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Conteúdo empírico: um dogma

persistente
Célia Teixeira

A crença na lei da contradição é uma crença acerca de coisas, não é


apenas uma crença acerca de pensamentos. Não é, por exemplo, a
crença de que se pensamos que uma certa árvore é uma faia, não
podemos ao mesmo tempo pensar que não é uma faia; é antes a
crença de que se uma árvore é uma faia, não pode ao mesmo tempo
não ser uma faia. Logo, a lei da contradição é acerca de coisas e não
apenas acerca de pensamentos. [...] Se aquilo em que acreditamos
quando acreditamos na lei da contradição não fosse verdade acerca
de coisas do mundo, o facto de sermos compelidos a pensar que é
verdade não salvaria a lei da contradição de ser falsa; e isto mostra
que a lei não é uma lei do pensamento. (Bertrand Russell, The
Problems of Philosophy, p. 50)
É comum encontrar-se nos livros de filosofia afirmações como a de
que as verdades da lógica não têm conteúdo factual, que nada dizem
acerca do mundo, e, como tal, são imunes à refutação pela
observação. Este é um dos dogmas mais enraizados do positivismo
lógico. O objectivo deste artigo é desfazer o dogma.
Para compreender o argumento por detrás do dogma, vejamos as
seguintes frases:
1) Portugal vai ganhar ou não vai ganhar.
2) Portugal ganhou.
Para que a frase 2 seja verdadeira, Portugal tem de ganhar; se
Portugal perder a frase é falsa. Para sabermos se a frase é verdadeira
ou falsa temos de olhar para o mundo: temos de observar se Portugal
ganhou ou não.
Vejamos agora a frase 1. Parece que o facto de Portugal ganhar ou
perder é irrelevante para a verdade da frase. Se Portugal ganhar, é
verdade que ou Portugal ganha ou não ganha. Se Portugal perder, é
verdade que Portugal ganha ou não ganha. Deste modo, concluem os
positivistas, a frase nada tem a ver com Portugal nem com o facto de
ele ganhar ou não, nem com coisa alguma. Uma vez que para
sabermos que a frase é verdadeira não precisamos de olhar para o
mundo, então a frase nada exprime acerca do mundo: não tem
conteúdo factual. Daí que não seja de estranhar que se substituirmos
a frase “Portugal vai ganhar” por uma qualquer outra frase, a frase
que resultar desse processo será sempre verdadeira. Por exemplo, se
substituirmos “Portugal vai ganhar” por “a neve é branca” ficamos
com a frase verdadeira “Ou a neve é branca ou a neve não é branca”.
Se substituirmos por “Existem unicórnios” chegamos ao mesmo
resultado, e isto acontece para qualquer expressão gramaticalmente
admissível. E o mesmo acontece para todos os outros casos de
verdades lógicas.
Passemos então a ver as teses por detrás deste tipo de argumento.

Tese I
A primeira tese é a de que se uma dada frase é verdadeira seja o que
for que aconteça no mundo, então nada diz acerca do mundo.
Antes de podermos refutar a tese I é preciso distinguir dois tipos de
verdades: as verdades contingentes e as verdades necessárias. Diz-se
que uma verdade é contingente se for verdadeira mas poderia ter sido
falsa. Por exemplo, Jorge Sampaio ganhou as últimas eleições
presidenciais, mas poderia não ter ganho. Esta é, portanto, uma
verdade contingente. Já a frase Jorge Sampaio existe ou não existe, é
uma verdade necessária, dado que não poderia ter sido falsa. Ou seja,
não há qualquer circunstância em que isso poderia não se verificar.
Assim, o que os positivistas defendem é que as verdades necessárias
não têm conteúdo factual. (Note-se que os positivistas não aceitam
termos modais como o de possibilidade e necessidade, mas como nós
aceitamos não há problema em reformularmos a tese deles apelando
a tais noções.) Contudo, do facto de não existir circunstância alguma
em que algo não seja o caso, não se segue que esse algo não seja
acerca do mundo. Por exemplo, aconteça o que acontecer no mundo,
eu seria sempre igual a mim própria, mesmo que não exista. Mas
certamente que essa frase diz algo acerca do mundo, nomeadamente,
que o mundo é tal que eu serei sempre igual a mim própria. Do
mesmo modo, do facto de a neve ser branca ou não em todas as
circunstâncias possíveis, não se segue que essa frase não seja acerca
de coisa alguma. É claro que é; nomeadamente, é acerca do facto de
que o mundo, por mais diferente que seja, nunca poderá ser tal que a
neve seja branca e não seja branca ao mesmo tempo. Se o mundo não
tivesse uma estrutura lógica, se fossem possíveis impossibilidades,
então seria o caso que a neve era e não era branca ao mesmo tempo.
Mas as impossibilidades não são possíveis.
Segundo esta tese positivista, todas as frases necessárias diriam a
mesma coisa, nomeadamente, nada. Mas certamente que a frase “a
neve é branca ou a neve não é branca” diz algo diferente da frase
“Portugal ganha ou Portugal não ganha”. Nomeadamente, a primeira
frase é acerca do facto necessário de a neve ser ou não branca, e a
segundo acerca do facto igualmente necessário de Portugal ganhar ou
não.
Alguns filósofos defendem que frases como “A água é H2O” e
“Sócrates é um ser humano” são necessárias. Se a tese positivista
fosse correcta, o que estes filósofos estariam a dizer é que estas
frases nada dizem nada, o que é absurdo.

Tese II
A segunda tese positivista é a de que se não precisamos de observar o
mundo para saber que uma frase é verdadeira, então esta nada diz
acerca do mundo. Por exemplo, não precisamos de olhar para o
mundo para sabermos que ou chove ou não chove. Logo, se a tese II
fosse correcta, a frase “Chove ou não chove” não seria acerca do
mundo. Mas se não é acerca do mundo é acerca do quê? Será que
pelo facto de podermos descobrir coisas pelo pensamento apenas se
segue que isso não é acerca do mundo? Ou seja, pelo facto de eu
saber pelo pensamento apenas que se juntar dois objectos mais dois
obtenho quatro objectos será que se segue que isto não é um facto
acerca do mundo? Pelo contrário, parece que é um facto acerca do
mundo: nomeadamente, é acerca do facto de o mundo ser tal que
sempre que juntamos dois objectos mais dois objectos obtemos quatro
objectos. Também parece evidente que eu posso saber pelo
pensamento apenas que existo; mas isto é com toda a certeza um
facto acerca do mundo, e não acerca de nada.
Um exemplo mais flagrante de que esta tese não pode ser correcta é
aquele que podemos retirar da física teórica. Muita da física teórica
que se faz hoje em dia tem por base a matemática pura. Ou seja, os
físicos chegam a resultados com base na matemática. É claro que eles
têm como objectivo resolver problemas empíricos, e também é claro
que eles depois testam empiricamente os resultados assim obtidos.
Mas isso é irrelevante para o caso. A verdade é que os físicos
constroem hipóteses físicas com base na matemática apenas, ou seja,
pelo puro pensamento apenas. Será que por esse facto esses
resultados não são acerca do mundo? Claro que são.
Por exemplo, durante muitos séculos julgou-se que o espaço era
euclidiano (ou plano). Muitos anos antes de se testar tal tese foram
desenvolvidos outros tipos de geometrias, as chamadas geometrias
não-euclidianas (que pressupõem o espaço curvo). Mais tarde chegou-
se à conclusão que o espaço obedecia aos axiomas da geometria não-
euclidiana. Se os positivistas tivessem razão, não poderíamos ter
chegado a uma tal conclusão. Porquê? Porque as geometrias não-
euclidianas (assim como as euclidianas) foram obtidas sem olhar para
o mundo, pelo pensamento apenas. Logo, não poderiam ter conteúdo
factual. E se não tivessem conteúdo factual, não poderíamos concluir
que elas espelhavam a estrutura real do espaço.
A tese II diz-nos que se chegamos a uma verdade pelo pensamento
apenas, então essa verdade não tem conteúdo factual. A questão
agora é saber como chegaram os positivistas a tal tese. Não parece
que esta tese possa ser formulada com base na observação do
mundo. Afinal que tipo de observação poderia suportar tal tese? De
modo que os positivistas só poderiam chegar a tal tese pelo
pensamento apenas. Mas isto refuta a própria tese, pois se eles
tivessem razão, a tese nada diria acerca do mundo.

Tese III
Segundo esta tese se uma frase não poder ser empiricamente
refutada, nada diz acerca do mundo.
Por exemplo, não é possível refutar a frase “a neve ou é branca ou
não”, porque esta exprime uma verdade necessária. Será que daqui
se segue que então nada diz acerca do mundo? Se nada diz acerca do
mundo diz acerca do quê? É obvio que esta frase diz qualquer coisa. E
também parece evidente que aquilo que diz é diferente daquilo que
diz a frase “Nenhum solteiro é casado”. Nomeadamente, a primeira é
acerca da neve e a segunda é acerca de solteiros e do facto de
nenhum deles ser casado. De modo que estas frases dizem qualquer
coisa acerca do mundo, apesar de não poderem ser empiricamente
refutadas.
Se for verdade, como muitos filósofos defendem e como é difícil
recusar, que a água é necessariamente H2O, então não é possível
refutar esta afirmação. Mas é evidente que esta afirmação é sobre o
mundo. Poder-se-ia responder: metafisicamente, não se pode refutar
esta afirmação, porque é verdadeira em todas as circunstâncias
possíveis. Mas logicamente pode-se refutá-la, porque não é uma
verdade lógica. Mas isto é só uma maneira de voltar a formular o
dogma: que as verdades da lógica nada nos dizem acerca do mundo.
Ora, o que se pretendia com este argumento era defender esta ideia,
e não voltar a formulá-la de uma maneira enviesada.
A tese III enfrenta problemas ainda mais graves quando levarmos em
consideração o projecto empirista no seu todo. Os positivistas não
acreditavam numa série de coisas, como na existência de princípios
morais, metafísicos ou o que quer que seja que não fosse estabelecido
cientificamente. Ora, a tese III só pode fazer sentido na medida em
que apela à noção modal de possibilidade, que é um dos bichos por
eles abandonados como criaturas esquisitas. Aquilo que a tese III diz é
que se não for possível refutar uma certa frase, então esta nada diz
acerca do mundo. Uma vez que eles não podem apelar à noção modal
de possibilidade resta-lhes reformular a tese do seguinte modo: se não
refutarmos uma frase, esta nada diz acerca do mundo. Tendo em
conta que muitas verdades estabelecidas pela menina dos olhos dos
positivistas, a ciência, não foram refutadas, elas nada dizem acerca do
mundo. E isto é um resultado absurdo mesmo para os positivistas.
Célia Teixeira

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