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ESTADO DE MINAS//PENSAR

6. S Á B A D O , 2 0 D E A G O S T O D E 2 0 1 1

Sublime FANTASIA
Em Melancolia, Lars von Trier mergulha em dilemas humanos com sofisticada linguagem cinematográfica,
que traz referências ao cineasta russo Andrei Tarkovski e à pintura de Caspar David Friedrich e dos surrealistas

ZENTROPA/DIVULGAÇÃO

A
Uso das cores, escolha de símbolos e cuidado na dinâmica das imagens revela um cineasta capaz de pintar com as câmeras

DOUGLAS GARCIA E
GUILHERME MASSARA ROCHA
Terra, quantidade de matéria e energia
sem nenhuma vida. Beleza, mortalidade e
A VIDA EXISTIRÁ do pelo roteiro, parece mimetizar, sob a
roupagem do humano, a discreta e tensa

lgumas obras de arte, as mais consuma-


vazio absoluto, que se aproxima como
um rumor quase imperceptível. Assiste-
DE FORMA coreografia celestial. Com uma sutileza
magistral, Lars von Trier nos mergulha no
das, rejeitam os excessos da interpretação.
Para aquele que tenta aproximar-se delas,
se a um duplo movimento. Por um lado,
o da trajetória dos corpos celestes, que
TRANSITÓRIA universo melancólico ao nos deixar entre-
ver o efeito devastador do magnetismo
fica claro desde o início que elas não se
deixam apreender por um simples elen-
desde a mais remota ancestralidade hu-
mana foi revestida com o selo do divino,
NOUTRAS humano, revelado, por exemplo, na indis-
farçável incidência sobre a tristeza de Jus-
co de motivos e influências. É o caso de
Melancolia, o mais recente filme do ci-
do regular e do belo. E, por outro, testemu-
nhamos a trajetória dos seres humanos,
ESTRELAS. E tine e Claire, do niilismo odioso e cruel de
sua mãe. Assim como nos dá a ver sobre a
neasta dinamarquês Lars Von Trier.
Ao evitar a interpretação, contudo,
feita de irregularidade e desamparo, mas
também de beleza, como nos acostuma-
ETERNAMENTE melancolia o que nela é mais difícil de re-
conhecer: seu gozo. Ou o estranho apaixo-
ainda é possível apontar para alguns dos
gestos estéticos do filme. Há nele um
mos a sentir e a pensar, ao menos desde a
cultura grega, com sua valorização das be-
NA LEMBRANÇA namento que o melancólico nutre por seu
ânimo debilitado, seus fracassos e, no li-
movimento de oscilação entre sentido e las ações e dos belos discursos. mite, seu masoquismo.
não sentido, proximidade e distância, Irredutível em sua singularidade, não der mortífero faz eco às palavras de Vini- Se, tal como Freud ensinara, a melanco-
ruptura e continuidade, intimidade in- significa, contudo, que o filme seja des- cius de Moraes, que assim definira a mor- lia é determinada por perda da satisfação
terpessoal e catástrofe impessoal. Os pro- provido de referências. E, mesmo que elas te: a grande esperada, e que chega sempre pulsional que o sujeito se recusa a admi-
cedimentos formais que configuram es- não estejam ali para ser propriamente in- inesperada. A presença dessa alteridade tir – o que a assemelha a um luto que nun-
se movimento são da ordem da duplica- terpretadas, sua localização pode abrir no- real e incandescente, o filósofo esloveno ca termina –, a versão que dela nos apre-
ção, da inversão e da subtração. Von Trier vos horizontes para a compreensão do Slavoj Zizek já a detectara em sua magis- senta Lars von Trier advém, magnifica-
cria uma obra que é puro cinema, na sua conteúdo algo hermético da filmografia tral análise de Solaris, de Andrei Tarkovski, mente estetizada, com a rubrica de uma
dimensão mais essencial, de disposição do diretor dinamarquês. Antes de rodar filme em que a “Coisa-Solaris” – também cosmologia singular. Para existirmos, é
de imagens no tempo, imagens irredutí- Melancolia, Von Trier dedicara Anticristo um enigmático planeta – representa “o necessário admitir que o universo do de-
veis à narração e estranhas a qualquer ao mestre do cinema russo Andrei Tarko- que nos leva demasiado perto daquilo sejo é infinito. E que a vida que contigen-
significação totalizante. vski. Ao assistirmos ao mais recente filme, que, em nós, tem de se conservar afasta- temente existe nos corações e corpos que
O argumento do filme, a esta altura, já parece inevitável reencontrar ali, quiçá de do se quisermos manter a consistência de celestialmente amamos um dia cessará. E
é bem conhecido: a aproximação do pla- forma ainda mais explícita e ampliada, a nosso universo simbólico”. Para Zizek – e renascerá, mas sob a exigência de uma re-
neta Melancolia desencadeia na Terra an- incidência da estética tarkovskiana. A len- eis um argumento que parece funcionar núncia. Da renúncia ao direito de proprie-
siedades de aniquilação e reações de apro- tidão sombria de Nostalgia – obra-prima bem na análise de Melancolia –, a coisa re- dade sobre a Coisa – que ninguém tem –
ximação e afastamento entre os persona- do diretor russo – associada a uma mescla presentada pela existência desse planeta e cuja contrapartida é dupla. A vida exis-
gens, com atenção especial para a relação paradoxal de elementos da natureza que “devolve aos que dela se aproximam não tirá transitoriamente noutras estrelas. E
entre as irmãs Justine (Kirsten Dunst) e parecem emoldurar a encenação do tea- o seu desejo, mas o núcleo traumático de eternamente na lembrança.
Clara (Charlotte Gainsbourg). tro das paixões humanas, eis um aspecto sua fantasia, que encerra sua relação com “O tempo é criança brincando, jogan-
Lars von Trier parece, ao menos em que Von Trier parece tomar de emprésti- seu gozo e a que eles resistem na sua vida do; de criança o reinado”, reza a senten-
seus dois últimos filmes, revelar seu gosto mo a Tarkovski, mas que reaparece em de todos os dias”. ça de Heráclito. A estruturação da di-
pelos prelúdios. Tal como em Anticristo, seus filmes com todo o cabedal tecnológi- mensão humana da mortalidade, bem
Melancolia começa com uma longa se- co indisponível nos tempos do cinema ta- CAVERNA MÁGICA A dimensão de sentido como a da corporeidade e a da identida-
quência de fragmentos de imagens con- rkovskiano, e que torna essas imagens e não sentido das ações humanas é aludi- de pessoal, depende de um sentido coe-
geladas ou apresentadas com absoluta ainda mais lancinantes. da por Von Trier em dois níveis. O primei- rente do tempo, em que passado, pre-
lentidão, dos protagonistas – aí incluídos E se é verdade que Lars von Trier conti- ro, o dos ritos de casamento, que deixam sente e futuro sejam discerníveis. A pos-
os corpos celestes –, mas imagens que an- nua a inspirar-se em Tarkovski, dessa vez transparecer pouco a pouco sua trivialida- sibilidade do fim do mundo seria não
tecipam ao espectador elementos que a o elemento mais indicativo dessa aproxi- de e sua dimensão de controle social. O se- apenas a da morte generalizada, mas
trama revelará aos poucos. Isso dota a se- mação é o que fornece ao título da obra gundo, o da brincadeira de criança, que, também a do fim do futuro, da extinção
quência inicial do filme de uma beleza pa- seu caráter mais peculiar. Melancolia é ali com sua “caverna mágica” fornece um úl- dos nascimentos e da revogação com-
radoxal, impregnada de estranhamento, não somente o nome de um planeta, mas timo anteparo à catástrofe. Inversão de ra- pleta do sentido das ações humanas, se
e que engendra ainda, em sua construção, o signo de uma alteridade irredutível, de zão e desrazão, conveniência e inadequa- as entendermos como inscrição da dife-
sinais de inspiração no surrealismo e na um elemento tão mais real quanto menos ção. Isso porque aquilo que, à primeira rença qualitativa no curso do mundo.
estética do romantismo. Em diversos mo- apreensível, e que realça, da subjetividade vista, pareceria arcaico e inconsequente, Von Trier não propõe uma “mensa-
mentos, a aparência predominantemen- humana, a radicalidade de sua divisão. revela-se como fronteira do humano no gem” com Melancolia. Nem a de que “a
te sombria do filme, contrastando com os Melancolia fascina e escandaliza, e seu po- corpo e na imaginação. Pois do ponto de Terra é má”, como diz a personagem Justi-
fortes cromatismos celestes, remete ina- vista da autocompreensão ética da espé- ne, nem a de que a resignação diante de
pelavelmente às telas do pintor alemão cie humana, o fim do ciclo de nascimento poderes insuperáveis teria dignidade mo-
Caspar David Friedrich. Mas um Friedrich e morte é uma representação-limite, à bei- ral. Seu filme, como um todo, parece-se
surrealista, que conjuga os elementos ro- ra do irrepresentável, que abala o senso de com um rumor que ora amplifica, ora di-
mânticos do desamparo e do sublime ao identidade da “humanidade”. Lembremos minui. Seria preciso entender essa afirma-
elemento fantástico, oriundo de uma cer-
ta bricolagem de elementos heterogê- Do que jamais que Hannah Arendt pensou a “vida” co-
mo condição humana do labor, da mera
ção literalmente. Suas imagens sonham o
momento em que as pegadas humanas
neos, que o diretor faz coexistirem sem
contradição. Plasticamente falando, o fil- mergulha, sobrevivência biológica.
O balé protagonizado pelo planeta Me-
na Terra começam a desaparecer, para
não deixar rastros. Sua verdade estética
me é de uma singularidade irredutível e
traz a assinatura desse pintor das câmeras como alguém lancolia dota o filme daquilo que nele tal-
vez haja de mais poético. Como medir a
não poderia ser mais precisa. Face ao hor-
ror subterrâneo do que nos é próximo, o
que é Lars von Trier.
Duas cores dominam o filme: o azul- escaparia? distância entre os corpos celestes, saben-
do que eles se influenciam reciprocamen-
cinema é um rumor em que ainda pode-
mos nos reconhecer.
esverdeado do planeta Melancolia e o cin- te? Quais os efeitos da forças gravitacio-
za-azulado das cenas noturnas na Terra. nais entre esses corpos, à medida que essa
Azul como a Terra, o planeta Melancolia Douglas Garcia é professor do Departamento de
distância e, consequentemente, sua in- Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto e
parece belo e “amigável”, como diz a per- fluência variam? O ânimo melancólico Guilherme Massara Rocha é psicanalista e profes-
sonagem Clara. É um duplo invertido da ■ Heráclito propriamente dito, amplamente explora- sor do Departamento de Psicologia da UFMG.

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