uma expressão
contra o meu instinto. Numa viagem de trabalho, tive de pôr usada pela realizadora Shosh Shlam para descrever o papel das
um colega de trabalho no lugar que riu e disse, ‘A ver vamos’, mulheres ortodoxas] de Israel, a sociedade ainda dita a vida
quando ouviu as minhas intenções [de não querer ser mãe]. das mulheres” – e, por extensão, continua a ditar aquilo que
Tive conversas constrangedoras com um hairstylist que, poucos uma mulher pode ou não fazer com o seu próprio corpo. Em
meses depois de eu me ter casado, me perguntou quando é que 2019, a New Yorker publicou uma extensa reportagem sobre as
eu ia começar a tentar engravidar, e tive interações absurdas leis de fertilização in vitro na Polónia, onde mulheres solteiras
com pessoas que, apesar de me serem praticamente estranhas, e casais homossexuais são proibidos de fazer os tratamentos.
se sentiram furiosamente confortáveis para trocarem opiniões “Vistas através de uma lente feminista e progressista, as aprovadas leis que proíbem o aborto a partir do momento
fazer sobre a sua decisão de querer ou não querer ser mãe. sobre aquilo que eu faço com o meu corpo. Na semana passada, técnicas de procriação medicamente assistidas têm um em que for possível detetar o batimento cardíaco de um feto,
Ainda que a maternidade esteja profundamente enraizada na um homem que conhecia há cinco minutos perguntou-me se eu potencial emancipador; têm o poder de expandir a definição baixando a janela legal para seis ou sete semanas – ou seja, para
nossa sociedade, é certamente problemático continuarmos a tinha visto aquele estudo que reportava que as mulheres que de família, criando novas configurações familiares e noções de uma altura em que muitas mulheres ainda não sabem que estão
questionar a decisão de uma mulher que não quer ter filhos não queriam ter filhos eram julgadas de forma mais severa. relação. Em contraste, a lei de fertilização in vitro da Polónia é grávidas. O objetivo final? Derrubar a decisão Roe v. Wade, de
– seja essa decisão tomada por questões financeiras, por Estranhamente, não pedi que ele me enviasse o estudo.” uma prova daquilo que pode acontecer quando estas técnicas 1973, que consagrou o direito ao aborto legal e seguro aos olhos
questões emocionais, por questões ambientais (sim, é possível E continuava: “Quero sentir que a minha decisão é apoiada, são cimentadas numa sociedade que está determinada em da Constituição. “O aborto legal significa que a lei reconhece a
optar por não ter filhos em nome do ambiente) ou, pura e e quero apoiar qualquer pessoa com a sua própria decisão. permanecer tradicional. Uma mãe solteira não é nem novidade mulher como pessoa. Diz que ela pertence a si mesma”, defendeu
simplesmente, por nenhuma questão em particular sem ser o Porque, no fim do dia, isto é sobre ter uma escolha, certo? As nem radical; as mulheres sempre educaram crianças sozinhas, a poeta e ensaísta Katha Pollitt na New Yorker, publicado poucos
facto de que, pura e simplesmente, não quer ter filhos. Ainda pessoas que me são mais importantes (incluindo os meus pais) pelas mais diversas razões (morte, abandono, divórcio). Ao dias depois da lei no Alabama ter sido aprovada. “Por isso, se as
que a maternidade esteja profundamente enraizada na nossa já perceberam isso. Mas quero que a frase de Gloria Steinem, tentar preservar uma visão afunilada daquilo que uma família mulheres que nunca tiveram um aborto, e que não esperam ter
sociedade, é certamente problemático continuarmos a olhar ‘Nem todas as mulheres que têm um útero têm de ter um filho, deveria ser, esta lei tem um efeito perverso na ligação entre mãe um aborto, pensam que estas novas restrições e proibições não
para as mulheres que não querem engravidar como mulheres da mesma forma que nem todas as pessoas que têm cordas e filho. Um governo que confisca os embriões de uma mãe, de as afetam, estão erradas. (...) Sem a possibilidade de abortar de
incompletas. Como mulheres anormais e imorais. Como vocais têm de cantar ópera’, seja óbvia para toda a gente. Quero modo a encorajar o tipo ‘certo’ de família, é um governo que forma legal e acessível, os pressupostos que moldaram a vida
mulheres que nunca se vão sentir completamente felizes ou ser uma aliada da maternidade e quero compreender melhor cria a sua própria versão de admirável mundo novo”, escrevia das mulheres nas últimas décadas – incluindo que elas, e não um
completamente realizadas. Como mulheres que não gostam a gravidez e o nascimento, porque isso é essencial para ajudar a jornalista de investigação Anna Louise Sussman. No mesmo preservativo furado, uma pílula esquecida ou um violador, é que
de crianças. Como mulheres que não sabem o que querem, as mulheres a avançar como um todo. Quero ter conversas ano, os Estados Unidos da América começaram a sofrer alguns decidem aquilo que acontece aos seus corpos e futuros – vão
como mulheres que são demasiado novas para saberem o informadas e solidárias com as minhas amigas sobre fertilização dos mais significativos retrocessos no que diz respeito aos mudar.” Como escreveu Emma Sarran Webster no site da Teen
que querem. Como mulheres que um dia se vão arrepender in vitro. Quero tornar o local de trabalho melhor para os pais, direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O Estado do Vogue, “enquanto as pessoas nos Estados Unidos lutam para
– e que, quando se arrependerem, já será tarde demais. e para todos aqueles cuja vida pessoal pede flexibilidade e Alabama aprovou uma lei que proíbe o aborto em quase todas manter o direito a métodos contracetivos e abortos legais, muitas
compaixão no contexto da vida profissional. Mas também quero as situações (sendo a única exceção quando a vida da grávida mulheres já estão a sofrer a perda da sua autonomia reprodutiva
unca imaginei que falar sobre a minha chegar a casa e não me sentir culpada, insegura ou julgada está em perigo), a mais restritiva dos Estados Unidos; em no seio das suas relações intimas, enquanto vítimas de coerção
decisão e ter confiança na minha decisão por querer que essa casa seja um apartamento sossegado.” Estados como a Georgia, Kentucky, Mississippi e Ohio, foram reprodutiva” – um tipo de abuso que envolve o exercício de poder
iria incitar o feedback crítico que incitou ao e controlo sobre a saúde reprodutiva e as decisões reprodutivas
longo dos anos. Pessoas que eu conhecia de alguém, que pode ir desde esconder, destruir ou tirar os
e pessoas que eu não conhecia diziam-me métodos contracetivos da pessoa; furar preservativos ou tirá-los,
que eu ia mudar o meu discurso quando fosse mais velha. sem consentimento, durante as relações sexuais; ou remover
Ninguém confia que uma mulher (muito menos uma mulher fisicamente contracetivos como o DIU ou os anéis vaginais.
com 18 anos) conheça o seu próprio corpo e mente. Apesar “Apesar de não ser um termo particularmente mainstream, é
de ter consciência de que algumas pessoas que tomam esta bastante comum – especialmente entre mulheres mais novas.
decisão mudam de opinião com o tempo – ou encontram um Um estudo conduzido por investigadores da Universidade de
parceiro ou uma parceira que têm um desejo de ter filhos mais Pittsburgh e da Michigan State University e publicado este ano
forte do que aquele que elas têm de não os ter –, algo me dizia no Obstetrics & Gynecology Journal, concluiu que uma em
que eu não ia mudar.” As palavras são da jornalista e autora cada oito jovens entre os 14 e os 19 anos com uma vida sexual
Erica Cerulo em Never Having Children – Why Does That Make You ativa experienciou coerção reprodutiva nos últimos três meses.
So Upset? (em português, “Eu nunca vou ter crianças – porque Um inquérito de 2011 conduzido pela The National Domestic
é que isso te irrita tanto?”), um testemunho publicado no SE TEMOS AS LIBERDADES, OS Violence Hotline a mais de 3,000 pessoas concluiu que 25% dos
site Refinery29 em outubro passado. “Aparentemente, uma DIREITOS E AS OPÇÕES, PORQUE participantes já tinham experienciado este tipo de abuso.” Temos
mulher que não queira ter filhos é uma coisa chocante, mesmo É QUE A SOCIEDADE CONTINUA A liberdades, temos direitos, temos opções. E é por termos essas
TENTAR DETERMINAR AQUILO QUE
em 2019. (...) Apesar de me sentir tão confiante com a minha DEVEMOS OU NÃO FAZER mesmas liberdades, esses mesmos direitos e essas mesmas
decisão aos 36 anos como me sentia quando tinha metade COM OS NOSSOS CORPOS? opções que, em 2020, a discussão deveria ser tão simples quanto
dessa idade, tive que validar a minha opinião ao longo dos AQUILO QUE DEVEMOS OU NÃO isto: my body, my choice. Mas enquanto não o for, continuamos
anos. Tive conversas difíceis com familiares que me disseram, English version QUERER PARA OS NOSSOS CORPOS? a dizê-lo, as vezes que forem precisas: my body, my choice. l

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TEORIA

DA

RELATIVIDADE

Seremos mesmo livres quando


condicionados pelo tempo? Será a
liberdade uma ilusão? Talvez seja o tempo
a ilusão. Talvez seja o tempo a liberdade.
Afinal, se não fosse o tempo, não teríamos
a liberdade de que tudo passa e tudo muda
e nada é constante. A liberdade de quebrar
rotinas e de viver, de explorar o espaço
e o tempo, mas acima de tudo, o espaço-
-tempo. E se não formos livres, e se
o tempo não for relativo, se o tempo não
for uma liberdade, se o tempo não for a
liberdade, que o nosso guarda-roupa seja
a nossa membrana protetora contra
a falta de espaço e a falta de tempo.
E que possamos ser livres através dele.
Fotografia de Arcin Sagdic. Styling de Sina Braetz.

English version
Casaco em pele e brincos em metal e resina, ambos BALENCIAGA. Pumps em pele com pérolas e metal, CHRISTIAN LOUBOUTIN.
Colete em pele e vestido em chiffon de seda e pele, ambos SPORTMAX. Brincos em metal e cristais Swarovski, PHILIPP PLEIN. Luvas em pele e cristais, ROECKL.
Sandálias em pele, GIVENCHY. Na página ao lado: casaco e saia em cetim de seda, ROBERT WUN. Luvas em pele, ROECKL.
Vestido em algodão, GIVENCHY. Colar em ráfia, JIL SANDER. Luvas em pele, ROECKL. Botas em pele e neoprene, AGL.
Na página ao lado: vestido e saia em tule de seda, NOIR KEI NINOMIYA. Sandálias em pele, 4 MONCLER SIMONE ROCHA.
Em ambas as páginas: jumpsuit em lã, MICHAEL KORS COLLECTION. Top em látex, ANDREAS KRONTHALER FOR VIVIENNE WESTWOOD.
Camisa em algodão e botas em pele e algodão, ambos THOM BROWNE.
Em ambas as páginas: vestido em linho, brincos em metal e cinto em pele e metal, tudo ALEXANDER MCQUEEN. Luvas em pele, ROECKL.
Casaco em pele e brincos em metal e resina, ambos BALENCIAGA. Pumps em pele com pérolas e metal, CHRISTIAN LOUBOUTIN. Na página ao lado: blazer em lã, MIU MIU.
Jumpsuit em algodão, HERMÈS. Botas em pele, ON AURA TOUT VU.
Vestido em tule de seda, MARY KATRANTZOU. Brincos em acrílico, KASIUS. Na página ao lado: brinco em metal, ALEXANDER MCQUEEN.
Fotografia: Arcin Sagdic @ Michele Filomeno Agency. Modelo: Niko Riam @ Oui Management. Cabelo: Cyril Laloue. Maquilhagem: Caroline Fenouil.
Produção: Afif Baroudi @ Production Paris by Production Berlin Group. Casting: Timotej Letonja. Scouting: Michele Filomeno Agency.
Assistentes de styling: Elisa Gianna Gerlach e Rémi Mascia. Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.
HISTÓRIA

Va i P a r t i r
o Expresso
Liberdade
A palavra escrita será sempre a mais
poderosa arma de todas. Sabendo-o, há
quem precise de a silenciar com urgências de
guerrilha. Quando isso acontece, podemos
ter a certeza de que lutamos pelo que está
certo. Só quem tem silêncios incómodos
tenta silenciar quem tem voz ativa.
E é por isso que a liberdade de expressão
é o maior dos voos da Humanidade.
Por Nuno Miguel Dias. Fotografia de Ania Wawrzkowicz.

alvez seja difícil imaginar, nestes dias que nos correm por serem inaceitáveis para o governo do seu país. […] O leitor fica
fora sem que deles apreendamos muito, feitos de pressas com um revoltante sentimento de impotência. E, no entanto, se
para nenhures, o que seria ser estudante na Universidade estes sentimentos de revolta por todo o mundo puderem unir-se
de Coimbra em 1961. O mundo vivia grandes conturbações. numa ação comum, algo eficaz pode ser feito”. O texto, intitulado
Ventos de mudança sopravam de toda a Europa. Os mesmos Os Prisioneiros Esquecidos, apelava à libertação dos dois rapazes
que dariam origem ao Movimento de Maio em Paris e à Primavera (a que chama “prisioneiros de consciência”) e incluía um “Apelo
de Praga, ambas nesse que ainda era o longínquo ano de 1968. Para Amnistia 1961”. A edição de fim-de-semana (Weekend Review)
O hermetismo de Portugal, onde a informação que chegava era do jornal The Observer publica-o. Seguem-lhe os passos outros
criteriosamente escolhida pela censura, tinha algumas fugas proeminentes jornais das nações mais progressistas do mundo
por via da comunidade emigrante em França, que os estudantes e nasce assim a Amnistia Internacional. A primeira reunião teve
das antigas e sempre fervilhantes repúblicas de estudantes lugar a julho desse mesmo ano e contou já com delegados do
conimbricenses tinham a capacidade de interpretar, à luz dos Reino Unido, Bélgica, França, Alemanha, Suíça, Irlanda e EUA.
ideais absorvidos da literatura interdita a que tinham acesso, Após esta, num escritório demasiado pequeno para a enorme
correndo para isso grandes riscos. Numa noite qualquer de biblioteca, o Peter Benenson’s chambers, sito em Mitre Court,
pândega académica, essas em que o vinho aquece os ânimos Londres, adota-se a Rede dos Três, regra mediante a qual cada
e destrava a língua, dois jovens brindaram, num brado tão delegação se ocupará de três prisioneiros de diferentes áreas
alto como os copos que chocaram, “Viva a Liberdade”. Os geográficas, por forma a atestar a imparcialidade da organização.
detalhes perderam-se no tempo. Não se sabe ao certo se haveria Pouco depois de ser acesa a primeira vela com arame farpado
agentes da PIDE no estabelecimento, elementos da Legião em seu torno, que se tornou o símbolo da organização, na
Portuguesa, algum membro da vasta rede de informadores ou londrina igreja de St-Martin-in-the-Fields, no dia dos Direitos
se um mero cidadão exacerbadamente “alinhado” decidiu fazer Humanos (10 de Dezembro), a primeira missão de investigação da
um telefonema. Factual é, poucos minutos depois, a detenção organização é enviada para o Gana. Seguiram-se Checoslováquia,
destes estudantes, fundada num ato tão banal que, felizmente, República Democrática Alemã e, claro, Portugal, cujas condições
torna este episódio quase inverosímil nos dias de hoje. em que eram feitas as detenções e as horríveis torturas da
Inspirado por estes acontecimentos, o advogado e ativista PIDE constam no Prison Conditions in Portugal de 1965, um dos
britânico Peter Benenson escreve um artigo que inicia assim: primeiros relatórios compilados pela organização. Envergonhados
“Abra o seu jornal num qualquer dia da semana e encontrará por termos, em tempos, justificado intervenções tão dignas?
um relato de alguém que foi preso, torturado ou executado, num Não sabemos nós da história a metade. Porque já quase não
qualquer sítio do mundo, por as suas opiniões ou a sua religião restam aqueles que a poderiam contar na primeira pessoa.

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HISTÓRIA

Liberdade de Expressão que não tínhamos imparcialidade, questões que são do interesse da sociedade onde um outro utilizador ou um grupo de utilizadores “denunciou” a
no tempo do Estado Novo era apenas se inserem. São eles que possibilitam um outro direito universal, publicação por a achar “ofensiva”, mediante aquilo que é a sua
a visível ponta de um gélido icebergue o do acesso a uma informação fidedigna e isenta. Muitas vezes, opinião. Que é válida se não perigar a do próximo. Os “censores”
debaixo do qual estava o medo. Calar era contudo, são perseguidos por revelarem factos que “beliscam” do Facebook analisam esse pedido e é enviada uma mensagem
a palavra de ordem. De fora, as ideias o poder instituído. Repressões e ataques são uma constante que alega terem sido violados os “Standards da Comunidade”.
consideradas subversivas (apenas porque iam contra aquilo em certas latitudes. E isto pode ir de casos tão simples como o Ou seja, para que isso aconteça, basta que alguém se tenha
que eram os valores nacionais instituídos por Salazar) de Suchanee Cloitre, a jornalista tailandesa condenada a dois sentido ofendido nas suas convicções ou ideais, se tenha
eram vedadas pelo famoso lápis azul da Censura. Mas sobre anos de prisão por injúrias, devido a um comentário na rede sentido particularmente atacado com uma generalização ou,
isto já se curou tantas vezes que tendemos a amenizar, em social Twitter sobre uma queixa de maus-tratos interposta simplesmente, não “vá à bola” com um utilizador para que este
consciência, o seu impacto. Por vezes, é preciso particularizar. por 14 imigrantes birmaneses à empresa Thammakaset seja, imediatamente, privado da sua Liberdade de Expressão que,
Em primeiro lugar, de referir que a Direcção de Censura era Co, detentora do aviário onde trabalhavam, à Síria, onde os pensávamos nós, era um direito inalienável. Mas é um recurso
formada por oficiais das Forças Armadas, gente sem qualquer outros lhe seguiram. Até que os geniais escritores portugueses jornalistas que relataram violações dos direitos humanos foram que tem vindo a provar-se muito útil, principalmente para o que
sensibilidade ou conhecimento cultural, que agiam para criam o Neo-Realismo, um género que lhes permitia retratar, presos, torturados e mortos. Como se soube disto? Por colegas se coloca, de seguida, em consideração. Existe, de momento,
“cumprir serviço.” Cabia aos jovens nacionais “beberem” dos da perspectiva dos mais pobres (a esmagadora maioria dos jornalistas cujo objetivo é mostrar ao mundo aquilo de que se um partido com representação parlamentar que, antes de a ter,
grandes fenómenos internacionais (como os Beatles) e, sob portugueses), o estado decrépito em que Portugal se encontrava, padece localmente. Nestes casos, a liberdade de expressão ganha deixou bem patente que os seus ideais eram anticonstitucionais e
influência dos mesmos, criarem aquilo que foi a primeira poetizando-o ou recorrendo a metáforas tão criativas que contornos muito mais amplos. Pode salvar milhares de vidas. muitas das suas ideias iam contra tudo aquilo que foi conquistado
grande irreverência em Portugal, o Rock Nacional. Não, o Rui nem a criação, nos anos 50, de um Conselho de Leitura, pela ainda impúbere democracia portuguesa. Ainda antes das
Veloso não é o “Pai do Rock Português.” Isso é passar com destinado a orientar o procedimento dos oficiais do Exército, “problema” começa logo na Grécia Antiga. Nascem aí os eleições, publicou no seu site um Programa Político onde podiam
um rolo compressor por cima de José Cid (que antes de o ser conseguiu travar futuras edições “subversivas”. O exemplo primeiros conceitos daquilo que ainda hoje está por base ser apontados graves atentados a liberdades individuais e,
a solo, ou membro do Quarteto 111, já tinha os Babies, uma maior do completo desconhecimento acerca do trabalho que numa sociedade democrática, como sejam a justiça, a quer se queira quer não, a ideais igualitários nos quais quer a
banda de versões de Chuck Berry), Victor Gomes e os Gatos desenvolviam talvez seja o romance Esteiros, de Soeiro Pereira liberdade e, claro, a democracia. Democracia essa que tem nossa democracia, quer os mais básicos direitos humanos, se
Negros, Joaquim Costa (o Elvis de Campolide) ou José das Gomes, um retrato dramático das condições de vida de um um problema etimológico… Só aqueles que faziam parte de fundam. Tendo tudo isto escapado às mais altas instâncias que
Dores (Zeca do Rock). Na década de 60, o Teatro Monumental grupo de meninos obrigados a trabalhar numa fábrica de tijolos, um Demos (Município) podiam participar na política. Reuniam- decidem ser um partido “viável” ou não, as eleições ditaram
começou a albergar concursos de Ye-Ye. Pouco depois desse nas margens do Tejo, em Alhandra. Foi publicado em 1941, -se na Ágora (Praça Pública) para deliberar sobre aquilo que, que esse partido participe, hoje, nas discussões do hemiciclo.
início, podia ler-se num cartaz afixado ao lado da porta com ilustrações de Álvaro Cunhal. Mas só em 1966, quando eventualmente, seria do interesse de todos, expressando as suas Entretanto, observa-se um fenómeno, no mínimo, interessante. O
principal, com as características font e design do Estado Novo: as Publicações Europa-América lançaram a sua 5.ª Edição, ideias livremente. Mas as mulheres, os escravos, os prisioneiros discurso xenófobo, baseado em ideais de extrema-direita passou,
“A juventude pode ser alegre sem ser irreverente.” Não eram foi “notado” pelos mui competentes serviços, pelo despacho e os estrangeiros não tinham direito de participar da política. subitamente, a ter cabimento, principalmente nas redes sociais.
as letras das músicas que chocalhavam os alicerces do regime. 7801, onde se podia ler: “Retrata o problema das cheias no Rio A liberdade de expressão, tão essencial para a prossecução da Porque a argumentação de defesa passa pelo apelo à Liberdade
Era a alegria. A tal “irreverência” que influenciava, de forma Tejo e as consequências trágicas para as referidas populações, vida em Atenas (não havia diferença entre Estado e Sociedade) de Expressão. O Facebook está inundado de páginas de “apoio”,
negativa, uma juventude que estaria perdida se, de igual modo, sob todos os aspectos, parecendo-me que com outros fins estava, assim, vedada à esmagadora maioria. É de Aristóteles a que publicam notícias falsas e que incitam ao ódio contra as
não fossem proibidas as músicas de Zeca Afonso ou de Adriano especulativos, dá vulto a uma grande tragédia com perdas de afirmação de que os escravos deviam executar toda a espécie comunidades imigrantes que, por sua vez, estão inundadas de
Correia de Oliveira, os poemas de Ary dos Santos no Festival vidas, que me parece não corresponder à verdade (…) Julgo por de trabalhos manuais para que os cidadãos pudessem dispor perfis falsos que atacam, muitas vezes de forma excessiva e até
da Canção e todas as outras expressões culturais que não isso que este livro deveria ter sido proibido quando apareceu (25 da totalidade do seu tempo para participar nas atividades violenta, quem critica as no mínimo criticáveis posições políticas,
chegavam à elite mais ávida de modernismo, mas chegavam anos antes) mas agora deve ser ignorado, pois que a proibição políticas. Hoje, existem outras liberdades consagradas que considerações preconceituosas e declarações bacocas do seu
ao coração do povo com melodias inspiradas na música agora, só servia à sua propaganda no nosso meio, que o emprestam uma maior amplitude ao conceito de Liberdade de deputado único. Estas ações visam tudo e todos, de publicações
tradicional – e letras que “mexiam” com o status quo do Estado poderia ignorar.” De notar que este digníssimo censor escrevia Expressão. Mesmo assim, seria interessante debruçarmo- de órgãos de comunicação a meras publicações de humoristas
Novo. Era aí que entrava o serviço de censura, ao serviço da “proíbido”, se é que poderemos daí tirar as óbvias conclusões. -nos sobre a eventualidade dos tempos modernos estarem, por ou personalidades com algum peso na sociedade portuguesa.
Emissora Nacional que, além do exame prévio às notícias “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e um lado, a limitar-nos a liberdade de expressão e, por outro, Quando estes têm menos “peso”, conseguem mesmo que os perfis
que iam para o ar, emitia "notas de serviço interno", escritas de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado diametralmente oposto, a usar essa mesma liberdade de expressão sejam apagados pelo Facebook. É a supressão dos mais básicos
pelo diretor do serviço de programas ou pelos chamados pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, para incutir ideais que nos privam de tantas outras liberdades. direitos com recurso à suposta defesa de um direito fundamental,
assistentes musicais e assistentes literários: "impróprio e sem consideração de fronteiras, informações e ideias por As redes sociais e, concretamente, o Facebook, por exemplo… que é a Liberdade de Expressão. E que inevitavelmente relança a
inconveniente para transmissão", "devem ser retirados de qualquer meio de expressão”, pode ler-se no artigo 19.º da Todos conhecemos casos de amigos que, a determinada altura, discussão dos limites da mesma. Há-os? Sim. É perceber como
programação" ou "por determinação superior, não poderá ser Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por figurar foram “censurados”, ou seja, “proibidos” de publicar, comentar ou foram eleitos Donald Trump e Jair Bolsonaro. Pesar bem os
transmitido" eram algumas das notas que podiam ser lidas. neste documento, a Liberdade de Expressão está consagrada sequer aceder à sua conta por um determinado período de tempo. perigos que isso representa ou as consequências óbvias para a
Na literatura, este “monstro” assumia contornos ainda em quase todas as Constituições das democracias modernas. Não foi, de facto, o Facebook e o seu algoritmo. Esse “esconde” nossa tão frágil sociedade. E concluir que, por ora, deve haver
mais assustadores. Em 1939, Miguel Torga foi preso quando Mas a realidade é um pouco diferente. Continuam a existir fotos de cariz violento e, sobretudo, nudez. Ou o conceito de Liberdade de Expressão numa sociedade democrática a menos
publicou Quarto Dia da Criação do Mundo, um romance prisões por opiniões diversas. Por requerer, receber, partilhar nudez do Facebook, que passa por permitir nadegueiros mas que as expressões usadas com a liberdade de expressão que lhes
autobiográfico onde descreve o regime franquista. Muitos ou difundir informações ou ideias diversas dos poderes banir mamilos. É complicado. O que na realidade acontece é que assiste periguem os valores democráticos. E a Liberdade em si. l
instituídos. Em muitos dos casos em que tal acontece, poder
fazê-lo é crucial para a educação, para o crescimento pessoal
dos indivíduos e, posteriormente, para ajudar a comunidade
onde se insere, para que esta possa aceder à Justiça e, logo,
poder usufruir de todos os outros direitos que, quando não há
sequer liberdade de expressão, lhe estão certamente vedados. “TODO O INDIVÍDUO TEM DIREITO À LIBERDADE DE
O medo é o primeiro resultado. E a primeira batalha ganha OPINIÃO E DE EXPRESSÃO, O QUE IMPLICA O DIREITO
pelo opressor. Onde há medo, há esmorecimento de espírito DE NÃO SER INQUIETADO PELAS SUAS OPINIÕES
E O DE PROCURAR, RECEBER E DIFUNDIR, SEM
combativo. E uma vez morto este, está aberto o caminho para
CONSIDERAÇÃO DE FRONTEIRAS, INFORMAÇÕES
todo o tipo de abusos. Os jornalistas são um pilar essencial E IDEIAS POR QUALQUER MEIO DE EXPRESSÃO”
English version numa sociedade dita justa. Apontam, imbuídos de toda a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM

vogue.pt 2 9 1
TUDO.

TUDO.

TUDO.

Vamos fazer tudo. Tudo, tudo, tudo a que


temos direito. Vamos subir montanhas,
fazer caminhadas, sentar à sombra de uma
árvore, apanhar sol, deixar os cabelos
ao vento. Vamos descobrir civilizações,
sentir a areia entre os dedos e o sabor da
fruta fresca nos lábios, num dia quente.
Vamos explorar a natureza e a liberdade
de movimentos. Quando sairmos desta
quarentena, vamos fazer tudo.
Tudo, tudo, tudo a que temos direito.
Fotografia de Onin Lorente. Styling de Patrick Lief.

English version

Camisola em malha de lã, saia em linho e mocassins em pele e metal, tudo PRADA.
Blazer em lã fria, calças em sarja de algodão e sapatos em pele, tudo CELINE. Top em algodão, TOVE & LIBRA.
Na página ao lado: vestido em cetim de seda e camisa em algodão, ambos VERSACE.
Carteira em ráfia, MEKONG QUILTS. Sandálias em pele, HERMÈS.
Na página ao lado: camisola em malha de lã, saia em pele, meias em algodão
e sapatos em pele e metal, tudo SALVATORE FERRAGAMO.
Blusa e calções em algodão e sandálias em pele, tudo HERMÈS.
Vestido em lã fria, CHANEL. Sandálias em pele, HERMÈS.
Na página ao lado: vestido em crepe e tule de seda, GUCCI. Sutiã, da produção.
Na página ao lado: camisa e calças em algodão, ambas CHANEL. Sapatos em pele e metal, SALVATORE FERRAGAMO.
Modelos: Alexane Chaponot e Noun Sreynoch. Cabelo e maquilhagem: Leang Syna. Casting: Soap Ke.
Assistente de fotografia: Sreypich Soun. Assistente de styling: Pamela Layague,
Assistente de maquilhagem: Soreya Na. Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.
TO BE CONTINUED

O EVENTO PRINCIPAL PARA NEGÓCIOS DE LUXO


Brave New World
São eles, e apenas eles, que agora passeiam pelas ruas. Estão vazias.
Estão despidas de humanos. Esses que, diariamente, as percorrem
numa correria desenfreada em busca de coisas que, vistas desta prisão
coletiva, parecem pouco mais valiosas do que pó do deserto. O que
pensarão eles, os animais deste mundo, eles que nunca ambicionaram
nada mais que a liberdade, agora que o mundo é todo deles?

FOTOGRAFIA: ISTOCK.

O mundo em pandemia de uma perspetiva de quatro patas.

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