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A RTIG OS

As pesquisas e a produção do
conhecimento em educação especial:
as investigações sobre políticas de
educação especial no Brasil
Research and production of knowledge in
special education: the investigations on
special education policies in Brazil
Investigación y producción de conocimiento
en la educación especial: las investigaciones
sobre las políticas de educación
especial en Brasil
José Geraldo Silveira Bueno*

Resumo

Este artigo, com base nas contribuições de Skrtic (1996; 2011), tem por objetivo analisar a produção
de conhecimento sobre as políticas de educação especial no Brasil, na perspectiva da inclusão, que
têm se apoiado nos seguintes princípios: o sistema escolar deve assegurar condições necessárias para
a oferta de educação de qualidade para todos os alunos; a identificação dos alunos com deficiência
deve ser efetuada pela equipe escolar, envolvendo o setor responsável; a inclusão demanda corpo
docente qualificado, expresso pela formação de professores capacitados e professores especializados;
a distribuição dos alunos com deficiência deve ser efetivada em diferentes salas de aula; devem ser
implementadas flexibilizações e adaptações curriculares que atendam às características específicas
das distintas deficiências; e devem ser criados serviços de apoio pedagógico, para desenvolver atuação
colaborativa entre o professor regente de classe e o professor especialista. Tal análise nos levou a afirmar
que a produção de conhecimento nesta área necessita avançar não só em termos do impacto sobre as
práticas correntes de educação especial – que produz resultados, tal como afirma Skrtic (1996) – mas
aos fundamentos teóricos que têm norteado essas práticas durante toda a história da educação especial
na sociedade moderna, calcados exclusivamente na biologia e psicologia.

Palavras-chave: educação especial - política educacional - pesquisa educacional

* Professor Titular da PUC/SP, Programa de Estudos Pós Graduados em Educação: História Política, Sociedade.

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José Geraldo Silveira Bueno
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Abstract

This paper, based on the contributions of Skrtic, aimed to analyze the production of knowledge about
special education policies in Brazil from the perspective of inclusion, relied on the following principles:
the school system must ensure the necessary conditions for an education of quality for all students; the
identification of students with disabilities must be made by the school staff, involving the responsible
sector; the inclusion requires a qualified teaching staff expressed by the formation of qualified and
specialized teachers; the distribution of students with disabilities must be made in different classrooms;
flexibilities and curricular adaptations shonld be implemented, as to meet the specific characteristics of
different disabilities; pedagogical support services should be developed to create collaborative activities
between the class teacher and specialized teacher. This analysis led us to state that the production of
knowledge in this area needs to advance, not only in terms of the impact on current practices in special
education - that presents results as stated Skrtic (1996) – but also on the theoretical fundamentals
that have guided these practices throughout the history of special education in modern society, based
exclusively on biology and psychology.

Key-words: special education - education policy - educational research

Resumen

Este artículo, basado en las contribuciones de Skrtic (1996, 2011), tiene como objetivo analizar
la producción de conocimiento sobre las políticas de educación especial en Brasil, bajo la perspectiva
de la inclusión, que han dependido de los siguientes principios: el sistema escolar debe asegurar las
condiciones necesarias para la prestación de una educación de calidad para todos los estudiantes, la
identificación de los estudiantes con discapacidades debe ser hecha por el equipo de la escuela, con la
participación del departamento encargado; la inclusión demanda profesorado cualificado, expresado
por la formación de maestros capacitados y maestros especializados; la distribución de los estudiantes
con discapacidades deben ser hecha en diferentes aulas; deben ser implementadas flexibilidades y
adaptaciones curriculares que respondan a las características específicas de las diferentes discapacidades;
deben ser creados servicios pedagógicos de apoyo, para desarrollar actividades de colaboración entre
el profesor de la clase gobernante y el maestro especialista. Este análisis nos lleva a afirmar que la
producción de conocimiento en esta área tiene que avanzar no sólo en términos del impacto sobre las
prácticas actuales en la educación especial - que produce resultados, como se dijo Skrtic (1996) - pero
a los fundamentos teóricos que han guiado estas prácticas a lo largo de la historia de la educación
especial en la sociedad moderna, basada exclusivamente en la biología y la psicología.

Palabras-claves: educación especial - política de educación - investigación educativa

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As pesquisas e a produção do conhecimento em educação especial: as investigações sobre políticas de educação especial no Brasil

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Introdução Com relação à crítica teórica, Skrtic2 indica
três perspectivas que criticam a prática de educação
Desde 1998, quando recebi de presente de especial, todas elas oriundas das ciências sociais,
minha amiga e mentora intelectual Mirian Jorge com base em ampla revisão bibliográfica dessa
Warde a tradução em espanhol da coletânea organi- literatura crítica produzida nos EUA, que podem
zada por Franklin1 (1996), que o artigo de Thomas ser assim sintetizadas:
Skrtic2 tem me instigado a refletir a respeito da – as que afirmam que a prática da educação
produção do conhecimento no campo da educação especial é ateórica;
especial no Brasil, por duas razões: pela distinção – as que consideram que a prática da educação
que faz entre conhecimento prático e conhecimento especial se baseia em teorias confundidas; e
teórico e pela análise que elaborou a respeito das – as que consideram que a prática da educação
críticas à sua produção, em especial às críticas especial se fundamenta em teorias equivoca-
sobre o conhecimento teórico, segundo ele, oriun- das.
das basicamente das ciências sociais.
Naquele texto, o autor parte da premissa de que Skrtic (1996) procura mostrar que esses três
as críticas ao conhecimento produzido na educação conjuntos de críticas não se sustentam, cujos argu-
especial são de muito difícil assimilação, pois o mentos podem ser assim sintetizados:
conhecimento profissional básico1 é aceito sem – a educação especial possui, sim, fundamentos
contestação, na medida em que a área tem como teóricos que consideram a deficiência como
assentado que as práticas profissionais, expressas o estado de que padecem determinados indi-
por habilidades e atitudes, se baseiam numa ciência víduos e que, portanto, a distinção deficiente/
aplicada, que oferece modelos e procedimentos normal é útil e objetiva, porque redunda em
orientadores da ação que, por sua vez, se apoiam um sistema de serviços racionais e coorde-
nas ciências básicas (biologia e psicologia) que nados; nesse sentido, para ele, o problema do
oferece os fundamentos teóricos, ou seja, em suas conhecimento teórico da educação especial
palavras, o modelo positivista de conhecimento. reside na sua natureza inconsciente, ou seja,
Para ele, podemos distinguir dois tipos de na falta de perspectiva crítica de seus funda-
críticas ao conhecimento da educação especial: de mentos teóricos e não na ausência deles;
um lado, a que se volta ao conhecimento prático – às críticas de que o conhecimento da educação
(habilidades e atitudes) e ao conhecimento aplicado especial baseia-se em teorias confundidas, na
(modelos e procedimentos), denominada como medida em que não distingue o modelo pato-
“crítica prática” e, de outro, a que incide sobre lógico bipolar da medicina (saúde x doença)
as teorias que fundamentam a educação especial, do modelo estatístico psicológico, de desvio
denominada como “crítica teórica”. da curva normal, Skrtic2 argumenta que
Ainda segundo Skrtic2, a crítica prática atual também não se sustentam porque a educação
teve sua origem, nos EUA, no movimento social especial utiliza o primeiro modelo quando os
de pais, por consumidores e defensores da educa- quadros de desvio são evidentes e o segundo,
ção especial, que integraram os movimentos dos quando esses quadros são de difícil distinção
direitos civis e que redundaram no Individuals with com os padrões considerados normais;
Disabilities Education Act – EHA, promulgado em – a terceira crítica considera que o conhecimen-
1975. Para ele, no entanto, essas críticas se volta- to da educação especial se baseia em teorias
ram contra os modelos, procedimentos e práticas equivocadas, por utilizar como fundamentos
da EE, mas não contra o conhecimento teórico que a biologia e a psicologia, quando, na verdade,
as fundamentam, ou seja, propiciaram avanços em são as ciências sociais que possuem as ferra-
termos de aprimoramento de determinadas práticas, mentas mais adequadas para designação de
mas não tiveram nenhum efeito sobre os pilares que desvios sociais, entre eles, os ocasionados
sustentam essas mesmas práticas. pelas deficiências; embora o autor não esta-
beleça uma contraposição clara e precisa a
1. Para Skrtic (1996) conhecimento profissional básico é aquele
que caracteriza os fundamentos comum a todos os especialistas,
esta última vertente de críticas, fica evidente
que dão sustentação às justificativas para a adoção de determi- em seu texto que ele considera que falta ao
nadas práticas especializadas. conhecimento teórico da educação especial a

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incorporação das contribuições das ciências Em relação ao princípio da educação adequada,


sociais (sociologia, política, antropologia, Skrtic3 mostra como, no decorrer de sua implemen-
economia), mas que devem estar aliadas à tação, os princípios do IDEA se subordinaram às
biologia e psicologia nas investigações da avaliações nacionais de larga escala, que exigem
educação especial. educação individualizada para atingir resultados
satisfatórios e que, como na educação regular, os
A crítica de Skrtic às políticas de resultados mais baixos são das minorias étnicas e
educação especial nos EUA camadas desfavorecidas. Ou seja, assim como na
educação regular os rendimentos escolares mais
Apesar das inquietações que esse texto me altos residem, na sua maioria, no alunado oriundo
causou, somente a partir de 2011 tive oportunidade das camadas privilegiadas, o mesmo ocorre com o
de manter contato mais estreito com o pesquisa- alunado da educação especial.
dor americano, quando ele participou, por meio Quanto ao princípio do encaminhamento do
de vídeoconferência, de Seminário Internacional alunado da educação especial para ambientes
organizado pelo PEPG em Educação: História, escolares menos restritivos, ou seja, para classes
Política, Sociedade, da PUC/SP, em que apresen- do ensino regular, Skrtic3 mostra que, na medida
tou a comunicação “A injustiça institucionalizada: em que o padrão de rendimento que constitui
construção e uso da deficiência na escola” (Skrtic, a norma escolar é o do aluno não deficiente, os
2011), acrescido pelo contato que mantivemos, alunos deficientes das camadas populares e das
em 2012, durante uma semana em que esteve minorias étnico-raciais são os mais prejudicados,
no Brasil, em que proferiu duas conferências na pois aqueles oriundos das camadas favorecidas se
PUC/SP e participou integralmente do II Encontro aproximam mais dos padrões escolares exigidos.
Interinstitucional de Pesquisa: políticas públicas Embora o IDEA procure estabelecer os princí-
e escolarização de alunos com deficiência, no pios de avaliação não-discriminatória, ou seja, de
Campus de Corumbá, da Universidade Federal que todos os alunos, independente de suas origens
do Mato Grosso do Sul, período em que pudemos sociais, merecem ter à sua disposição os meios
adensar nossas interlocuções. mais propícios para identificação de seus proble-
Assim como havia feito no texto anterior, mas, Skrtic3 mostra que existe uma representação
Skrtic3 procura analisar criticamente as práticas desproporcional de alunos de minorias economica-
especializadas da educação especial, agora sob mente desfavorecidas e racial/étnicas nas estatísti-
a égide de nova legislação, o Individuals with cas da EE, ou seja, pobres, negros e “chicanos” são
Disabilities Education Act – IDEA, promulgada muito mais encaminhados para sistemas segregados
em 1990, cujo fundamento básico foi o da rejeição de educação especial do que seus pares oriundos
zero, e que estabeleceu quatro princípios que deve- das camadas superiores brancas.
riam reger as práticas especializadas da educação Por fim, este autor mostra como a participa-
especial: ção dos pais, especialmente por meio da adoção
– educação adequada; do direito de recurso legal contra identificação
– ambiente menos restritivo; e encaminhamentos realizados pelos especialis-
– avaliação não discriminatória; e tas, se transformou de movimento coletivo (que
– participação dos pais, por meio da possibili- deveria ser acionado por pais em conjunto ou por
dade do uso de recursos legais. associações de defesas das pessoas deficientes) em
recursos individuais, em que os pais se vêm indi-
A avaliação crítica de Skrtic3 a essa política vidualmente à frente dos técnicos especializados
mostra como uma legislação, que procurou avançar para possíveis questionamentos sobre as práticas
em termos de democratização da educação especial, adotadas em relação a seus filhos. Fica evidente,
acaba, ao fim e ao cabo, privilegiando os alunos também aqui, como essa individualização dos
com deficiência oriundos das camadas sociais recursos favorece as famílias das camadas sociais
diferenciadas e mantendo os padrões discriminató- superiores, na medida em que o capital cultural que
rios com relação àqueles provenientes das classes possuem oferece muito mais elementos para uma
populares e das minorias étnico-raciais, que vale a defesa adequada dos interesses e necessidades de
pena serem aqui sintetizadas. seus filhos.

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As pesquisas e a produção do conhecimento em educação especial: as investigações sobre políticas de educação especial no Brasil

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Essas duas contribuições deste autor descer- ços de Saúde, Assistência Social, Trabalho,
ram possibilidades interessantes de pesquisa na Justiça e Esporte e, se necessário o Ministério
educação especial brasileira, não tanto em termos Público;
do conteúdo específico de suas críticas, que servem – a inclusão demanda corpo docente qualifica-
fundamentalmente para a sociedade estadunidense, do, expresso pela formação de professores
mas para se procurar, por meio de uma abordagem capacitados e professores especializados2;
metodológica sistemática, incluir as perspectivas – a distribuição dos alunos com deficiência
das ciências sociais como elemento fundante de deve ser efetivada em diferentes salas de
nossas investigações, cujo exercício preliminar aula, dentro do princípio de educar para a
procuro fazer em seguida. diversidade;
– devem ser implementadas flexibilizações
As investigações sobre as políticas e adaptações curriculares que atendam as
de educação especial brasileiras características específicas das distintas defi-
ciências; e
Grande parte dos escritos acadêmicos sobre as – devem ser criados serviços de apoio pedagógi-
políticas de educação especial implementadas após co, para desenvolver atuação colaborativa en-
a promulgação da atual Constituição Federal4 e, tre o professor regente de classe e o professor
mais especialmente, após a promulgação da Lei de especialista, o que exige condições de trabalho
Diretrizes e Bases da Educação Nacional5, consi- diferenciadas para ambos os docentes.
deram que essas legislações propiciaram avanços
significativos nos processos de escolarização de Na esteira das contribuições de Skrtic2, 3, mas
alunos com deficiência. diferentemente do que ele realizou, vou procurar
Essa praticamente unanimidade em relação estabelecer algumas reflexões preliminares, reite-
aos avanços da educação especial se baseia, funda- rando que o foco delas refere-se à distinção entre
mentalmente, na perspectiva da inclusão de alunos a “crítica prática” e a “crítica teórica”:
com deficiência no ensino regular, pois, embora – tal como esse autor fez, procuro analisar
se constate que essa perspectiva já fazia parte de criticamente alguns dos pilares em que a
legislações anteriores, a ênfase dada à inclusão seria proposta de educação especial brasileira
o ponto central desses avanços. tem se apoiado, na perspectiva da inclusão,
Na busca de uma melhor operacionalização expressos pelos cinco itens indicados acima;
desse princípio o Conselho Nacional de Educação – distintamente do que ele fez, procuro anali-
promulgou as Diretrizes Educacionais da Educação sar, ainda que preliminarmente, a produção
Especial na Educação Básica6, em que se estabe- científica produzida na área, sobre as políticas
leceu a inclusão escolar como forma preferencial de educação especial no Brasil, no sentido de
de escolarização, mas abriu a possibilidade de verificar até que ponto nossas investigações
encaminhamento para classes e escolas especiais têm, efetivamente, procurado analisá-las à luz
para os casos em que se verificasse a impossibili- de outros referenciais que não os da biologia
dade (permanente ou temporária) de inclusão em e da psicologia, ou seja, incorporando uma
classes regulares; essa Resolução estabeleceu os
seguintes princípios: 2. Segundo a resolução do CNE, são considerados professores
capacitados para atuar em classes comuns com alunos que
– o sistema escolar deve assegurar condições
apresentam necessidades educacionais especiais aqueles que
necessárias para a oferta de educação de comprovem que, em sua formação, de nível médio ou superior,
qualidade para todos os alunos, criar sistemas foram incluídos conteúdos sobre educação especial adequados
de informação para conhecimento da real e professores especializados em educação especial aqueles que
desenvolveram competências para identificar as necessidades
demanda, bem como, setores responsáveis
educacionais especiais para definir, implementar, liderar e apoiar
dotados de infraestrutura e de pessoal “que a implementação de estratégias de flexibilização, adaptação
viabilizem e deem sustentação ao processo curricular, procedimentos didáticos pedagógicos e práticas
de construção da educação inclusiva”; alternativas, adequados ao atendimentos das mesmas, bem como
trabalhar em equipe, assistindo o professor de classe comum
– a identificação dos alunos com deficiência nas práticas que são necessárias para promover a inclusão dos
deve ser efetuada pela equipe escolar, envol- alunos com necessidades educacionais especiais. (BRASIL.
vendo o setor responsável, bem como servi- CNE, 2001)

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perspectiva de análise social no estudo dos Se esta é uma premissa básica, aceita inclusive
diferentes aspectos que envolvem a educação por aqueles que investigam as políticas de educação
especial em nosso País. especial em nosso país, as nossas investigações
não deveriam procurar incorporar, em nossas pes-
Para tanto, vou inicialmente estabelecer algu- quisas, as ações efetivas que os distintos sistemas
mas reflexões críticas sobre os cinco primeiros prin- de ensino (federal, estaduais e municipais) têm
cípios, privilegiando uma análise mais detalhada levado a efeito no sentido da melhoria global da
para o sexto, por considerar que o serviço de apoio qualidade de ensino oferecida? Um breve balanço
já nos oferece elementos mais sólidos para uma das pesquisas que procuram analisar as organiza-
crítica mais avançada, todos eles acompanhados ções e práticas escolares com relação à inclusão de
por uma tentativa inicial de reflexão sobre a nossa alunos com deficiência no ensino regular parecem
produção como pesquisadores da área. não ampliar a sua abrangência de análise, pois se
prendem exclusivamente às condições dadas. Um
bom exemplo são as teses de doutorado e disserta-
As condições necessárias às
ções de mestrado que procuram analisar a atuação
políticas de inclusão escolar
do professor regente de classe frente à inserção
de alunos com deficiência ou distúrbios no ensino
A primeira condição para esse estabelecimento regular e que se restringem a descrever e constatar
é oriunda das recomendações da Declaração de as dificuldades enfrentadas por ele, sem que se
Salamanca7- 3 que, em primeiro lugar, recomenda amplie a análise para as condições efetivas que os
que os governos deem a mais alta prioridade à diferentes sistemas oferecem para que essa inclusão
melhoria de seus sistemas de ensino para que pos- pudesse ser efetuada com qualidade.
sam incluir todos os alunos, independentemente de
suas diferenças e dificuldades individuais (p. ix).
A identificação de alunos com
Embora as recomendações de Salamanca se deficiência
restrinjam ao universo das crianças com defici-
ências ou distúrbios, o seu grande mérito foi o de
Certamente pelas críticas efetuadas sobre os
incluir esse alunado no âmbito das necessidades
processos de diagnósticos médicos e psicológicos
educacionais especiais que, segundo ela, abrangem
que redundaram no fenômeno caracterizado por
população escolar muito mais ampla.4
Patto8 como de “patologização do fracasso escolar”,
Ou seja, o primeiro requisito para se implemen- as propostas políticas atuais procuraram deslocar
tar, de fato, uma educação inclusiva de qualidade essa identificação para a equipe escolar, conside-
com relação a alunos com deficiência ou distúrbios5 rando, no entanto que, para tanto, ela deve contar
refere-se à implementação de políticas que possam com a experiência de seu corpo docente, seus dire-
incluir a todos os alunos, ou seja, a busca de melhor tores, coordenadores, orientadores e supervisores.
qualidade de escolarização de alunos com defici-
Ora, se boa parte de nossos estudos tem consta-
ências ou distúrbios deve se subordinar à melhoria
tado a precariedade da formação da equipe escolar
da qualidade do ensino em geral, na perspectiva de
frente a esse alunado, como podemos considerar
atendimento da diversidade do alunado que hoje
que a identificação desses alunos possa estar nela
chega à escola básica.
centralizada?
Por outro lado, mesmo com essa precariedade,
3. Utilizo o texto da Declaração no original em espanhol porque
as traduções oficiais para o português cometeram distorções qual o apoio efetivo que a escola recebe, tanto
que modificaram o conteúdo original. Para maiores detalhes do setor responsável pela educação especial do
ver Bueno (2008) respectivo sistema, quanto dos serviços de saúde
4. (...) niños discapacitados y niños bien dotados a niños que
para essa identificação?
viven en la calle y que trabajan niños de poblaciones remotas
o nómadas, niños de minorías lingüísticas étnicas o culturales Nesse aspecto, vale a pena nos debruçarmos
y niños de otros grupos o zonas desfavorecidos o marginados. mais detalhadamente sobre os processos usuais
(Conferência Mundial Sobre Necesidades Educativas Espe- dessa identificação. As críticas sobre a patologi-
ciales, 1994, p. 6)
5. O texto original refere-se a “niños diacapacitados” termo
zação do alunado efetuada por, ou pelo menos,
que não existe na língua portuguesa. Por esta razão, estou com a cumplicidade dos especialistas, referiam-
traduzindo-o por “crianças com deficiências ou distúrbios”. -se, basicamente, à parcela daquele alunado das

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As pesquisas e a produção do conhecimento em educação especial: as investigações sobre políticas de educação especial no Brasil

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camadas populares que apresentava baixo rendi- distinção básica entre o professor regente de classe
mento escolar e que passou a ser diagnosticada (capacitado) e o professor da educação especial
como “portadores de distúrbios de aprendizagem” (especializado).
ou de deficiência mental leve, pela simples aplica- A formação dos professores capacitados,
ção de testes padronizados que desconsideravam segundo esse documento, deve ser comprovada
aspectos políticos, econômicos, culturais, educa- por meio da inclusão
cionais e pedagógicos que poderiam estar influindo de conteúdos sobre educação especial adequados ao
no rendimento escolar. desenvolvimento de competências e valores para:
No entanto, não se fez, nem se poderia fazer, I – perceber as necessidades educacionais especiais
críticas a diagnósticos efetuados por especialistas dos alunos e valorizar a educação inclusiva; II - fle-
xibilizar a ação pedagógica nas diferentes áreas de
da saúde, para identificar, classificar e determinar
conhecimento de modo adequado às necessidades
deficiências visuais, auditivas e motoras, e que
especiais de aprendizagem; III - avaliar continua-
sempre exerceram influência significativa sobre mente a eficácia do processo educativo para o aten-
os processos de escolarização desse alunado, dimento de necessidades educacionais especiais;
definindo procedimentos específicos, tais como, a IV - atuar em equipe, inclusive com professores
adoção de determinados procedimentos de comu- especializados em educação especial. (6 incisos I a
nicação (língua oral ou sinais para surdos; braile IV do parágrafo 1o do artigo 18)
para cegos, sistemas alternativos de comunicação,
etc.) que necessitam ser incorporados pela escola. Já o professor especializado em educação
Assim, cabem as perguntas a nós pesquisadores: especial deverá comprovar
Temos incorporado em nossas pesquisas quais I - formação em cursos de licenciatura em educação
os tipos e quadros de deficiências ou distúrbios que especial ou em uma de suas áreas, preferencialmente
podem ser identificados pela equipe escolar e quais de modo concomitante e associado à licenciatura
os que dependem de uma identificação prévia de para educação infantil ou para os anos iniciais do
ensino fundamental; II -complementação de estudos
profissionais especializados?
ou pós-graduação em áreas específicas da educação
Temos incorporado em nossas investigações especial, posterior à licenciatura nas diferentes áreas
o apoio que a equipe escolar tem recebido do de conhecimento, para atuação nos anos finais do
setor responsável e de profissionais da saúde na ensino fundamental e no ensino médio. (6 incisos I
identificação de alunos, especialmente aqueles que e II do parágrafo 3o do artigo 18)
parecem apresentar déficits cognitivos?
Mais que isto: temos efetivamente incorporado Uma breve busca no Banco de Teses da
nas nossas pesquisas a existência de setor respon- CAPES, sob o descritor “formação professores edu-
sável pela educação especial no sistema onde se cação especial” mostrou que, no ano de 2011, trinta
efetiva nossas investigações e, no caso afirmativo, e sete teses investigaram a educação especial, ou
qual estrutura, organização e funcionamento ofere- seja, esses trabalhos, em algum de seus elementos
cido para o apoio ao processo de inclusão naquela (títulos, palavra-chave, resumos, etc.) continham
escola investigada? o descritor acima referido.
Mais uma vez tendo a considerar que temos Dentre elas, doze se voltaram especificamente
incorporado muito pouco desses aspectos nas pes- para a formação de professores, sendo que quatro
quisas que desenvolvemos, especialmente aquelas para a formação continuada e oito para a formação
que procuram investigar a prática pedagógica inicial. Finalmente, dentre essas oito, a metade se
concreta efetuada pelas escolas. voltou especificamente para a formação inicial,
quatro delas procurando analisar a formação ofe-
Os docentes qualificados e recida por instituições de ensino específicas (três
especializados universidades e um CIEP), a última abrangendo o
estado do Rio Grande do Sul, mas restrita à forma-
O documento norteador da educação espe- ção para atuação junto a alunos surdos. Pode-se,
cial como modalidade de ensino6 considera que portanto, constatar que somente 10% da produção
a inclusão demanda corpo docente qualificado, reunida pelo descritor acima voltou-se especifica-
expresso pela formação de professores capacitados mente para a formação inicial de professores para
e professores especializados, procurando definir a educação especial.

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Por outro lado, Bueno e Marin9 mostraram A distribuição dos alunos com
que a disseminação pelas instituições de ensino deficiência nas classes regulares
superior de cursos para a formação de professores
especialistas tem se dado, fundamentalmente, por Na medida em que praticamente todas as pro-
meio de cursos de especialização, muitos deles à posições políticas atuais, internacionais, nacionais
distância, com currículos diversos, que expressam estaduais e municipais afirmam que a inclusão
enfoques, perspectivas teóricas e pedagógicas escolar de alunos com deficiência ou distúrbios
muito diferenciadas. atende às exigências de educação qualificada, den-
Além disso, verificaram, também, que entre tro do princípio de educar para a diversidade, uma
os anos de 2002 e 2008, a produção acadêmica de suas premissas básicas é a da maior distribuição
expressa pelas dissertações e teses defendidas sobre possível desses alunos por diferentes salas de aula.
a formação de professores na perspectiva da educa- Nesse sentido, para os propositores, essa diver-
ção inclusiva, nesse período, foi bastante reduzida: sificação favoreceria não só os alunos da educação
quarenta e três produções, perfazendo uma média especial, mas a todos, na medida em que essas
de seis por ano, sendo que dessas, somente doze classes comuns se beneficiariam das diferenças e
se voltaram especificamente para a educação ini- ampliariam positivamente as experiências de todos
cial. Outro achado muito significativo foi o de que os alunos.
somente oito dessas produções se voltaram para a Além disso, a recomendação da não concentração
formação do professor especializado. de alunos com deficiência ou com distúrbios em uma
Ou seja, os dados acima mostram que a forma- única classe evitaria o artifício (comum na história da
ção dos professores (capacitados e especializados) educação – especial e regular) de reunir os chamados
para a educação inclusiva não tem sido incorporada ”alunos problemas” em uma mesma classe, o que
nem pelos diferentes sistemas de ensino, nem pela impediria a ocultação da criação de classes especiais
universidade brasileira como uma política inte- sob a fachada de “classes regulares”.
grada. Além disso, o fato da formação do professor Não consegui localizar praticamente nenhum
especializado estar sendo realizada por meio de estudo a respeito dessa distribuição, o que mostra
cursos de especialização, sem qualquer padrão que não temos dado a devida importância a esse
estabelecido, quer pelos sistemas de ensino, quer aspecto, que me parece fundamental na verificação
pelo ensino superior, parece não causar efeito em e análise dos reais caminhos que a inclusão escolar
nossas investigações, tanto no sentido de incorporar tem tomado.
essa ausência de políticas definidas nas análises Um achado interessante foi apresentado por
sobre a atuação dos professores, quanto como foco Moreira10, embora ela não tivesse como foco essa
de pesquisas específicas, que procurassem levantar, análise. Essa pesquisadora constatou que, entre
organizar, classificar e analisar as políticas em ação vinte e três alunos com deficiência que frequenta-
dos diferentes sistemas de ensino e das instituições vam a sala de recursos em município do estado do
de ensino superior. Mato Grosso do Sul, em 2000, sete não frequen-
Em síntese, as recomendações da formação tavam salas regulares no período oposto tal como
inicial dos professores capacitados e especializados se exigia pela legislação em vigor. Ou seja, para
parecem não ter surtido efeito sobre os sistemas de esses últimos, a sala de recurso funcionava, na
ensino e sobre as instituições formadoras; este fato, verdade, como classe especial, mostrando como as
no entanto, não tem sido suficiente para constituir determinações legais podem ser descumpridas sem
vertentes de investigação específicas, assim como que se perceba, a não ser por meio de levantamento
tais recomendações não foram incorporadas nas exaustivo dos dados.
análises que temos efetuado sobre as suas atuações É sintomático que os dados do Censo Escolar,
profissionais. desde 2007, que permitem que se verifique a distri-
buição de alunos com deficiência em cada escola,
bem como a trajetória individual de cada um, não
estejam sendo utilizados, já que eles permitem
verificar como esta distribuição tem se efetivado
em âmbito nacional, regional, estadual e municipal.

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As pesquisas e a produção do conhecimento em educação especial: as investigações sobre políticas de educação especial no Brasil

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As flexibilizações e adaptações investigar quem as produz, para que alunos, que
curriculares adaptações são essas, que disciplinas escolares
envolvem e, principalmente, quais os resultados
As normas legais com relação ao conteúdo alcançados não parecem ser do interesse dos pes-
escolar recomendam que devem ser implementa- quisadores da área.
das flexibilizações e adaptações curriculares que
atendam as características específicas das distintas Os serviços de apoio pedagógico
deficiências, e que levem em consideração o signi-
ficado prático e instrumental dos conteúdos bási-
cos, metodologias de ensino e recursos didáticos A reflexão mais acurada sobre esse dispositivo
diferenciados e processos de avaliação adequados se justifica na medida em que as políticas em ação
ao desenvolvimento dos alunos que apresentam desenvolvidas nos últimos anos são a demonstra-
necessidades educacionais especiais. (6 inciso III ção clara de como as proposições que parecem se
do artigo 8o) contrapor a políticas anacrônicas e antidemocrá-
Ainda sob este aspecto, determinam que, aos ticas acabam por reiterar a centralidade das ações
alunos que apresentarem dificuldades de comu- sobre as deficiências (sem qualquer modificação
nicação e sinalização diferenciadas dos demais no ambiente escolar), que podem apresentar, em
educandos, deve ser garantida a acessibilidade aos determinados casos, alguns resultados positivos,
conteúdos curriculares, mediante a utilização de mas que não trazem qualquer abalo ao tripé fun-
linguagens e códigos aplicáveis, como o sistema dador da educação especial: uma prática racional,
Braille e a língua de sinais, sem prejuízo do apren- derivada de um conhecimento aplicado que lhe
dizado da língua portuguesa, facultando- lhes e às oferece modelos e procedimentos orientadores
suas famílias a opção pela abordagem pedagógica da ação e que, por sua vez, se apoia nas ciências
que julgarem adequada, ouvidos os profissionais básicas que oferecem os fundamentos teóricos
especializados em cada caso. (6 parágrafo 2o do (biologia e psicologia).
Artigo 12) Com relação aos serviços de apoio pedagógico,
O primeiro questionamento às políticas em a resolução determina que devem propiciar a atua-
ação deveria ser feito em relação às flexibilizações ção colaborativa entre o professor regente de classe
e adaptações curriculares que, por suposto, não e o professor especialista, o que exige condições
podem ser iguais para as diferentes deficiências, de trabalho diferenciadas para ambos os docentes.
assim como não podem ser elaboradas pelo pro- Além disso, a resolução faz uma distinção entre
fessor regente de classe. os serviços de apoio especializado realizados nas
Além dessas, cabe também investigar se o classes regulares, por meio da atuação colaborativa
acesso a diferentes linguagens está sendo cumprido, de professor especializado em educação especial (6
se esse acesso não está substituindo o aprendizado da alínea “a”, do inciso IV do Artigo 8o) e os serviços
língua portuguesa, e mais, se efetivamente o direito de apoio pedagógico especializado em salas de
das famílias na escolha pela abordagem pedagógica recursos, nas quais o professor especializado em
está sendo considerado no encaminhamento e ado- educação especial realize a complementação ou
ção de perspectivas educacionais distintas. suplementação curricular, utilizando procedimen-
Entretanto, à guisa de exercício ilustrativo, tos, equipamentos e materiais específicos (6 inciso
sem pretensão de análise exaustiva das pesquisas, V do Artigo 8o).
um levantamento no Banco de Teses da CAPES, Ou seja, a proposição política considera funda-
sob o descritor “flexibilização curricular”, mostra mental a realização de trabalho colaborativo entre o
que, entre oitenta e nove títulos designados, apenas professor regente e o professor especializado, de tal
seis referiam-se ao tema em questão, entre esses, forma que possam enriquecer ambas as atuações:
apenas um teve como foco a análise de projetos de um lado, o professor regente tem a experiência
político-pedagógicos de escolas de rede munici- de ministrar aulas para grupos de alunos diversi-
pal às proposições de flexibilizações e adaptações ficados; de outro, o professor especialista tem a
curriculares. experiência de trabalho específico com determinada
Assim, as flexibilizações e adaptações cur- deficiência e a colaboração deve contribuir para o
riculares, como foco de pesquisas que procurem aprimoramento de ambos.

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Além dessa atuação, a resolução prevê que o Parece ser sintomática, nesse sentido, a divul-
serviço especializado se efetive em sala de recursos, gação de nota técnica pela SEESP em maio de
considerando que ali deve ser feita a complementa- 2010, com a justificativa de transformação das
ção ou suplementação curricular, utilizando proce- estruturas educacionais que reforçam a oposição
dimentos, equipamentos e materiais específicos, ou entre o ensino comum e a organização de espaços
seja, os conteúdos curriculares, que não puderem segregados, reitera a definição da educação especial
ser apropriados pelos alunos da educação especial como modalidade de ensino transversal, mas que
por meio da atuação colaborativa, deverão ser a restringe ao AEE13, com antecedência de exatos
objeto de atuação específica do especialista junto dois meses da promulgação de resolução pelo
ao aluno, para a complementação ou suplementação CNE que, ao estabelecer as Diretrizes Curriculares
de conteúdos escolares. Nacionais Gerais para a Educação Especial9 norma-
Essa dupla atuação do serviço de apoio espe- tiza aquilo que já estava estabelecido pela norma
cializado vai, pouco a pouco se restringindo a ações técnica: a educação especial como modalidade
voltadas diretamente aos alunos com deficiência transversal, mas que se restringe ao atendimento
ou distúrbios. educacional especializado.
Mas qual a crítica que se pode fazer, pois, à
Tanto é assim que o próprio CNE, ao definir primeira vista, parece que o AEE organizado de
as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para tal forma se contrapõe efetivamente à ultrapas-
a Educação Básica, nove após essa resolução, ao sada oposição entre educação regular e educação
tratar da educação especial, embora reitere a sua especial.
condição de modalidade transversal a todos os No entanto, se analisarmos mais detalhada-
níveis de ensino, restringe sua ação ao Atendimento mente a perspectiva da educação especial calcada
Educacional Especializado (AEE) complementar no AEE por meio da implantação da sala de recur-
ou suplementar à escolarização, ofertado em salas sos multifuncionais, essa oposição parece não ser
de recursos multifuncionais ou em centros de AEE tão evidente.
da rede pública ou de instituições comunitárias, Em primeiro lugar, a sala de recursos multi-
confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos11. funcionais caracteriza-se como um espaço na escola
Vale a pena reiterar que, além de restringir a regular ou fora dela, com equipamento, mobiliário e
educação especial à ação das salas de recursos mul- materiais didáticos específicos necessários ao aten-
tifuncionais, a sua estruturação impede o trabalho dimento de alunos com deficiência ou distúrbios14.
colaborativo junto do professor regente, na medida Tanto é assim que, este mesmo documento,
em que esse atendimento pode ser oferecido em quando dispõe sobre a institucionalização do AEE
centros de AEE da rede pública ou em instituições no Projeto Político Pedagógico, prevê sete medidas,
especializadas, ou seja, com essa dinâmica fica todas elas voltadas para o atendimento específico
claro que o AEE, por meio do atendimento direto desse alunado:
aos alunos educação especial incluídos em salas de I – Sala de recursos multifuncionais: espaço físico,
aula do ensino regular e muito secundariamente, mobiliários, materiais didáticos, recursos pedagógi-
quando existir, no trabalho colaborativo entre pro- cos e de acessibilidade e equipamentos específicos;
fessor capacitado e especializado. II – Matrícula no AEE de estudantes matriculados no
ensino regular da própria escola ou de outra escola;
Na verdade, essa restrição ao atendimento III – Cronograma de atendimento aos estudantes;
direto aos alunos, e consequente abandono da IV – Plano do AEE: identificação das necessidades
perspectiva do trabalho colaborativo, surgiu por educacionais dos estudantes, definição dos recursos
iniciativa do Ministério da Educação, a partir de necessários e das atividades a serem desenvolvidas;
2007, cujos programas em relação ao alunado da V - Professores para o exercício do AEE;
educação especial deram prioridade absoluta à VI – Outros profissionais da educação: tradutor
implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, intérprete de Língua Brasileira de Sinais, guia-intér-
prete e outros que atuem no apoio, principalmente
considerado como um espaço organizado com
nas atividades de alimentação, higiene e locomoção;
equipamentos de informática, ajudas técnicas, VI – redes de apoio no âmbito da atuação profissio-
materiais pedagógicos e mobiliários adaptados, nal, da formação do desenvolvimento da pesquisa,
para atendimento às necessidades educacionais do acesso a recursos, serviços e equipamentos, entre
especiais dos alunos12. outros que maximizem o AEE14.

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As pesquisas e a produção do conhecimento em educação especial: as investigações sobre políticas de educação especial no Brasil

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Fica, portanto, evidente, que a educação espe- Nacionais de Pesquisa em Educação Especial,
cial, concebida como Atendimento Educacional evento bienal que reúne um conjunto expressivo
Especializado, efetivada por meio de salas de recur- de reconhecidos pesquisadores da área.
sos multifuncionais centra suas atividades nas mani- O VI Seminário, realizado em Nova Almeida
festações e dificuldades originárias da deficiência. – ES, em abril de 2011, teve como temática a mul-
Isto fica ainda mais evidente quando se verifica tiplicidade do atendimento educacional especiali-
que o AEE pode ser oferecido na própria escola, zado, que foi objeto de vinte e seis apresentações
em outra da rede pública ou por instituição especia- encomendadas de reconhecidos pesquisadores.
lizada, que deve ser oferecido em horário inverso Um balanço simples sobre essa produção mos-
ao da sala de aula. Além disso, a Política Nacional tra que, desse total, três trataram de temas correla-
de Educação Especial na Perspectiva da Educação tos, mas não se debruçaram efetivamente sobre o
Inclusiva15 é cristalina ao dispor: AEE, dezoito descreveram e analisaram diferentes
O atendimento educacional especializado tem como iniciativas de AEE, abrangendo experiências loca-
função identificar, elaborar e organizar recursos lizadas (especialmente em diferentes municípios)
pedagógicos e de acessibilidade que eliminem
ou realizaram análises sobre o AEE voltado para
as barreiras para a plena participação dos alunos,
considerando suas necessidades específicas. As ati- diferentes tipos de alunos com deficiência.
vidades desenvolvidas no atendimento educacional Por fim, apenas cinco trabalhos procuraram
especializado diferenciam-se daquelas realizadas estabelecer análises e reflexões mais abrangentes
na sala de aula comum, não sendo substitutivas à sobre a própria natureza do AEE, mas nenhum
escolarização. Esse atendimento complementa e/ deles pelo ângulo aqui apontado: do AEE como per-
ou suplementa a formação dos alunos com vistas à manência da perspectiva tradicional da educação
autonomia e independência na escola ou fora dela.
especial, calcada nas contribuições da psicologia
e da biologia que, ao fim e ao cabo, redundam em
Essa distinção entre a atividade de sala de reiteração de práticas que visam fundamentalmente
aula e do AEE é complementada, no documento, à superação das dificuldades apresentadas pelos
no detalhamento do AEE que deve disponibilizar alunos com deficiências ou distúrbios encaminha-
programas de enriquecimento curricular, o ensino dos para as classes regulares.
de linguagens e códigos específicos de comunica-
ção e sinalização e tecnologia assistiva, ou seja, os
Considerações finais
únicos alunos da educação especial que merecem
receber reforço em relação ao currículo escolar são
os alunos com altas habilidades/supedotação, ou A reflexão crítica aqui estabelecida, especial-
seja, exatamente aqueles que mais teriam condições mente no que se refere à produção do conhecimento
pessoais para se aproveitarem do currículo regular, sobre as políticas de educação especial, cuja cen-
merecendo receber atividades de enriquecimento. tralidade quase que absoluta reside nos programas
Aos alunos deficientes resta o ensino de linguagens de pós-graduação, não deve ser vista como uma
e códigos específicos de comunicação e sinalização mera denúncia de um velho professor e pesquisador
e tecnologia assistiva, sob a óptica de que, com aos seus pares.
esses recursos, o aluno poderá usufruir do ensino Na verdade, só pude chegar a determinadas
ministrado na classe regular, o que mostra, ainda reflexões porque a área apresenta um dinamismo
com mais força, que, apesar do discurso vibrante muito grande, com pesquisas diversificadas, por
de transformação das estruturas educacionais meio de enfoques e eixos diferenciados.
arcaicas e superadas, a ação da educação especial No entanto, a avalanche das políticas atuais de
se restringe ao atendimento das características educação especial, oriundas do Governo Federal
específicas dos alunos com deficiência ou com que, por meio de direcionamento de financiamento
distúrbios para que eles possam ser incorporados têm exercido influência decisiva nos sistemas esta-
pela escola regular. duais e municipais de ensino e, ao mesmo tempo,
Como essas políticas de implantação têm impactado significativamente a produção acadê-
impactado a produção acadêmica da área? mica da área, tanto em relação às ações políticas
Por iniciativa de professores da área da UFES, quanto às práticas educativas, fazendo com que se
UFRGS e UFSCar, têm sido efetivados Seminários naturalize esse processo como único e irreversível.

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Em suma, a centralização da educação especial 4. a pouca importância à organização e compo-


no Atendimento Educacional Especializado, por sição efetiva das classes em que se inserem
meio da implantação em todo o País, de salas de alunos com deficiências, a sua distribuição
recursos multifuncionais é uma opção política, pelas redes escolares, a concentração de
entre tantas outras e que, por isto, merece estar determinados tipos de deficiência em uma(s)
constantemente sob o crivo crítico dos estudiosos dada(s) escola(s); ou seja, não temos colhido
para que possa ser aprimorada, reformulada e, até dados suficientes e efetuado análises, com
mesmo, substituída. base nas políticas proclamadas, não só para
Mas, por que críticas tão acerbas se grande avançarmos em relação ao conhecimento
parte dos estudos e pesquisas tem mostrado que, sobre iniciativas que ampliam a possibilida-
apesar de todos os desvios e dificuldades, o AEE de de frequência de alunos com deficiência
tem mostrado avanços? ou distúrbios no ensino regular mas, mais
Vou retomar a minha referencia inicial: Skrtic2 que isto, procurar responder se tais inicia-
nos mostra como a crítica sobre o conhecimento tivas avançam em termos de superação da
prático em educação especial pode, sim, redundar perspectiva médico-biológica que continua
em avanços nas habilidades, atitudes e procedimen- hegemônica na área;
tos dos profissionais da área, mas que, ao fim e ao 5. o pouco interesse em investigar em pro-
cabo, não atingem o cerne da área, quais seja, os fundidade as flexibilizações e adaptações
fundamentos teóricos que a sustentam. curriculares que estão sendo levadas a efeito
Em outras palavras, as reflexões sobre os cinco nas escolas denominadas de inclusivas para
tópicos iniciais parecem demonstrar que, mesmo alunos com distintas deficiências ou distúr-
que de forma inconsciente, nossas pesquisas bios (que, por apresentarem características di-
continuam se pautando nas duas bases criticadas ferentes, exigem flexibilizações e adaptações
por Skrtic2, na medida em que o grosso de nossas também diferenciadas); esse pouco interesse
investigações se caracteriza por: mostra que reiteramos a perspectiva de que
1. continuar reiterando, ainda que implicitamen- basta trabalhar na superação das suas difi-
te, que as dificuldades ocorrem em razão das culdades específicas para que eles apresentem
professoras não terem formação adequada, ou bom rendimento escolar. O alerta que muitos
seja, algum conhecimento especializado que pesquisadores têm feito sobre as dificuldades
a biologia e psicologia possam oferecer, para de aprendizagem da língua portuguesa escrita
atuarem com qualidade junto a esse alunado; por alunos surdos, quando se constata que
2. uma crítica genérica sobre as falhas nos proces- esses alunos estão se tornando, cada vez
sos de identificação dos alunos com deficiência, mais, proficientes na língua de sinais, mas
sem que se procure relacionar essa identificação que os resultados no aprendizado da língua
com as políticas concretas de integração dos portuguesa escrita são muito precários, pare-
serviços de saúde e educação e com a atuação ce não ter causado muito efeito nos caminhos
efetiva do setor responsável e dos serviços de da pesquisa nesse campo, pois são raros os
saúde na identificação do alunado, especial- estudos como os de Dantas16 e Pereira17 que
mente aqueles que podem estar expressando a procuraram investigar o que ocorre, de fato,
“patologização do fracasso escolar”; nos processos de ensino e aprendizagem da
3. a ausência quase que absoluta de estudos língua escrita por esses alunos.
(com raríssimas exceções), que procurem 6. o confinamento de estudos sobre serviços
analisar exaustivamente as mais diferentes de apoio, especialmente o do atendimento
iniciativas que os sistemas de ensino e as ins- educacional especializado levado a efeito por
tituições de ensino superior têm assumido na meio das salas de recursos multifuncionais,
oferta de cursos de formação de professores como se ele constituísse a expressão mais
capacitados e especializados na perspectiva avançada (se não única) da educação inclu-
da educação inclusiva, mostra que a área siva, com críticas que se reduzem somente
ainda não tomou ciência de que este é um ao seu precário funcionamento, mas não aos
ponto central para a superação de práticas princípios em que se baseiam: o AEE como
sustentadas pela perspectiva bio-psicológica; praticamente única expressão diferenciada

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As pesquisas e a produção do conhecimento em educação especial: as investigações sobre políticas de educação especial no Brasil

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de apoio aos processos de escolarização de 3. Skrtic, Thomas M. A injustiça institucionalizada: construção
alunos com deficiência e a sua ênfase quase e uso da deficiência na escola. São Paulo, PUC/SP. PEPG-
-EHPS, palestra proferida no IV Seminário Internacional “A
que absoluta no atendimento direto dos escola como objeto de estudo”, 2011 (no prelo).
alunos, demonstrativo da visão estreita que 4. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil,
reduz a ação educativa com relação a esses promulgada em 5 de outubro de 1988.
alunos ao atendimento de suas dificuldades, 5. Brasil. Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
por suposto, caracterizadas pela biologia e 6. Brasil. CNE–Conselho Nacional de Educação. Resolução
psicologia. CNE/CBE no 2, de 11 de setembro de 2001, que institui as Diretri-
zes Educacionais para a Educação Especial na Educação Básica.
Este trabalho de reflexão sobre a produção do 7. Conferência Mundial Sobre Necesidades Educativas Especia-
les. Declaración de Salamanca y marco de acción para las ne-
conhecimento sobre as políticas de educação espe- cessidades educativas especiales. Salamanca, UNESCO, 1994.
cial brasileiras, encetada por nós pesquisadores da 8. Patto, Maria Helena de Souza. A produção do fracasso
área, procurou oferecer contribuições para que o escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, T. A.
dinamismo da área, que tem sido evidente especial- Queiroz, 1996.
9. Bueno, José Geraldo S.; Marin, Alda J. Crianças com necessi-
mente nas duas últimas décadas possa, gradativa, dades educativas especiais, a política educacional e a formação
prudente e consistentemente, avançar não só em de professores: dez anos depois. In: Caiado, K. R. M.; Jesus, D.
termos do impacto sobre as práticas correntes de M. de; Baptista, C. R. (Orgs.). Professores e educação especial:
educação especial – que, tal como afirma Skrtic2, formação em foco. Porto Alegre, Mediação, 2011, pp. 111-30
10. Moreira, Cláudia da Silva. A trajetória escolar de portadores
produz resultados – mas aos fundamentos básicos de deficiência visual no ensino regular, atendidos em sala de
que têm norteado essas práticas durante toda a his- recursos. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São
tória da educação especial na sociedade moderna, Paulo – PUC/SP, Dissertação de Mestrado, 2002.
calcados exclusivamente na biologia e psicologia. 11. Brasil. CNE–Conselho Nacional de Educação. 2010. Re-
solução nº 4, de 13 de julho de 2010, que define as Diretrizes
Nesse sentido, esse avanço em termos do Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica.
aumento de densidade teórica de nossos trabalhos 12. Brasil. MEC-Ministério da Educação. Portaria Normativa n.
134, de 24 de abril de 2007, que dispõe sobre a criação do “Pro-
só se efetivará com o incremento do intercâmbio
grama de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais.
acadêmico de base (que coloque em cheque as 13. Brasil. MEC–Ministério da Educação. SEESP–SECRETA-
nossas certezas em relação aos fundamentos que RIA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL. Nota técnica SEESP/GAB/
apoiam nossas práticas investigativas) e, no campo No/ 11/2010, que fornece orientações para a institucionalização
da oferta do Atendimento Educacional Especializado – AEE em
específico dos estudos e pesquisas sobre políticas
Salas de Recursos Multifuncionais, implantadas nas escolas
de educação especial, desloque o eixo de nossos regulares.
intercâmbios: nossos interlocutores privilegiados 14. Brasil. MEC. SECADI. DPEE 2012 P. 11 a 16.
devem ser com os que compõem o campo acadê- 15. Brasil. MEC–Ministério da Educação. SEESP–SECRE-
TARIA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL. Política Nacional de
mico-científico de nossa área e, em segundo plano,
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
os agentes especializados do Estado. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela
Por fim, cabe esclarecer que a restrição do Portaria Ministerial n. 555, de 05 de junho de 2007, prorrogada
pela Portaria n. 948, de 09 de outubro de 2007. Brasília, MEC.
escopo deste artigo à produção do conhecimento da SEESP, 2008.
educação especial sobre políticas educacionais deve 16. Dantas, Mauriza M. Práticas cotidianas de ensino da
ser encarado como um exercício localizado sobre língua escrita em classe especial para surdos. São Paulo,
um dos temas da área (escolhido em razão de minha Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o Dissertação
de mestrado, 2006.
trajetória pregressa de estudos), mas que poderia se 17. Pereira, Michelle Melina G. P. N. Língua escrita e sur-
estender a todos os campos temáticos que envolvem dez: uma análise das práticas pedagógicas desenvolvidas em
a educação especial como prática social. escolas especial de educação bilíngue. São Paulo, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Dissertação
de Mestrado, 2011.
Referências
Recebido em outubro/12; aprovado em
1. Franklin, Barry M. (Compilador). Interpretación de la dis- dezembro/12.
capacidad. Barcelona, Pomares-Corredor, 1996.
2. Skrtic, Thomas M. La crisis en el conocimiento de la educa- Endereço para correspondência
ción especial: una perspectiva sobre la perspectiva. In: Franklin, José Geraldo Silveira Bueno
Barry M. (Compilador). Interpretación de la discapacidad.
Barcelona, Pomares-Corredor, 1996, pp. 35-72. E-mail: jotage@pucsp.br

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