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Freud e as fadas
Psicanalistas convocam personagens como Cinderela e Harry Potter para contar os
conflitos de crianças e adultos de hoje
Eliane Brum
Essa é a mais antiga versão para a clássica história contada até hoje para embalar o sono
dos pequenos. Com o tempo, as passagens mais eróticas e perturbadoras, como
canibalizar a doce avozinha, foram eliminadas. Era preciso atender às necessidades
impostas pela moderna visão da infância, com sua exigência de inocência. Ainda que
mais insossa, porém, Chapeuzinho Vermelho continua sendo ouvida com atenção por
crianças que podem, no minuto seguinte, ligar a TV nos Power Rangers.
Por que histórias como essa sobreviveram? O que faz com que alguns contos de fadas
permaneçam e outros pereçam? O que revelam sobre nós as partes eliminadas e as que
subsistem? De que necessidade partem as transformações sofridas pelos personagens
para se manter vivos, como a mãe má que vira madrasta e o pai cruel que se torna ogro?
E, principalmente, o que Chapeuzinho, Cinderela, Branca de Neve, João e Maria e
tantos outros habitantes do mundo da fantasia desde os nossos tataravós têm a dizer ao
cibernético século XXI? Essas são algumas das perguntas a que os psicanalistas
gaúchos Diana e Mário Corso respondem na obra Fadas no Divã. O livro será lançado
nesta segunda-feira na Livraria Cultura, em Porto Alegre.
A inspiração, como não poderia deixar de ser, veio da obra seminal do austríaco Bruno
Bettelheim - Psicanálise dos Contos de Fada (1977). Diana e Mário, porém, vão além.
Têm o mérito de não desprezar o que veio depois da tradição. Na segunda parte do livro,
eles vão perguntar a Pinóquio e Peter Pan, Mafalda, Harry Potter e à Turma da Mônica,
entre outros ''modernos'', sobre o que têm a dizer às crianças - e aos adultos - para ter
conquistado o direito de perambular pelo milênio.
Casados há 21 anos, é como psicanalistas com duas décadas de clínica, mas também
como pais, que Diana e Mário se lançam nessa jornada. E pais contadores de histórias -
as da tradição, as da modernidade e as próprias. As filhas, Laura e Júlia, hoje são
adolescentes. É possível dizer que o livro começou a ser gerado junto com elas - embora
só tenha sido escrito a quatro mãos nos últimos três anos.
Era para ter sido, no máximo, efeito colateral. Aconteceu, porém, com a maioria dos
que tiveram a chance de ler Fadas no Divã antes que desembarcasse nas livrarias. Ao
abrir o livro não são as fadas que vão para o divã, mas o leitor. Mário brinca que é uma
espécie de ''auto-ajuda psicanalítica''. Cada vez que pediam aos amigos uma crítica
rigorosa, eles voltavam entusiasmados com as sacadas que - agarrados às tranças de
Rapunzel ou debaixo da asa solitária do Patinho Feio - tiveram sobre sua própria
história.
O livro vem com bula, basta escolher o caminho. Os autores sugerem dois modos de
usar as 326 páginas: pela ordem original, se o leitor for movido por interesses
acadêmicos, ou de forma aleatória, seguindo preferências literárias. Neste caso, pode ir
e vir à vontade - e pular capítulos sem susto. A obra foi escrita para todo tipo de gente.
Não é preciso ser iniciado em psicanálise - basta ter alguma vez parado diante do
espelho mágico e...
''Fizemos o possível para entregar ao leitor o fio de Ariadne, para que o Minotauro da
chatice não nos devore…'', dizem. Esse risco não há. Mas muitos outros estão à espreita
do leitor a cada página virada.
TÍTULO
Fadas no Divã
AUTORES
Diana L.Corso e Mário
Corso
EDITORA
Artmed
PREÇO E PÁGINAS
R$ 62/326
O Rei Sapo
Trata-se da filha mais jovem do rei, como sempre, a mais bela de todas as
princesas. Nos dias quentes, ela tinha por hábito brincar com sua bolinha de
ouro perto de uma fonte, mas uma vez deixou cair seu precioso objeto na
água profunda, fazendo o brinquedo desaparecer. Desesperada, pôs-se a
chorar como um bebê, aos gritos. Nesse momento surge um sapo,
prometendo alcançar-lhe a cobiçada bola, mas somente se ela concordar em
levá-lo para a casa dela. Além disso, teria de lhe aceitar como companheiro
de brincadeiras, compartilhar com ele seu prato e admitir sua companhia até
na própria cama. A jovem concordou, mas sem a mínima intenção de honrar
uma promessa feita a tão desprezível criatura - e aqui ela se mostra uma
pessoa bem pouco bonita. Depois de obter a bola de volta, ela foge correndo
do sapo, mas ele vai até o castelo e bate à porta, exigindo o cumprimento da
palavra da princesa caçula.
Por sorte, as crianças são muito mais espertas, elas são adeptas irrestritas da
ficção e quanto mais mágica, onírica, radical e absurda, melhor. Pode-se
também traçar um paralelo interessante com a poesia, através da qual as
palavras se tornam ferramentas polivalentes. Crianças adoram trocadilhos,
rimas divertidas, sentidos surpreendentes e humor, e é nisso que as
julgamos sábias, pois o domínio da língua flexibiliza o entendimento da
realidade e faz nosso pensamento mais versátil e ágil. Enfim, é uma sorte
que na mesma época em que estamos em formação, arrumando as malas
que conterão os fundamentos que vamos levar na viagem pela vida afora,
sejamos consumidores vorazes de ficção.'