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O segundo sexo – Simone de Beauvoir

O mundo sempre pertenceu aos machos. Compreende-se pois que o


homem tenha tido vontade de dominar a mulher. Mas que privilégio lhe permitiu
satisfazer essa vontade?
A maior maldição que pesa sobre a mulher é estar excluída das expedições
guerreiras. Não é dando a vida, é arriscando-a que o homem se ergue acima do animal;
eis por que, na humanidade, a superioridade é outorgada não ao sexo que engendra e
sim ao que mata.Temos aqui a chave de todo o mistério. No nível da biologia é somente
criando-se inteiramente de novo que uma espécie se mantém; mas essa criação não
passa de uma repetição da mesma Vida sob formas diferentes.
Associa-se aos homens nas festas que celebram os êxitos e as vitórias dos
machos. Sua desgraça consiste em ter sido biològicamente votada a repetir a Vida.
A fêmea, mais do que o macho, é presa da espécie; a humanidade sempre
procurou
evadir-se de seu destino específico; pela invenção da ferramenta, a manutenção da vida
tornou-se para o homem atividade e projeto, ao passo que na maternidade a mulher
continua amarrada a seu corpo, como o animal.
o projeto do homem não é repetir-se no tempo, é reinar sobre o instante
e construir o futuro. Foi a atividade do macho que, criando valores, constituiu a
existência, ela própria, como valor: venceu as forças confusas da vida, escravizou a
Natureza e a Mulher.
II
Acabamos de ver que na horda primitiva a sorte da mulher era muito dura; entre
as fêmeas animais a função reprodutora é naturalmente limitada.
A maternidade destina a mulher a uma existência sedentária; é natural que ela
permaneça no lar enquanto o homem caça, pesca e guerreia. No seu início, a indústria
doméstica é também de competência delas: elas tecem tapetes e cobertas, fabricam
os vasilhames.
A sociedade sempre foi masculina; o poder político sempre esteve nas mãos dos
homens. O semelhante, o outro, que é também o mesmo, com quem se estabelecem
relações recíprocas, é sempre para o homem um indivíduo do sexo masculino. A
dualidade que se descobre sob uma forma ou outra no seio das coletividades opõe um
grupo de homens a outro grupo de homens, e as mulheres fazem parte dos bens que
estes possuem e constituem entre eles um instrumento de troca.
As mulheres nunca, portanto, constituíram um grupo separado que se pusesse
para si em face do grupo masculino; nunca tiveram uma relação direta e autônoma com
os homens.
A condição concreta da mulher não é afetada pelo tipo de filiação que prevalece
na sociedade a que ela pertence; ela se encontra sempre sob a tutela dos homens; a única
questão consiste em saber se após o casamento ela fica sujeita à autoridade do pai ou do
irmão mais velho — autoridade que se estenderá também aos filhos — ou se ela
se submete, a partir de então, à autoridade do marido. Ela é apenas a mediadora do
direito, não a detentora.
E é por isso que toda sociedade tende para uma forma patriarcal quando sua
evolução conduz o homem a tomar consciência de si e a impor sua vontade.
Pouco a pouco, o homem mediatizou sua experiência e, em suas representações
como em sua existência prática, triunfou o princípio masculino. O Espírito superou a
Vida; a transcendência, a imanência; a técnica, a magia; e a razão, a superstição. A
desvalorização da mulher representa uma etapa necessária na história da humanidade,
porque não era de seu valor positivo e sim de sua fraqueza que ela tirava seu prestígio.
A religião da mulher estava ligada ao reinado da agricultura, reinado da duração
irredutível, da contingência, do acaso, da espera, do mistério; o do homo faber é o
reinado do tempo que se pode vencer tal como o espaço, da necessidade, do projeto, da
ação, da razão. êle é quem faz a safra; abre canais, irriga ou seca o solo, constrói
estradas, ergue templos, recria o mundo.
Assim, o triunfo do patriarcado não foi nem um acaso nem
o resultado de uma revolução violenta. Desde a origem da humanidade, o privilégio
biológico permitiu aos homens afirmarem-se sozinhos como sujeitos soberanos. Eles
nunca abdicaram o privilégio; alienaram parcialmente sua existência na Natureza
e na Mulher, mas reconquistaram-na a seguir. Condenada a desempenhar o papel do
Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precária: escrava
ou ídolo, nunca é ela que escolhe seu destino. O lugar da mulher na sociedade é sempre
eles que estabelecem. Em nenhuma época ela impôs sua própria lei.
O fato de a mulher ser fraca e com capacidade inferior de produção não explica a
exclusão. Nela o homem não reconheceu um semelhante porque ela não
partilhava sua maneira de trabalhar e de pensar, porque continuava escravizada aos
mistérios da vida. Desde que não a adotava, desde que a mulher conservava a seus olhos
a dimensão do Outro, o homem só podia tornar-se seu opressor.
O homem sabe que para saciar seus desejos, para perpetuar sua existência, a
mulher lhe é indispensável. É preciso integrá-la na sociedade: na medida em que ela se
submete à ordem estabelecida pelos homens, ela se purifica de sua má-
cula original.
É essa ambivalência do Outro, da Mulher, que irá refletir-se na sua história;
permanecerá até os nossos dias submetida à vontade dos homens.
III
Destronada pelo advento da propriedade privada, é a ela
que o destino da mulher permanece ligado durante os séculos. O homem não aceitará
portanto partilhar com a mulher nem os seus bens nem os seus filhos. Mas, no momento
em que o patriarcado é poderoso, êle arranca da mulher todos os direitos sobre a
detenção e a transmissão dos bens. Pelo casamento, a mulher não é mais emprestada por
um clã
a outro; ela é radicalmente tirada do grupo em que nasceu e anexada ao do esposo; êle
compra-a como compra uma rês ou um escravo e impõe-lhe as divindades domésticas; e
os filhos que ela engendra pertencem à família do esposo. Se ela fosse herdeira,
transmitiria as riquezas da família paterna à do marido: excluem-na cuidadosamente da
sucessão.
Moça, tem o pai todos os podêres sobre ela; com o casamento, êle os transmite
em sua totalidade ao esposo. Como é sua propriedade, como o escravo, o animal de
carga, a coisa, é natural que o homem possa ter tantas mulheres quantas lhe apraza;
somente razões de ordem econômica limitam a poligamia; o marido pode repudiar suas
mulheres segundo seus caprichos, a sociedade não lhes outorga quase nenhuma
garantia. Em compensação, a mulher é adstrita a uma castidade rigorosa. Apesar dos
tabus, as sociedades de direito materno autorizam uma grande licença de costumes; a
castidade pré-nupcial é raramente exigida; e o adultério é encarado sem muita. Quando,
ao contrário, a mulher se torna a propriedade do homem, êle a quer virgem e dela exige,
sob a ameaça dos mais graves castigos, uma fidelidade total; Enquanto dura a
propriedade privada, a infidelidade conjugai da mulher é considerada crime de alta
traição.
Já que a opressão da mulher tem sua causa na vontade de perpetuar a família e
manter intato o patrimônio, ela se liberta também dessa dependência absoluta na medida
em que escapa da família.

IV
A evolução da condição feminina não prosseguiu de maneira contínua. Com as
grandes invasões, toda a civilizações foi posta em causa. O próprio direito romano
sofreu a influência de uma ideologia nova: o cristianismo.
E, nos séculos que se seguem, os bárbaros fa2em que suas leis triunfem. A
situação econômica, social e política é transtornada: e isto repercute na situação da
mulher.
A ideologia cristã não contribuiu pouco para a opressão da mulher. Há, sem dúvida, no
Evangelho um sopro de caridade que se estende tanto às mulheres como aos leprosos;
são os pequenos, os escravos e as mulheres que se apegam mais apaixonadamente à
nova lei.
Logo no início do cristianismo, eram as mulheres, quando se submetiam ao jugo
da Igreja, relativamente honradas; testemunhavam como mártires ao lado dos homens;
não podiam, entretanto, tomar parte no culto senão a título secundário; as "diaconisas"
só eram autorizadas a realizar tarefas laicas: cuidados aos doentes, socorros aos
indigentes. E se o casamento é encarado como uma instituição que exige fidelidade
recíproca, parece evidente que a esposa deve ser totalmente subordinada ao esposo:
Numa sociedade em que toda capacidade encontra sua fonte na força brutal, a
mulher era de fato inteiramente impotente; mas reconheciam-lhe direitos que a
dualidade dos podêres domésticos de que ela dependia lhe assegurava; escravizada, era
contudo respeitada; o marido comprava-a, mas o preço da compra constituía uma renda
de que ela era proprietária; além disso, seu pai dotava-a; É essa tradição que se perpetua
durante a Idade Média.
V
Poder-se-ia imaginar que a Revolução transformasse o destino
feminino. Não foi o que aconteceu. A revolução burguesa mostrou-se respeitosa das
instituições e dos valores burgueses; foi
feita quase exclusivamente pelos homens.
Só quando o poder econômico cair nas mãos do trabalhador é que se tornará
possível à trabalhadora conquistar capacidades que a mulher parasita, nobre ou
burguesa, nunca obteve.
A mulher reconquista uma importância econômica que perdera desde as
épocas pré-históricas, porque escapa do lar e tem, com a fábrica, nova participação na
produção. É a máquina que dá a20 a essa modificação violenta, porque a diferença de
força física entre trabalhadores masculinos e femininos se vê, em grande número
de casos, anulada. Como o súbito desenvolvimento da indústria exige uma mão-de-obra
mais considerável do que a fornecida pelos trabalhadores masculinos, a colaboração da
mulher é necessária. Essa é a grande revolução que, no século XIX, transforma o
destino da mulher e abre, para ela, uma nova era.
Porque é pelo trabalho que a mulher conquista sua dignidade de ser humano;
contentando-se grande quantidade de mulheres com salários inferiores, o conjunto do
salário feminino alinha-se naturalmente nesse nível que é o mais vantajoso para o
empregador.
E primeiramente esta: toda a história das mulheres foi feita pelos homens. Viu-se
por que razões tiveram eles, no ponto de partida, a força física juntamente com o
prestígio moral; criaram valores, costumes, religiões; nunca as mulheres lhes disputaram
esse império. Algumas isoladas rotestaram contra a dureza de seu destino; ocorreram,
por vezes, manifestações coletivas: mas as matronas romanas, ligando-se contra a lei
Ápia ou as sufragistas anglo-saxônias, só conseguiram exercer uma pressão porque os
homens estavam dispostos a aceitá-la. Eles é que sempre tiveram a sorte da mulher nas
mãos; foi o conflito entre a família e o Estado que então definiu o estatuto da mulher;
foi a atitude do cristão em face de Deus, do mundo e da própria carne que se refletiu na
condição que lhe determinaram;
O fato que determina a condição atual da mulher é a sobrevivência obstinada, na
civilização nova que se vai esboçando, das tradições mais antigas. Abrem-se as fábricas,
os escritórios, as faculdades às mulheres, mas continua-se a considerar que o casamento
é para elas uma carreira das mais honrosas e que a dispensa de qualquer outra
participação na vida coletiva.
Os costumes estão longe de outorgar a esta possibilidades sexuais idênticas às do
homem celibatário; a maternidade, em particular, é-lhe, por assim dizer, proibida, sendo
a mãe solteira objeto de escândalo. Tudo encoraja ainda a jovem a esperar do "príncipe
encantado" fortuna e felicidade de preferência a tentar sozinha uma difícil e incerta
conquista. Os pais ainda educam suas filhas antes com vista ao casamento do que
favorecendo seu desenvolvimento pessoal. E elas vêem nisso tais vantagens, que o
desejam elas próprias; e desse estado de espírito resulta serem elas o mais das vezes
menos especializadas, menos sòlidamente formadas do que seus irmãos, e não se
empenham integralmente em suas profissões; desse modo, destinam-se a permanecer
inferiores e o círculo vicioso fecha-se, pois essa inferioridade reforça nelas o desejo de
encontrar um marido.
O privilégio econômico detido pelos homens, seu valor social, o prestígio do
casamento, a utilidade de um apoio masculino, tudo impele as mulheres a desejarem
ardorosamente agradar aos homens. Em conjunto, elas ainda se encontram em situação
de vassalas. Disso decorre que a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe
para si, mas tal qual o homem a define. Cumpre-nos, portanto, descrevê-la
primeiramente como os homens a sonham, desde que seu ser-para-os-homens é um dos
elementos essenciais de sua condição concreta.

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