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Porém, nos dois últimos capítulos, a exposição de visão de mundo vai deixando
de ser vista pela visão das pessoas comuns e começa a ser cada vez mais precisa, através
dos filósofos. Enquanto nos quatro primeiros capítulos o autor analisa documentos
improváveis de analise histórica, como versões de contos populares, a narrativa de um
massacre de gatos, a descrição de uma cidade e um curioso arquivo mantido por um
inspetor de polícia, nos dois últimos ele busca entrar no mundo dos intelectuais
1
DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos: e outros episódios da história cultural francesa. –
São Paulo: Graal, 2011. p. 14
2
Idem, p. 13-14
parisienses. Assim, o autor diz ser necessário um espaço para Diderot e Rousseau em
um livro sobre as mentalidades da França do século XVIII. Incluindo esses intelectuais
ao lado de contadores de histórias camponeses e de plebeus, Darnton buscar abandonar
a diferenciação entre cultura de elite e cultura popular, mostrando como ambos os
grupos lidavam com o mesmo tipo de problema.
Ele começa o capítulo com uma crítica à psicanálise, ao dizer que a mesma não
se preocupa com o significado que os contos populares possam ter tido em outros
contextos. Os contos seriam documentos históricos, pois através deles podemos
perceber como a mentalidade humana mudou. O historiador deveria, portanto, buscar
através desses contos, e com o apoio da antropologia, as visões de mundos particulares
por trás deles. Darnton relata que, assim como todos os contadores de histórias, os
camponeses adaptam o cenário dos contos ao seu próprio meio, mas mantendo seus
elementos principais. “Pretendessem elas divertir os adultos ou assustar as crianças,
como no caso de contos de advertência, como ‘Chapeuzinho Vermelho’, as histórias
pertenciam sempre a um fundo de cultura popular, que os camponeses foram
acumulando através dos séculos, com perdas notavelmente pequenas.”3
3
Idem, p. 31-32
esperteza e astúcia dos camponeses. Ou seja, para reconstruir a maneira como os
camponeses franceses viam o mundo, nos tempos de Antigo Regime, é preciso se
utilizar da história social, para analisar o que eles tinham em comum e que experiências
partilhavam na vida cotidiana de suas aldeias.
Darnton nos diz ainda que uma das questões que os camponeses se defrontavam
em seus contos era a da subnutrição. “A procura de comida pode ser encontrada em
quase todos eles [...]”.5 Habitualmente, sempre que os personagens dos contos
camponeses ganhavam direito a desejos, ou poderes mágicos, eles pediam por comida.
A barriga cheia era prioridade para os heróis camponeses. Podemos perceber que na
maioria dos contos a satisfação dos desejos se tornava um meio para sobrevivência,
diante de tanta necessidade. Portanto, ao analisar as versões camponesas de Mamãe
Ganso encontramos elementos do realismo social dos mesmos. Mostrando como se
viva, os contos ajudavam na orientação dos camponeses, pois mapeavam os caminhos
percorridos e mostravam que não se devia esperar nada além da ordem social. O
significado histórico dos contos está em seu tom e em suas alusões. A maneira como os
camponeses contavam suas histórias nos fornece pistas de como eles encaravam o
mundo. Os contos diziam a eles como era o mundo, e ensinavam maneiras de enfrentá-
4
Idem, p. 40
5
Idem, p.51
lo. O autor conclui que “a velhacaria sempre joga o pequeno contra o grande, o pobre
contra o rico, o desprivilegiado contra o poderoso. Estruturando as histórias dessa
maneira, e sem explicitar o comentário social, a tradição oral proporcionou aos
camponeses uma estratégia para lidar com seus inimigos, nos tempos do Antigo
Regime.”6 Em suma, os contos proporcionavam, aos camponeses, maneiras de lidar
com uma sociedade rígida, mas não pretendiam subvertê-la.
Podemos notar por esse relato, que o massacre de gatos foi visto como uma
grande piada. E é tentando entender essa piada que Robert Darnton tentará entender os
ingredientes da cultura artesanal do Antigo Regime. A primeira explicação que
6
Idem, p.83
7
Idem, p.106-107
ocorreria da história de Contat, seria que o massacre de gatos foi visto como um ataque
indireto ao patrão e sua esposa, devido ao ódio dos operários aos burgueses, pelo
tratamento destinado a eles e aos gatos. Fazendo seu relato, Contat deixou claro a
disparidade entre os universos do trabalhador e do patrão. Mas por que matar os gatos?
O autor vai buscar essa resposta nos rituais e nos simbolismos populares.
Embora a prática variasse de acordo com os lugares, a ideia central era a mesma:
“uma fogueira, gatos e uma aura de hilariante caça às bruxas.”9 A tortura de animais,
principalmente os gatos, era um divertimento popular em toda a Europa moderna.
Quando os operários julgaram e enforcaram os gatos agiam dentro de uma tendência
cultural. Antes de mais nada, os gatos eram símbolo de feitiçaria, e eram considerados
agentes do demônio, ou simplesmente feiticeiras transformadas. Além disso, os gatos
tinham poder oculto independentemente de sua associação com a feitiçaria, podendo
impedir que o pão crescesse só de entrar em uma padaria, estragar a peixaria se
cruzassem com um pescador, etc. Mas o principal campo de atuação dos gatos era o
âmbito doméstico: para proteger uma casa, os franceses enterravam gatos vivos dentro
das paredes, sem contar que os gatos sugeriam fertilidade e sexualidade.
8
Idem, p.116
9
Idem, p.116
No caso da gráfica, o motivo do massacre realmente foi a feitiçaria. Jerome e
Léveillé não conseguiam dormir devido ao sabá que os gatos faziam durante a noite.
Aproveitando da religiosidade e das supertições dos patrões, os aprendizes acusaram la
grise de feiticeira, e acabaram transformando esse massacre numa rebelião subtendida à
patroa. O julgamento foi uma grande encenação, onde os gatos representavam os
burgueses, assim os operários julgavam seus patrões sem serem explícitos, evitando
possíveis retaliações. Executando os gatos de maneira tão elaborada, condenavam assim
toda a burguesia e o sistema, ridicularizando toda a ordem social existente. O massacre
foi engraçado, pois assim, os operários conseguiam virar a mesa contra os burgueses,
torando seu patrão vítima de um procedimento que ele próprio deflagrou. A piada
funcionou, pois os operários, tiveram muita habilidade e conhecimento de simbolismo
para insultar o patrão e sua mulher sem que esses entendessem.
No terceiro capítulo, nomeado “Um burguês organiza seu mundo: a cidade como
texto”, Darnton utiliza a descrição de Montpellier feita, em 1768, por um cidadão
anônimo e membro da burguesia local para explicar o que a vida urbana significava para
ele. Ele começa a sua análise com a seguinte pergunta: o que é descrever um mundo?
Não cabe a nós descobrir qual o verdadeiro aspecto de Montpellier em 1768, mas sim
entender como esse burguês o observava. A partir da análise da Description, obra de
nosso montpelliense, podemos visualizar três leituras da sociedade: a primeira é a
apresentação de Montpellier, a partir de uma procissão de dignitários, através do qual
representava toda a hierarquia da cidade, exagerando grosseiramente a importância de
alguns grupos e se esquecendo inteiramente de outros; a segunda foi através da
tradicional divisão em estados, fazendo jus ao caráter corporativo da sociedade,
considerando apenas uma prestidigitação com cada categoria; e a terceira é uma
descrição da cultura urbana, revelando a maneira de viver das pessoas, que acabava
fazendo uma apologia ao estilo de vida burguês, que para ele significava “viver de
rendas e anuidades, sem exercer qualquer profissão.”10 Darnton considera que cada uma
das três vias continham contradições e contradiziam umas as outras, surgindo aí a
magnitude do documento e da visão de mundo de seu autor, que pela necessidade de
entender esse mundo, descreveu durante centenas de páginas de seu livro a cidade em
que vivia, sem conseguir encontrar a maneira adequada para fazer isso.
10
Idem, p.167
O capítulo quatro é intitulado como “Um inspetor de polícia organiza seus
arquivos: a anatomia da república das letras”. Nele, Robert Darnton analisa os arquivos
do policial Joseph d’Hémery, responsável por inspecionar o comércio livreiro, e que por
isso acabava inspecionando os indivíduos responsáveis por escreverem os livros, os
intelectuais. D’Hémery acabou investigando tantos autores, que suas anotações hoje
constituem um censo literário sobre o período, contendo dos mais famosos philosophes,
aos mais obscuros escritores. Esses arquivos permitem que se esboce um perfil do
intelectual no apogeu do Iluminismo, precisamente como os intelectuais começavam a
surgir como novo grupo social, e revelam como uma autoridade policial tentava
entender tal fenômeno. O autor nos diz que d’Hémery tinha um conhecimento mais
íntimo do universo das letras no século XVIII do que qualquer historiador pode sonhar
em obter. Analisando seus arquivos podemos perceber que por trás de muitas carreiras
literárias, se encontrava um burocrata real ambicioso e inteligente.
11
Idem, p. 207
O quinto capítulo, o qual o autor chamou “Os filósofos podam a árvore do
conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie”, busca entender como era
classificado epistemologicamente no texto-chave do Iluminismo, o Discours
préliminaire da Encyclopédie. Darnton começa o capítulo analisando a classificação que
damos para as coisas do mundo e conclui que assim as classificamos porque já estão
estabelecidas. Mesmo que possa parecer estranho em alguns casos, não contestamos a
ordem presente. A classificação seria um exercício de poder. Portanto, Diderot e
d’Alembert foram bastante ousados ao desmancharem a ordem antiga do conhecimento
e traçarem novos caminhos entre o que era conhecido e o que era desconhecido. “A
própria tentativa de impor uma nova ordem ao mundo tornou os enciclopedistas
conscientes das arbitrariedades de toda ordenação. O que um filósofo unira, outro
poderia desunir.”12
12
Idem, p. 251
13
Idem, p. 270
apreciado relendo-se Rousseau com a perspectiva de seus leitores.”14 É importante, ao
analisar, perceber que os franceses do século XVIII liam de maneira diferente do que se
é lido hoje em dia. Não se levando em consideração tal fato, cometeríamos um grande
equívoco. Para analisar tão mentalidade, o autor se utiliza de cartas do burguês Jean
Ranson enviadas à Société Typographique de Neuchâtel (STN), importante editora
suíça de livros franceses no período pré-revolucionário. Nessas cartas, Ranson fala
sobre seus interesses literários e sobre sua vida particular. Para compreender com
Ranson lia, o autor faz uma analise de como a compreensão da leitura era ensinada nas
escolas francesas do século XVIII, se utilizando do manual de Viard.
Mas, é através de Rousseau, que podemos entender melhor como se dava essa
leitura. Ele “orientava, também, a leitura de seus leitores. Mostrava-lhes como abordar
seus livros. Guiava-os dentro dos textos, orientava-os com sua retórica e os fazia
desempenhar um certo papel.”15 O leitor ideal de Rousseau, deveria ser capaz de se
despojar das convenções literárias, bem como dos preconceitos da sociedade, para poder
participar da história como o autor queria. Como em suas cartas Ranson se declarava
grande fã de Rousseau, podemos ter uma ideia de como ele praticava a leitura. A grande
comoção causada pelo livro La Nouvelle Héloïse, em 1761, deixa claro a nova situação
retórica, tendo o leitor e escritor comunicando-se através da página impressa, cada um
deles assumindo a forma ideal imaginada no texto. A qualidade da leitura mudou no fim
do Antigo Regime entre um público amplo, graças, principalmente, a Rousseau. Ranson
serve de testemunha dessa nova relação entre leitor, palavra escrita e autor, fato notável
no modo que falava sobre Rousseau: l’Ami Jean-Jacques.
BIBLIOGRAFIA
14
Idem, p. 16
15
Idem, p. 294