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HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA

Sob a direção de
Phiiippe Ariès e Georges Duby

1 Do Império Romano ao ano mil


organizado por Paul Vayne

2 Da Europa feudal à Renascença


organizado por Georges Duby

3 Da Renascença
ao Século das Luzes
organizado por Pliillipe Ariès (f)
e Roger Chartier

4 Da Revolução Francesa
à Primeira Guerra
organizado por iVtichelle Perrot ■

5 Da Primeira Guetra
a nossos dias
organizado por Atuoine Prost
e Gérard Vtncent

Bif otef11Partkukr
wmiIqOliveirQ
HISTÓRIA
I
DA VIDA PRIVADA
4
Da Devolução francesa
ã Primeira Guerra

Organização:
MICHELLE PERROT

Tradução:
DENISE BÜITM ANN (partes 1 e 2)
c BERNARDO JOFFtLY (partes 3 c 4)

10a. reimpressão

C o m p a n h ia D as L e t r a s
Copyright ©• 1987 by Éditions du Seuil

Título original:
Histoire de la vie privée, vol. 4:
De la Révolution à la Grande Guerre

Ilustração de capa:
Retrato campestre (1896), óleo-sobre tela
' de Gustave Caillebotte

Preparação: *
Stella Weiss *

1 . Revisão:
Isabel Gstry Saniatia -
Marcos Luiz Fcrmp&s
Cecília Ramof^S-

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Sfnãta Brasileira dojljxrA fet^çasift

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Europa - História - Século 20 4. Europa - Usos co u tu m es 5.
Bimfiia - Europa - História I, Perrot. Michelle, It, Titulo: Oa
RevoluçSo Francesa à Primeira Guerra. - » t

òumdMtU»
' ~ 306.85d94
* .^10.094*.
• ^ r . .íntÇc« para catálogo juteniátien:

1. Eujoga : Costumes e vida social 390.094 j


2. Europa} Bunitia : Sociologia 306.85094 •
3. S&trios 19-20 : Europa : Civilizado 940.28
4. Séculas.l9-20j Europa : H istóriaJ)40.2 8^___

2006

Todos os direitos desta edição reservados à


• EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP '
Telefone: (11) 3707-3500
__ B hb a 1) 3707-3501
- - st-wwTrômpanhiad^ertasiconubr«^!^'
ÍNDICE
í

Introdução {Michelle Perrot), 9

1. Ergue-se a cortina, 15
Outrora, em outro lugar {Michelle Perrot), 17
Revolução Francesa e vida privada {lynn Hunt), 21
Sweet home (Catherine Hall), 53

2. Os atores, 89
A família.triunfante {Michelle Perrot), 93
Funções da família [Michelle Perrot), 105
Figuras e papéis {Michelle Perrot), 121
À vida em família {Michelle Perrot), 187
Os ritos da vida privada burguesa {Anne Martin-Fugier), 193
Drainas e conflitos familiares {Michelle Perrot), 263
À margem:- solteiros e solitários {Michelle Perrot), 287" .

3. Cenas e locais, 305


Maneiras de morar {Michelle Perrot), 3Q7
Espaços privados {Roger-Henri.Guerrant), 325

Bastido i ^ K h i n Gorhin), 413 - rv


O segredo do indMdup,^àl? ‘
A relação íntima ou os prazeres da troca, 503
Gritos e cochichos, 563

Conclusão {Michelle Perrot), 612

Bibliografia, 617
índice remissivo, 627
Ilustrações, 639
2

OS ATOR
Michelle Perrot
Anne Martin-Pngier
Principal teatro da vida privada, a fam ília no século XIX fornece-lhe Página 88:
seus personagens e papéis principais, suas práticas e rituais, suas intrigas Um dom ingo de verão num a
pequena cidade da província.
e conflitos, Mão invisível da sociedade civil, ela é ao mesmo tem po ninho
/I fam ília está reunida em volta do
e núcleo. casal m ais idoso, talvez para o seu
Triunfante nas doutrinas e nos discursos em que todos, dos conserva­ aniversário, registrado nesta fo to
dores aos liberais e até aos libertários, louvam-na como a célula da ordem conto lem brança. A m b ien te m odesto,
que se com prim e na beira da calçada,
viva, a família, na verdade, ê m uito mais caótica e heterogênea. A fam ília
no lim ite entre o espaço privado e
nuclear emergepenosamente de sistemas de parentescos mais amplos e per­
um espaço público não de todo
sistentes, que apresentam múltiplas fornias de acordo com as cidades e as adequado. Mas a sala — ou salão? —
áreas rurais, as regiões e as tradições, os meios sociais e culturais. couta com várias camadas d e cortinas,
Totalitária, ela pretende im por suas finalidades a seus membros. Mas sinal de respeitabilidade, bancira de
intim idade. (Coleção Sirot-À ngel.)
estes frequentem ente, e cada vez mais, rebelam-se. -D aí que, entre gera­
ções, entre os sexos, entre indivíduos dispostos a escolher seus destinos, sur­ Ao lado:
jam tensões que alimentam seus segredos, conflitos que levam ç sua eclo­ Ghâteauraux, c. 1900. Ele ê artesão
são. 0 que se acentua tanto mais na medida em queeela recorre com maior m arceneiro. Ela, filh a de vinhateiros,
freqüíwcia ãjustiça como árbitro de suas divergências, assim submetendo- alim enta sonhos de grandeza e
beleza, perceptíveis nesta fo to , tirada
se insidiosamente ao controle externo.
em estúdio com as três filh a s,
A fam ília, principalmente a fam ília pobre, também vê sita autono­ Ândrée, Madeleine e Thérèse.
mia ameaçada pela crescente intervenção do Estadqjo qual, não podendo Um instante de eternidade. (Coleção
agir constantemente em nome dela, vem a ocupar seq. lugar, especialmen­ particular.)
te na gestão da criança, o ser social e o capital mais precioso. '
A fam ília certamente não esgota todas as potencialidades da vida p ri­
vada, que conhece muitas outras formas e outros cénários. Mesmo assim,
p o r razões em parte políticas, ela tende, no século-XIX, a absorver todas
as funções, entre as quais se inclui a sexualidade - r "o cristal' ’ (M. Fou­
cault) fam iliar —, e a definir as regras e as normas. As instituições e as
pessoas solteiras — prisões e internatos, quartéis e conventos, vagabundos
e dândis, religiosas e viragos, boêmios e bandidos — são amiúde obrigadas
a se definir em função dela ou em relação a suas margens. A fam ília é o
centro do qual elas constituetn a periferia,
M. P.
A FAMÍLIA tr

Michelle Verroh

À Revolução Francesa tentou subverter a fronteira entre o público


e o privado, construir ura homem novo, remodelar o cotidiano através de
uma nova organização do espaço, do tempo e da memória. Mas esse pro­
jeto grandioso fracassou diante da resistência das pessoas. Os “ costumes”
se moscraram mais fortes do que a lei.
Essa experiência impressionou muito os pensadores da época. Para
Benjamin Constant, George Sand ou Edgar Quinct, é um rema constan­
te de reflexão. Em que aspectos a Revolução alterou ou não — suas
vtdas e as vidas de seus concidadãos? George Sand mostra como os cam­
poneses de Berry resistiram ao ruteamento generalizado que os “ienho-
rezinhos da cidade” — essa nova burguesia tão orgulhosa dc tratar a avó
de George Sand, madame Dupin, por “ tu” — queriam impor. Benja­
min Constant ressalta a força da circunspecção: “ Naqüela época ouvi os
discursos mais acalorados, vi as manifestações mais enérgicas, fuí teste­
Na prim eira m etade do sendo XtX,
munha dos juramentos mais solenes; cão stí fazia nada-; a nação se presta­ a m oda do "retrato de. fa m ília "
ra a essa^coisas come formalidades, para não discutir.-è depois cada um responde a um a intensa dem anda
voltava para sua casa, sem se julgar nem se sentir mais engajado do que social. Os m aiores pin to res fizeram
seus sacrifícios a ela. H ans N a eff
antes”. .
conseguiu reunir cinco volum es de
É por isso que as relações entre o público e o privado estão no centro
retratos de fa m ília pintados apenas
de toda a teoria política pós-revolucionária. A definição das relações en­ por Ingres (Die B ildniszddioungca
tre o Estado e a sociedade civil, entre o coletivo e o-iqdividual, passa a vonj. A. D. Ingres. Berna, B en teli
sero principal problema. Enquanto o laisserfaire, o.Mçal da "m ão invi­ Verlag, 1978). A fa m ília Staruaty é
urn clássico do gênero. O interior ê
sível”, predomina num pensamento econômico estagnado, vivendo das
tratado com o cenário, e os objetos
glórias adquiridas no século XVIII, o pensamento político mostra uma preo­ possuem urn valor sim bólico. Cada
cupação em delimitar as fronteiras e organizar os “ interesses privados” . personagem desem penha seu papel:
O mais novo deles é, sem dúvida, a imporcância conferida ã família como pai em a titu d e napoleônica, m ãe
célula dc base. O doméstico constitui uma instância reguladora funda­ a caráter, jovem graciosa ju n to ao
piano, adolescente com cabelos
mental e desempenha o papel do deus oculto.
rebeldes, caçida cujo sexo é sugemb,
Essa reflexão é, em larga medida, européia. Catherine Hall mos­ pelos brinquedos. É urna pose pron
trou como o pensamento da domesticidade foi construído paralela­ para fo to s. (D om inique Ingres, A
mente na Grã-Bretanba, no começo do século XIX, por obra dos evan- família Stanwty, 1818. Paris, Louvre
94 OS ATORES

géiicos e dos utilitaristas. O panoptismo de Bentham, para a sociedade


civil, baseia-se no olhar soberano do pai de família, senhor logo abaixo
de Deus ou segundo a razão.
HEGEL: A FAMÍLIA, Hegel é, talvez, o filósofo que mais aprofundou essa disposição rela­
FUNDAMENTO DA tiva do público e do privado. Nos Princípios da filosofia do direito (1821),
SOCIEDADE CIVIL
ele analisa as relações entre as três instâncias fundamentais: o indivíduo,
a sociedade civil e o Estado. O indivíduo é o fundamento do direito, o
qual só pode ser pessoal. O corpo define o eu que, para se objetivar, pre­
cisa da propriedade individual; o suicídio é a marca última da soberania
do eu, assim como o erro é a marca última de sua responsabilidade. Mas
o indivíduo está subordinado à família, que, com as corporações, é um
dos “ círculos” essenciais da sociedade civil. Sem ela, o Estado só se rela­
cionaria com “ coletividades inorgânicas”, com multidões, propícias ao
despotismo.
A família é a garantia da moralidade natural. Funda-se sobre o casa­
mento monogâmico, estabelecido por acordo mútuo; as paixões são con­
tingentes, e até perigosas; o melhor casamento é o casamento “ arranja­
do’’ ao qual se sucede a afeição, e não vice-versa. A família é uma cons­
trução racional e voluntária, unida por fortes laços espirituais, por exemplo
a memória, e materiais. O patrimônio é, a um só tempo, necessidade eco­
nômica e afirmação simbólica. A família, “objeto de devoção para os mem­
bros” , é um ser moral: “ Uma única pessoa cujos membros são aciden­
tes”. O chefe é o pai, e apenas sua morte dissolve a família, ao liberar
os herdeiros. A família é o todo superior às partes, que devem se subme­
ter a ele; constitui, na sociedade oitocentista, um grupo “ holista”, como
a define Louis Dumont. A divisão sexual dos papéis se baseia em seus
“ caracteres naturais”, segundo uma oposição entre passivo e ativo, inte­
rior e exterior, que governa todo o século. “ O homem possui sua vida
substancial real no Estado, na ciência etc., e também no trabalho e na
luta com o mundo e consigo mesmo.” “A mulher encontra seu destino
substancial na moralidade objetiva da família, cuja piedade familiar ex­
prime as disposições morais.” Os filhos são simultaneamente membros
da família e indivíduos em si mesmos. Livres, devem ser educados, mas
sem excessos nos afagos aos seus sentimentos de autodiferenciação. A maio­
ridade lhes possibilita formar família, “ os filhos como chefes, e as filhas
como esposas”. Mas é realmente a morte do pai que lhes permite aceder
a este novo estatuto. A liberdade de lavrar testamento é limitada pelo di­
reito de família. Hegel critica vivamente a arbitrariedade do direito ro­
mano neste aspecto; ele se opõe ao direito de primogemtura e à exclusão
das filhas. O que importa, a seus olhos, não é a linhagem, carregada de
feudaiidade, e sim a família, pedra angular da sociedade moderna. Cír­
culos de “ pessoas concretas independentes”, as miríades, “ as multidões
de famílias” formam a sociedade civil, que não é senão “ a reunião de
coletividades familiares dispersas” .
A FAMÍLIA TRIUNFANTE 95

Mãe de fa m ília ou m ãe alcoviteira?


Q ual terà sido a transgressão da
jovem de olhar perdido que está
sendo oferecida a esse grosseirão,
fu m a n te inveterado que nem sequer
tira o chapéu? A am biguidade
deliberada do quadro de Jeanm iot
sugere a am biguidade da própria
situação e do ritual.
iPierre-Alexandre Jeanm iot, A
apresentação. Parts. M useu do P etit
Palais.)

Se Hegel pensa a disposição macrossocial do público e do privado, A CASA


Kanc — poeticamente transcrito por Bernard Êdelman — prende-se es­ DE KANT

pecialmente ao microespaço da casa. O direito doméstico é o triunfo da


razão; ele arraiga e disciplina, abolindo qualquer vontade de evasão. E
“ um direito das coisas terrenas e da conservação, que extinguirá nos cora­
ções o apelo do distante e das florestas bárbaras’’. A caSa é o fundamento
da moral** da ordem social. E o cerne do privado, mas*um privado sub­
metido ao pai, o único capaz de refrear os instintos, de domar a rrfulher.
Pois a guerra doméstica constitui uma ameaça constante. ‘‘A mulhbr po­
de se tornar uma vândala, o filho, contaminado pela.^nãe, um ser fraco
ou vingativo, e o criado pode retomar sua liberdade.’’ .Ambígua, a mu­
lher é o centro da casa, mas também a sua ameaça. “ Basta que ela escape
para logo se tornar uma rebelde e uma revolucionária:Daí a contradi­
ção, claramente sentida por Kant, de seu estatuto jurídico: como indiví­
duo, a mulher pertence ao direito pessoal; como membro da família, está
submetida ao direito conjugal, de essência monárquica. A mulher “ se­
quiosa” se opõe sempre à mulher “ domesticada”.
O pensamento francês sobre a família se apresenta particularmcnte A FAMÍLIA
rico no século XIX, devido aos agudos problemas ligados à reconstrução LIBERAL

política, jurídica e social pós-revolucionária. Os grandes pólos de reflexão


são três; as fronteiras entre o público e o privado, e a idéia de “ esferas” ;
o conteúdo da sociedade civil; os papéis masculino e feminino.
% OS ATORES

Q uantas jo ven s casadouras nessa Os liberais, de Germaine de Scaêl a Alexis de Tocqueville, estão
fa m ília de castelãos da provincial
fundaniencalmente interessados na defesa de uma fronteira que garanta
C ordialidade do pat. am abilidade
curiosa da mãe, cochichos das m ais a liberdade dos “ interesses privados’\ que compõem a força da nação.
jo v e n s conciliábulo das criadas “ E somente o respeito à existência particular da fortuna privada que
saúdam a chegada do pretendente pode levar ao amor pela República”, escreve Madame de Scaêl, que
ridiculam ente fesliionablc. A lhe pede essencialmente duas coisas: “ não exigir, não pesar”. “A li­
preten d id a de branco abaixa os olhos,
berdade nos será tanto mais preciosa quanto mais o exercício de nossos
com o de rigor, sobre seu bordado.
Q ual será o dote desse belo rostinho? direitos políticos nos deixar tempo para dedicar a nosSòs interesses pri­
/I apresentação, ritu a l de corte que se vados”, diz Benjamín Constanc. Ambos opõem os Antigos, que viviam
transform ou em ritu a l m atrim onial, para a Agora ou para a guerra, ao mundo moderno, universo do comercio
é um terna da p in tu ra satírica. e da atividade laboriosa dos indivíduos, que devem ser tratados princi­
(Francisque G rem er de Saint-M artin,
palmente pelo latsser faire. Essa concentração sobre o privado supõe
Apresentação de um futuro vindo dc
Paris. c. 1830-1840. Paris, B iblioteca
que se confie em representantes para os assuntos públicos. A distinção
das A rtes D ecorativas.) entre duas esferas complementares implica o regime representativo e,
em certa medida, a especificidade da política, dos políticos práticos e,
ao cabo, sua profissionalização.
Isso foi eluramente visto por Guizot, objeto de um recente estudo
de Pierre Rosanvallon. Numa reflexão que não deixa de lembrar a de Hc-
gel, ele analisa o funcionamento do poder, que lhe parece múltiplo. A
ordem e a liberdade dependem da articulação do “ poder social” , respon­
sável pela sociedade civil e pelo poder político, encarregado das orienta­
ções globais e reservado aos “ capacitados”, à elite dos organizadores: um
assunto de homens, c não de salões, mistos e frívolos. 0 poder social, em
larga medida domestico, nem por isso é feminino. A posição fotte, não
arbitrária, é ocupada pelo pai de família, pois ele é “ a expressão de uma
A FAMÍLIA mUNFANTE 97

razão superior, mais apta do1que os outros a julgar o justo e o injusto”.


Lugar de uma transação permanente, a família, segundo Guizot, é um
modelo político da democracia. “Em parte alguma o direito de voto é
mais real e mais abrangente. Ê na família que ele mais se aproxima da
universalidade.”
Royer-Collard e Tocqueville mostram a mesma preocupação pelo con-
teúdo da sociedade civil. “A Revolução só não derrubou os indivíduos.
[...] Da sociedade pulverizada saiu a centralização” , escreve o primeiro,
para quem o antídoto do jacobinismo reside nas “ associações naturais”,
a comuna e a família. Tocqueville, aliás tão sensível aos atrativos do priva­
do e da intimidade, vislumbrou claramente os riscos de um individualis­
mo excessivo, nos moldes do “ cada um por si” , tão caro ao barão Dupin.
“ 0 despotismo, que é temeroso por natureza, vê no isolamento dos ho­
mens a garantia mais segura de sua ptópria duração, e gcraJmentc dedica
todos os seus esforços a isolá-los [...]. Considera bons cidadãos os que se
fecham estreitamente em si mesmos” (De la dêmocmtie e» A/nêrique
; (A democracia na América], livro II, cap. VIII). Toda a obra de Tocquevil-
‘fè gira em torno desse problema: como conciliar felicidade privada e ação
pública. Ele preconiza as associações e exalta as virrudes da família ameri­
cana, capazes de criar um elo social. “A democracia afrouxa os laços so­
ciais, mas estreita os laços naturais. Ela aproxima os parentes, ao mesmo
tempo em que separa os cidadãos.”
Assim, para os liberais, a família— comunidade dc certo modo “ na­
tural” — é a chave da felicidade individual e do bem público.

Casamento de reparação (a té que


ponto fo i à força?) num m eio
pequeno-burguês da M onarquia
de Julbo. Sorrisos satisfeitos dos
parentes, olhares trocistas dos alegres
"rapazes" que acom panham o am igo
"condenado" contrastam com o ar
abatido do jovem casal, G avam i fo i
um observador agudo
dos costum es de seu tem po,
principalm entc das relações entre
hom ens e m ulheres. (P aul Gavam i,
Um casamento dc reparação. 1859.
Paris, B iblioteca N acional.)
98 OS ATORES

OS TRADICIONALISTAS A família constitui igualmente a grande preocupação dos tradicio­


nalistas, cujos principais representantes são Louis de Bonald durante a Res­
tauração e, mais tarde, de uma maneira totalmente diversa, Frédéric Le
Play. Ambos se concentram obsessivamente na crítica ao afrouxamento
dos costumes, â distorção dos papéis sexuais, ao efeminamento. Aliás, as
famílias desfeitas e as mulheres esquecidas de seus deveres são os bodes
expiatórios usuais das derrotas militares e das turbulências sociais. Desse
ponto de vista, a Restauração (cf. os trabalhos de R. Deniel) e a Ordem
moral (cf. Mona Ozouf) são exemplares. E o regime de Vichy o será ainda
mais (cf. Robert Paxton).
A ofensiva familiarista sob a Restauração é tripla. Em primeiro lu­
gar, religiosa: o tema favorito das missões é o respeito à família. “ Onde
se pode estar melhor do que no seio da família?“ , entoa um cântico de
1825. Política: ela combate o divórcio, autorizado desde 1792, e consegue
sua supressão em 1816. Ideológica: seu apóstolo é Bonald. Muito lido nos
meios da nobreza provincial (Renée de Lestrade, a’heroina maternal das
Mémoires de deux jeunes mariées [Memórias de duas jovens esposas], de
BaJzacr cita-o com freqüência), Bonald é o agente de uma moralização
da aristocracia que, por intermédio dele, reconstitui sua virgindade. O
sonho da “ vida castelã“ e do luxo de ostentação de uma aristocracia de­
vassa — tão persistente na psicologia popular que ainda hoje se encontra
nos comentários dos turistas nos castelos — na verdade se alimenta de
um tempo ultrapassado: o da “ doçura da vida”.
O pensamento de Bonald sobre a família se encontra, por exemplo,
em seu discurso à Câmara dos Deputados “ pela abolição do divórcio"
(26 de dezembro de 1815). O divórcio é intrinsecamente perverso, não
só devido às suas injustas conseqüências para as mulheres e os filhos, que
são os que mais sofrem com ele, mas também por razões morais. Sendo
um reconhecimento implícito do direito à paixão, ele abre um lugar in­
devido para o amor dentro do casamento. Geralmente solicitado pelas mu­
lheres, o divórcio enfraquece a autoridade paterna: “ Verdadeira demo­
cracia doméstica, ele permite que a esposa, a parte fraca, erga-se contra
a autoridade marital’’. Ora, a grandeza da esposa reside na submissão ao
pai e, quando viúva, ao primogênito, depositário da residência ancestral.
A família, fundamento do Estado monárquico, é em si mesma uma mo­
narquia paterna, uma sociedade de linhagem que garante a estabilidade,
a duração, a continuidade. O pai é seu chefe natural, como o rei-pai é
o chefe natural da França, a qual também é uma “ casa ”. Restaurar a mo­
narquia equivale a restaurar a autoridade paterna. “ Para retirar o Estado
das mãos do povo, é necessário retirar a família das mãos das mulheres
e dos filhos.’’ O casamento não se reduz a um contrato civil, mas é indis­
soluvelmente um ato religioso e político. ‘‘A família requer costumes, e
o Estado requer leis. Reforçai o poder doméstico, elemento natural
A FAMÍLIA TRIUNFANTE 99

do poder público, e consagrai a total dependência das mulheres e dos fi­


lhos, garantia da obediência constante dos povos.”
Nem contra-revolucionário nem liberal (<£ F. Arnoult), o pensamento LE PLAY.
OU “ A FAMÍLIA.
de Frédéric Le Play é original na medida em que também elaborou uma
PRINCÍPIO DO F.STADO”
estratégia de observação sociológica que pretendia ser um prelúdio a uma
intervenção pró-familiar. Hostil à ampliação do Estado^ Le Play queria re­
vitalizar a sociedade civil por meio da felicidade das famílias, que ele de­
fine como “ a lei moral + o pão”. “A vida privada imprime sua marca
na vida pública; a família é o princípio do Estado” (Ouvriers européens
(Operários europeus], 1877). No entanto, Le Play é o contrário do liberal.
O egoísmo dos ‘‘interesses privados” na selva do lais^erfaire, a urbaniza­
ção e a industrialização desenfreadas, o esquecimentou dos Dez Manda­
mentos e da moral são as causas dessa verdadeira desgráça que é a prole-
tarização. Solução: restaurar a “ família-tronco”, cornuih único herdeiro,
indicado pelos pais (a melouga dos Pireneus, muito pcóxima do oustal
de Gévaudan), que Le Play opõe à família instável, èm que o poder se
D upla sátira ao casam ento
concentra nas mãos de um chefe de família hereditário. A hierarquia em
na m unicipalidade, tido com o
Le Play, portanto, não é puramente “ natural” , fundando-se sobre o mé­ dispensável — ‘ form alidade penosa,
rito e a capacidade. hum ilhação”, d iz G. D roz —, e ao
O respeito às hierarquias é uma condição para o equilíbrio. Mas casam ento em si: será que o m arido
sem pressa dessa m ulher já m adura,
os chefes devem respeitar e proteger seus subordinados. A “ questão
tão sozinha, vai chegar? (Sim on
social” e a crescente intervenção do Estado se implantam sobre o es­ D urand, Um casamento na
quecimento patronal dos deveres. O paternalismo e o patronato for- prefeitura. Paris, B iblioteca N acional.)
100 OS MORES

Coluna e cortinados de praxe para


essa fo to d e um p a i viúvo e seus dots
filh o s; provável evocação dos m ortos,
co/n os retratos na parede.
- In m cm otiam . (K Beaudoin,
No fotógrafo.)

necem o melhor dpo de relação social. Do mesmo modo, a família está


submetida ao pai. Le Play, porém, atribui uma grande importância às vir­
tudes da dona de casa, no que, mais tarde, será seguido por Émile Cheys-
son, e suas monografias de família oferecem uma documentação excep­
cional sobre os serviços domésticos e os papéis, tarefas e poderes da mãe
nas famílias^populares.
O pensamento de Le Play e de La Reforme Sociale [À Reforma So­
cial] é, sem dúvida, o mais elaborado entre todos os que, no século XIX,
abordam a família como eixo de reflexão e ação. Foi negligenciado por
razões políticas e ideológicas que contribuíram para a vitória da escola
durkheimiana, sustentáculo da República. A família foi vítima inocente
desse desfecho, na medida em que, por muito tempo, deixou de ser um
elemento de base nas pesquisas em ciências sociais.
OS SOCIALISTAS
E A FAMÍLIA
Antes que o privado fosse remetido pelo marxismo a suas origens
burguesas e até pequeno-burguesas, os socialistas concederam uma extre­
ma importância à família, como mostra Louis Devanee numa tese infeliz-
mente inédita.
Unânimes em criticar a família de sua época, raros, porém, são
os socialistas que pensam em sua total eliminação. Igualmente raros são
os que pretendem uma subversão dos papéis sexuais,- tão profunda é
a crença numa desigualdade natural entre homens e mulheres. Mas
existe um grande leque de correntes e soluções. Do lado dos partidá­
rios de uma liberdade irrestrita encontram-se Fourier, Enfantin- a femi-
nista Claire Demur, os comnnistas da década de 1840 como Theodore Dc-
zamy, cujo Code de la com m unauté [Código da comunidade] se opõe ao
farniliarismo puritano de lcarie (Icária) de Cabec. “ Não à divisão do tra­
balho de casa! Não à educação doméstica! Não ao familismo! Não à do­
minação marital! Liberdade das uniões! Igualdade plena etitre os sexos!
Liberdade de divórcio!’’, brada o primeiro, enquanto o segundo vocifera
contra o celibato voluntário e vê no “ concubinato e no adultério [...] cri­
mes injustificáveis”. Icarie é de um moralismo a toda prova e de um ma­
chismo ímpar. Em Nauvoo, colônia americana em que tenta concretizar
sua utopia, Cabet entra em conflito com as mulheres que, em nome da
elegância, não aceitam se restringir a uniformes!
Fourier representa um radicalismo bastante excepcional, o “ desvio
absoluto” no que se refete tanto aos papéis quanto às relações entre os
sexos. Para o autor da denuncia de que as mulheres eram “ as proletárias
dos ptoletários”, a chave do progresso residia na emancipação feminina.
“A ampliação dos privilégios das mulheres é o princípio geral de todos.
; os progressos sociais.” Fourier defende uma igualdade completa no.fa-
lãnstério, com funções intercambíávcis, uma total liberdade na escolha
dos companheiros carnais, um casamento cm idade mais adiantada, po­
dendo ser facilmente desfeito. Malthusiano cm sua desconfiança quanto
ao crescimento populacional, não o é tanto na legitimidade conferida à
contracepção e ao aborto. O radicalismo de Fourier em relação à sexuali­
dade assustou seus discípulos, inclusive do sexo feminino, como Zoé Gat-
ti de Gamond ou Considérant, que, neste ponto, o expurgaram. Não pu­
blicaram sua obra mais revolucionária, Le nouveau monde amoureux [O
novo mundo amoroso], que só foi editado em 1967, por.Simone Dçbout.
O familistério, construído por Godin em Guise (Aisnej, tinha-.rejeitado
qualquer a oral “axial” , encontrando-se, sob este aspecto, mais próximo
de Icarie do que do falanstério. E a própria companheira de Godin era
uma mulher apagada, como todas as outras mulheres de “ grándes
homens” !
Os saint-simonianos pós-Enfantin, a maioria dos comunistas, os so­
cialistas de inspiração cristã — como Pierre Leroux, Constantin Pecqúeur,
Louis Blanc e mesmo Flora Tristan — pronunciaram^se/a favor de uma
modernização da instituição familiar, da igualdade entre-os sexos, inclu­
sive na educação, e do direito ao divórcio. Mas o casamento monogâmico,
para eles, continua a ser o fundamento de uma família’n uclear de afetivi­
dade fortalecida, onde o primeiro lugar cabe aos filhos. Após 1840, a maio­
ria das feministas — por exemplo, as de 1848, que viam-no Estado “ uma
grande administração doméstica” — alia-se a essas posições moderadas
que condiziam com suas reivindicações de igualdade civil e ofereciam pos­
sibilidades de uma ação concreta. Pessoalmentc livre e decididamente fa­
miliar, George Sand é uma delas.
102 OSÆTORES

0 projeto fourierista de falanstério Por fim, uma corrente tradicionalista, reunindo Buchez, os socialis­
inspirou representações m ais ou
tas cristãos de LAtelier.; os discípulos de Lamennais e Proudhon, defendia
m enos favoráveis. N ote-se aqui o
sincretism o religioso. (L’Illustration,
a desigualdade irredutível dos sexos, fundada na natureza, a submissão
1846.) necessária das mulheres, que encontram sua liberdade na obediência, e
o casamento indissolúvel e patriarcal, garantia da ordem e da moral. Prou­
dhon, em particular, proclama constantemente a superioridade criativa
do princípio viril, da castidade sobre a sensualidade, do trabalho sobre
o prazer. Para o teórico da anarquia, a família conjugal é a célula viva
de um privado que devia absorver o público e extinguir o Estado.
Assim, de Fòurier a Proudhon, a evolução não se encaminha para a
liberdade dos costumes. Não há dúvida de que os socialistas enfrentam uma
dupla exigência: a do moralismo circundante, das críticas do pensamento
burguês à animalidade proletária, levando-os a se obstinar numa postura
de respeitabilidade, e a de sua “ clientela” operária e popular, para a qual
a economia e a moral familiar eram constitutivas da consciência de classe.
Mas há também uma evolução própria no socialismo e em sua vi­
são da transformação social. Os socialistas da primeira metade do século
acreditam numa revolução pela base e pela prática. Concebem-na como
a expansão por contágio da virtude de algumas comunidades exempla­
res: comunas e associações profissionais de base familiar, versão altruís­
ta da pequena empresa. Daí a vontade de uma transparência, tam­
bém postulada por Rousseau, e que alimenta uma disputa sobre a “ pu-
A FAMÍLIA TRIUNFANTE 103

biicidade dos costumes”, em que Enfantin é contestado por algumas mu­


lheres saint-simonianas, que reivindicam o direito à intimidade, como uma
conquista da dignidade feminina. Claire Démar, em Ma loi d'avenir [Mi­
nha lei futura], insurge-se contra certos rituais de casamento e contra “ a
publicidade desses escandalosos debates judiciários que, em nossas cortes
e tribunais, fazem ressoar diante de nossos juízes as palavras de adultério,
impotência, estupro, levando a interrogatórios e prisões revoltantes”.
Com o blanquismo, mas principalmente com o marxismo, o proble­
ma da tomada do poder se coloca de outra maneira: a revolução política,
pelo alto, é um prelúdio indispensável da revolução econômica pelo Esta­
do. Na análise social, o modo de produção vem ocupar o lugar da famí­
lia, e os costumes ficam relegados ao cimo da superestrutura. Engels, apesar
de subscrever as conclusões de Bachofen e especialmente de Morgan so­
bre a existência de um matriarcado nos tempos primevos da barbárie feliz
Proudhon sem suas filh a s —
e igualitária, e de considerar que sua abolição foi *‘a grande derrota his­ ã direita, no quadro de C ourbet
tórica do sexo feminino' ’, considera a revolução socialista dos meios de — é um Proudhon m utilado.
produção como a condição necessária — se não suficiente — para o resta­ 1‘A paternidade preencheu em m im
um vazio im enso' dizia o teórico da
belecimento da igualdade. As mulheres são convidadas a subordinar suas
anarquia, que, se pudesse, seria
reivindicações à luta de classes, e a luta entre os sexos é rida como um hom em de fam ília. (G ustave
derivativo. O feminismo, agora, é condenado a ser burguês, quase por es­ Courbet, Pierrc Joseph Proudhon
sência: é o início de um longo mal-entendido. c seus filhos, 1865, detalhe. Paris,
M useu do P etit Falais.)
Correlatamente, o maixismo — e o socialismo desde então largamente
influenciado por ele — fecha-se à análise antropológica^ rotulada de idea­
lista. Jacques Capdevielle mostrou como se deu esse ocultamentc: não foi
por acaso, mas deriva de uma crítica explícita do Marx de A ideologia ale­
mã ao Hegel da Filosofia do direito e de sua negação do dualismo Estado-
sociedade civil, indivíduo-cidadão. Disso resultou um-certo empobreci­
mento da análise marxiana: a recusa das mediações, à subestimação dos
bens, do patrimônio e da morte.
No entanto, cabe observar que essa eliminação d^ família dentro da
teoria social não foi obra exclusiva de Marx, mas tamBem de Durkheim,
conforme ressaltam Hervé Le Bras e Emmanuel Todd. Avesso à inscrição
espacial dos fenômenos, Durkheim se interessa apenfo-por fatos sociais
universais e, com isso, ‘‘ele pulveriza a antropologia ,.'Ao mesmo tempo,
a história positivista, totalmente voltada para a construção da nação e da
política, afastava o privado de seu campo de estudos.
Enquanto a família como categoria explicativa desaparecia d 2 s
ciências sociais, ela se apresentava com uma força inédita no pensa­
mento político dos organizadores da Terceira República: Grévy, Simon,
Ferry e os demais. A reflexão sobre a família se apaga, a política da famí­
lia se inicia.
isso porque as funções dá família — atribuídas e assumidas — im­
portam mais do que seu valor heurístico.

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