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NATAL - RN
2011
RENATO DOS SANTOS BARBOSA
NATAL - RN
2011
RENATO DOS SANTOS BARBOSA
Banca Examinadora:
__________________________________________________
Orientador(a) Profa. Dra. Fernanda Machado e Bulhões
__________________________________________________
Prof. Dr. Markus Figueira da Silva
__________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto
RESUMO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 5
3. A LIBERDADE ............................................................................................. 28
CONCLUSÃO .................................................................................................. 38
INTRODUÇÃO
1
Lucr. 2. 216-224
6
doutrinas sabidamente epicúrias. Mas, à parte isso, Lucrécio nos deu uma
contribuição importante para o entendimento da liberdade epicurista: ela não se
encontra em outro lugar senão na phýsis (natureza). Porém, a liberdade não é algo
evidente e, por isso devemos, antes de tudo, pensar a ação humana sublinhando a
ação autárquica como indicadora da liberdade. Como o nome diz, autarquia se
refere a um tipo de ação ou comportamento que é originado no próprio homem e
está ligado à liberdade por implicar em uma quebra, em algum momento, da cadeia
causal determinística2. Assim, o que nos motiva é desenvolver uma interpretação
dos escritos de Epicuro que privilegie suas posições a respeito da liberdade, na
tentativa de encontrar o lugar e o momento em que essa liberdade epicurista se
mostra.
Não intentamos aqui nos deter em contextualizações históricas nem em
informações que não contribuirão para o esclarecimento do problema proposto.
Sabemos da necessidade de apresentar uma visão geral da filosofia de Epicuro (e
ainda mais de um filósofo tão pouco conhecido), porém consideramos que um
alongamento nesses pontos pudesse prejudicar a clareza e objetividade do trabalho.
Portanto, exporemos uma visão de conjunto do epicurismo imiscuído em meio à
apresentação e discussão do problema. Sobretudo dependemos de uma
apresentação das doutrinas elementares ou dos princípios canônicos de Epicuro,
dos quais a abordagem é crucial para a compreensão da ação autárquica e, em
última instância, da liberdade.
Podemos seguramente afirmar a crença de Epicuro nas capacidades
cognitivas do homem na descoberta do mundo, apesar dos céticos e apesar de sua
total consciência dos limites do conhecimento humano. Por isso o motivo de seu
esforço em fundamentar todo seu conhecimento em bases seguras. Seu esforço
para distinguir conhecimentos diretamente observáveis e os indiretamente
observáveis. E, neste caso, seu esforço para mostrar a possibilidade de existência
de uma ação autárquica que não vemos nem sentimos com qualquer outro sentido.
Isso tudo se faz necessário devido ao postulado epicurista que coloca na sensação
2
Como afirma Silva (2003, p.86) “Literalmente, autárqueia é uma qualidade de quem se basta a si
mesmo, e isto só é possível quando sua ação tem o princípio nele mesmo, ou ainda quando a causa
da ação esteja nele mesmo”.
7
o critério para toda afirmação sobre o mundo, dizendo: “[...] devemos compatibilizar
todas as nossas investigações com nossas sensações” (Dioge. Laert. 10.38).
Seguindo o modelo da carta a Heródoto3 iniciaremos com o exame dos
chamados princípios canônicos de Epicuro. Através desse exame observaremos
como o filósofo de Samos pode fundamentar sua crença na ação autárquica.
Sustentaremos que os mesmos princípios utilizados na investigação da natureza
figuram também no estudo da ética. Para isso analisaremos as expressões
par’hemás (o que nos cabe) e par’hemim (próximo de nós), usadas no contexto ético
e no contexto da physiología (estudo da natureza) respectivamente, as quais, por
suas semelhanças semânticas (mais evidentes no original), indicam a estreiteza da
relação entre a ética e a investigação da natureza.
Num segundo momento extrairemos dos fragmentos do Peri physeos4 (Sobre
a Natureza) indícios sobre a compreensão epicúria da ação humana. Certamente
precisamos entender a posição de Epicuro sobre a ação do homem antes de
podermos nos posicionar interpretativamente sobre o verdadeiro âmbito da liberdade
humana no epicurismo. E ainda, que a compreensão da autarquia é essencial para,
por sua vez, compreender a liberdade, pois uma ação autárquica aponta para uma
instância em que o homem se revela livre. Queremos deixar claro que, ao contrário
da maioria das interpretações dos textos de Epicuro, a liberdade não pode ser
confundida com o acaso, pois cometer uma ação aleatória não nos faz mais livres.
Ademais, a liberdade não reside na ação, mas em uma instância anterior.
A liberdade não é um tema que se estuda isoladamente no epicurismo, antes,
está relacionada com pressupostos canônicos, cosmológicos e principalmente
éticos. Podemos dizer que tudo começa com uma observação pragmática: somos
punidos e recompensados. Essa observação implica na negação da teoria
democrítica da necessidade, pois se tudo ocorresse por necessidade não
poderíamos ser responsabilizados por nossas ações, o mesmo se seguindo com
relação ao acaso. Assim, os homens são encarados por Epicuro como tendo em si a
causa de suas ações, ou seja, como seres autárquicos, sendo justamente
3
Cf. Diog. Laert. 10.38
4
Obra de Epicuro que segundo Diógenes Laércio era composta por 37 livros, da qual temos
disponíveis apenas fragmentos encontrados na Villa dei papire na cidade italiana de Herculano. Cf.
Dioge.Laert.10.30
8
recompensados ou punidos por seus atos. Isso não significa que agimos
autarquicamente o tempo todo e em todos os tipos de ações, mas que existem
ações que são totalmente originadas no próprio homem. Resta-nos descobrir como
elas se dão, pois a resposta para isso revelará o lugar e o momento em que somos
livres segundo o pensamento do filósofo do jardim.
9
5
Cf. Dioge. Laert. 10.29-30
10
ações autárquicas? Sabendo de antemão que esta resposta, baseada nos princípios
canônicos, envolverá questões éticas e cosmológicas.
Para Epicuro, toda teoria deve ser fundamentada nas sensações. A palavra
grega equivalente a sensação é aísthesis, que designa toda percepção verdadeira e
que é fonte de todo conteúdo racional. Ao contrário de Demócrito que, segundo o
testemunho de Sexto Empírico6, teria reduzido o âmbito da sensação ao nível da
mera opinião (dóxa), Epicuro, por outro lado, defende que “a única fonte de
conhecimento é a sensação” (PESCE, 1974, p. 21). Esta não seria apenas o filho
bastardo7 do conhecimento, mas o aferidor de medida de todo conhecer. “Nem
mesmo a razão (lógos)”, comenta Diógenes Laércio, “pode contradizer uma
sensação, pois a razão depende dela totalmente” (Dioge. Laert. 10. 32.4). Porém,
isso não significa uma desvalorização do conhecimento de natureza racional,
significa apenas que o fundamento do conhecimento racional reside na sensação.
“Pois todas as nossas noções derivam da sensação, seja por incidência, analogia,
semelhança ou por união” (Dioge. Laert. 10. 32.10). Deste modo, a sensação é
posta como um critério de verdade ao lado das antecipações, das afecções e dos
saltos imaginativos do pensamento8. Destes, é importante destacar a chamada
antecipação (prolépsis), que é “uma espécie de cognição ou apreensão imediata do
real”, e ainda, “a memorização de um objeto externo que apareceu frequentemente”
(Dioge. Laert. 10. 33). Trata-se, pois, da capacidade do homem para reter em sua
alma experiências de outrora que podem ser rapidamente recuperadas a cada
momento em que um estímulo o afete. Isso explica o poder do homem de prescindir
de objetos presentes para poder referi-los, pois ele pode evocar e provocar a todo o
momento impressões na alma de seus interlocutores. Isso também significa que
podemos trazer à tona sensações que tivemos em momentos passados, como de
prazer e dor, ou reconhecer à distância objetos pouco visíveis sem que precisemos a
6
Cf. Sext. Emp. Math. 07.135
7
Cf. CONCHE, 1977, p.15
8
Cf. Dioge. Laert. 10.31
11
9
Sext. Emp. Math. 07.208
10
Dioge. Laert. 10.50
12
Antes de se utilizar desse argumento13 Epicuro afirma: “[...] é nos sentidos que
a razão deve basear-se quando tenta inferir o desconhecido partindo do conhecido”
(Dioge. Laert. 10. 39), assim, a sensação sempre permanece no lastro de toda
opinião ou teoria que se quer emancipada da sensação, até mesmo o vazio que
parece escapar ao poder de nossos sentidos deve sua compreensão à evidência
sensível do movimento, pois este último contradiz a teoria da inexistência do vazio.
Ou seja, indiretamente, com a contribuição de um cálculo racional, podemos estar
certos sobre a existência de um imperceptível. Servindo-se desse modelo, Epicuro
demonstra, desta vez mais sutilmente, que a ação autárquica – ou a ação que tem
sua causa em seu próprio autor e não em outro ou fora dele – existe efetivamente e
pode ser conhecida, não por ela mesma, mas por via de um fenômeno evidente. O
filósofo do jardim acusaria seus antecessores atomistas de desconsiderar um
fenômeno evidente em suas teorias14 sobre o todo: existem punições, admoestações
11
Isso nos dará elementos para fundamentar a demonstração da ação autárquica, posto que, como o
vazio e os fenômenos celestes, a ação autárquica também é um imperceptível.
12
Cf. Arist. Gen. Corr. 1. 8. 325a25
13
“Se aquilo que chamamos vazio ou espaço, ou aquilo que por natureza é intangível, não tivesse
uma existência real, nada haveria em que os corpos pudessem estar, e nada através de que eles
pudessem mover-se, como parecem que se movem.” (Dioge. Laert. 10. 40)
14
Da mesma forma que no argumento do vazio, é interessante notar, a ação autárquica também não
é algo que está de todo afastado de nossas percepções. Pois sabemos quando algo está ausente e
dizemos: está vazio. Bem como, dizemos: fulano cometeu tal e tal ação. Porém, teorias complexas
13
O que designamos com a frase “não existe ação autárquica” em (i) e (iii)
resume a expressão: a necessidade se estende até o âmbito da ação humana e
produz ações irresponsáveis. Pois como definimos na introdução, a autarquia se
caracteriza por ações ou comportamentos que tem suas origens no domínio do
próprio homem, de modo que a ação autárquica não pode ser cometida em um
mundo em que a necessidade domine sobre todas as ações dos homens 17. Para se
contrapor a teoria da necessidade, Epicuro não assume simplesmente a existência
de ações autárquicas, mas, através da prova indireta, demonstra sua existência.
Pois partindo da evidência da censura e do louvor, as quais não poderiam existir se
não houvesse também ações autárquicas, Epicuro afirma forçosamente a existência
de tais ações. Como diz Bobzien, “o conceito de censura pressupõe que os seres
foram elaboradas ao ponto de se duvidar e até se negar a existência do vazio e da ação autárquica.
Portanto, foi necessária ao filósofo de Samos a apresentação e demonstração dos argumentos.
15
Diógenes Laércio, quando expõe as opiniões de Demócrito, escreve: tudo acontece por força da
necessidade (Dioge. Laert. 09.45).
16
Tradução do Gama Kury que em parte discordamos e sobre a qual discutiremos em breve.
17
Nem, por outro lado, que o acaso intervenha nas ações dos homens, fazendo-os produzir ações
randômicas, sobre as quais não pode haver o domínio do homem.
14
que são censurados são eles mesmos responsáveis por suas ações” (BURKHARD
(Org.), 2006, p. 208).
Por trás das palavras censura (memptón) e seu oposto (enantíon), referindo-
se ao elogio na passagem 133, podemos observar a preocupação do filósofo com a
responsabilidade dos homens para com suas ações. Epicuro se preocupa
gravemente com as teorias de sua época que esquecem o homem e seu agir, seus
costumes e comportamentos, enfim, seu éthos, suprimindo o homem de seu lugar na
explicação do todo. Tais teorias, como a democrítica, devem ser rejeitadas em
detrimento de uma investigação real dos modos em que a natureza se realiza. Existe
o acaso, existe a necessidade, mas, sobretudo, existe o âmbito de ação do homem,
que se identifica com a expressão par’hemás: aquilo que nos cabe ou nos concerne.
18
Cf. BOBZIEN, 2000, p. 293
19
Cf. BOLLACK, 1975, p. 81
15
Nessa passagem aquilo que G. Kury traduziu como “no âmbito de nossos
sentidos” pode simplesmente, e de maneira muito mais elegante, ser traduzido
apenas como próximo de nós (par’hemín), que aqui surge como critério para a
explicação de eventos ou fatos naturais imperceptíveis aos homens ou que estão
longe do alcance dos sentidos. De modo que tudo aquilo que pode ser submetido à
20
Grifo nosso.
16
21
Cf. MURACHCO, 2007, p. 164 e 592-594
17
2. A TESSITURA DA AÇÃO
22
Cf. SILVA, 1998, p.61
23
PARENTE, 1974
24
LONG, A. A. & SEDLEY, 1987
19
No atomismo antigo a alma não configura uma exceção ao princípio que diz:
“o todo é constituído de átomos e vazio” (Dioge. Laert. 10.39). Resta, assim, duas
opções, ou a alma é composta de átomos, e por isso é um agregado corpóreo, ou a
alma é desprovida de átomos, e, portanto, nada além que vazio. Porém, se este
último caso for verdadeiro, a alma perderá todas as características que normalmente
atribuímos a ela, pois “o vazio não é ativo nem passivo, mas simplesmente permite
aos corpos o movimento através de si mesmo” (Dioge. Laert 10. 67). Desse modo,
não poderíamos explicar porque um corpo morto e um corpo vivo são radicalmente
diferentes um do outro, pois se a alma fosse uma pura ausência de corpos ficaria
inexplicável a distinção clara que percebemos entre um defunto e um homem vivo.
Por isso, diz Epicuro: “Se fosse assim a alma não seria nem ativa nem passiva,
porém é evidente que a alma possui ambas essas qualidades” (Dioge. Laert. 10. 67.
7). Logo, a alma é corpo e, além disso, é ativa e passiva, ou seja, ela afeta os corpos
em geral e, por outro lado, destes também recebe estímulos. Entretanto, os átomos
que a compõem são distintos dos átomos dos corpos-coisas25, porquanto são sutis
(leptomerés) e mais rápidos, e por isso a alma é um agregado corpóreo que não se
dá a percepção. Para sustentar essa afirmação “os Epicuristas, raciocinam por
analogia: no mundo de nossa experiência, os corpos grandes, pesados e rugosos
têm menos facilidade de se mover [...] que os corpos pequenos e redondos”
(CONCHE, 1977, p. 57). Nessas idéias estão inclusas os princípios que regem a
possibilidade e impossibilidade do conhecimento de algo, assim como foi tratado no
capítulo 1. Quando Epicuro assemelha certos aspectos da alma a um sopro, outros
ao calor26 e caracteriza os átomos anímicos, ele está se valendo de seus princípios
canônicos para falar de algo que é imperceptível, pois
25
Utilizamos essa forma para nos referir aos corpos de maneira geral e para diferenciar dos casos
particulares de corpo enquanto alma e enquanto carne.
26
Dioge. Laert. 10.63
20
27
Cf. Lucr. 3.240 e Dioge. Laert. 10.66
28
Cf. Dioge. Laert. 10.64 e Lucr. 3. 245
29
Há uma extensa discussão quanto aos elementos da alma, dos quais Epicuro enumera três: o
sopro, o calor e o elemento sem nome. Aos quais, Lucrécio acrescenta mais um: o ar. Para essa
discussão Cf. SILVA, 2003, p. 64-71.
21
30
Cf. Lucr. 3.250 e SILVA, 2003, p. 62
31
Cf. Dioge. Laert. 10.53
32
Cf. Dioge. Laert. 10.46
22
Comecemos por (i) nossa constituição inicial (ex archés systásis). Esta se
relaciona com nosso temperamento natural, cujo fundamento reside em um tipo de
estrutura atômica inata. A pessoa de temperamento irascível, manso, melancólico,
temeroso etc., deve, portanto, seu temperamento a sua constituição atômica inicial
que se manifesta através desses “vestígios do caráter” que, segundo Lucrécio, a
educação não elimina de todo (Lucr. 3. 310). Podemos observar, na citação acima,
que Epicuro contrapõe a constituição inicial ao tipo de ação cometida tendo “a causa
em nós mesmos” ou – dito de outro modo – àquela que é passível de apreciação
moral. Desse modo, o lugar da ação resultante da constituição inicial se situa na
esfera da necessidade, isto é, no domínio em que não podemos imputar
responsabilidade ao seu autor. Essa ação é irresponsável na medida em que seus
motivadores residem em princípios que estão para além das determinações do
33
Cf. BUKHARD, p. 207, 2006
34
Tradução nossa, vertida do inglês.
23
próprio homem, pois o homem herda da natureza essa constituição primitiva, bruta,
ainda por lapidar. Entretanto, a ação produzida pela constituição inicial ocorre em
parceria, pois a influência do (ii) meio ambiente sempre lhe está atrelada. Tanto o
meio ambiente quanto a constituição inicial são fatores presentes, por exemplo, na
ação dos animais, o que explica o fato de não reprovarmos seu comportamento
como se eles fossem responsáveis por seus atos:
35
A ação que é descrita como movimento derivado é exatamente o que chamamos de influência do
meio ambiente.
36
Tradução nossa, vertida do italiano.
37
Ou imagens
24
o termo aitía ou a expressão eph hemon para falar da causa que reside em nós, em
outros momentos, por sua vez, quando quer elucidar o caráter manifesto de sua
posição, utiliza a expressão (já comentada) par’hemás. Mas, em todas as ocasiões
se revela a obrigação de admitirmos que não haveria conduta concreta, certa ou
errada, se também não admitíssemos que somos causas de muitas de nossas ações
e que podemos desenvolver nosso caráter com o intuito de “viver como um deus
entre os homens”.
Ser causa de uma ação é ser autárquico, mas até que ponto podemos dizer
que a leitura dos textos de Epicuro proporciona essa compreensão de autarquia.
Vejamos se estamos utilizando o termo corretamente.
os direitos de ir, vir, e fazer escolhas próprias. De modo geral, quando se fala em
eleýtheros, trata-se do homem livre em seu sentido político e, meramente, em sua
relação de oposição com o doûlos (escravo), não se tratando ainda aqui da
liberdade enquanto assunto de um problema metafísico. A segunda qualidade é a
independência – e, por isso, rejeição – das riquezas, dos grandes banquetes, da
opinião do vulgo, do excesso etc., como diz Epicuro a Meneceu: “Às vezes
consideramos a auto-suficiência (autárkeia) um grande bem, não porque em todos
os casos devemos nos contentar com o pouco, mas para que se não tivermos o
muito nos contentemos com o pouco” (Dioge. Laert. 10. 130). O sábio epicurista não
está à mercê da contingência e do acaso, mas permanece sereno mesmo na
adversidade. Ele domina autarquicamente seus desejos, não dependendo de mesas
fartas para ter prazer, mas apenas um naco de queijo e um trago de vinho podem
proporcionar prazeres intensos. O sábio autárquico, pois, não depende de
influências externas para alcançar seus objetivos. Outra característica da autarquia
epicúria é a generosidade:
O mundo não configura obstáculo para o sábio autárquico, pois dele pouco
depende, de modo que o princípio do comportamento do sábio não reside no que
extrapola seus limites, mas é constitutivo de sua alma.
Assim, podemos comprovar que nossa definição de ação autárquica como
uma espécie de ação que tem sua origem em seu próprio autor não é incoerente
com as posições epicúrias apresentadas, desde que a ação do sábio autárquico não
é reativa, mas, longe disso, tem seu princípio em um movimento da alma que
excede a mera relação de causa e efeito. Essa posição se fundamenta nos textos de
Epicuro que apresentamos, nos quais podemos observar as características do sábio,
sobretudo, a noção de que este tem em suas mãos as rédeas de seu destino, não
se deixando levar pelas vicissitudes da vida. A autarquia, portanto, propicia ao
homem uma vida livre, na medida em que ela efetiva toda a potencialidade latente
para a liberdade. Entretanto, permanece a questão: o que outorga ao homem a
27
3. A LIBERDADE
39
Alguém que investiga no âmbito natural causas e fenômenos.
40
Cf. Dioge. Laert. 10. 37
41
Cf. Dioge. Laert. 10. 63
29
Vimos no que já foi trabalhado nos capítulos anteriores que todo homem é
responsável causalmente por suas ações, sendo sujeito a críticas, elogios, punições,
etc. Para chegar a essa conclusão não precisamos de nada além da observação do
homem em seu meio social. Fato do qual Epicuro se vale para justificar a
perspectiva que afirma a autarquia do homem ou sua capacidade de agir por si
mesmo. É por meio dessa evidência que Epicuro critica, principalmente, o
posicionamento de Demócrito, seu antecessor no atomismo, com vistas a denunciar
sua inobservância em relação ao agir do homem no mundo.
É tendo em vista esses apontamentos que P. -M. Morel afirma que
diferencia das crianças e dos outros animais na natureza e, ainda, nos remete em
direção ao questionamento: O que nos torna capazes de produzir ações que não
são meras consequências de estímulos externos, mas que se produzem no próprio
agente?
Antes de adentrarmos no mérito desses questionamentos é oportuno
diferenciar a maneira como a tradição legou esse problema para posteridade.
Referimo-nos ao Problema da Vontade Livre. Embora Epicuro tenha sido
possivelmente uma das molas propulsoras44 da discussão acerca do problema, ele,
no entanto, não compactua com a maneira que tem sido tratada a questão. Por isso
T. O’keef afirma: “Epicuro ajudou a formar uma concepção libertarista da liberdade
da vontade que ele mesmo teria repudiado” (O’KEEF, 2005, p. 2). Para citar uma
diferença clara entre a maneira pela qual Epicuro entende o problema, basta
considerarmos a forma caricatural a que este tem sido submetida – e que muitas
vezes é atribuída ao próprio Epicuro – de que a liberdade da vontade45 se apresenta
como um indeterminismo da escolha do agente em relação a fatores externos e
também internos.46 Não é difícil de imaginar os problemas que isso acarretaria. Pois
até mesmo aquilo sobre o qual estamos todos de acordo, a saber, que somos
punidos e recompensados pelos nossos atos entraria em contradição com a
supracitada perspectiva, uma vez que uma ação que não se fundamenta nem em
nosso caráter, nem tampouco nas influências externas, não pode ser de
responsabilidade de ninguém. Longe disso, concordamos com o modelo
apresentado por S. Bobzien: “Eu47 sou quando Eu faço a escolha, e sou
causalmente responsável por qual ação é feita. Eu chamo isso de o modelo de ação
da pessoa-completa (whole-person)” (BOBZIEN, 2000, p. 291)48. Esse modelo de
ação parte do princípio de que se alguém é punido ou recompensado o é porque os
fatores constituintes de sua ação partiram do ser do próprio agente em sua inteireza.
44
“Epicuro tem sido saudado como a primeira pessoa a descobrir o problema da vontade livre. Porém
isso é muito precipitado”. (OKEEF, 2005, p. 10)
45
Vale apena, para demarcar ainda mais a diferença, citar as palavras de DE WITT a respeito da
Vontade: “Durante o século dezenove o público erudito estava habituado a aceitar a tripla divisão das
faculdades em Intelecto, Emoções e Vontade. Isso ocasionou no prelo e no púlpito uma excessiva
glorificação da “vontade” e do “poder da vontade”, semelhante às deificações das abstrações entre os
gregos e romanos. Não há equivalente no pensamento grego e romano deste isolamento e ampliação
da vontade como distinta das outras faculdades. (DE WITT, 1954, p. 173)
46
Cf. BOBZIEN, 2000, p. 290
47
Grifo do autor
48
Nossa tradução do original em inglês.
31
Ou seja, não faz sentido recompensar alguém que cometeu uma ação por acaso ou
que simplesmente agiu aleatoriamente. Enfim, para concluir a digressão, se para
Epicuro há um indeterminismo, então, ele não se manifesta nas ações, pois estas
são inteiramente determinadas pelo caráter do agente em sua completude. Temos
eliminado, pois, do nosso percurso, a posição que afirma um indeterminismo puro
que, inclusive, muitas vezes aparece associada com a doutrina do clínamen (desvio
dos átomos) veiculada por Lucrécio. Estamos tentados, então, a afirmar que uma
ação autárquica é aquela que é determinada pelo seu autor, ou, dito de outro modo,
que a origem de sua ação se encontra nos limites do agente mesmo. No entanto, o
que buscamos aqui é aquilo que torna possível uma ação autárquica, isto é,
procuramos pela liberdade, ou melhor, a explicação de Epicuro acerca da liberdade
para agir autarquicamente.
Levando em consideração o que estabelecemos até agora, a saber, que na
conta de Epicuro para a resolução do problema entram preocupações físico-éticas e,
também, a compreensão de que a ação autárquica é determinada pelo agente, é
necessário, ainda, tentar estabelecer a motivação de Epicuro para a afirmação da
Liberdade. Isso se faz necessário porque a literatura especializada tem proposto
algumas resoluções do problema da liberdade de acordo com supostas motivações
do filósofo. Por exemplo, como já citamos, P.-M. Morel diz que Epicuro não estava
interessado em fundamentar a ação autárquica em sua physiología (estudo da
natureza), mas interessado apenas em refutar seus oponentes por meio da
evidência da responsabilidade, não restando, assim, mais problemas a respeito da
liberdade a serem resolvidos. Entretanto, já declaramos nossa discordância quanto a
essa perspectiva em particular. Vejamos, então, mais dois posicionamentos que são
de suma importância para a compreensão do problema.
Aquele que diz que tudo acontece por necessidade não tem
nada a reprovar àquele que diz que tudo não acontece por
necessidade, porque diz que isso mesmo acontece por
necessidade (CONCHE, 1977, p. 257)51
52
Ver a seção 2.2 deste trabalho
53
Cf. BUKCHARD (Org.), 2006, p. 212
54
Abordagem sobre a qual discordamos ser de autoria de Epicuro, visto que não encontramos
passagens textuais que sustentem a doutrina do Clínamen. Nem mesmo no Peri Physeos existe
referência a tal doutrina. Cf. O’KEEF, 2005, p. 82.
34
A fortuna (týche) tem pouco efeito sobre o sábio; foi sua razão
(logismós) que regulou as coisas maiores e mais importantes
[e as regula e regulará] durante toda a duração de sua vida.
(MORAES, 2006, p. 33)
Com efeito, vimos no capítulo 2 deste trabalho que Epicuro utiliza como
argumento o exemplo dos animais selvagens, mostrando que a censura que
fazemos aos homens por seus maus atos não pode aplicar-se aos animais, porém
aos quais “[...] achamos um dever sempre justificar a ação, seja com a constituição
inicial, seja com o movimento derivado” (PARENTE, 1974, p. 254). O paralelo, pois,
que Epicuro estabelece entre os homens e os demais animais, evidencia que o
motivo pelo qual nós responsabilizamos os homens por suas ações é que estes têm
a capacidade de realizar cálculos racionais (logismós) com vistas a efetivação do
melhor modo de se viver, de modo que a escolha deste é resultado da maneira pela
qual desenvolvemos nosso caráter. Pois, o homem, a princípio regido por sua
constituição inicial, isto é, a sua forma bruta ainda por lapidar, vai retrabalhando a
estrutura atômica de sua psiché (alma). O resultado desse movimento Epicuro
chama de appogegenneména, palavra traduzida por Laursen55 por “products”
(produtos), tais produtos ou frutos determinam o conjunto de crenças que possuímos
e junto com elas nosso caráter, o qual, por sua vez, determinará inelutavelmente a
maneira como agiremos. Se, entretanto, não desenvolvermos nosso caráter ou, pelo
55
Ver O’KEEF, 2005, p. 95
35
56
Para discussão do significado da expressão Par’hemás ver cap. 1 deste trabalho.
36
inicial e, por causa disso, cometermos determinadas ações, não estaremos isentos
da responsabilidade sobre ela, como se pudéssemos culpar a natureza. Antes, a
capacidade de preservar ou de modificar tais e tais “sementes”, implica que somos
responsáveis pelo que fazemos a cada momento, capazes de produzir novas
configurações atômicas por meio de nossa capacidade de raciocinar.
Por meio da leitura dos citados trechos do Sobre a Natureza e da Máxima XVI
podemos assegurar a preocupação de Epicuro em fundamentar a possibilidade de
ações autárquicas por meio de um discurso sobre a natureza. Não se trata, pois, de
uma tentativa de refutar seus oponentes com a evidência da responsabilidade como
queria P.-M. Morel. Antes, é possível observar o movimento retroativo da ação
autárquica em direção àquilo que, em última instância, torna-a possível. É na
natureza que encontramos o fundamento da autarquia, pois o homem foi dotado de
uma estrutura atômica peculiar, cuja formação da alma, por exemplo, segundo
Epicuro, foi arranjada com átomos que se assemelham aos átomos da lua e do sol 57.
Isso mostra o quão inusitado é o evento humano na natureza. De qualquer modo, o
que é determinante no nível físico enquanto possibilidade de ações autárquicas em
um mundo regido pela necessidade e o acaso, é que as formações atômicas
adquirem propriedades que seus átomos constituintes não possuem isoladamente. A
principal estrutura ou composto atômico que desse modo possibilita a autarquia se
revela na nossa capacidade de raciocínio e deliberação como lemos na Máxima XVI.
Isso justifica o fato de não responsabilizarmos as crianças por seus atos, visto que
ainda não possuem a sua capacidade de cálculo e raciocínio desenvolvida, nem
responsabilizamos os animais, pois só seguem os estímulos do meio e de sua
imodificável constituição inicial.
Para sermos considerados seres livres, capazes de produzir ações
autárquicas, precisamos dominar por meio do logismós nossa constituição inicial,
não agindo ao sabor dos desejos imediatos, levados por qualquer desejo em direção
a fins que, contraditoriamente, são indesejados. Devemos, portanto, desenvolver
nossa constituição inicial através do logismós, pra assim produzir crenças
sustentáveis, sólidas, que, por sua vez, formarão um caráter saudável, orientado,
57
Cf. Dioge. Laert. 10. 63 e Dioge. Laert. 10. 90
37
CONCLUSÃO
Não é novidade que existem muitos trabalhos que fazem uma interpretação
do problema da ação livre no âmbito do pensamento dos filósofos da antiguidade,
entretanto, nossa intenção foi a de apresentar, com o mínimo possível de
formulações pré-concebidas, a visão e a tentativa de resolução por Epicuro do
problema da ação livre. Problema que não tinha como hoje um debate tão longo,
mas que se intensificava justamente no período helenístico nas discussões entre
Epicuristas e Estóicos.
A despeito da ausência de publicações acerca do tema no Brasil,
encontramos uma viva discussão em língua inglesa, a qual nos motivou para a
escrita deste trabalho. Essas discussões, de modo geral, apresentavam perspectivas
que prescindiam do argumento do Clínamem de Lucrécio para resolução do
problema, tentando, em vez disso, encontrar uma solução nos próprios textos de
Epicuro, principalmente no Peri Phýseos (Sobre a Natureza), esquivando-se, assim,
dos problemas relativos à autoria da teoria dos desvios atômicos. E não apenas isso,
mas também, apresentando teorias que se coadunam com os textos completos de
Epicuro de que dispomos.
Assim, trilhando o caminho pelo qual Epicuro passou em seu exercício
filosófico, partindo das evidências fornecidas pelos sentidos até os últimos
elementos da natureza, chegamos ao fundamento físico da autarquia. Seguindo a
maneira pela qual ele apresenta os seus resumos filosóficos nas Cartas a Heródoto
e a Pítocles, iniciando por uma exposição dos critérios de conhecimento,
começamos pela abordagem, neste caso, dos critérios estabelecidos por Epicuro
para a afirmação de que somos seres autárquicos. Nesse momento, trabalhamos
com as noções de Par’hemás e Par’hemin com o intuito de fortalecer a interpretação
segundo a qual a afirmação da autarquia é resultado da observação do
comportamento do homem no que toca as questões acerca da responsabilidade por
suas ações. Em seguida, tencionamos abordar uma espécie de “psicologia”
epicurista com vistas a apresentar aquilo que seria uma teoria geral da ação, já nos
encaminhando para o caso específico de uma ação autárquica. De modo que,
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reservamos o ultimo capítulo para a apresentação das teses mais recentes acerca
da liberdade em Epicuro e nossa posição quanto à interpretação do problema de
acordo com a filosofia epicurista. Acreditamos que o fundamento físico da autarquia
é exatamente o que chamamos de liberdade num sentido mais estrito, pois se
cometemos uma ação autárquica nós somos inteiramente determinados no
momento da ação e não poderíamos ter agido de outro modo, entretanto se
buscarmos o fundamento da ação autárquica encontraremos algo que foge a
determinação e produz as causas de nós mesmos, ou seja, a liberdade não se
encontra na ação, mas no processo que a possibilita e, em última instancia,
encontraremos a liberdade em nossa capacidade de cálculo e raciocínio, cuja
estrutura atômica possui uma singularidade tal na natureza que nos eleva ao ponto
de sermos causa das coisas que acontecem, juntamente com a necessidade
(anánke) e com o acaso (týche).
Desse modo, podemos afirmar com segurança que Epicuro não abria mão
daquilo que seus sentidos lhe mostravam: somos responsáveis por cada ato que
cometemos. E, a isso, soma-se mais uma evidência, somos seres de raciocínio, pois
pensamos, deliberamos, calculamos, discutimos, discordamos, filosofamos, etc. .
Nada disso faria sentido se do homem fosse tirada a liberdade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBZIEN, S. Did Epicurus discover the free will problem? In: Oxford Studies in
Ancient Philosophy. Oxford University press 19, 287-337, 2000.
BURKHARD, R. (Org.) The Virtuous Life in the greek ethics. Cambridge: Cambridge
University Press, 2006.
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vida e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama
Kury. Brasília, UNB, 1988.
MOREL, P.-M. Why the epicurean eph'hêmin is not to be proved. In: Colóquio de
Filosofia Antiga - A noção de "eph' hêmin" após Aristóteles, São Paulo, 2010.