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Ciência Política

Ciência política

Rodrigo Estramanho de Almeida


Tathiana Senne Chicarino
Carla Regina Mota Alonso Diéguez
© 2017 por Editora e Distribuidora Educacional S.A.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Almeida, Rodrigo Estramanho de


A447c Ciência política / Rodrigo Estramanho de Almeida,
Tathiana Senne Chicarino, Carla Regina Mota Alonso
Diéguez. – Londrina : Editora e Distribuidora Educacional
S.A., 2017.
192 p.

ISBN 978-85-522-0249-3

1. Ciência política. 2. Políticos. I. Chicarino, Tathiana


Senne. II. Diéguez, Carla Regina Mota Alonso. III. Título.

CDD 320.01

2017
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza
CEP: 86041-100 — Londrina — PR
e-mail: editora.educacional@kroton.com.br
Homepage: http://www.kroton.com.br/
Sumário

Unidade 1 | Fundamentos da Ciência Política 7

Seção 1.1 - A Ciência Política e a política como ciência 10


Seção 1.2 - A política que vem da Antiguidade 24
Seção 1.3 - A política na Idade Média 38

Unidade 2 | Ciência Política e Estado Moderno 55

Seção 2.1 - O contratualismo 56


Seção 2.2 - Formação do Estado Moderno 68
Seção 2.3 - Visões sobre o Estado 80

Unidade 3 | Formas e exercício do poder 97

Seção 3.1 - Formas de dominação, poder e autoridade 98


Seção 3.2 - A crítica marxista das formas de dominação 111
Seção 3.3 - Formas e sistemas de governo 123

Unidade 4 | Sistemas eleitorais e partidários 137

Seção 4.1 - Partidos políticos 139


Seção 4.2 - Partidos políticos revolucionários 152
Seção 4.3 - Sistemas partidários e eleitorais 167
Palavras do autor
A política faz parte de nossas vidas, mas constantemente nos
indagamos sobre o que ela é de fato e para quê ela serve. Afinal,
todos os dias nos deparamos com escândalos de corrupção entre
governantes, com leis aprovadas sem apoio popular e deputados
que mudam de partido como trocam de roupa. Esses e outros fatos
nos levam, muitas vezes, ao afastamento e ao descrédito para com a
política e os políticos.
O fato é que mesmo que nos afastemos da política, ela está no
nosso cotidiano, como no aumento da passagem do transporte
público, no vai e vem dos preços dos alimentos, na concessão das
emissoras de televisão que assistimos. A política é, enfim, parte do
que somos e do mundo em que vivemos.
No entanto, essa não é a única forma de pensar a política, pois a
prática científica há algum tempo a tomou como objeto, em busca
da compreensão racional dos mecanismos de construção do Estado,
as formas e o exercício do poder, a construção dos sistemas eleitorais
e partidários, a constituição das políticas públicas, entre outros temas
presentes no cotidiano.
Desse modo, esta disciplina abordará como a política está presente
na vida cotidiana e como a Ciência Política pode contribuir para uma
compreensão lógica dos fenômenos políticos. Para isso, ela está
dividida em quatro unidades que discutirão, além do entendimento
do que é política, o que é ciência e ciência política, a presença da
política na Antiguidade e na Idade Média (Unidade 1); a formação do
Estado Moderno e as teorias sobre o Estado (Unidade 2); as formas de
poder e seu exercício (Unidade 3); a construção dos partidos políticos
e a constituição dos Sistemas Eleitorais e Partidários (Unidade 4).
Esses são os temas fundamentais aos quais nos dedicaremos para
o estudo dos aspectos teóricos e práticos da política.
Dessa forma vamos à leitura, pois esta disciplina será importante
para o entendimento de conceitos que serão mobilizados em outras
discussões do curso e para que possamos compreender melhor as
questões políticas do mundo no qual vivemos.
Viaje nas reflexões que serão propostas, mas não se esqueça de
que pesquisar um pouco mais é fundamental para seu crescimento
intelectual. Assim, desejamos bons estudos!
Unidade 1

Fundamentos da Ciência
Política
Convite ao estudo
Dois temas costurarão a trama da Unidade 1: a formação do
Estado moderno e os fundamentos teóricos que visam o seu
entendimento.

Sobre a primeira temática, convidamos você a conhecer os


antecedentes formativos desse Estado, tanto no que tange à
ação política quanto à formação de uma mentalidade própria,
pois pessoas e grupos não só integram o Estado, mas também
outra entidade - a sociedade.

Nesse sentido, buscaremos compreender que a legitimidade


de um Estado, ou mesmo os conflitos em torno de sua fundação,
advém da ação e da formação de um pensamento oriundo
também do âmbito da sociedade, ou das pessoas imersas em
seu cotidiano.

Esse é um aspecto essencial que nos levará à segunda


temática da presente unidade, os fundamentos teóricos ou os
conceitos e as teorias acerca desse fenômeno: a formação do
Estado moderno.

Perceba que estamos tratando essas duas temáticas -


formação do Estado moderno e seus fundamentos teóricos
- de forma circular, em outras palavras, de forma dialética,
pois para que tenhamos um conhecimento coerente como
resultado de nosso percurso, faz-se necessário ora recorrer à
análise da ação e do pensamento político envoltos na formação
do Estado moderno, ora às reflexões que fundamentam o seu
entendimento.

Derivados dessas duas temáticas teremos como principais


objetivos de aprendizagem: o domínio de um arcabouço
conceitual sobre ciência, política e ciência política, que possa
fundamentar as reflexões que surgirão não apenas nesta,
mas em todas as unidades subsequentes, propiciando o
desenvolvimento de um raciocínio crítico diante dos fenômenos
políticos. E, ancorado na busca por um conhecimento cultural
e social, o outro objetivo de aprendizagem versará sobre as
experiências históricas do fazer política, em que questões como
representação, participação, soberania e autoridade estarão no
centro do debate.

Ciência é muita coisa, mas como podemos defini-la? E o


que é política? Se citarmos a ciência política, a confusão fica
ainda maior. Nesta unidade, buscaremos essas definições
conceituais, apresentando cada uma delas para que depois
você possa discernir entre o que é a política na prática e o que é
a política como atividade acadêmica e científica. Isso tudo sem
deixar de lado as etapas históricas de reflexão sobre a política
no Ocidente, levando em conta tanto o modelo de democracia
grega, que estimulava os cidadãos à participação coletiva,
quanto a forma autoritária, reproduzida no cotidiano feudal e
absolutista da alta e baixa Idade Média.

Assim, já de início, na primeira seção, abordaremos o


conceito de ciência, de política e o de ciência política. Também
debateremos as diferenças entre as que motivam o político
profissional e as vocações e as orientações que motivam o
cientista/analista. A partir de então, poderemos compreender
a complexidade da política e como somos levados às
interpretações errôneas, como dizer que “todo político é igual”,
sem uma pesquisa prévia.

Na segunda seção, falaremos sobre a política da Antiguidade,


considerando especialmente o caso da polis ateniense e
em como se tornou o lócus do pensamento democrático e
do desenvolvimento da cidadania, ainda que muitos fossem
excluídos dessa prática. Assim, o espaço social da polis será
abordado com relação ao tempo dedicado à participação e à
representação política, um tempo cíclico que permite reflexões
aprofundadas sobre o “viver juntos”.

Na última seção, falaremos sobre a emergência de duas


estruturas sociopolíticas que dominarão a Europa da baixa Idade
Média até o Renascimento: o feudalismo e a vassalagem. Em
seguida, nos aprofundaremos nos fundamentos constitutivos
do absolutismo como sendo uma organização política capaz de
colocar o monarca no centro da autoridade e da soberania do
Estado, tendo este o poder absoluto. Quanto à essa condição,
tentaremos ver aos olhos de hoje: será possível um político dizer
que concentra todo o poder de uma nação? Ele seria eleito?
Isso pode ser considerado legítimo?

Finalmente, buscaremos compreender o que é realismo


político em oposição ao idealismo e por quê o pragmatismo
político passou a ser vinculado aos estudos de Nicolau
Maquiavel.
Seção 1.1
A Ciência Política e a política como ciência
Diálogo aberto

Já não é de hoje que escutamos ou lemos, em nossos smartphones,


na TV, no rádio ou nas bancas de jornais, que “político é tudo igual”!
Isso é tão falado que parece uma verdade absoluta. Que elementos
nos permitem concordar ou discordar desta informação?
Ao iniciarmos este curso de Ciência Política, pretendemos lhe dar
elementos - com outras disciplinas - para pensar mais profundamente
sobre o assunto e não ficar apenas nas aparências. Para superar as
aparências, precisamos de mais informações, de um método de
análise e de teorias que expliquem a realidade, ou seja, precisamos da
ciência. Entretanto, ao analisarmos a realidade, não pretendemos agir
sobre ela, de acordo com os nossos próprios pontos de vista? Analisar
a política não é ao mesmo tempo fazer política? Como distinguir
estes dois aspectos?
Ao escutarmos a palavra ciência, nos vêm imediatamente
imagens, como um laboratório cheio de tubos de ensaio, experiências
acompanhadas atentamente por cientistas em seus jalecos brancos.
No entanto, a despeito de verídica, essa cena não esgota todas as
possibilidades da ciência, melhor dizendo das ciências. As ciências
humanas, embora de outro tipo, também nos ajudam a compreender
o mundo. Assim, para sabermos se político é “tudo igual”, ou não, é
preciso empreender uma pesquisa científica.
O que precisamos saber para iniciar este trabalho? Quais são os
principais conceitos que precisamos dominar? É possível ser um
analista ou mesmo um cientista completamente neutro? Quais são
os autores que já pensaram sobre isso? É o que veremos nesta seção.

Não pode faltar


O termo ciência remonta o fim da Idade Média, onde havia uma
preocupação em descrever tanto o conhecimento adquirido até
então, quanto aquilo que era passível de observação da vida, mas
é a chamada Revolução Científica do século XVII que demarcará
definitivamente esse termo como sendo um método de investigação.

10 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Pesquise mais
Alguns cientistas partícipes da Revolução Científica do século XVII foram
fundamentais para a evolução do pensamento científico. Nas ciências
naturais, destacamos Galileu Galilei e Isaac Newton, e naquilo que
podemos chamar de os primórdios das ciências sociais, Francis Bacon -
e o seu legado de um empirismo latente à matéria.

Pesquise um pouco mais sobre a biografia dessas fantásticas


personalidades.

Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/biografias/francis-bacon.


htm>. Acesso em: 14 fev. 2017.

Disponível em: <http://www.infoescola.com/biografias/isaac-newton/>.


Acesso em: 14 fev. 2017.

Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/biografias/galileu-galilei.


htm>. Acesso em: 14 fev. 2017.

A partir do final do século XIX, com as primeiras centelhas da


Revolução Industrial, começou-se a defender que os temas sociais
estivessem sujeitos às mesmas comprovações e validações das
ciências da natureza - eis que surgem as escolas do positivismo.
Contudo, podemos lançar o seguinte questionamento: estariam
as ciências sociais sujeitas aos mesmos testes de comprovação
(verificando se algo é falso ou verdadeiro) que as ciências naturais?
Nós podemos imobilizar o nosso objeto de pesquisa, que são
comportamentos, ideias e opiniões em laboratórios? Podemos
controlar todas as variáveis em jogo?
Com o tempo, passou-se a ver que não, pois, diferentemente dos
objetos naturais, os agrupamentos humanos conferem sentido, dão
algum propósito às suas ações, e essa característica tem um forte
teor de imponderabilidade. Qual é a consequência dessa mudança
de postura?
Viu-se que seriam necessários métodos específicos ao objeto de
pesquisa social, se inserindo cada vez mais na divisão e especialização
do trabalho cognitivo e reforçando a perspectiva de que a “Ciência é
um singular que implica pluralidade: são várias as ciências” (SARTORI,
1981, p. 175, grifo nosso).

U1 - Fundamentos da Ciência Política 11


Reflita
O filósofo da ciência Thomas Kuhn, a partir de um estudo sistemático
sobre o desenvolvimento das ciências naturais, percebeu que sua
evolução acontecia por meio de paradigmas, ou formas hegemônicas
calcadas em determinadas teorias. Entretanto, esses paradigmas não
eram e não são imutáveis, ou seja, são regularmente sucedidos por
outros paradigmas.

Kuhn observou que é na mudança de um paradigma para outro que a


inovação e o progresso emergem, afloram, mesmo que eles tenham
surgido de um caos. Quando o método científico é mutável, variado e
se encontra em evolução contínua, Giddens e Sutton (2015) chamam
essa mudança de desvio do modelo vigente. Assim, convidamos você a
refletir: será que as variáveis, mesmo no universo das ciências naturais,
podem ser tão controladas assim?

Como um método de investigação, a ciência depende ao mesmo


tempo de teoria e de empiria, ou seja, “não há ciência completa que
não seja ao mesmo tempo aplicada e teórica” (SARTORI, 1981, p. 183).
E qual é a diferença entre elas? Sartori (1981) afirma que o que
não é prático é teoria, e vice-versa, mas isso não significa que elas se
excluem, mas que mantêm uma relação de causa e efeito quer direta
ou indiretamente. Vamos melhorar ainda mais essas duas definições:
teoria seria uma elaboração mental sofisticada. Prática, o fazer e seu
resultado.
Exemplificando
O sociólogo Max Weber (2001) empreendeu uma articulação entre
a teoria e a empiria a partir de uma estratégia metodológica que
nomeou de tipo ideal, conceito puramente ideal por meio do qual o
pesquisador “mede” a realidade observada a fim de compreender seu
conteúdo empírico. Dos vários estudos feitos pelo autor, destacamos a
compreensão do capitalismo a partir da ética ascética calvinista.

Veja mais em um site especializado em Sociologia.

Disponível em: <http://cafecomsociologia.com/2012/07/etica-protestante-


e-o-espirito-do.html>. Acesso em: 9 maio 2017.

Entretanto, por que dizer que isso é importante para nós? Porque
o que distingue a ciência, por exemplo, da filosofia, mas também das

12 U1 - Fundamentos da Ciência Política


doutrinas e ideologias, é que no caso da ciência, a investigação é
indispensável, é imprescindível, e ela se orienta para o entendimento
“de como as coisas acontecem”, “de como as pessoas se comportam”,
e assim por diante.
Assimile
O sociólogo britânico Anthony Giddens nos fornece uma definição
prática, procedimental, da ciência como sendo um método de obtenção
de conhecimento válido e confiável sobre o mundo, com base em
teorias testadas em relação às provas coletadas, ou seja, a observação
da realidade, da experiência, pode contrapor às teorias em voga. Empiria
e teoria estão, portanto, articuladas. Grave esse conceito!

No entanto, se para entendermos a ciência política é necessário


primeiro distinguir a ciência da política, então, do que se trata esse
último termo? É importante dizer que há um elemento de autonomia,
de distinção na política, mas com relação a quê? Maquiavel, um autor
que veremos mais detidamente na terceira seção desta unidade,
pode ser considerado o primeiro teórico a dissociar completamente
a política de outras duas formas de enxergar o mundo e de orientar
comportamentos: a moral e a religião. Sintetizada na frase: o fim
justifica os meios.
Essa dissociação será aprofundada no decorrer da Unidade 1, mas
o que devemos gravar agora é que a política não é apenas diferente
da religião e da moral, mas é sobretudo autônoma, no sentido de ter
suas próprias leis, padrões e regularidades.
Exemplificando
A fim de delimitar ainda mais a especificidade da política em relação
à moral, Sartori (1981) traz a seguinte reflexão: a moral não tem um
comportamento em si, mas um que se revela dentro do seu próprio
campo - por exemplo, quando tomamos a atitude de denunciar uma
agressão, e por que esse comportamento tem relação com a moral?
Porque temos como um princípio moral a não agressão.

Já a política tem comportamentos que podem ser chamados


de comportamentos políticos, pois, contextualizando histórica e
geograficamente, eles têm relação com o campo da política ou com
o sistema político, mas esse comportamento se faz em si mesmo - por
exemplo, em uma localidade podem existir regras para a eleição de
representantes, mas habitantes nela situados podem: 1. Recusar essa

U1 - Fundamentos da Ciência Política 13


participação; 2. Criar outro mecanismo de eleição; 3. Tirar à força os
proponentes de tal eleição.

Assim, não podemos dizer que a atitude de denunciar a agressão pode


ter relação com o campo da moral, mas também com o campo do
direito etc. Entretanto, as possibilidades de comportamento frente a
uma eleição, como exemplificamos anteriormente, são intrinsecamente
políticas.

Ou como diz Bobbio, Matteucci e Pasquino (2004, p. 961): “O que se


chama autonomia política não é outra coisa senão o reconhecimento
de que o critério segundo o qual se julga boa ou má uma ação política é
diferente do critério segundo o qual se acha boa ou má uma ação moral”.

Se a política tem essa autonomia, no que concerne aos


agrupamentos humanos, como podemos defini-la?
Para Weber, a política é um conceito bastante amplo, mas que
pode ser visto como um “conjunto de esforços feitos com vistas a
participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre
Estados, seja no interior de um único Estado” (WEBER, 1968, p. 56).
Ele está destacando duas entidades constitutivas da política: o Estado
e a liderança política.

Entenderemos por política apenas a direção do


agrupamento político hoje denominado “Estado” ou
a influência que se exerce em tal sentido. Mas o que é
um agrupamento “político”, do ponto de vista de um
sociólogo? O que é um Estado? Sociologicamente, o
Estado não se deixa definir por seus fins. Em verdade,
quase que não existe uma tarefa de que um agrupamento
político qualquer não se haja ocupado alguma vez; de
outro lado, não é possível referir tarefas das quais se
possa dizer que tenham sempre sido atribuídas, com
exclusividade, aos agrupamentos políticos hoje chamados
Estados ou que se constituíram, historicamente, nos
precursores do Estado moderno. Sociologicamente,
o Estado não se deixa definir a não ser pelo específico
meio que lhe é peculiar, tal como é peculiar a todo outro
agrupamento político, ou seja, o uso da coação física.
(WEBER, 1968, p. 55-56)

Assim, Weber (1968) está dizendo que a política está voltada para
a ação pública no interior do que denominamos Estado moderno e

14 U1 - Fundamentos da Ciência Política


este como sendo um tipo de agrupamento político, um tipo de Estado
historicamente localizado, apenas se diferencia de seus precursores
por ser capaz de em um território delimitado usar a força das polícias,
do Exército, de forma legítima.
Além disso, Weber (1968) afirma que todo aquele que se entrega à
política, aspira o poder - seja porque o considere como instrumento a
serviço da consecução de outros fins, ideais ou egoístas, seja porque
deseje o poder “pelo poder”. Ele distingue duas maneiras desse fazer:
entre aqueles que vivem “para” a política, que têm uma causa a ser
defendida, sendo esta sua motivação única; e aqueles que vivem “da
política”, tendo essa atividade como fonte de renda.
Nas duas maneiras decorrem aspectos negativos, a primeira pode
tender à plutocracia e à manutenção do status quo (conservando
mecanismos políticos, sociais e culturais, sendo refratários às
mudanças), a segunda pode apresentar uma tendência maior ao
pragmatismo e menos ao idealismo (um aspecto por vezes importante
para respaldar as mudanças sociais).
Vocabulário
Segundo o dicionário Aulete, plutocracia pode significar:

1. O poder daqueles que detêm a riqueza.

2. O governo regido pelas classes mais favorecidas economicamente.

3. A influência das elites econômicas no exercício do poder.

Disponível em: <http://www.aulete.com.br/plutocracia>. Acesso em: 17


abr. 2017.

Pesquise mais
Sartori (1981) tece algumas críticas com relação à essa concepção de
política weberiana de que a política estaria apenas situada no âmbito
do Estado. E ela vem principalmente do autor achar essa concepção
demasiada exclusivista, e desconsiderando a dimensão horizontal da
política que acabou por ocorrer com a democratização ou a massificação
da atividade política (tanto entre a base, quanto também entre a elite).
Para ele, os processos políticos se relacionariam não apenas com
o Estado, mas também com algo muito mais amplo que nomeia de
sistema político e que é composto por diferentes subsistemas.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 15


Além da citada democratização, podemos citar uma outra característica
da política enquanto verticalidade, que se refere ao controle de corpos
e mentes, ou micropolítica.

Pesquise mais sobre seu significado:

NETO, J. L. F. Micropolítica em Mil Platôs: uma leitura. Psicologia USP,


v. 26, n. 3, São Paulo, set./dez. 2015. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1590/0103-656420140009>. Acesso em: 14 fev. 2017.

COLLIER, S. J. Topologias de poder: a análise de Foucault sobre o governo


político para além da "governamentalidade". Revista Brasileira de Ciência
Política, Brasília, n. 5, jan./jul. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-33522011000100010>. Acesso
em: 14 fev. 2017.

Na mesma linha weberiana de interpretação do conceito de


política, Bobbio, Matteucci e Pasquino (2004, p. 954) a sistematizam
da seguinte forma: “Duas atividades são destacadas no que se refere
à esfera da Política: 1. Atos com efeitos vinculadores para todos os
membros de um determinado grupo social (legislar, transferir recursos,
ordenar um território); 2. Atos relativos ao poder (manutenção,
conquista)”.
Também próximo à vertente weberiana, Carl Schmitt, segundo
leitura de Bobbio, Matteucci e Pasquino (2004), entende a política
dentro da relação amigo-inimigo, ou seja, coloca o antagonismo tanto
como o campo de origem, quanto de especificação (de se diferenciar
de outros campos da vida). Essa relação ocorreria, para Schmitt, tanto
no interior do Estado, quanto entre Estados, pois o conflito é inerente
às formações humanas e, quando a política não conseguir mais dar
resposta e amenizar essa condição, chegaríamos ao extremo que é o
uso exacerbado da força pelo Estado, ou seja, a guerra.
Até aqui nos detivemos a dizer o que é ciências, ou as ciências,
entendendo-as como um singular que implica pluralidade (SARTORI,
1981) e em destacar a especificidade da política. Dessa forma, o que
significa a junção desses dois termos? Ao considerarmos que um dos
pressupostos da ciência é a formulação de leis e que a política tem
suas próprias leis e imperativos, começamos a delinear do que se trata
a ciência política, como o “encontro entre um modo de estudar a
política e uma política vista na sua própria autonomia” (SARTORI, 1981,
p. 177-178), mas em uma autonomia que não é apenas da política,
mas sobretudo do observador/pesquisador da política.

16 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Nesse sentido, para Sartori (1981, p. 178).
não é um pecado, portanto, associar a ciência política
não tanto à “cientificidade intrínseca” da disciplina - a
ciência política no sentido estrito - mas, sobretudo, à
“autonomia” do politólogo; a ciência política lato sensu

Cabe ao cientista político (politólogo) não ficar apenas preso


a todos os parâmetros científicos, mas tê-los como guia para
empreender um modo autônomo de estudar a política em sua forma
concreta.
E a caracterização da ciência política vai ficando cada vez mais
clara à medida em que ela se afasta da filosofia política. Assim,
trabalhando essa dicotomia filosofia política/ciência política, Sartori
(1981) busca fazer uma síntese de suas diferenças a partir das
contribuições acerca do tratamento filosófico feitas por Bobbio.
Veja no quadro a seguir:
Quadro 1.1 | Diferenças entre filosofia e ciência política, de acordo com Bobbio

Filosofia (política) Ciência (política)


1. dedução lógica 1. verificação empírica
2. justificação 2. explicação descritiva
3. atribuição de valores normais 3. isenção de valores
4. caráter fundamental e universal 4. particularidade e cumulatividade
5. metafísica das essências 5. constatação de essências
6. inaplicabilidade 6. operacionalidade e operatividade
Fonte: adaptado de Sartori (1981).

Este é um quadro geral. Nem sempre todas estas diferenças vão


ser aplicáveis a todas as situações.

1. Sobre as conclusões: na filosofia, elas advêm do raciocínio lógico


coerente, enquanto que na ciência política, advém da investigação,
isto é, pesquisa, experimentação.
2. Justificação: a filosofia busca os motivos. É, portanto,
especulativa. Enquanto que a ciência política tenta compreender
como os fatos ocorrem, como os comportamentos se desenrolam
e, a partir da descrição, busca uma explicação.
3. Papel dos valores: na filosofia política, os valores são os eixos
orientadores. Já na Ciência Política, busca-se o afastamento e a
isenção.
4. Sobre o objetivo final: a filosofia política busca explicações gerais.
Já a ciência política, considerando o seu caráter mutável, se orienta

U1 - Fundamentos da Ciência Política 17


para a compreensão de fenômenos específicos, não apenas para
fornecer explicações para aqueles que são diretamente “atingidos”
pelo fenômeno considerado, mas também para ajudar a entender
melhor as explicações gerais, pois é através de casos concretos que
validamos ou não uma teoria/explicação geral.
5. Sobre a relação entre teorizar e investigar: a filosofia política
busca os elementos constitutivos do ser humano que fogem às
explicações oriundas da realidade concreta, que não são apreensíveis
pela experiência. A ciência política pode constatar a existência desses
elementos constitutivos através de uma investigação empírica e não
apenas da teorização.
6. Sobre desenvolvimento de mentalidade e ação prática: a filosofia
política desenvolve cognitivamente as visões que temos do mundo.
A ciência política pode auxiliar a conversão do pensamento em ação,
gerando até resultados e práticas, ou seja, tornando-se aplicável.

Assimile
“De modo geral, a verificação das afirmativas pode ser feita de quatro
maneiras: pelo experimento, pelo controle estatístico, o controle
comparado ou o controle histórico” (SARTORI, 1981, p. 191).

Dentre as principais formulações de Max Weber (1968), estão a


diferenciação entre a vocação de um político e a vocação, aptidão do
cientista. E como qualquer orientação é acompanhada de um conjunto
de regras, de razões que determinam condutas, as vocações por ele
descritas são entendidas a partir de uma ética ou ethos.
Para entender a política como vocação, Weber (1968) inicia sua
análise acentuando o seguinte paradoxo: o resultado final da atividade
política raramente corresponde à intenção original do agente. Então,
por que tornar-se político? Qual é o sentido dessa função?
Buscando essas respostas, o autor faz a distinção entre a ética
da convicção - que seria o conjunto de normas e valores pessoais
do político - e a ética de responsabilidade - que seria o conjunto de
normas e valores que devem orientar a ação do político no momento
da execução de seu cargo, que é público. Essas duas éticas estão
em oposição, pois uma está encerrada na esfera pública e a outra na
esfera privada, mas a conciliação de ambas permitiria a emergência da
verdadeira vocação política.

18 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Além disso, Weber (1968) destaca que as motivações para se tornar
político podem variar entre ideais, adesão às causas, ou uma busca por
prestígio:

Todo homem, que se entrega à política, aspira ao poder


- seja porque o considere como instrumento a serviço da
consecução de outros fins, ideais ou egoístas, seja porque
deseje o poder “pelo poder”, para gozar do sentimento
de prestígio que ele confere” (WEBER, 1968, p. 57).

Já a ciência como vocação tem como uma ética de condição


(imperativo categórico, princípio ou conjunto de princípios que devem
ser seguidos), e ela pode ser resumida na seguinte frase: “Sempre que
um homem de ciência permite que se manifestem seus próprios juízos
de valor, perde a compreensão integral dos fatos” (WEBER, 1968, p. 41).
Esse afastamento dos juízos de valor, das crenças, não significa que
o cientista conseguirá no decorrer de sua pesquisa uma neutralidade
absoluta. Por quê?
1. O objeto de sua atenção é social e cultural, a mesma natureza
do cientista, onde ele está imerso.
2. Não há um completo controle das variáveis (como em um
laboratório).
3. A escolha pelo objeto de pesquisa é dada ou por razão pessoal
ou é relativa ao meio em que está inserido.
Isso não elimina a busca pela objetividade, que deve:
1. Separar os juízos vindos da descrição, da empiria, dos juízos de
valor.
2. Se encontrados juízos de valor, o cientista/pesquisador deve
explicitá-los.
3. O cientista/pesquisador deve agir com imparcialidade, ou
seja, deve apresentar com equidade todos os vários pontos de vista
valorativos.
Assim, os valores não deixam um trabalho menos científico, mas é
condição da ciência que eles sejam identificados, deixados de lado para
que as descrições da realidade concreta não sejam borradas por um
olhar valorativo (WEBER, 2010).
Vamos então assentar e explicitar essas questões: é possível ser um
cientista/analista neutro? E ser um político que não é capaz de analisar

U1 - Fundamentos da Ciência Política 19


e compreender a realidade circundante?
Sobre a conduta desses dois “personagens”, Weber (2001) dirá que
é impossível que se tenha uma neutralidade absoluta do pesquisador
com relação ao seu objeto de pesquisa, bem como de um completo
controle das variáveis, como já dissemos. Isto porque o interesse por
uma investigação específica é definido culturalmente (razão pessoal
ou relativa ao meio em que está inserido), mas isso não significa
que devemos nos conformar com essa relação de proximidade e
de interesse para com aquilo que estudamos e assim descuidar dos
parâmetros científicos, ao contrário, devemos reconhecer essa situação
para então separar os juízos de fato dos juízos de valor, buscando uma
imparcialidade através da apresentação equitativa de diferentes pontos
de vista valorativos.
Assim teremos um cientista/analista que não é neutro, mas que é
objetivo, que sabe reconhecer e entender seu lugar e seus valores, mas
que não deixa de empreender um estudo científico, pois adota critérios
metodológicos capazes de lhe fornecer essa objetividade.
Já o outro “personagem” - o político - Weber (1968) diz que ele deve
ter três qualidades: paixão, sentimento de responsabilidade e senso de
proporção.

Paixão no sentido de “propósito a realizar”, isto é, devoção


apaixonada a uma “causa”, ao deus ou ao demônio
que a inspira. Mas paixão apenas não basta, ela deve
vir acompanhada de sentimento de responsabilidade
e senso de proporção, que é a qualidade psicológica
fundamental do homem político. Quer isso dizer que
ele deve possuir a faculdade de permitir que os fatos
ajam sobre si no recolhimento e na calma interior do
espírito, sabendo por consequência, manter à distância
os homens e as coisas. Como é possível fazer conviver,
no mesmo indivíduo, a paixão ardente e o frio senso
de proporção, faz-se política usando a cabeça e não as
demais partes do corpo, dominando a vaidade. (WEBER,
1968, p. 105)

O político, portanto, deve ser capaz de analisar friamente as


situações e o contexto de sua ação política, tendo uma causa como
orientadora. Entretanto, essa discussão não finda com Weber, ainda
no decorrer desta unidade problematizaremos essa temática a partir
do referencial teórico de Maquiavel.

20 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Sem medo de errar
Podemos agora repensar as questões que levantamos no Diálogo
aberto.
Vimos que Weber e Giddens têm definições de ciência e política
que nos ajudam a pensar no assunto.
Podemos agora repensar as questões que levantamos no Diálogo
aberto, retome a questão orientadora “todo político é igual” exposta
no início da seção, ela nos ajudará a decantar os conceitos que foram
apresentados.
Se nos concentrarmos na premissa de Weber de que todo político
aspira o poder, vamos facilmente referendar essa afirmação, mas se
nos aprofundarmos um pouco mais no referencial teórico weberiano,
veremos que sim, pois para o autor, todo político aspira o poder,
mesmo porque a esfera da política está ligada à sua manutenção,
à conservação e/ou à distribuição, mas as motivações do se tornar
político podem variar entre um idealismo, adesão a uma causa, ou
um apreço ao prestígio que determinada função pode proporcionar.
Contudo, para que essa diferença não fique na superficialidade,
fazemos uso da ciência: um método de investigação que busca
sistematizar o que observamos na realidade concreta de forma
articulada à teoria, como bem nos disse Anthony Giddens e Sartori.
Isso sem deixar de lado as peculiaridades das ciências humanas
que partem de pressupostos distintos das ciências da natureza por dois
motivos: porque empregamos sentido em nossas ações, e porque
esse sentido resulta em imponderabilidade, em imprevisibilidade.
Caricaturando: não é possível colocar os políticos, suas motivações e
a forma como se organizam em tubos de ensaio com amplo controle
das variáveis.
Do mesmo modo como a ação ou o comportamento que estamos
estudando, nós também, analistas da política, carregamos sentido e
propósitos, assim, Weber afirma que ao cientista/pesquisador não
cabe uma neutralidade absoluta em relação ao seu objeto de pesquisa,
já visto que: 1. Estamos imersos em um mesmo universo social; 2. O
que nos motiva a estudar determinado tema, fato ou evento e que
parte de uma curiosidade que não é superficial, mas que tem como
fundamento a busca por uma compreensão é produto tanto desse
meio, quanto do que somos como indivíduos.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 21


Entretanto, então como empreender uma investigação científica
mesmo considerando essas duas condições? Explicitando os nossos
juízos de valor, reconhecendo as nossas crenças, afastando nossas
pretensas verdades, somente assim poderemos compreender o
fenômeno social nele mesmo.
Agora, se nos colocarmos na posição de um cientista político,
será que a afirmação “político é tudo igual” ainda se sustenta ou seria
melhor buscar a seguinte questão: quais são as características dos
políticos profissionais no Brasil?
Lembrando que diferentemente da filosofia política, a ciência
política busca conclusões que partam da investigação não sobre os
porquês, mas sobre como os fatos ocorrem e os comportamentos
se desenrolam. Seguindo os recursos e os métodos da ciência, ao
longo desta disciplina, voltaremos à questão da representatividade,
das disputas de projetos, das concepções de mundo ao longo da
história da humanidade.

Faça valer a pena


1. “A Ciência é um singular que implica pluralidade: são várias as ciências”
(SARTORI, 1981, p. 175).
Partindo dessa afirmação de Sartori, identifique qual das opções a seguir
está correta:
a) O que caracteriza a ciência é a adoção de um método de investigação
que alia teoria e prática, mas como são muitas as áreas de pesquisa, elas
precisam adotar abordagens diferentes, tornando-se consequentemente
plural.
b) A pluralidade da ciência é negativada por conta de uma perspectiva
dominante e corroborada por fatos e dados científicos de que está em
constante involução, ou seja, deixou de servir ao propósito, que é auxiliar
a compreender o mundo. Já a singularidade é vista na hegemonia das
ciências naturais e eliminação de quaisquer outras.
c) A eliminação da especialização do trabalho cognitivo fez findar também
a pluralidade nas ciências, tendo em vista que todos os cientistas/
pesquisadores querem estudar o mesmo objeto, o mesmo tema.
d) A previsibilidade das condutas humanas, do imaginário social e das leis
da natureza obtidas pelo avançado desenvolvimento tecnológico que
vivemos na contemporaneidade, fez com que a pluralidade da ciência
perdesse cada vez mais a importância. Em oposição à mutabilidade
característica do passado.

22 U1 - Fundamentos da Ciência Política


e) Os homens conferem sentido às suas ações, às suas vivências, às suas
ideias e esse sentido é apreendido igualmente por todas as ciências por
conta do caráter universal do ser humano, desqualificando, portanto, o
debate sobre a singularidade ou pluralidade da ciência.

2. A ciência política para Sartori pode ser descrita como o “encontro


entre um modo de estudar a política e uma política vista na sua própria
autonomia” (SARTORI, 1981, p. 177-178), mas em uma autonomia que não
é apenas da política, mas sobretudo do observador/pesquisador da política.
Tendo como base essa reflexão, escolha qual das opções a seguir está
corretamente formulada:
a) A autonomia da ciência política é eliminada quando esta entra em contato
com visões de mundo mais abrangentes e consolidadas, como a moral e a
religião. E o mesmo ocorre com o cientista/pesquisador, segundo Sartori.
b) Por ter que se adequar a todos os cânones da ciência física, o cientista/
pesquisador das ciências sociais vai cada vez mais perdendo a autonomia,
o que se reflete no próprio desenvolvimento dessa ciência.
c) Para Sartori, o cientista político não deve se prender aos clássicos
cânones científicos, mas empreender um modo autônomo de estudar a
política dada a sua própria constituição.
d) Sartori afirma que o modo autônomo de estudar a ciência política é
incompatível com a autonomia que lhe é intrínseca, visto que um anula a
autonomia do outro.
e) A ciência política pode abrir mão de sua especificidade, mas nunca da
generalidade que a cientificidade requer, e o mesmo vale para o pesquisador,
que jamais pode escolher os caminhos teóricos ou metodológicos a seguir.

3. Há uma distinção significativa entre as éticas que envolvem o fazer


política e a ética que envolve o fazer ciência. Em suma, a primeira contém
a ética da convicção (relativa aos valores pessoais, individuais) e a ética de
responsabilidade (relativa aos valores que uma figura pública deve ter em
relação à própria esfera pública). E a segunda contém a ética de condição
(princípio ou conjunto de princípios que devem ser seguidos).
Qual autor estudado nesta seção formulou esses três conceitos?
a) Carl Schmitt.
b) Giovanni Sartori.
c) Norberto Bobbio.
d) Max Weber.
e) Anthony Giddens.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 23


Seção 1.2
A política que vem da Antiguidade
Diálogo aberto

Na Atenas da Antiguidade, as decisões importantes, aquelas


capazes de afetar a vida e o cotidiano de seus cidadãos, eram
tomadas coletivamente após intensas discussões na praça pública.
Mentalize essa realidade, especialmente considerando a oposição, a
forma em que vivenciamos o tempo na contemporaneidade e como
essa prática era feita na Grécia.
O tempo é uma forma social de compartilhamento de nossas
experiências e que tem no espaço - da polis ou da cidade moderna,
por exemplo - o suporte material para sua existência. Para os gregos,
o tempo era visto como um dos principais ingredientes a compor
a participação na vida da polis, onde a representação política (de
delegação de poder a políticos) era diminuta e calcada em diversos
elementos da democracia direta.
A polis era o lócus da gênese do pensamento político, mas apenas
os considerados cidadãos estavam livres dos afazeres cotidianos
manuais e do tempo que aprisiona em uma consecução de tarefas.
Após feito esse percurso, imagine então que você foi capaz de
voltar a essa época e se deparar com um tempo mais longo, no qual
os dias eram estabelecidos em uma vivência na cidade pelo fato de
conhecer seus problemas e pensar em soluções para eles, e o pensar
juntos tomava um lugar de destaque no seu dia a dia.
Ao voltar para o agora, para o espaço da cidade moderna, como
você se sentiria? Será que o nosso tempo é preenchido com esse
afazer? Não ter tempo para nada, também é não ter tempo para a
participação coletiva?
A seguir, veremos que a política não se refere apenas a cumprir
mandatos eletivos ou fazer parte da máquina do Estado, mas,
sobretudo, em pensar, refletir e decidir “como viveremos juntos”.

Não pode faltar


Atenas, hoje a capital da Grécia e sua maior cidade, já povoou
largamente nosso imaginário por diversas razões. Na mitologia grega

24 U1 - Fundamentos da Ciência Política


foi o palco de disputa entre os deuses Poseidon e Atena, sendo que
a vencedora motivou a escolha do nome dessa localidade. Atenas,
que se localiza na região da Ática, também sedia alguns dos mais
conhecidos sítios arqueológicos da humanidade: o Parthenon e os
edifícios da Acrópole.
Entretanto, não é sobre a Atenas atual que nos debruçaremos, mas,
sim, sobre a Atenas da Antiguidade clássica, especificamente sobre o
seu desenvolvimento cultural e político entre os séculos IV e V a. C. -
também chamado de “milagre grego” (CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER,
2009). - e que de tamanha importância é capaz de nos impactar até
os dias de hoje. Assim, a despeito das importantes invenções nas artes
e na técnica, a presente seção trata de uma forma política original
surgida na Grécia antiga: a polis, ou a Cidade.
Raiz de inúmeros conceitos e palavras, a expressão
polis remete de forma imediata à ideia de cidade, não
somente no sentido urbano e espacial, mas sobretudo
no sentido de comunidade organizada, de comunidade
política, na qual os cidadãos são os personagens centrais.
(NOGUEIRA, 2015, p. 703)

Contudo, foram muitas as polis surgidas naquele período,


com características diversas elas se aproximavam por terem
“uma organização política e militar própria, eram autônomas e
autossuficientes, o que lhes possibilitava serem independentes umas
das outras” (NOGUEIRA, 2015, p. 703). Então, por que nos deteremos
às vicissitudes de Atenas? Pelos fundamentos colocados em prática
e que não nos servem exatamente como um modelo a ser seguido,
mas como uma fonte de inspiração, visto que Atenas foi o lócus da
gênese do pensamento político, das instituições democráticas e da
política em um sentido lato: o interesse pela coletividade.

Assimile
“Por Polis se entende uma cidade autônoma e soberana, cujo quadro
institucional é caracterizado por uma ou várias magistraturas, por um
conselho e por uma assembleia de cidadãos (politai)” (BONINI, 2004,
p. 949).

Para entendermos melhor essa gênese, tanto Bonini (2004) quanto


Châtelet, Duhamel e Pisier (2009) nos convidam a conhecer a gradual
criação da Constituição democrática. Faremos esse percurso a partir

U1 - Fundamentos da Ciência Política 25


da linearidade de alguns momentos históricos e das correspondentes
personalidades políticas:
1. Em meados de 600 a. C., Drácon e Sólon enunciaram os
princípios que viriam a nortear as relações coletivas. Note que Bonini
(2004) discorda de Châtelet, Duhamel e Pisier (2009) quanto ao papel
desempenhado por Drácon, relegando-o como mero decodificador
do direito, mas diz que Sólon teria iniciado uma revolução democrática,
não totalmente acabada, mas fincando seus pilares fundamentais.
Era um momento em que a Grécia vivia intensos conflitos e
os legisladores se incumbiram de “reorganizar e de eliminar, em
consequência, os contrastes entre as classes em luta” (BONINI, 2004, p.
952). Contudo, menos do que escrever uma Constituição, eles definiram:

Os enunciados fundamentais conhecidos de todos,


determinando com precisão a participação de cada um
na defesa e na gestão das questões comuns da Cidade,
as instâncias de onde devem provir as decisões que
envolvem a coletividade, a arbitragem dos conflitos e a
punição dos crimes e dos delitos. (CHÂTELET; DUHAMEL;
PISIER, 2009, p. 13-14)

Além disso, foi Sólon quem acabou com a escravidão por dívidas
(mantendo a escravidão por espólio de guerra). Lembrando que os
cidadãos atenienses se ocupavam apenas das atividades intelectuais,
artísticas e políticas, restando aos escravos as atividades manuais e
a manutenção da polis e da vida doméstica. Assim, eram excluídos
da cidadania os próprios escravos, os ex-escravos, as mulheres e os
estrangeiros.
2. Por volta do ano 510 a. C., após anos de lutas civis, Clístenes
mantém aqueles enunciados codificados por Drácon e Sólon, com
um acréscimo importante: a instituição do ostracismo. Essa medida
fez aumentar os poderes da Assembleia popular, visto que ela poderia
desterrar politicamente por 10 anos aqueles que estivessem em
descordo com as regras coletivas (BONINI, 2004).
3. Na época de Péricles, iniciada em 460 a. C., podemos
destacar as complexas relações entre aquele que representava uma
espécie de chefe do governo e a Assembleia popular; um breve
retorno à oligarquia em Atenas no período da guerra do Peloponeso;
seguida da restauração do regime democrático (BONINI, 2004).

26 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Assimile

A Lei como princípio de organização política e social


concebida como texto elaborado por um ou mais
homens guiados pela reflexão, aceita pelos que serão
objeto de sua aplicação, alvo de um respeito que não
exclui modificações minuciosamente controladas: essa
é provavelmente a invenção política mais notória da
Grécia clássica; é ela que empresta sua alma à Cidade,
quer essa seja democrática, oligárquica ou 'monárquica'.
(CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER, 2009, p. 14)

Por que fizemos esse recuo histórico? Porque nosso intuito é


compreender os fundamentos democráticos vivenciados pelos
atenienses. Para tanto, é preciso dizer que a sociabilidade grega era
entendida como produzida pela natureza, mas passível de ser ordenada
pelos homens. A sociabilidade ateniense era então vivenciada na
polis, o “lugar por excelência da vida civilizada” (NOGUEIRA, 2015, p.
703), em que o desenvolvimento de cada cidadão era feito de forma
coletiva, visando a construção de uma ordem social justa e livre.
Tomando Aristóteles como referência, Châtelet, Duhamel e Pisier
(2009) destacam que o homem é um animal político porque vive no
agrupamento - polis - uma forma política de viver em uma comunidade
consciente, com a qual é desejável que cada um desenvolva suas próprias
virtudes. E o desenvolvimento de suas virtudes só poderia acontecer por
conta de uma outra importante característica dos gregos da Antiguidade:
a relação com o tempo. Segundo Châtelet, Duhamel e Pisier (2009):

Se eles desenvolveram discursos históricos, não


possuíam de nenhum modo a ideia - cristã e pós-cristã -
de um decurso da história linear e dotado de um sentido;
a representação do tempo que domina é a do ciclo, que
faz reaparecer as mesmas situações; a noção de um
progresso global está excluída; a de uma acumulação
de riquezas suscita a maior desconfiança; o trabalho
material é concebido como algo que deprecia, e somente
a atividade do lazer (scholê) é produtiva. (CHÂTELET;
DUHAMEL; PISIER, 2009, p. 15)

O tempo não estava ligado apenas ao trabalho, ao futuro, mas ao


que estava acontecendo naquele momento, naquela localidade, e o

U1 - Fundamentos da Ciência Política 27


vivenciar o agora colocava o desenvolvimento individual como algo
muito importante. Entretanto, não se trata de um individual como
pensamos hoje - egocêntrico e fechado em si - mas algo indissociável
da coletividade, integrando “desejos, vontades e interesses em uma
convivência coletiva” (NOGUEIRA, 2015, p. 705).

Pesquise mais
Assista à palestra da filósofa Olgária Matos, indicada no link a seguir,
que entre algumas reflexões, destaca a questão do tempo na
contemporaneidade e o tempo dos gregos.

Disponível em: <http://www.institutocpfl.org.br/2009/06/09/integra-tempo-


sem-experiencia-olgaria-matos/>. Acesso em: 20 fev. 2017.

Exemplificando
Ainda que tenhamos nos debruçado sobre a positividade do tempo
circular para os gregos, há um mito grego clássico, trabalhado pelo
filósofo Albert Camus, que destaca uma possibilidade de condenação
infinitiva a uma execução repetitiva ante a um tempo circular: de Sísifo ter
de rolar uma pedra até o cume de uma montanha e quando lá chegava,
a pedra rolava cume abaixo e a tarefa era reiniciada.

Leia mais sobre essa narrativa mítica fascinante!

Disponível em: <https://goo.gl/9iPrWH>. Acesso em: 9 maio 2017.

Assimile

Não é por acaso que a palavra grega politikós, com a


qual se designa tudo aquilo que é próprio da política
(politiké), significa também polido, cortês, delicado.
Do mesmo modo, o termo grego polis, de onde vem
política, se estende do latim civitas e urbe, de onde vêm
civil e urbano, que tanto dizem respeito à cidade quanto
à urbanidade, à civilidade, à cortesia e à afabilidade.
Nem mesmo a palavra polícia (do grego politeia e do
latim politia) escapa dessa raiz: tem a ver não tanto
com repressão, como pensamos hoje, mas com a
atividade administrativa dedicada a tutelar e proteger a
coletividade e suas partes. (NOGUEIRA, 2015, p. 703)

Sobre a autonomia da política, temos dois aspectos a considerar


acerca dessa discussão:

28 U1 - Fundamentos da Ciência Política


1. Segundo a interpretação de Sartori (1981), no mundo
grego essa autonomia não existia, pois o político e o social estavam
completamente imbricados, ou seja, tudo que se tratava de política,
também se tratava de coletividade. Sartori (1981), interpretando os
escritos de Aristóteles, afirma que a concepção de vida na Grécia
tomava o homem como parte intrínseca à polis - ele se fazia nela
e ela nele - e aquele que perdesse o vínculo com ela estaria sujeito
a uma existência não política. Para ele, a polis era considerada uma
totalidade, ou seja, condicionava todas as interações sociais.
2. Já Marco Aurélio Nogueira (2015) destaca a autonomia do
demos (a parte politicamente ativa, os cidadãos, homens livres nascidos
em Atenas) em sua capacidade de modificar as leis de acordo com o
contexto vivenciado. Cabendo lembrar que o “conceito de cidadania
teve origem nas cidades-Estados da Grécia antiga, onde o status de
“cidadão” era concedido aos que viviam dentro dos limites da cidade”
(GIDDENS; SUTTON, 2015, p. 306). O conjunto desses cidadãos era
soberano em suas decisões, e a soberania era operacionalizada em
um ambiente de igualdade política - “da igual repartição da atividade
e do poder” (NOGUEIRA, 2015, p. 703) -, mas também de igualdade
perante à lei. Em outras palavras, a igualdade ateniense se desdobrava
na obtenção de um conjunto de direitos, mas que não eram passivos
e sim ativos no sentido de que a participação não era apenas bem
vista, mas também estimulada, encorajada pelas próprias regras da
polis e em como elas eram vivenciadas. E vivenciadas tendo um
objetivo como norteador: a busca e a conquista do bem comum.

Reflita
Sartori (1981), ao definir o homem não político, afirma que ele é carente
(necessitado, sem nada) ou idiota, nos termos de hoje.

Pense a respeito dessa correlação. Será que ela faz sentido para os
diversos empregos do adjetivo idiota no nosso cotidiano?

E quando nos recusamos a dizer que algo ou alguém é político?

Outro aspecto destacado por Nogueira (2015), capaz de dialogar


com Sartori (1981), é a questão da verticalidade na política. Se
recuperarmos o que aprendemos na primeira seção desta unidade,
veremos que Sartori (1981) fará uma crítica à visão weberiana de política,
como sendo muito restrita ao Estado como elemento fundante,

U1 - Fundamentos da Ciência Política 29


e, portanto, extremamente verticalizada. Sartori (1981) chamará a
atenção para a ocorrência da democratização ou massificação da
atividade política (tanto entre a base quanto também entre a elite) -
trazendo elementos de horizontalidades à política.
No que se refere à polis, podemos dizer que não havia verticalidades
acentuadas, ao contrário. Ressaltará Nogueira (2015) que:
a) Não se tratava de um Estado na concepção moderna do termo,
como uma instituição apartada da sociedade.
b) Havia muitos elementos da democracia direta e o lócus
privilegiado da participação política direta era a Assembleia do Povo -
o corpo soberano efetivo - concretizada em praça pública, portanto,
uma questão central para as democracias modernas, a saber, a relação
entre representantes e representados, era secundária na democracia
ateniense, isto porque não havia “especialistas” em assuntos políticos
- algo muito corriqueiro na política atualmente.
Assim, o cidadão, na contemporaneidade, fica relegado à função
de votante nos dias marcados para o pleito, e não como um agente
capaz de discutir as pautas e as ações públicas e seus desdobramentos.
A polis entra em decadência no século IV e as causas para tal
declínio podem ser resumidas em “um individualismo desenfreado,
onde a participação na assembleia não é mais entendida como
contribuição para o bem comum, mas como meio de obter vantagens
pessoais” (BONINI, 2004, p. 953).
No entanto, dessa rica experiência, o que fica para nós? Nogueira
(2015) elenca alguns pontos importantes:
a) A possibilidade de domesticarmos a autoridade e o poder.
b) De reconhecer no conflito, na apresentação de diferentes
pontos de vista, a possibilidade de convivência pacífica e justa com
as diferenças que são intrínsecas a todo agrupamento humano (e
político).
c) De nos ajudar a formular um tipo de sociabilidade mais solidária
e democrática.

Como corpo soberano efetivo, a Assembleia do Povo ou


Popular encarna uma nova definição de democracia, pois além da
isonomia perante à lei, há o acesso às magistraturas e à instituição
de municipalidades descentralizadas e administradas pelos cidadãos

30 U1 - Fundamentos da Ciência Política


delas pertencentes, é nela que as decisões mais significativas são
tomadas e soberanamente todos os cidadãos têm o direito à fala.
Assim, se por um lado há aspectos extremante positivos nessa
concepção de democracia, há também aspectos negativos. Quanto
aos positivos, já demonstramos alguns pontos no parágrafo anterior
mas cabe destacar ainda a célebre classificação dos regimes políticos
feita pelo historiador grego Heródoto e que foi apropriada por
Châtelet, Duhamel e Pisier (2009, p. 16):

O bom regime é aquele que comanda apenas um - a


monarquia -, que governa para a sua glória e a de seus
súditos?
Ou aquele no qual comanda uma minoria - a oligarquia -,
constituída de cidadãos reconhecidos como “superiores”
por seu nascimento, sua riqueza, sua competência
religiosa ou militar?
Ou aquele onde comanda a maioria - a democracia -,
maioria constituída pela população dos camponeses,
dos artesãos, dos comerciantes, dos marinheiros?”

Se não nos concentrarmos apenas nas provocações feitas por


Heródoto, mas se inserirmos à essa reflexão algumas contraposições de
Platão, trazidas também por Châtelet, Duhamel e Pisier (2009), veremos
que nada é tão simples assim. Assim, vamos resumi-las em três pontos:
1. As pessoas estão sujeitas a serem movidas por interesses
particularistas que não necessariamente serão benéficos para a
coletividade, ou seja, há um risco enorme de que minhas decisões
tenham como objetivo o meu próprio bem, mesmo que esse bem
não seja desfrutado por aqueles que vivem ao meu redor, minha
comunidade ou a sociedade em que estou inserido.
2. O bom uso da retórica, seja na Assembleia Popular, seja no
âmbito da magistratura, pode favorecer o ponto de vista de uns em
detrimento de outros - a demagogia, ou seja, aquele que “fala bem”,
que sabe se expressar de forma a criar um vínculo com a plateia tende
a ter mais sucesso em colocar seu argumento no centro do debate,
podendo se desdobrar em sua aprovação.
3. As discussões na Assembleia podem se ater às questões
meramente subjetivas, com inconsistências de dados mais objetivos

U1 - Fundamentos da Ciência Política 31


a fundamentar as tomadas de decisão, ou seja, pesquisas, estudos
mais sistemáticos podem ficar de fora.

Pesquise mais
De acordo com Châtelet, Duhamel e Pisier (2009, p. 17-18), Platão tem
uma

tese segundo a qual a definição da ordem da Cidade


supõe uma ciência do político, que é ela mesma parte
de um Saber mais amplo, o Saber do que na verdade é.
Assim, a recusa da democracia pressupõe a refutação
dos princípios nos quais esse regime se funda, princípios
de que os sofistas foram porta-vozes [...] (estes) são
designados os professores de retórica que se instalaram
na jovem democracia ateniense para ensinar aos
cidadãos de modo persuasivo, a fim de fazer triunfar sua
causa diante dos tribunais e suas ideias nas instâncias
políticas. Como o papel do discurso era decisivo, eles
foram efetivamente os mestres da democracia.

Pesquise mais sobre a crítica de Platão aos sofistas, a forma de Saber


mais amplo e a Academia que manteve em Atenas para esse fim:

Disponível em: <http://www.infoescola.com/educacao/academia-de-


platao/>. Acesso em: 20 fev. 2017.

Disponível em: <http://academia-filosofia.blogspot.com.br/2010/03/


academia-de-platao.html>. Acesso em: 20 fev. 2017.

Disponível em: <https://periodicos.ufrn.br/saberes/article/download/5678/4913>.


Acesso em: 20 fev. 2017.

À crítica tão veemente de Platão com relação à democracia - “o


governo do número”, “o governo de muitos”, “o governo da liberdade
excessiva” -, colocando-a como a menos boa das boas formas de
governo e a menos má das formas de governo, ou seja, a democracia é
fraca e traz poucos benefícios aos seus cidadãos (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2004, p. 320), surge o contraponto de Aristóteles.
Para Châtelet, Duhamel e Pisier (2009), a reação mais interessante
à concepção de democracia platônica é a de Aristóteles, que adota
uma posição filosófica:

32 U1 - Fundamentos da Ciência Política


[...] tornar a filosofia praticável no seio da Cidade tal
como ela é, mas também de dar-lhe credibilidade
como instrumento teórico capaz de determinar, para
cada cidade e em geral, qual a melhor Constituição e
quais as virtudes e capacidades exigidas dos cidadãos.
(CHÂTELET; DUHAMEL; PISIER, 2009, p. 20)

Eis que surge a teoria clássica da democracia calcada na tradição


aristotélica das três formas de governo:

[...] segundo a qual a Democracia, como o Governo do


povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles
que gozam de direito de cidadania, se distingue da
monarquia, como Governo de um só, e da aristocracia,
como Governo de poucos. (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2004, p. 319)

Todas contêm em si a possibilidade de degeneração, ou seja, de


se distanciar de um governo voltado para o bem comum, e são elas
respectivamente: a demagogia; a oligarquia; a tirania.
Nesse sentido e retomando a linhagem das ideias políticas feita por
Châtelet, Duhamel e Pisier (2009, p. 21), a fim de entender Atenas como
o lócus da gênese do pensamento democrático, o autor apodera-
se das palavras de Aristóteles: “quer seja monárquico, oligárquico ou
democrático, o regime moderado vale mais que o excessivo; e uma
combinação equilibrada de democracia e oligarquia permite, sem
dúvida, a melhor existência”, ou seja, a concretização do bem comum.

Sem medo de errar


Você se lembra do debate que abrimos no início desta seção? De
que na polis ateniense muitas das decisões eram tomadas de forma
coletiva? O que isso tem a ver com o tempo?
Vamos responder a essas questões trabalhando com dois polos
de análise, um que é o tempo para os gregos, e outro que é o tempo
para nós hoje, na contemporaneidade.
Na Grécia Antiga, vimos que a cidade ou a polis era o lugar propício
para o desenvolvimento de nossas virtudes pessoais, ou seja, o nosso
bem-estar estava diretamente ligado a uma vivência coletiva.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 33


Por outro lado, o fato de o tempo ser mais longo - no sentido de não
ser imediato, instantâneo, acelerado - e de não ter uma concepção
linear - ou seja, oposto à concepção que há um progresso natural
da sociedade em diferentes aspectos e que devemos persegui-lo
a qualquer custo - mas de ser cíclico, faz muita diferença sobre a
forma de pensarmos a convivência humana e a forma de pensarmos
a política. Por quê?
Porque o tempo cíclico sempre volta e ele marca substancialmente
o conteúdo e a forma de nossas decisões, pois nos dá a capacidade
de escaparmos do individualismo egocêntrico e de nos vermos
como parte de uma coletividade, assim, aquilo que afeta você
poderá me afetar no futuro. Além disso, o tempo mais longo, que
não está aferrado ao trabalho, à obtenção de experiências efêmeras
continuamente, nos permite uma vivência mais plena da cidade, de
seus problemas e eventuais soluções, no “como viver junto”.

Avançando na prática
O histórico e geograficamente localizado
Descrição da situação-problema
Nossa Constituição, que conta com aproximadamente 30 anos,
foi elaborada e aprovada em 1988 por uma Assembleia Nacional
Constituinte, formada por deputados federais e senadores eleitos
em 1986, não para exercer apenas essa finalidade constituinte,
mas também para exercer as funções típicas de um congressista.
Imagine só que a partir disso você ficará sabendo que ao longo da
história do Brasil, desde antes de sua independência de Portugal,
foram postas em prática seis Constituições (1824; 1891; 1934;
1937; 1946; 1967).
A partir dessa informação e levado pelo senso crítico da realidade
que nos cerca, você poderá começar a se indagar: por que foram
elaboradas tantas Constituições? O conjunto de leis de um país
pode mudar tanto? Será que existem explicações históricas e/ou
teóricas que podem ajudar a nossa compreensão sobre tal fato?
Depois de despertada essa faísca de curiosidade, convidamos
você a refletir sobre a natureza da organização política e social e
como as leis dependem muito mais do contexto histórico do que
podemos supor.

34 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Resolução da situação-problema

Para entendermos as mudanças no conjunto de leis e regras


pertencentes a determinada localidade, cabe destacar que a lei
não é uma construção artificial. Por quê?
• A construção da lei não está apartada de uma vivência
humana, ao contrário, ela está intrinsecamente ligada ao contexto
social, político e cultural da localidade.
• Ela não é puramente técnica, ou seja, não é apenas
procedimental - “tendo leis tecnicamente adequadas, o
comportamento humano será também adequado”. Essa máxima
não faz sentido dentro do escopo teórico e filosófico do pensamento
ateniense, e talvez não faça sentido hoje, mas tem sido usada como
um argumento normativo, visando corrigir condutas vistas como
negativas ao bem comum, como se as leis tivessem a capacidade
de mudar automaticamente o comportamento humano.
• Não é um dado puro da razão, ou seja, não basta
empreender um raciocínio lógico, pois a construção das leis é
transpassada por percepções e intuições advindas da experiência,
da observação do sensível, e também de interesses em disputa.
Tomando como referência o pensamento ateniense e os
princípios de organização política e social que lhes são pertinentes
e que foram descritos anteriormente, veremos que a chamada
Constituição democrática, ou o caminho para a criação da
democracia, foi gradual, sendo influenciado por eventos e
personalidades políticas.
Assim, a lei nada mais é que a expressão política da cidade e
de sua história, ou como disse Aristóteles, ela empresta alma à
cidade. Uma lei só terá sentido se for histórica e geograficamente
localizada - aqui está uma importante justificativa para empreender
mudanças legislativas.

Faça valer a pena


1. A teoria clássica da democracia calcada na tradição aristotélica distingue
três formas de governo e suas respectivas degenerações.
Escolha qual das opções a seguir está correta, considerando a forma de
governo e a sua respectiva degeneração, bem como a indicação da melhor
opção dentre elas, seguindo o pensamento aristotélico:

U1 - Fundamentos da Ciência Política 35


a) Democracia como um governo de poucos pode se degenerar em tirania
se houver a tomada de poder. A aristocracia como governo de um pode
degenerar em demagogia, onde o soberano faz uso da retórica em proveito
próprio. A monarquia sintetiza o governo de muitos e raramente pode se
degenerar em oligarquia, já que poucos não conseguirão suplantar muitos,
sendo assim, essa é a melhor opção para Aristóteles.
b) A democracia é o governo do povo, de todos os cidadãos e pode se
degenerar em demagogia. A monarquia é o governo de um só e pode
se degenerar em tirania. A aristocracia é o governo de poucos e pode se
degenerar em oligarquia. E a melhor opção, para Aristóteles, é a busca por
uma combinação equilibrada de democracia e oligarquia.
c) A aristocracia necessariamente leva à tirania, poucos mandando em
muitos de forma autoritária. A democracia como um governo único, de
um demos, é sempre oligarquia. A monarquia é um governo impotente
diante da demagogia das massas, assim, para Aristóteles a melhor opção
ainda é a democracia, mesmo sendo sempre oligárquica.
d) Para Aristóteles, as formas de governo - demagogia, tirania e oligarquia
- podem se degenerar, respectivamente, em: democracia, monarquia e
aristocracia. E para ele todas elas são substancialmente boas.
e) Para Aristóteles, a aristocracia e a monarquia podem se degenerar em
tirania, já que é apenas um soberano que comanda. Já a democracia é
sempre oligárquica, pois depende de soluções técnicas de pessoas que
realmente estudaram - sendo essa a melhor opção para Aristóteles.

2. Entre os séculos IV e V a. C. Atenas vivenciou um momento de apogeu


também conhecido por “milagre grego”.
Dentre as suas diferentes facetas, qual delas é especialmente significativa
para compreendermos a gênese do pensamento democrático ateniense?
a) A faceta mais importante do milagre grego no que tange ao entendimento
dos primórdios da democracia está localizada no campo das artes.
b) As invenções técnicas, voltadas para o manuseio da natureza, foram a
faceta mais importante no que se refere ao pensamento democrático.
c) O campo dos transportes foi o mais importante para a gênese da
democracia, pois facilitou a comunicação entre os cidadãos.
d) A democracia ateniense se desenvolveu fundamentalmente pela
preponderância que a matemática apresentou no milagre grego.
e) O surgimento da polis como uma comunidade política, onde os cidadãos
são parte integrante, foi o aspecto do milagre grego mais relevante para
pensarmos a gênese do pensamento democrático.

3. Em meados de 600 a. C., Drácon e Sólon enunciaram os princípios


que viriam a nortear as relações coletivas na Grécia Antiga. Chamada de

36 U1 - Fundamentos da Ciência Política


revolução democrática, esses princípios foram os pilares fundamentais a
arbitrar e apaziguar os conflitos entre as classes em disputa.
A proposta dessa questão é: tendo a revolução democrática de Drácon e
Sólon como referência, escolha qual dos eventos históricos ocorridos no
Brasil guarda semelhanças com o período grego citado:
a) Constituição de 1937, por ter sido outorgada por Getúlio Vargas, ou seja,
partiu unicamente de sua vontade durante um regime político autoritário.
b) Constituição de 1967, por ter sido outorgada durante a ditadura civil-
militar brasileira.
c) Os Atos Institucionais elaborados durante a ditadura civil-militar
brasileira, decretos e normas que visavam ordenar autoritariamente a vida
social e política.
d) Constituição de 1988, também conhecida por Constituição-cidadã, foi
elaborada por deputados federais e senadores já no período democrático,
pós regime civil-militar.
e) A dura repressão que as Revoltas Regenciais, entre 1831 e 1840, sofreram
por contestarem as condições materiais e políticas que viviam.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 37


Seção 1.3
A política na Idade Média
Diálogo aberto

“Eu sou o Estado” é uma frase atribuída ao rei Luís XIV, também
chamado de Rei-Sol, que metaforicamente diz sobre aquele que
impõe ordem e regularidade e propicia a vida de tudo e de todos.
Seu bisneto e sucessor, Luís XV, teria dito em um pronunciamento
em 3 de março de 1766 a seguinte frase: “É exclusivamente na minha
pessoa que reside o poder soberano, cujo caráter próprio é o espírito
de conselho, de justiça e de razão”.
Caso isso tivesse sido dito por algum candidato à presidência do
Brasil no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral, um momento em
que as rádios e as TVs reproduzem as campanhas eleitorais, como
você teria reagido? Será que encararia com normalidade que uma
única pessoa se sinta capacitada a concentrar toda a autoridade e
soberania de um agrupamento político como uma nação? Como
será que ocorreu a consolidação de um poder tão grande nas mãos
de uma só pessoa? Como era antes disso?
No decorrer de nosso texto, nos depararemos com algumas
situações históricas e subsídios teóricos que nos farão refletir um
pouco mais sobre essas questões, especialmente porque tratamos da
passagem da estrutura política feudal que, entre outras coisas, poderia
ser caracterizada pela fragmentação de suas relações políticas, para
uma estrutura de viés centralizador como o Absolutismo, no qual o rei
passa a encarnar um tipo de poder potencialmente ilimitado.
A centralização do poder à luz da constituição dos Estados
nacionais foi objeto de estudo de Maquiavel, assim, nos apropriaremos
de suas reflexões, dentro do que nomeamos de realismo político,
com vistas a fundamentar ainda mais nosso questionamento sobre a
legitimidade da concentração exacerbada do poder.

Não pode faltar


A nossa incursão sobre a política da Idade Média tem como
princípio o entendimento sobre o Feudalismo, sabendo que se trata

38 U1 - Fundamentos da Ciência Política


de uma estrutura política que perpassa especialmente a Europa entre
os séculos V e XV d. C., um período marcado em seu início e fim por
dois fatos históricos síntese:
• Início - a queda do império romano e o fortalecimento de povos
que estavam fora da cultura greco-romana e que eram antagonistas
ao expansionismo de Roma.
• Fim - a tomada de Constantinopla, antiga capital do império
romano no Oriente, pelos turcos otomanos, inaugurando, assim, a
transição para a Idade Moderna.
Exemplificando
Fatos históricos síntese são aqueles que por conta de sua importância e
singularidade podem sintetizar uma mudança mais intensa e significativa
para além de uma mudança conjuntural, ou seja, pequena o suficiente
para não ser sentida nas estruturas.

Essa mudança pode ser política, social, econômica e/ou cultural e, ao


longo da história da humanidade, temos algumas ocorrências a destacar:
Revolução Francesa, Revolução Americana, Revolução Industrial, I e II
Guerras Mundiais. No Brasil, podemos citar a Independência, a abolição
da escravatura, a Proclamação da República, o Varguismo de 1930, as
ditaduras do Estado Novo e de 1964.

Destacamos essa periodização do tempo eurocêntrica para fins


de localização do Feudalismo - de emergência nos escombros da
Idade Antiga e de encerramento na aurora da Idade Moderna - para
fins didáticos, pois nos ajudará a compreender no decorrer de nossa
exposição as bases do Absolutismo e as diferenças entre essas duas
estruturas políticas.
Vocabulário
Eurocentrismo segundo o dicionário Aulete:

1. Qualidade de eurocêntrico.

2. Influência política, cultural etc., da Europa. Europeísmo.

Disponível em: <http://www.aulete.com.br/eurocentrismo>. Acesso


em: 4 abr. 2017.

Do que se trata o Feudalismo? Para muitos de nós não é um termo


novo, já que nos faz rememorar as aulas de História que tivemos

U1 - Fundamentos da Ciência Política 39


na escola secundária. Contudo, não trataremos aqui dos aspectos
ideográficos do Feudalismo, um método próprio da História que
busca descrever e sistematizar todas as minúcias de um fato histórico,
mas nos deteremos à abordagem própria da Ciência Política, tendo
o entendimento de sua estrutura política e de sua organização do
poder como objetivos centrais.
Dialogando com essa preocupação, de localizar o Feudalismo em
uma linearidade histórica, Colliva (2004) nos diz que:

O sistema feudal na sua maturidade outra coisa não


é senão o produto da tentativa régia, parcialmente
conseguida, de substituir uma nova classe dirigente
de origem monárquica pelas velhas castas dirigentes,
formadas tradicionalmente, pelos diversos grupos
étnicos populares germânicos. Só que a capacidade
insuspeita desta nova classe se autorreproduzir fez com
que os monarcas perdessem quase completamente
o controle do sistema: portanto, concebido como
realidade substancialmente centralizada, o ordenamento
feudal assumiu, em breve, as características do mais
acentuado fracionismo. E a história do Ocidente ficou
irremediavelmente marcada. (COLLIVA, 2004, p. 490)

Por esse trecho de Colliva (2004), já delimitamos o tipo de


Feudalismo que estudaremos nesta seção como sendo característico
de um fenômeno tipicamente europeu-ocidental, pois como bem
descreveu Weber (1999) foram muitas as experiências de Feudalismo
- chinês, indiano, otomano - todas distintas em seus antecedentes
e evolução, mas próximas sociologicamente por terem autênticas
relações feudais. Contudo, e apesar dessa pluralidade, foi o Feudalismo
de vassalagem ocidental que trouxe consequências mais importantes
para desenvolvimento do que viremos a chamar de Estado Absolutista.
Além de delimitar um tipo de Feudalismo, a citação de Colliva
(2004) trata de outros dois pontos importantes que nortearão nossa
exposição: a centralização e a descentralização do poder.
Adotando como marco histórico de início do Feudalismo a
queda do império romano, podemos retomar uma concepção
de império como sendo uma forma política que a despeito de ter
objetivos definidos, tais como o expansionismo e a universalização da
civilização romana, eles contêm em si sua própria contradição, pois:

40 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Quanto mais o império se expande, tanto mais se
multiplicam os fluxos que o atravessam [...] pesam
ameaças nas fronteiras distantes; os povos recém-
conquistados apresentam o permanente risco de se
rebelarem. Se permanece em Roma, o imperador
abandona suas legiões; se se bate nas fronteiras, perde o
controle da rede administrativa. (CHÂTELET; DUHAMEL;
PISIER, 2009, p. 26)

Nesse sentido, o império como conceito e como realidade


empírica transita entre a centralização e a descentralização, entre a
territorialização e a desterritorialização (HARDT; NEGRI, 2004) e sua
derrocada também mantém essa lógica. Vamos ser mais específicos:
a dispersão política e territorial resultou no fortalecimento de
povos que estavam fora da cultura greco-romana, como dissemos
anteriormente, e para tentar manter o poder régio, os monarcas
foram da cidade para o campo a fim de impedir que a fragmentação
se acentuasse, afastando do poder uma classe dirigente que surgiu de
sua própria dinâmica, uma classe dirigente que começava a ameaçar
a continuidade do poder. Contudo, a escolha de outra classe dirigente
para ocupar o lugar desta não teve o efeito esperado de neutralizar
os opositores, ao contrário, ao escolher apoiar as velhas classes
dirigentes germânicas, os monarcas não atentaram a uma importante
característica da sociabilidade desses povos: serem fragmentados e
descentralizados - ou seja, eram o inverso daquilo que objetivavam.
Assim, esse fracionismo (COLLIVA, 2004) típico da sociabilidade dos
povos germânicos foi incorporado ao sistema, resultando no que
chamamos de ordenamento feudal.
Os povos germânicos eram conhecidos pelo nomadismo e pelo
eficiente manuseio de armas não apenas para fins de sobrevivência
(guerra e alimentação), mas também para fins simbólicos de
produção de honrarias. Somado a isso, temos a evidência de que o rei
germânico estava mais para chefe militar do que para chefe político,
estava mais para guia de expedições militares do que para um detentor
de autoridade suprema: “assim, o rei [feudal] era somente o símbolo e
o modelo das virtudes militares de seu povo” (COLLIVA, 2004, p. 490).
Esse esquema interpretativo sustenta um dos principais fundamentos
da estrutura política feudal: a vassalagem ou o senhoralismo.
Essa relação continha, além do aspecto armamentista, uma
influência significativa dos laços de consanguinidade, contudo,

U1 - Fundamentos da Ciência Política 41


a reprodução da vassalagem em larga escala, ou seja, para além
dos limites dos grupos nômades, somente pode existir por ter se
libertado da limitação espacial dada pelas configurações familiares,
culminando no nomeado vínculo vassálico. Dito em outras palavras,
a cultura e as normas aprendidas no ambiente familiar passaram a se
reproduzir, não de forma direta, mas como orientadoras de condutas
na vassalagem, assim, “o dever de fidelidade pessoal desprende-se do
contexto das relações gerais de piedade da comunidade doméstica,
desenvolvendo-se neste fundamento um cosmo de direitos e
deveres” (WEBER, 1999, p. 288).
Há ainda outro elemento a ser dito acerca do desenvolvimento
da vassalagem: o estabelecimento da fidelidade entre rei e vassalo
por meio da concessão de benefícios, mais especificamente de
concessão de terras, portanto, sem o caráter de propriedade
(COLLIVA, 2004). O rei oferece proteção, em contrapartida, o vassalo
fica a ele subordinado direta e tão somente.

O feudo completo é sempre um complexo de direitos


que proporciona rendas e cuja posse pode e deve
fundamentar uma existência senhorial. Em primeiro
lugar, direitos senhoriais territoriais e poderes políticos
rendosos, isto é, direitos senhoriais que proporcionam
rendas, são concedidos como dotação dos guerreiros.
(WEBER, 1999, p. 290)

Para Colliva (2004, p. 491), portanto, “[...] o instituto feudal, como


negócio jurídico, pode ser definido como uma espécie de contrato-
desigual, privado, mas com crescente relevância pública”.

Pesquise mais
Alguns filmes foram produzidos sobre a Idade Média, dentre eles
destacamos a comédia italiana de 1966 O Incrível Exército de
Brancaleone, dirigido por Mario Monicelli, que, de forma caricata, aborda
sob o ponto de vista dos maltrapilhos as relações vassálicas do período.

Entoado pelo grito de guerra “Branca, Branca, Branca, Leon, Leon, Leon”,
João André Brito Garboggini escreve uma dissertação de mestrado que
propõe por meio de uma análise fílmica trabalhar um contexto histórico.

42 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Ficou instigado? A citada dissertação está à espera de sua leitura!

GARBOGGINI, João André Brito. Uma viagem brancaleônica pela


Idade Média. 2004. Tese (Mestrado em Multimeios)-Instituto de artes,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?


code=vtls000330166&opt=4>. Acesso em: 16 abr. 2017.

O instrumento patrimonial materializava a relação vassálica. A terra


enquanto conteúdo concreto se tornou um bem muito mais valioso
do que benefícios régios de cargos e títulos, mesmo porque estamos
nos referindo a uma economia predominantemente natural. Sem o
entendimento dessa materialização não é possível compreender o
processo de descentralização monárquica que marca o Feudalismo
e que será combatido no futuro, pois se a um lado o fracionismo
germânico - como dissemos antes - foi capaz de infundir germes
no estabelecimento do ordenamento feudal, por outro, sua ampla
ramificação através do usufruto das terras, especialmente na Europa
do século IX, fez do Feudalismo um:

[...] instrumento fundamental nas mãos das novas


aristocracias locais [gerando] uma parede impenetrável
ao poder soberano nas províncias que iniciavam aquela
progressiva autocefalização e fragmentação, que
constituem o dado mais característico da sociedade
feudal no seu apogeu. (COLLIVA, 2004, p. 492)

Novamente estamos trabalhando com a díade centralização/


descentralização que marcará profundamente a política na Idade
Média.
Pesquise mais

Raymundo Faoro, no livro Os Donos do Poder (2000), analisa o


patrimonialismo como sendo uma estrutura de dominação típica de
nosso passado colonial, que se caracterizou pela confusão entre o que
é um bem público e o que é um bem privado. Dito de outra forma, o
patrimonialismo se referiria à forma como o poder real usava a posse
das terras para gerar lealdade e dependência dos agentes sociais com
relação ao Estado.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 43


Esses laços de lealdade e dependência foram vistos por alguns
historiadores, especialmente aqueles de orientação marxista, como
sendo parte de uma estrutura feudal. No entanto, Faoro (2000), ao
recuperar os antecedentes históricos, como a formação do Estado-
nação português, afirma que nem mesmo Portugal teria tido um
Feudalismo “autêntico”, muito menos sua colônia nos trópicos. Assim,
ao invés de Feudalismo, vivenciamos uma estrutura de dominação
nova: o estamento burocrático de caráter fidalgo, não dependente do
rei, mas da administração colonial.

Pesquise mais sobre essa controvérsia em:

SCHWARTZMAN, Simon. Atualidade de Raymundo Faoro. DADOS -


Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 2, p. 207-213, 2003.

VIANNA, Werneck. Caminhos e descaminhos da revolução passiva à


brasileira. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 39, n. 3, 1996.

No escopo da fragmentação ocorrida já por volta do século


XIII, situaremos outra forma específica de exercício do poder: o
Absolutismo. E se a um lado seu término é consensualmente localizado
na inauguração da Revolução Francesa, seu início não pode ser
atribuído a um evento único ou tão bem situado na História, restando
a compreensão de que teria emergido na transição do sistema
feudal para o Estado moderno, em que já se podia experimentar o
desenvolvimento de monarquias com nuances nacionalistas.
Essa não fixação perpassa não apenas a origem do Absolutismo,
mas também a sua própria ocorrência histórica, haja vista a intensa
heterogeneidade de suas experiências políticas. Assim, a especificidade
do Absolutismo como uma forma de organização do poder deve
ser verificada no plano histórico e “os parâmetros classificatórios
mais óbvios e rentáveis parecem ser os que estão ligados ao espaço
cultural do Ocidente europeu, no período histórico da Idade Moderna
e na forma institucional do Estado moderno” (SCHIERA, 2004, p. 1).
Se não podemos empreender uma excessiva identificação do
Absolutismo, o que podemos dizer dele? Qual é sua importância
do ponto de vista do entendimento da organização do poder e do
desenvolvimento do Estado?

44 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Orientado por esses questionamentos, Schiera (2004) desenvolve
um argumento de cunho descritivo e outro que busca compreender
os princípios fundamentais do Absolutismo:
1.

Do ponto de vista descritivo, podemos partir da definição


de Absolutismo como aquela forma de Governo em que o
detentor do poder exerce este último, sem dependência
ou controle de outros poderes, superiores ou inferiores.
(SCHIERA, 2004, p. 2)

Nesse sentido, o príncipe não encontraria limites para o exercício


de seu poder, nem dentro, nem fora do Estado que estava emergindo.
2. Sobre os princípios fundamentais, Schiera (2004) destaca o
processo de secularização e racionalização da política e do poder.
Esse processo marca a perda da capacidade da Igreja Católica
Romana de se colocar como instituição política universal, fazendo
que as bases do exercício do poder na Terra se desprendam do poder
divino e se fundamentem cada vez mais na razão, assim:

O Absolutismo significa, também e sobretudo, a


separação da política da teologia e a conquista da
autonomia daquela, dentro de esquemas de compreensão
e de critérios de juízos, independentemente de qualquer
avaliação religiosa ou moral. (SCHIERA, 2004, p. 2)

Na esteira do enfrentamento à detenção unilateral de poder por


parte da Igreja Católica, podemos destacar outras transformações
próprias da passagem da Idade Média para os tempos modernos, tal
como descritas por Châtelet, Duhamel e Pisier (2009, p. 35). São elas:

1. Desenvolvimento da civilização urbana, comercial


e manufatureira. Resultando em novos tipos de
sociabilidade e de mentalidade mais condizentes com a
vida na cidade do que com a vida no campo.
2. Introdução de novas formas de compreensão do
mundo físico, seja pelas descobertas de Copérnico e
Galileu, seja pela descoberta do Novo Mundo pelas
grandes navegações.
3. Resgate em novos moldes da cultura vinda da
Antiguidade greco-romana e o seu apreço pela natureza
e pelas indagações políticas.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 45


Ainda que de extrema importância, essas transformações, em
toda a sua complexidade, não serão debatidas nesta seção, pois,
nos interessa discutir, no escopo da Ciência Política, as novas formas
de organização do poder, e em um certo sentido, o processo de
construção do Estado.
Dessa forma a intensa fragmentação, própria das relações feudais,
o processo de urbanização, o desenvolvimento do capitalismo
mercantil, as mudanças de paradigma advindas da descoberta de
novos povos e culturas, e de novas formas de pensar, possibilitaram
a desestruturação social e política do sistema feudal e a paulatina
estruturação de novos padrões de sociabilidade e formas de
organização, é o período de formação dos Estados nacionais.
Toda essa complexidade não pode deixar de ser vista à luz das
disputas políticas que emergiam entre a burguesia - um grupo social
oriundo das atividades comerciais típicas dos feudos - e os monarcas
feudais, pois se a esses últimos a descentralização vinha a favorecer a
manutenção de domínios materiais e simbólicos, para os burgueses
a descentralização obstaculizava o comércio por eles empreendido.
E, ainda que não detalhemos as complexas relações estabelecidas ao
longo principalmente da Idade Moderna (1453-1789) entre a burguesia
e os monarcas absolutistas que tinham a princípio um objetivo em
comum - a centralização do poder -, cabe destacar que a Revolução
Francesa foi uma revolução burguesa contra o Antigo Regime.

Assimile

Para Weber (1999), quando falamos de nação estamos nos referindo


a uma comunidade de sentimento, um agrupamento que se estrutura
pelo compartilhamento de identidades. Entretanto, a nação para se
manifestar, para emergir adequadamente, precisa de um Estado próprio.
E esse Estado nacional tem algumas características em comum, ainda
que guardadas às suas especificidades. São elas:

1. Criação de um exército nacional capaz de trazer a ordem interna e


defender as fronteiras.

2. Centralização das atividades administrativas, gerando a burocracia


estatal, e tributárias.

3. Criação de uma moeda comum para facilitar a arrecadação por parte


do Estado e as trocas comerciais.

46 U1 - Fundamentos da Ciência Política


4. A necessidade histórica de um soberano que pudesse unificar
Estado e nação.

Um filósofo, chamado Nicolau Maquiavel, soube como ninguém


entender essas transformações e o lugar de suas observações
e reflexões era a península italiana, que, com o fim das Guerras
Napoleônicas, passava por um longo processo de unificação.
Cabendo destacar que a península italiana vivenciou uma experiência
feudal muito particular, em que a fragmentação não se tornou
tão acentuada e a “recuperação de um tecido nacional através do
reaparecimento do instituto monárquico” (COLLIVA, 2004, p. 492)
possível ainda que sua plena unificação tenha sido tardia em relação
aos demais Estados nacionais europeus.
Foi o secretário florentino quem, segundo por Châtelet, Duhamel
e Pisier (2009, p. 36), introduziu a ruptura decisiva em relação aos
ensinamentos da teologia como orientadores da prática política, e foi
ele quem deu ao Estado a “[...] significação de poder central soberano
legiferante e capaz de decidir, sem compartilhar esse poder com
ninguém, sobre as questões tanto exteriores quanto internas de uma
coletividade”.
Podemos, portanto, dizer que Maquiavel (1976) foi o primeiro a
publicizar o entendimento de que as questões relativas à política e ao
Estado deveriam estar separadas das questões próprias da religião e da
moral, isto porque a política deve estar orientada para a manutenção
desse Estado, esse é o fim, a finalidade da política.
Em seu livro mais conhecido, O Príncipe, escrito em 1513 e
publicado postumamente em 1533, o autor sistematiza conselhos
destinados ao governante, condottiere ou príncipe (todos tidos como
sinônimos), esses conselhos não estão ancorados em um repertório
de conduta moral, mas tão somente no que é necessário para a
manutenção, a unificação e o fortalecimento do Estado.
Reflita
No livro Do Contrato Social, Rousseau apresentará - partindo do estudo do
livro O Príncipe - que embora Maquiavel tenha sistematizado conselhos
para a manutenção da dominação (pelo Estado), a compreensão do
sentido desses conselhos pode ser muito útil para os dominados, que

U1 - Fundamentos da Ciência Política 47


poderão entender melhor as estratégias empregadas pelo dominador
e assim surpreendê-lo. Você concorda com essa lógica? É realmente
melhor conhecer as estratégias de seu adversário para planejar a sua
defesa? Pense sobre isso e tente relacionar com o nosso cotidiano.

Como diplomata e burocrata Maquiavel (1976) pode pesquisar a


natureza da política e coletar dados e matérias para a elaboração de
seus estudos, assim, seu olhar não partia de um mundo ideal ou de
um Estado ideal, mas do mundo em que estava vivenciando, de certa
forma, da observação empírica e do estudo da História.
Essa foi uma importante ruptura em relação às reflexões políticas
anteriores, pois tendo a política uma lógica própria, autônoma,
Maquiavel (1976) introduz a substituição:
• Do dever ser pelo ser.
• Do idealismo para o realismo político.

Assimile
Você se lembra que na segunda seção tratamos da ausência de
verticalidades acentuadas na democracia ateniense? É com Maquiavel
que do ponto de vista teórico ela se explicita, pois ele é o primeiro a
compreender a natureza do que virá a ser chamado de Estado nacional
moderno, vertical por essência, e principalmente sobre a importância
do príncipe.

O príncipe ter ou não uma conduta moralmente aceitável é


secundária, embora não totalmente dispensável, visto que ele deve
agir conforme as circunstâncias. Assim, a bondade e a generosidade
devem estar subordinadas à manutenção do Estado, dessa forma,
entre ser amado ou temido, Maquiavel (1976) afirma que é mais
seguro ser temido, e que se o príncipe não puder suscitar amor entre
os súditos, que ao menos evite o ódio e ocasione o respeito.
Dentro dessa perspectiva, destacamos um trecho contido no
capítulo V de O Príncipe: “Como se devem governar as cidades
ou principados que, antes de serem ocupados, se regiam por leis
próprias”.

48 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Quando se conquista um país acostumado a viver
segundo as suas próprias leis e em liberdade, três
maneiras há de proceder para conservá-lo: ou destruí-lo;
ou ir nele morar; ou deixá-lo viver com as suas próprias
leis, exigindo-lhe um tributo e estabelecendo nele um
governo de poucas pessoas que o mantenham fiel ao
conquistador. (MAQUIAVEL, 1976, p. 55)

O verdadeiro príncipe, ou condottiere, para manter-se no poder


deve ser capaz de combinar virtu e fortuna, sendo que essa última se
refere ao circunstancial, ao imponderável, ou seja, ao contexto e às
condições que são dadas independente da vontade do príncipe. E a
virtu se refere à capacidade pessoal do príncipe de usar a fortuna em
seu proveito e ao fim em proveito da manutenção do Estado, uma
sabedoria de agir conforme as circunstâncias e as necessidades, e
não conforme um arcabouço moral.
Descrito alguns dos principais conceitos de Maquiavel (1976) em
O Príncipe, cabe agora discutir os motivos que levaram seu nome a
ser usado tanto como adjetivo quanto substantivo, segundo Sadek
(2006) em que:

Seu uso extrapola o mundo da política e habita sem


nenhuma cerimônia o universo das relações privadas.
Em qualquer de suas acepções, porém, o maquiavelismo
está associado à ideia de perfídia, a um procedimento
astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões
pejorativas sobreviveram de certa forma incólumes no
tempo e no espaço, apenas alastrando-se na luta política
para as desavenças do cotidiano. (SADEK, 2006, p. 13)

No entanto, sua reabilitação como “autor maldito”, capaz de


inspirar toda a sorte de tiranos, segundo Sadek (2006), veio do fato
de como um dos mais importantes tratados políticos já escritos ter
defendido a liberdade e a soberania do Estado, ainda que fossem
empregados meios pouco usuais.

Sem medo de errar


Vamos retomar a frase do rei Luís XIV “Eu sou o Estado” e de seu
bisneto e sucessor, Luís XV: “É exclusivamente na minha pessoa que
reside o poder soberano, cujo caráter próprio é o espírito de conselho,
de justiça e de razão”.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 49


Você se lembra que introduzimos a partir desses dizeres a questão
da concentração da autoridade por uma única pessoa e em como
nos sentiríamos desconfortáveis nos dias de hoje em nos deparamos
com essa possibilidade? Agora tentaremos nos colocar no lugar de
um indivíduo qualquer, de alguém que vivia no período de ocorrência
das experiências absolutistas e tentaremos “ver com os olhos dele”.
Morador de um dos muitos feudos existentes até por volta do
século XIII, essa pessoa começa a sentir os efeitos da fragmentação
do poder, especialmente pelo aumento de conflitos, inclusive
conflitos armados, na sua vida cotidiana. Isso porque com a
fragmentação vieram também as disputas pelo poder. Dos vestígios
desse descontentamento surge uma nova estrutura política, na qual
o rei se impõe como absoluto e capaz de neutralizar esses conflitos
e restaurar a paz a partir de uma base identitária comum e de uma
autoridade legítima, ou seja, a partir do Estado nacional.
Esse resultado começa a agradar algumas pessoas. Acrescentamos
a essa descrição o fato de o Absolutismo ter marcado o início do
processo de secularização e racionalização da política e do poder,
colocando a Igreja Católica Romana a parte, temos a instauração
de bases absolutistas no escopo do Estado que emergia em uma
relação de legitimidade entre o soberano - que estava orientado para
a manutenção do Estado - e de seus súditos - que viam no monarca
alguém capaz de trazer a conciliação desejada.

Faça valer a pena


1. A presente seção parte de um tipo específico de Feudalismo, que se
localiza na substituição por parte do poder régio de uma classe dirigente
monárquica por outra classe vinda de grupos étnicos germânicos.
Tendo em vista tal escopo, escolha a opção mais adequada em se tratando
da localização do Feudalismo em uma linearidade histórica:\
a) O Feudalismo europeu-ocidental não é importante do ponto de vista
da instauração de novas formas de organização do poder, pois não se
alicerçou em monarquias.
b) Podemos dizer que apenas os Feudalismos chinês, indiano e otomano
têm relações feudais, portanto, os relativos aos grupos étnicos germânicos
têm uma importância histórica reduzida.
c) O Feudalismo ocidental não se originou da relação entre o poder régio
e os grupos étnico germânicos.

50 U1 - Fundamentos da Ciência Política


d) Do ponto de vista da Ciência Política, não vale a pena tentar localizar
o Feudalismo em uma linearidade histórica, pois sua ocorrência foi
demasiada pontual e homogênea.
e) Apesar de ter havido muitos tipos de Feudalismo, é o de ocorrência
ocidental, de incorporação de povos germânicos, que mais nos ajuda a
entender o Absolutismo.

2. Embora o termo Absolutismo como uma realidade histórica seja um


conceito amplo, com peculiaridades a depender dos anos e localidade de
ocorrência, há um entendimento consensual entre os analistas e teóricos,
de que se trata de uma nova organização do poder. Nesse sentido, Schiera
(2004) buscou delimitá-lo a um argumento descritivo e outro de cunho
compreensivo.
Considerando tais objetivos de Schiera (2004), assinale a alternativa correta:
a) O princípio fundamental destacado por Schiera (2004) como próprio da
estrutura política absolutista é o processo de secularização e racionalização
da política e do poder, ou seja, de separação entre política e teologia.
b) Do ponto de vista descritivo, Schiera (2004) diz que o Absolutismo pode
ser caracterizado como uma forma de governo de intensa democratização
do poder.
c) Schiera (2004) destaca que o processo de secularização e racionalização
da política e do poder não pode ser considerado um princípio fundamental
do Absolutismo, pois o rei fazia parte da hierarquia católica.
d) Schiera (2004) nos descreve o Absolutismo como sendo a forma de
governo historicamente vista em que o príncipe, ou soberano, mais sofreu
limitações ao exercício do poder.
e) O princípio fundamental que Schiera (2004) destaca como mais relevante
para o entendimento do absolutismo foi a consolidação da supremacia da
Igreja Católica Romana como instituição política universal.

3. Segundo Maquiavel, o verdadeiro príncipe, ou condottiere, para ter


sucesso na manutenção do poder do Estado deve ser capaz de combinar
dois elementos.
Quais são esses elementos e sobre o que eles se referem?
a) Para Maquiavel, o príncipe deve ser bom e generoso, pois somente a
partir dessas duas qualidades é que o povo poderá segui-lo.
b) Segundo Maquiavel, o príncipe, ou condottiere, deve saber articular
virtu, as condições dadas, e a fortuna, as habilidades individuais.
c) Se o príncipe não souber articular características religiosas - virtu - à sua
prática política - fortuna - não será bem sucedido quanto à manutenção
do poder pelo Estado.
d) O condottiere deve ser capaz de combinar virtu e fortuna, sendo que a
primeira se refere às suas habilidades pessoais, e a segunda ao contexto.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 51


e) Um bom guerreiro e conhecedor da teologia são as características
essenciais de um príncipe, segundo Maquiavel.

52 U1 - Fundamentos da Ciência Política


Referências
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Universidade de Brasília, 2004.
BONINI, R. Verbete polis. In: BOBBIO, N. MATTEUCCI, N. PASQUINO, G. (Org.). Dicionário
de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
CHÂTELET, F. DUHAMEL, O. PISIER, E. História das ideias políticas. São Paulo: Zahar,
2009.
COLLIVA, P. Verbete Feudalismo. In: BOBBIO, N. MATTEUCCI, N. PASQUINO, G. (Org.).
Dicionário de política. v. 2. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
FAORO, R. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. São Paulo:
Globo, 2000.
GIDDENS, A. SUTTON, P. W. Conceitos essenciais da sociologia. São Paulo, Editora
UNESP, 2015.
HARDT, M. NEGRI, A. Império. Buenos Aires: Paidós, 2004.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.
NOGUEIRA, M. A. Verbete polis. In: DI GIOVANNI, G. NOGUEIRA, M. A. Dicionário de
políticas públicas. São Paulo: Unesp, 2015.
SADEK, M. T. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. In:
WEFFORT, F. (Org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2006.
SARTORI, G. A política: lógica e método nas Ciências Sociais. Brasília: Editora Universidade
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SCHIERA, P. Verbete absolutismo. In: BOBBIO, N. MATTEUCCI, N. PASQUINO, G. (Org.).
Dicionário de política. v. 2. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2010.
. A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais e na Ciência Política. In:
WEBER, M. Metodologia das ciências sociais: parte 1. São Paulo: Cortez; Campinas:
Editora da Unicamp, 2001.
. Economia e sociedade. v. 2. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.
. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.

U1 - Fundamentos da Ciência Política 53


Unidade 2

Ciência Política e Estado


Moderno
Convite ao estudo
O Estado é um ente que paira sobre os homens.
Constantemente somos confrontados com as questões do
Estado. Quantas vezes já nos vimos dizendo a frase: “isso não
é obrigação da gente, mas do Estado”. Dessa maneira, este
é um ente importante, que rege a vida dos homens e coloca
algumas regras para a vida em sociedade. No entanto, como
chegamos até aqui? Em que momento decidimos que o Estado
deve cuidar da sociedade como um todo, ser responsável pelas
questões públicas, mas também pelas questões privadas, como
a segurança da propriedade privada?

A partir dessas questões, convidamos você a refletir sobre o


Estado Moderno, sua origem, suas bases e as visões existentes
sobre ele. Diferente do Estado que vimos na Unidade 1, o
Estado Moderno se sustenta em outras bases, principalmente
no pacto entre os homens, que são expressos nas Constituições
dos países. Além desse conceito, será também discutida
a relação entre Sociedade Política e Sociedade Civil, as
revoluções que atribuíram outras formações ao Estado, como o
Constitucionalismo e o Federalismo, e as visões existentes sobre
o Estado, em especial, as visões liberal, marxista, americanista
e ibérica. Esta última nos ajudará a compreender a formação
do Estado brasileiro, cuja constituição data de 1822, com a
Independência do Brasil do domínio português.
Seção 2.1
O Contratualismo
Diálogo aberto

Quando falamos em contrato, a primeira coisa que pensamos são


os contratos de serviços que fazemos ao longo da vida. Ao comprar
um plano de saúde, assina-se um contrato. Ao se matricular em uma
escola privada, assina-se um contrato. Ao contratar um serviço de
reforma para a casa, assina-se um contrato. No entanto, a palavra
contrato vai além da mera relação comercial estabelecida entre as
partes. Ele é um instrumento real ou virtual que rege as relações entre
os homens.
Rogério precisou aprender sobre isso a partir de uma situação
que viveu. Ele estava em uma festa, em uma casa de shows, quando
aconteceu uma briga, na qual ele tomou parte. Algumas pessoas
presentes chamaram a Polícia Militar para apartar o conflito. Como
Rogério estava envolvido, foi detido e levado para a delegacia, onde
assinou um termo no qual se responsabilizava pelos danos físicos e ao
patrimônio da casa de shows causados pela briga. Rogério considerou
o termo sem propósito e disse que não assinaria, pois não tinha que
pagar por um problema privado, o do patrimônio da casa de shows.
No entanto, os policiais relataram que, por lei, ele deveria arcar com
os custos. Indignado, assinou o termo, mas não entendeu os motivos
pelos quais há uma lei que diz que é preciso pagar pelos custos de
uma empresa privada. Diante dessa dúvida, Rogério levantou algumas
questões: ao comprar a entrada para a festa, ele havia assinado algum
contrato que previa tal sanção? O que faz que o Estado, por meio da
Justiça, intermedeie as relações entre as pessoas físicas e jurídicas
e entre o público e o privado? E quais são os motivos que levam a
recorrermos ao Estado, no caso, à Polícia Militar, quando há ameaça
à vida ou à propriedade privada?
A seguir, veremos alguns conceitos que podem ajudar Rogério
a esclarecer essas questões e a entender os motivos pelos quais ele
precisará pagar parte dos prejuízos obtidos pela casa de shows.

56 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


Não pode faltar
Para que Rogério possa responder a essas questões, precisamos
discutir quais são os princípios que constituem o Estado. Para
isso, voltaremos no tempo e conversaremos com alguns autores
fundamentais para a compreensão do papel do Estado como
mediador das relações sociais e protetor dos direitos do homem.
Voltaremos ao final da Idade Média, no início do século XIII. Há
indícios de que o Estado Moderno começa a constituir-se nesse
período, na transição do Feudalismo para o Capitalismo (SCHIERA,
1998). No entanto, podemos dizer que a Idade Moderna se inicia
efetivamente no século XV, em 1453, com a tomada de Constantinopla
pelos turcos otomanos e o fim do domínio do Império Romano.
É importante estabelecer essa delimitação histórica - Idade Média
e Idade Moderna - quando falamos do Estado, pois o fim da Idade
Média marca o distanciamento do Estado da ordem espiritual e
sua aproximação da ordem material. Isso acontece em função da
constituição dos mercados e da formação das cidades, os quais
também modificam a estrutura da sociedade e, consequentemente,
exigem mudanças nas formas de exercício do poder.

Pesquise mais
Para saber mais sobre a constituição das cidades a partir do mercado e
o aparecimento da burguesia, leia o texto de António Miguel de Souza.

Fonte: SOUZA, A. M. de. Para os estudos e práticas urbanas, um olhar


sobre Max Weber. Ponto e Vírgula, n. 7, p. 109-126, 2010. Disponível
em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/pontoevirgula/article/
download/13993/10299>. Acesso em: 14 abr. 2017.

No período do Feudalismo, o poder tinha por base a tradição,


corporificada no poder de Deus atribuído ao príncipe pelo clero,
poder este partilhado com os senhores feudais, responsáveis por suas
comunidades territoriais e pelo exercício do domínio do príncipe.
O aparecimento dos mercados e das cidades em conjunto com
camadas da população que não estavam mais sob o jugo do poder
feudal exigia uma nova forma de Estado e de exercício do poder. Um
Estado que atendesse às demandas dessas camadas, que estivesse
alinhado com o poder material das relações sociais ora vigentes.

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 57


É nesse contexto que surge o Estado Moderno, com o objetivo
de regular as relações originadas em uma sociedade em transição,
assentada sob o poder material e o mercado, cujas camadas não mais
se identificam com a servidão e o poder senhorial. Essa nova forma
de Estado, seu surgimento e as bases que o constituem, tornou-
se preocupação de alguns pensadores dos séculos XVII e XVIII,
fomentando algumas teorias sobre o Estado. Destacam-se, nesse
período, três pensadores, em especial: Thomas Hobbes, John Locke
e Jean Jacques Rousseau.
Conhecidos como contratualistas, esses pensadores entenderam
que “os homens viveriam naturalmente, sem poder e sem organização
- que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles,
estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política”
(RIBEIRO, 2001, p. 53). O contrato estabelecido pelos homens lhes
garantiria o exercício de seus direitos naturais. No entanto, cada um
desses pensadores tinha sua definição para os direitos naturais e seu
entendimento sobre como o contrato social teria sido estabelecido,
e como ele sustenta o Estado na Idade Moderna. Dessa forma,
precisamos conhecer o que cada um deles afirmava para que
possamos ajudar Rogério a resolver suas dúvidas.
Começaremos com Thomas Hobbes. Filósofo inglês, Hobbes
viveu entre o final do século XVI e a segunda metade do século
XVII (1588-1679) e escreveu uma obra fundamental para entender a
formação do Estado Moderno, O Leviatã, publicado em 1651.
Em O Leviatã, obra clássica da filosofia política, Hobbes afirma
que os homens são semelhantes, dado sua natureza, e que, por
isso, nenhum pode triunfar totalmente sobre o outro. No entanto,
ele também aponta que os homens não conhecem uns aos outros,
fazendo que suponham a ação dos outros homens.

Dessas suposições recíprocas, decorre que geralmente


o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou
para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque
possível: assim a guerra se generaliza entre os homens.
Por isso, se não há um Estado controlando e reprimindo,
fazer a guerra contra os outros é a atitude mais racional
que eu posso adotar (RIBEIRO, 2001, p. 55).

58 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


Ao entender que no estado de natureza, sem a presença da
Sociedade Política formada pelo Estado, os homens lutam uns contra
os outros, Hobbes indica que o estado de natureza é um estado de
guerra. No entanto, o conflito entre os homens não é sem fundamento.
Segundo o pensador, as causas principais da luta entre os homens são
três: “primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro,
a glória” (RIBEIRO, 2001, p. 56). A guerra entre os homens, assim, é
feita: I) pelo lucro II) pela segurança, III) pela reputação, buscando seu
direito à natureza.

O direito de natureza, a que os autores geralmente


chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem
possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser,
para a preservação de sua própria natureza, ou seja,
de sua vida, e consequentemente de fazer tudo aquilo
que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como
meios adequados a esse fim [...] (HOBBES, 1988, p. 78).

Para garantir seu direito de natureza, o homem vive em estado de


guerra, lutando por sua honra, segurança e vida. O estado de natureza
é então estado de guerra.
Hobbes, no entanto, alerta que um dos preceitos da razão é a
busca constante da paz, podendo o homem usar as vantagens da
guerra para alcançá-la. Esta busca é a primeira e fundamental lei da
natureza, sendo a segunda, o direito da natureza, a defesa de nós
mesmos. O conflito existente entre a busca da paz e a defesa da vida
conduz os homens a renunciarem ao seu direito de natureza, em
especial, à defesa de sua segurança e honra. Essa renúncia só pode
ser realizada mediante um pacto, do qual surge o Estado, o qual deve
ser “[...] dotado de espada, armado, para forçar os homens ao respeito”
(RIBEIRO, 2001, p. 61). O Estado surge de um pacto entre os homens
e o poder que dele emana; é soberano.
Dessa forma, para Hobbes, os homens criam o Estado. Mediante
um contrato entre os homens, eles conferem sua força a um homem
ou a uma assembleia de homens, que reduz todas as vontades a uma
só, a dos homens reunidos sob a autoridade do Estado. Os homens
transferem a esse homem ou a essa assembleia de homens o direito
de governar e de garantir seu direito natural, assim como o autorizam
a utilizar todas suas ações e estratégias. Quem exerce o poder do

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 59


Estado é chamado de soberano e tem poder soberano, sendo os
homens que renunciam ao seu direito de garantir sua segurança e
honra em favor do Estado, súditos do soberano.

Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão,


mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi
instituída por cada um como autora, de modo a ela poder
usar a força e os recursos de todos, da maneira que
considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa
comum (HOBBES, 1998, p. 106).

Ao mesmo tempo em que nasce o Estado, nasce a sociedade,


visto que o contrato firmado entre os homens é de associação (que
funda a sociedade) e de submissão (que funda o Estado). O Estado - a
sociedade política - é regida pelo soberano, cujo poder foi atribuído
pelos homens - a sociedade civil - a partir da renúncia de seu poder.
Assim, é possível dizer que em Hobbes, com o Estado nasce a
sociedade, pois ela é o fundamento da soberania, fundamentada no
poder de defender a vida e a honra dessa sociedade.
Essa renúncia que os homens fazem da garantia dos seus direitos
em favor do soberano nos leva a questionar: como ficam os valores
de igualdade e liberdade no Estado descrito por Hobbes? Conforme
o autor apresenta, a igualdade leva a guerra de todos contra todos,
pois sendo os homens iguais, eles querem a mesma coisa, o que gera
a competição. E a liberdade?
Esta, para Hobbes, é limitada, pois ao delegar ao Estado sua
proteção, o homem perde seu direito de natureza e também sua
liberdade. Sua liberdade está assentada em fazer jus à sua igualdade.
Quando o homem delega ao Estado proteger a vida e garantir a
igualdade, delega também sua liberdade. O homem só adquirirá
novamente esta quando o soberano não conseguir proteger a
vida do homem, fator pelo qual este obedece ao soberano. Nesse
momento, “desapareceu a razão que levava o súdito a obedecer. Esta
é a ‘verdadeira liberdade do súdito’” (RIBEIRO, 2001, p. 68).
A seguir, a capa de O Leviatã, que retrata o Estado em um corpo. A
cabeça é o soberano, armado para defesa dos homens, que formam
o corpo do Estado, a sociedade civil.

60 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


Figura 2.1| Capa de O Leviatã

Fonte: <https://so.wikipedia.org/wiki/File:Leviathan.jpg>. Acesso em: 23 abr. 2017.

Outro importante pensador desse período foi John Locke. Para


Locke, diferente de Hobbes, os homens renunciam sua liberdade em
favor do Estado para que ele garanta sua segurança, eles vivem em
liberdade e igualdade no estado de natureza, que é um estado de
harmonia (MELLO, 2001). John Locke foi um filósofo inglês que viveu
entre 1632 e 1704 e, em sua obra Segundo Tratado do Governo Civil,
definiu que o Estado surge sob o contrato social para garantir aos
homens o usufruto dos seus direitos naturais, a saber, a propriedade
da vida, da liberdade e dos bens.
Para Thomas Hobbes, a propriedade surge com o Estado, que
controla o acesso e o uso da propriedade. Para John Locke, a
propriedade surge antes do Estado, “sendo uma instituição anterior à
sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado
pelo Estado” (MELLO, 2001, p. 85).
Para Locke, os homens eram livres e tinham a propriedade
de si e do seu trabalho. Ao trabalhar na terra, que fora dada por
Deus a todos os homens, eles incorporam seu trabalho à terra,
tornando-a sua propriedade - propriedade privada - obtendo
sobre ela direitos próprios. Dessa forma, o trabalho é fundamento
da propriedade privada.
Quanto mais o homem trabalha na terra, mais ele acumula
propriedades. Com o desenvolvimento dos mercados, cuja base é a

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 61


troca, a propriedade - que é daquele que nela trabalha - pode também
ser trocada. Com o desenvolvimento do Capitalismo e da moeda
como base da troca, o homem pode acumular riquezas e comprar
propriedades, o que conduz a passagem da propriedade baseada no
trabalho à propriedade fundada na acumulação possibilitada pelo
advento do dinheiro.
Diante disso, a paz e a liberdade que existem no estado de natureza
de John Locke ficam ameaçadas. A ameaça à violação da propriedade
(da vida, da liberdade e dos bens), que “na falta de lei estabelecida,
de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a execução das
sentenças [...]”, acaba por colocar “[...] os indivíduos singulares em
estado de guerra uns contra os outros” (MELLO, 2001, p. 86).
O contrato social surge da necessidade de livrar-se desses
“inconvenientes”, constituindo, assim, a sociedade política e civil, cujo
objetivo é preservar a propriedade e proteger a comunidade. Para
Locke, o contrato social é um pacto de consentimento, os homens
concordam livremente em formar a sociedade política e a sociedade
civil “para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam
originalmente no estado de natureza” (MELLO, 2001, p. 86).

Exemplificando
Para Locke, a Sociedade Civil tem um papel importante de fiscalização
do poder do soberano. Ela pode fazer uso desse poder para limitar o
poder do soberano ou até mesmo retirá-lo de suas funções.

Se analisarmos a sociedade atual, a Sociedade Civil mantém esse poder.


Em alguns setores do nosso Estado, membros da Sociedade Civil têm
assento para discutir, deliberar e fiscalizar as ações do Estado. Um dos
exemplos do exercício do poder da Sociedade Civil está no Conselho
Municipal de Saúde, no qual membros da população podem participar e
ajudar nas decisões da política municipal de saúde. O mesmo acontece
em mecanismos como o Orçamento Participativo, bastante utilizado
na década de 2000 em governos municipais. Para saber mais, veja o
exemplo do Orçamento Participativo da Prefeitura Municipal de Porto
Alegre. Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/>. Acesso
em: 31 maio 2017.

Dessa forma, forma-se o que Locke chama de Estado Civil, no qual


o contrato originário, estabelecido pelo consentimento do conjunto
dos homens, dá lugar ao princípio da maioria e é estipulada uma forma

62 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


de governo. As formas de governo podem ser a monarquia (governo
de um), a oligarquia (governo de poucos) ou a democracia (governo
de muitos). Por fim, são estabelecidos os poderes: o poder legislativo,
considerado por Locke o poder supremo; o executivo, exercido pelo
príncipe; e o federativo, que pode também ser exercido pelo príncipe
e tem por objetivo cuidar das relações exteriores do Estado. Todos
esses fatores devem estar a favor da proteção da propriedade.

Reflita
O Estado, como protetor e defensor dos direitos naturais dos homens,
ainda é comum nos dias atuais. No Brasil, o artigo 5º da Constituição
Federal garante o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade. Reflita sobre esse artigo de nossa constituição e pontue
quais são os instrumentos utilizados pelo Estado brasileiro para garantir
os direitos naturais.

Por fim, temos Jean Jacques Rousseau. Filósofo e teórico político


suíço, Rousseau viveu entre 1712 e 1778 e escreveu uma das obras
mais importantes desse período, O Contrato Social.
Sua obra inicia com uma crítica à teoria do Estado de Locke.
Rousseau diz que o Estado, para Locke, garante aos sujeitos a
prevalência dos direitos naturais, em especial, a liberdade e a
propriedade, no entanto, produz a desigualdade.

Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis,


que deram novos entraves ao fraco e novas forças
ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade
natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da
desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um
direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos,
sujeitaram doravante todo o gênero humano ao trabalho,
à servidão e à miséria (NASCIMENTO, 2001, p. 195).

Em “O Contrato Social”, Rousseau propõe apresentar quais são:


“as condições de possibilidade de um pacto legítimo, através do qual
os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural, ganhem,
em troca, a liberdade civil” (NASCIMENTO, 2001, p. 195-196).
Nesse pacto, todos são iguais, pois cada membro do pacto
renuncia ou aliena-se de seus direitos em função da comunidade.

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 63


O povo é soberano, pois ele é igualitário, realizando-se, assim, a
liberdade civil, pois o povo é o agente que elabora as leis, às quais ele
mesmo se submete. “Obedecer à lei que se prescreve a si mesmo é
um ato de liberdade” (NASCIMENTO, 2001, p. 196). Dessa maneira,
submete-se à vontade geral e não à vontade de um indivíduo ou
um grupo de indivíduos em particular. Essa é a condição primeira de
legitimidade da vida política: a fundação através do pacto legítimo
feito pelos homens em condição de igualdade e com alienação total.
A sociedade civil - corpo soberano do Estado que nasce do
pacto social - busca garantir a legitimidade do Estado. Para que essa
legitimidade permaneça e se fortaleça, é instituído o governo, o corpo
administrativo do Estado, que deve buscar garantir a vontade geral do
povo soberano.

Para Rousseau, antes de mais nada, impõe-se definir


o governo, o corpo administrativo do Estado, como
funcionário do soberano, como um órgão limitado pelo
poder do povo e não como um corpo autônomo ou
então como o próprio poder máximo, confundindo-se
neste caso com o soberano (NASCIMENTO, 2001, p. 197).

A representação aparece como a forma necessária para que


o governo funcione. No entanto, para que a representação não se
sobreponha ao exercício da vontade geral, deve-se tomar cuidado
e agir em constante vigilância, buscando a troca dos representantes
com o tempo.
Rousseau fecha a tríade dos contratualistas, fortalecendo a
importância do contrato social para a garantia dos direitos naturais.
Para o pensador, os principais direitos são a igualdade e a liberdade,
já, para Hobbes, é a vida e, para Locke, a propriedade dos bens e da
vida. Cada autor, em sua época e a seu modo, reforça a importância
do Estado para a garantia dos direitos e a construção da sociedade
civil, como responsável por acompanhar e fiscalizar o Estado. Em
Rousseau, isso é mais forte, pois a sociedade política é a alienação de
todos os homens em favor da comunidade e a representação política
deve garantir a igualdade de todos.

64 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


Assimile
Como você viu, a Sociedade Civil é importante para os contratualistas.
A formação do Estado ou da sociedade política implica a constituição
da Sociedade Civil, formada pelos homens. Em Locke e em Rousseau, a
Sociedade Civil tem poder de fiscalizar o governante, garantindo que os
princípios do contrato social sejam cumpridos. Em Hobbes, a Sociedade
Civil é constituída de comum acordo, no entanto, o governante é
soberano e não tem seu poder limitado pela Sociedade Civil.

Sem medo de errar


Compreendido o que são os direitos naturais, o papel do Estado
em sua garantia e do contrato social em sua sustentação, temos
elementos suficientes para ajudar Rogério com suas questões. Dessa
maneira, vamos resolver a situação-problema.
Nesta seção, vimos a formação do Estado moderno, suas bases e
a defesa dos direitos naturais. O objetivo de vermos esses conceitos
foi ajudar Rogério com suas dúvidas. Lembre-se de que após uma
briga em uma casa de shows, ele foi obrigado, pelo Estado, a ressarcir
a casa de shows pelos vidros quebrados que a briga deixou. Nesse
contexto, surgiram alguns questionamentos: por que ele deve pagar
os danos de uma briga a uma empresa privada? Por que o Estado é
quem determina que Rogério deve pagar?
Como você leu nesta seção, o Estado surge para defender os
direitos naturais dos homens, que podem ser a vida ou a propriedade.
Para alguns autores, o Estado surge também para garantir a liberdade
dos homens. Em todos os autores, os homens que compõem a
sociedade delegam ao Estado o poder de defender e garantir seus
direitos naturais.
Se a propriedade privada é um direito natural, como você viu
em Locke, cabe ao Estado defendê-la. Assim, quando algum ente
privado - que pode ser uma empresa ou um homem - sente-se
prejudicado por outro ente privado, ele pode recorrer ao Estado para
que intervenha e estabeleça os critérios para a resolução do problema
existente entre os entes.
É o que aconteceu com Rogério. A casa de shows sentiu-se lesada
com a briga, visto que vidros foram quebrados e foi necessário gastar

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 65


para consertá-los. Ao não achar justo pagar por um prejuízo causado
por terceiros, a casa de shows pediu ao Estado, por meio da Justiça,
que interviesse na relação e solicitasse o ressarcimento dos seus
gastos pelos envolvidos na briga, entre os quais estava Rogério.
Isso também aconteceu com outros aspectos da vida em
sociedade. Lembra que entre os direitos naturais está o direito à vida?
Sendo o Estado o guardião dos direitos naturais, ele trabalha para
garantir a segurança da sociedade. Por exemplo: o Estado mantém
a Polícia para garantir a segurança dos cidadãos. Quando esta falha e
alguém é assassinado, o Estado é a vítima, pois a ele cabe garantir o
direito à vida. Nesse caso, o processo não é entre a família da pessoa
morta e o réu. Aqui o processo tem como partes o Estado - a quem
os homens atribuíram o direito de garantir sua vida - e o réu. O Estado
é considerado vítima, pois a ele cabe a garantia da vida, devendo agir
em nome da sociedade para garantir a segurança entre os homens.
Acrescente outros exemplos da vida cotidiana e veja como o
contrato social é constantemente mobilizado em nossas relações e
como o Estado é mais presente do que imaginávamos na defesa e na
garantia dos nossos direitos naturais.

Faça valer a pena


1. O florescimento dos mercados e o crescimento das cidades após o
Feudalismo motivam o surgimento de novas camadas da sociedade.
Conhecidas como classes, essas camadas distanciam-se do poder vigente
no Feudalismo e pedem uma nova forma de poder, que seja condizente
com a configuração da sociedade após o Feudalismo. Essa nova forma
de poder exige também um Estado com novas configurações, o qual se
chamou de Estado Moderno.
Considerando esses pontos, quais afirmações a seguir estão corretas no
que tange ao surgimento do Estado Moderno:
I. O Estado Moderno surge para apoiar o crescimento do clero.
II. O Estado Moderno surge em favor do desenvolvimento das atividades
comerciais.
III. O Estado Moderno surge para aumentar o poder dos senhores feudais.
IV. O Estado Moderno surge em favor da ampliação do poder espiritual.
V. O Estado Moderno surge para garantir os direitos naturais das camadas
sociais nascentes.
a) Apenas a afirmação I está correta.

66 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


b) As afirmações II e V estão corretas.
c) As afirmações III e IV estão corretas.
d) Apenas a afirmação II está correta.
e) As afirmações I e IV estão corretas.

2. Entre os contratualistas, a Sociedade Civil é importante instrumento de


regulação das atividades do Estado. É a Sociedade Civil quem fiscaliza o
poder do governante e pode retirá-lo do poder caso ele não cumpra com
os critérios do contrato social.
Para quais pensadores contratualistas, a Sociedade Civil é reguladora das
atividades do Estado?
a) Thomas Hobbes e Max Weber.
b) Max Weber e Jean-Jacques Rousseau.
c) John Locke e Thomas Hobbes.
d) John Locke e Jean-Jacques Rousseau.
e) Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau.

3. Hobbes, Locke e Rousseau desenvolveram teorias sobre a formação


do Estado baseado no contrato social. Para Hobbes, o contrato social é
de submissão dos homens ao poder do Estado, para Locke e Rousseau,
o contrato social é de consentimento dos homens em favor do Estado,
sendo que, em Rousseau, a participação dos homens da Sociedade Civil
é igualitária na composição e na fiscalização do Estado Moderno. Para
todos, o contrato social é constituído para garantir os direitos naturais.
Para os contratualistas, podem ser considerados direitos naturais:
I – Igualdade.
II – Vida.
III – Propriedade.
IV – Soberania do rei.
Considere as afirmações anteriores. Estão corretas:
a) Apenas a afirmativa I.
b) Apenas a afirmativa II.
c) Apenas a afirmativa IV.
d) Apenas a afirmativa III.
e) As afirmativas I, II e III.

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 67


Seção 2.2
Formação do Estado Moderno
Diálogo aberto

Como vimos na seção anterior, segundo os autores estudados,


o Estado se forma a partir do contrato social estabelecido entre os
homens, seja para garantir a vida, a liberdade, ou a propriedade.
Dessa forma, o Estado se torna um ente presente entre os homens e
regulamentador das atividades humanas. Isso não quer dizer que ele
independa dos homens. Na seção anterior, vimos que há a Sociedade
Política e a Sociedade Civil e que esta, para alguns autores, pode ser
atuante no processo de fiscalização do governo soberano.
Paula tem 24 anos e faz parte do movimento de saúde de São
Paulo e participa do Conselho Municipal de Saúde. O Estado brasileiro
é federalista e há funções diferentes para cada um dos níveis da
federação, como no caso da Saúde. A pasta da saúde gera o Sistema
Único de Saúde, o SUS. Criado nacionalmente e garantido pela
Constituição de 1988, o SUS é de responsabilidade da União, dos
Estados e dos municípios.
O Conselho Municipal de Saúde de São Paulo, entre outras
atividades, discute a distribuição dos recursos da saúde em âmbito
municipal. Esses recursos são de origem municipal, estadual e federal.
Paula considera que os recursos são poucos e gostaria de ampliá-
los, mas como são definidos estes valores? Quem decide isso e de
que forma? Em suas pesquisas sobre o assunto, Paula descobriu
que quem define isso é a Constituição e esta corresponsabilidade
tem a ver com o Federalismo. Afinal, o que é a Constituição? Como
esta ideia de uma lei geral surgiu? Como e por que se definem as
diferentes responsabilidades de cada nível de governo com relação à
saúde e aos anseios da população? É isso que veremos nesta seção.

Não pode faltar


Na seção anterior você viu, a partir da visão dos contratualistas,
como surge o Estado. Pensadores como Thomas Hobbes, John
Locke e Jean-Jacques Rousseau escreveram que o Estado surge

68 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


conforme os homens entendem que é preciso um ente maior para
salvaguardar seus direitos naturais, a saber, a vida (Thomas Hobbes),
a propriedade (John Locke), a liberdade e a igualdade (Jean-Jacques
Rousseau). Esse ente, denominado Estado, é formado a partir do
pacto feito pelos homens, que delegam ao Estado a garantia dos seus
direitos, os quais podem ser feitos de diferentes formas e com ou sem
a fiscalização dos homens, denominados Sociedade Civil.
No entanto, esses pensadores pouco se dedicaram a pensar o
funcionamento do Estado, ou melhor, não consideraram que esse
ente evoluiria com o passar do tempo, assim como a Sociedade Civil
cresceria e exigiria do Estado novas formas de atuar. Apenas a divisão
dos poderes, tal como exposto por John Locke, não seria suficiente.
Outras formas de garantir ao Estado a soberania e a Sociedade Civil, o
poder de fiscalização, serão necessárias.
A Constituição é uma delas. Sua definição varia desde um
regulamento até um conjunto de leis fundamentais elaborado por
representantes do povo que regula as relações de representação -
governantes e governados -, determinando os limites entre os poderes
- legislativo, executivo e judiciário - e garantindo direitos individuais e
coletivos (HOUAISS, s.d).
Em que momento surgiu a Constituição e dela derivou toda uma
tese que resultou na teoria do Constitucionalismo? Para entendermos,
precisamos voltar ainda mais no tempo. Na seção passada, voltamos
ao início da Idade Moderna para compreendermos a constituição do
Estado Moderno. A primeira experiência de Constituição é anterior a
esse período, ainda na Idade Média.
Agora, viajaremos para a Inglaterra do século XIII. Em 1215, os
nobres ingleses promulgaram sua Magna Carta, com o objetivo de
limitar os poderes do rei João sem Terra (1199-1216). Ele disputou
poder com o rei Felipe Augusto, da França, com o Papa Inocêncio III
e com os nobres ingleses. Não obteve êxito em suas disputas e, por
isso, teve de assinar a Magna Carta. Esse documento estabelecia, entre
outros pontos, que o rei deveria respeitar os direitos dos nobres e da
Igreja e não poderia estipular novos impostos sem o consentimento
dos seus vassalos (PENNA, 2013). Essa foi a primeira experiência da
chamada Monarquia Constitucional, colocando a monarquia, até
então livre e sem limites para exercício do poder, sob as regras de
uma Constituição.

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 69


Alguns reis que vieram após João sem Terra tentaram ampliar os
poderes do monarca, no entanto, encontraram resistências de nobres
e vassalos da Coroa. Paulatinamente, a nobreza inglesa perdeu poder
econômico e uma nova classe surgiu, a burguesia.
Os reinados posteriores, em especial, de Henrique VIII (1509-1547)
e de Elizabeth I (1558-1603), possibilitaram a ampliação do poder
da burguesia. A fundação da Igreja Anglicana por Henrique VIII, que
retirou terras inglesas do clero católico, e a ampliação das atividades
mercantis por Elizabeth I agradaram a burguesia, que se sentia em
terreno favorável para ampliar seu poder econômico.
No entanto, nem só de flores vive o homem. Após a morte de
Elizabeth I, em 1603, teve início a Dinastia Stuart, com Jaime I (1603-
1625), que trouxe a limitação de terras aos camponeses. Após sua
morte, assumiu Carlos I (1625-1649), que ampliou os poderes da
nobreza. Ambos apontaram para um sentido claramente contrário
ao traçado pelos Tudor, de abertura da economia a burgueses e
a camponeses, o que representou uma ameaça aos interesses
comerciais dessas camadas da população.
Diante desse cenário, o que seria inimaginável em tempos atuais,
aconteceu na Inglaterra de meados do século XVII. Burgueses e
camponeses uniram-se contra o poder real. A guerra civil, liderada
por Oliver Cromwell, colocou os partidários da nobreza sob um novo
governo, o Governo Cromwell, que estimulou o desenvolvimento
dos negócios da burguesia.
A morte de Cromwell resultou na restauração da dinastia Stuart,
com Jaime II. No entanto, Guilherme de Orange, genro de Jaime
II, aliou-se à burguesia e juntos deflagraram a Revolução Gloriosa. A
derrota da nobreza levou Guilherme de Orange ao poder, mas agora
em pacto com a burguesia. A Declaração dos Direitos ou Bill of Rights
foi assinada em 1689, limitando os poderes do rei e ampliando os do
Parlamento.

A partir desse momento, cabia ao parlamento a aprovação


de tributos, a manutenção de um exército permanente,
a garantia do exercício da Justiça pública entre outras
medidas. A Bill of Rights foi a primeira declaração dos
direitos do cidadão, enterrando definitivamente o
absolutismo monárquico na Inglaterra. (PENNA, 2013, p.
159-160)

70 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


A Bill of Rights pode ser considerada uma das primeiras constituições
do período moderno e marca a transição do Feudalismo para o
Capitalismo, fortalecendo a burguesia, a partir de uma legislação
comercial e administrativa.
Além da Revolução Gloriosa, outras revoluções ocorridas na
Europa e na América foram importantes para consolidar o Estado e o
poder da nascente burguesia.
Vários ingleses migraram para a América após a Revolução
Gloriosa, instalando-se onde hoje é o Canadá e os Estados Unidos da
América. Vivendo como ingleses em terras americanas, os imigrantes
iniciaram um processo de colonização, fundaram 13 colônias e
gozavam de relativa liberdade econômica e autonomia política.
A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) mudou esse quadro, com
o conflito entre colonos, indígenas americanos, franceses, ingleses
e outros europeus. Os colonos permaneceram ao lado dos índios,
o que gerou mal-estar entre colônia e metrópole, resultando no
cerceamento das fronteiras aos colonos e na imposição de uma série
de impostos, como a Lei do Açúcar (1765).
Em resposta às ações da metrópole, os colonos se reuniram em
dois congressos continentais. No primeiro Congresso, realizado em
1774, foi decidido que as 13 colônias ali representadas realizariam
boicote total ao comércio inglês até a revogação dos impostos. Em
1775, a Inglaterra reagiu ao boicote com conflitos armados, originando
a Guerra de Independência e o segundo Congresso, que resultou em
rompimento das colônias com a Inglaterra e a formação do Exército
Continental, sob a liderança de George Washington.

Pesquise mais
Há diversos filmes que contam a história da Independência dos Estados
Unidos. Destacamos dois: O Último dos Moicanos (1992) e O Patriota
(2000). O primeiro se passa ainda no período das guerras entre índios,
colonos e europeus. O segundo mostra a Guerra de Independência dos
Estados Unidos pela visão de um pai de sete filhos.

Em 4 de julho de 1776, foi assinada a Declaração de Independência


dos Estados Unidos da América, por nomes como Thomas Jefferson
e Benjamin Franklin. A Guerra persistiu até 1783, quando foi assinado
o Tratado de Paris, no qual a Inglaterra reconheceu a independência
dos Estados Unidos e selou a paz entre os países (HOBSBAWM, 2007).

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 71


Para marcar esse novo período da história dos Estados Unidos,
agora como país independente, foi elaborada sua primeira e única
Constituição. A Constituição norte-americana foi discutida e aprovada
em uma convenção realizada na Filadélfia, em 1787. Considerada até
hoje a Carta Magna dos Estados Unidos da América, a Constituição
norte-americana tem sete artigos e vinte e sete emendas, nos quais
estipula a divisão de poderes - executivo, legislativo e judiciário - e
define os Estados Unidos da América como um país federalista,
estabelecendo nos artigos de sua Constituição os direitos e as
responsabilidades dos estados federados perante o Governo Federal.
O Federalismo pode ser definido como: “uma forma de organização
de Estado em que os entes federados são dotados de autonomia
administrativa, política, tributária e financeira necessárias para manter
o equilíbrio que se estabelece entre eles para a constituição do Estado
Federal” (XAVIER; XAVIER, 2014, s.p.). O que mantém o Estado Federal
é o pacto federativo, no qual os entes federados, em comum acordo,
se submetem ao poder central (o Estado Federal) e perdem algumas
autonomias, como da política externa e da moeda, ou seja, por mais
que os entes federados tenham autonomia em diversas esferas, há
algumas atribuições que são do Estado Federal.
Reflita
O Brasil é um país federalista como os Estados Unidos da América. Nos
EUA, os estados têm autonomia para definir impostos sobre consumo
de mercadorias - há até estados que não têm esse imposto - e outras leis,
como comercialização e uso de drogas. Nesse modelo de Federalismo,
os estados podem fazer leis que não precisam da anuência do Governo
Federal.

Analise o caso brasileiro e veja se, no Brasil, os estados têm a mesma


autonomia que o modelo federalista norte-americano.

No caso dos Estados Unidos da América, a Constituição Federal


expressa as atribuições do Federalismo, sendo considerado o
primeiro pacto federativo “[...] e, ao mesmo tempo, a experiência
constitucional mais importante” (LEVI, 1998, p. 480). O poder do
povo - expresso na Constituição, que inicia com “Nós, o Povo” (ver na
Figura 2.1) - foi fundamental para o sucesso da Revolução Americana
e para fortalecer o Federalismo e o Constitucionalismo.

72 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


Figura 2.1 | Constituição dos Estados Unidos da América

Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/59/United_States_Constitution.jpg>. Acesso em: 20 jun.


2017.

A última das revoluções que mudaram a política no mundo e


fortaleceram o Constitucionalismo também teve ampla participação
popular. Entre as três, a Revolução Francesa talvez seja a mais
conhecida das revoluções. Com certeza, você já ouviu essa frase:
Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Ela foi o lema da Revolução
Francesa e é constantemente reivindicada em lutas políticas.
A França do século XVIII era um país social e economicamente
desigual. Dividida em três estados - clero, nobreza e povo - a França
da época era uma monarquia absolutista, com o rei sendo soberano
e absoluto no que concerne à política, à economia, à justiça, entre
outros. Ao terceiro estado - o povo - cabia sustentar os demais, via
impostos. O povo era formado pela burguesia em suas diferentes
frações, os camponeses e os chamados sans-culottes - aprendizes
de ofícios, trabalhadores assalariados e desempregados.
Como vimos no caso inglês, a formação da burguesia como classe
social própria ao capitalismo coloca desafios ao Estado, que precisa
incorporar os anseios das novas classes. No caso francês, a burguesia
desejava ter maiores participação política e liberdade econômica. No
entanto, o Estado absolutista não dava tal liberdade e ainda taxava o
terceiro estado.
Em meio a uma crise econômica, o primeiro e o segundo estado
tentaram aumentar os impostos, garantindo as benesses da nobreza

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 73


e do clero. Dessa maneira, convocaram a Assembleia dos Estados
Gerais para discutir o aumento dos impostos. Diante da crise, com
alta nos preços de produtos da agricultura e desemprego no setor
urbano em função da concorrência com os produtos ingleses, o
povo não queria pagar pelos privilégios da nobreza e do clero.
Em maio de 1789, com o maior número de deputados que os
outros dois estados juntos, o terceiro estado, o povo, exigia que a
votação fosse por voto individual, enquanto nobreza e clero queriam
que o voto fosse por ordem social. Esse impasse deveria ser resolvido
por alteração na Constituição, o que não foi aceito, levando o terceiro
estado a sair da Assembleia dos Estados Gerais.
Em 14 de julho de 1789, o povo invadiu e tomou a Bastilha,
considerada um símbolo do poder absoluto do rei. Em 26 de agosto
de 1789, a Assembleia Nacional Constituinte, formada pelo povo,
proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão -
utilizada até hoje na luta pelos direitos humanos - que entre outros
pontos declara ser direito dos homens a liberdade e a igualdade
perante a lei e a liberdade de pensamento e opinião.
No entanto, a revolução não parou por aí. Em 1791, foi proclamada
a primeira Constituição do período, que colocava fim aos privilégios
do clero e da nobreza, separava efetivamente o Estado da Igreja e
criava os três poderes (executivo, legislativo e judiciário).
A Constituição teve reação do Rei Luís XVI, que reuniu esforços
para reestabelecer a monarquia absoluta. Mesmo com sua fuga
e captura, a monarquia reagiu em 1792. A partir de contatos feitos
pelo rei, o exército austro-prussiano invadiu a França na tentativa de
retomar o poder e reestabelecer a monarquia absoluta. Além de ser
derrotado, Luís XVI viu os revolucionários franceses proclamarem a
República.
Nessa fase da revolução, o povo já estava dividido em girondinos -
alta burguesia - e jacobinos - pequena e média burguesia e proletariado
urbano. Quem governava era o líder jacobino Robespierre. Durante
seu governo, uma nova Constituição foi promulgada, assegurando o
direito ao voto, ao trabalho e à rebelião.
No entanto, Robespierre não agradava aos girondinos, os quais
o prenderam e o guilhotinaram em 1794. Com a ascensão da
alta burguesia ao poder, uma nova Constituição foi estabelecida,
garantindo o poder da burguesia e ampliando seus direitos políticos e

74 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


econômicos. Ela determinava a continuidade da República, que seria
controlada pelo Diretório, composto por cinco membros. O povo foi
gradualmente afastado das decisões políticas.
Com prestígio, Napoleão Bonaparte passa a participar do governo
com o objetivo de consolidar o governo burguês. No entanto, em
1799, Napoleão Bonaparte, em um golpe, dissolveu o Diretório e
estabeleceu um novo governo chamado Consulado. O golpe de
Bonaparte ficou conhecido como 18 Brumário e marcou o fim da
Revolução Francesa.

Pesquise mais
Karl Marx escreveu uma importante obra sobre os desdobramentos
da Revolução Francesa, na qual analisa o posicionamento das diversas
classes no interior da Convenção nacional. Para saber mais, leia O
Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte. Disponível em: <http://
www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_
action=&co_obra=2432>. Acesso em: 9 maio 2017.

Apesar do fim da Revolução Francesa ter sido um golpe, a


monarquia absolutista foi definitivamente enterrada na França e a
burguesia garantiu sua ascensão enquanto classe econômica e política.
A Revolução Francesa também mostrou ao mundo a importância das
declarações e constituições como documentos que regem um país,
estabelecem limites aos poderes e garantem direitos à população.
Por terem sido protagonizadas pela nascente burguesia, pela
necessidade de modificar o papel do Estado - especialmente a
Revolução Francesa - e de compor as bases para o desenvolvimento
de um novo modo de produção, essas revoluções são conhecidas
como Revoluções Burguesas. São consideradas revoluções
por alterarem o curso da história. Como diz Sadek (1989), elas
compreenderam que a questão social não era natural e inevitável,
que ela poderia ser modificada conforme os rumos que aconteciam
na história. Por isso, tais revoluções estavam “impregnadas pela ânsia
de libertar e de construir uma nova morada onde a liberdade possa
habitar” (SADEK, 1989, p. 215). No entanto, é importante ressaltar
que tais revoluções só alcançaram êxito porque também contaram
com outras camadas da sociedade, como o proletariado urbano, os
camponeses e os pobres.
Apesar da Revolução Americana não ser considerada uma

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 75


revolução burguesa nos termos aqui definidos, ela pode ser colocada
nessa lista por dois fatores: I) sua conclusão deu origem a uma
das principais nações capitalistas do mundo; II) sua Constituição
consolidou o conceito de Federalismo.
Além de terem mudado o rumo da história mundial, essas três
revoluções mostraram a importância da Constituição como Carta
Magna que orienta um país e que rege tanto os direitos e os deveres
do povo quanto os dos governantes.
Exemplificando
A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988
estabelece os direitos e os deveres do Estado, dos governantes e do
povo, divide o Brasil em três poderes e estabelece a base do nosso
Federalismo. O título III da Constituição trata da Organização do Estado
e diz o que compete a cada um dos entes da Federação - União, Estados
e municípios. Por exemplo, à União cabe a relação com os Estados
estrangeiros assegurar a defesa nacional e declarar guerra ou paz. Já
aos Estados cabe pouquíssima coisa, pois eles não podem legislar sobre
nada que já não esteja em âmbito federal. Por fim, aos municípios cabe
maior autonomia, incluindo ordenamento e reordenamento municipal e
instituição de tributos de sua competência.

O Federalismo brasileiro atribui várias funções ao Estado Federal


(União) e aos municípios e pouquíssimas aos Estados, como entes
federados. Diferente do modelo americano, no qual os estados têm
mais autonomia que os municípios no tocante à legislação, questões
territoriais e definição de tributos.

Para saber mais, veja a Constituição Federal Brasileira. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 20 jun. 2017.

Agora que você já sabe o que é o Federalismo e qual é o papel


da Constituição em um país, você pode ajudar Paula a resolver suas
questões. Vamos lá?
Assimile
Constitucionalismo: pode ser tanto a doutrina que defende a importância
da Constituição quanto forma para reger um país como a própria
Constituição. Em termos gerais, é possível defini-lo como um conjunto
de regras e princípios constituídos de forma racional e consensual com

76 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


o objetivo de organizar o Estado, estabelecendo os limites ao poder
político e os direitos e os deveres do governante e da população (a
Sociedade Civil).

Federalismo: forma de organização do Estado no qual os entes


federados têm autonomia política, administrativa, tributária e financeira
para atuarem em equilíbrio e segundo as regras do Estado Federal.
Apesar de terem autonomia, há atribuições que competem apenas ao
Estado Federal.

Revolução Burguesa: são movimentos de mudança protagonizados


pela burguesia com o objetivo de estabelecer ou ampliar o poder
político e econômico da burguesia e criar as bases para a expansão do
modo de produção capitalista.

Sem medo de errar


Ao longo desta seção, você conheceu melhor as Revoluções
Burguesas e a importância que elas tiveram para sedimentar a
Constituição como documento que regulamenta a vida dos homens
e impõe limite à atuação dos governantes. Você também viu que o
Federalismo pode ser uma forma de organização do Estado e que a
Constituição é que deve estabelecer os critérios e a autonomia de um
Estado Federal.
O Brasil é um país federativo. Organizado em União, Estados e
municípios, cada um dos entes federados tem responsabilidades,
autonomia e limites nas relações entre si. Como um país federativo,
algumas políticas públicas são descentralizadas, ou seja, têm origem
na União, mas são geridas por Estados e municípios, de forma
autônoma. Essa descentralização é garantida pela Constituição
Federal de 1988.
De onde vem esta tradição de criar uma lei geral que determina
os pilares de um país, os direitos e as obrigações dos governantes?
Vimos que a primeira destas experiências, mais parecida com o que
temos hoje, veio da Inglaterra, através da Bill of Rights. Também a
Independência e a Constituição Americanas foram importantes para a
criação deste tipo de ordenamento legal. E a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, forjada durante a Revolução Francesa, fecha

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 77


as três principais experiências históricas que mais nos influenciaram
quanto ao Federalismo e ao Constitucionalismo. Retome o Não pode
faltar e relembre a importância destes fatos na construção do Estado
Contemporâneo. Com certeza estas ideias nos influenciaram a tal
ponto de interferir até em políticas setoriais específicas, como o SUS,
que determina responsabilidades diferentes e compartilhadas para
cada nível de governo com relação à saúde pública brasileira.

Faça valer a pena


1. “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil
compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, todos
autônomos, nos termos desta Constituição” (Art. 18, Título III, Capítulo I,
Constituição Federal do Brasil).
No Federalismo, a garantia da autonomia dos entes federados é atribuída:
I – Pela Constituição.
II – Por portarias ministeriais.
III – Por leis municipais.
IV – Pelo pacto federativo.
Qual alternativa aponta as afirmações corretas?
a) Apenas a IV. d) Apenas a I.
b) Apenas a III. e) I e III.
c) II e IV.

2. “As revoluções ‘são os únicos eventos políticos que nos confrontam,


direta e inevitavelmente, com o problema do começo’ (ARENDT, 1988, p.
17). Elas não são simples mudanças. São um feito sem precedentes, sem
paralelo, uma ruptura que caracteriza a Idade Moderna” (SADEK, 1989, p.
214).
Considere as lacunas no texto a seguir:
As Revoluções Burguesas foram revoluções que mudaram o rumo da
história mundial. Sua importância está no protagonismo da nascente
_________ e na implantação do modo de produção ________.
A alternativa que contém os termos que completam corretamente as
lacunas é:
a) Nobreza, feudal. d) Nobreza, capitalista.
b) Burguesia, capitalista. e) Nobreza, antigo.
c) Burguesia, feudal.

78 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


3. As Revoluções Burguesas mostraram a força da burguesia na implantação
de um novo governo e fortaleceram a importância da Constituição como
documento que regulamenta as atividades do Estado e do povo. Cada uma
das Revoluções Burguesas - Revolução Gloriosa, Revolução Americana e
Revolução Francesa - teve após ou durante seu processo, a promulgação
de uma Constituição ou um documento que regulasse as atividades do
Estado, limitasse o poder dos governantes e estabelecesse os direitos dos
cidadãos.
Qual é o documento resultante da Revolução Gloriosa?
a) Declaração de Independência.
b) Magna Carta.
c) Constituição dos Estados Unidos da América.
d) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
e) Declaração dos Direitos ou Bill of Rights.

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 79


Seção 2.3
Visões sobre o Estado
Diálogo aberto

As seções anteriores desta unidade mostraram quais são os


fundamentos do Estado e as formas como ele se sustenta na atualidade,
como um organismo que tem regras, mas que é constituído pelos
homens e com a participação da Sociedade Civil. No entanto, essa
participação é vista por alguns como forma de domínio de classes e,
por outro, como exercício pleno da liberdade. Essas visões de Estado
influenciam os governantes e os levam a tomar decisões em função
da visão sobre a quem ou a que o Estado deve servir.
Um exemplo interessante foi a constituição da Política Nacional
de Participação Social (PNPS). O Decreto nº 8.243, de 23 de maio de
2014, indica que a PNPS foi constituída com o objetivo de “fortalecer
e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a
atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade
civil” (Art. 1º do decreto). À época de sua votação, algumas pessoas
viram a instituição da PNPS como uma oportunidade de ampliar a
participação da Sociedade Civil nas decisões do Estado sobre as
políticas públicas, enquanto outros viram isso como uma afronta à
liberdade do Estado no processo decisório e das organizações da
sociedade civil em seu cotidiano. Alguns diziam que não implantar a
PNPS era deixar o Estado livre para agir, o que poderia acarretar em
desmantelamento de políticas públicas, caso um governo opte pela
redução da máquina pública, outros diziam que implantar a PNPS era
quase como chegar ao Comunismo e transformar o Estado em um
grande comitê do povo.
João foi uma das pessoas que defendeu a não aprovação da
Política Nacional de Participação Social. Ele acreditava que não
era preciso uma política para regular a participação das pessoas
no processo decisório das políticas públicas. Para ele, as pessoas
comuns, membros da sociedade civil, não deviam participar do
processo decisório, visto que já delegamos aos políticos os nossos
representantes, as decisões no âmbito do Estado. Além disso, João
também considerava que o Estado não deveria trabalhar na promoção

80 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


de políticas públicas. A Sociedade Civil, para João, deveria prover as
políticas públicas, em especial, as sociais. No entanto, com o debate
apresentado no período em que o decreto esteve no Congresso,
João começou a questionar-se e procurou entender melhor o que
significava aquela disputa de narrativas. Afinal, o que estava em jogo
eram diferentes visões sobre o Estado. E quais visões eram essas e
por que elas estavam em jogo naquele momento? Para ajudar João
a compreender que existem diferentes visões de Estado, vamos lê-
las, discuti-las e saber como elas influenciaram a formação do Estado
brasileiro.

Não pode faltar


Nas seções anteriores, você viu as bases que constituem o Estado
e os instrumentos utilizados pelos governos para manter a unidade do
Estado, como o Federalismo e a Constituição.
A formação do Estado, tal como proposta pelos contratualistas, tem
por objetivo a garantia dos direitos naturais, como a vida, a liberdade
e a propriedade. Para John Locke, a propriedade, seja dos bens ou da
vida, deve ser assegurada pelo Estado. No entanto, o desenvolvimento
do capitalismo traz com ele a desigualdade nas relações sociais, em
função das diferenças nas formas de propriedade. O crescimento
da propriedade privada e sua distribuição desigual constituem uma
sociedade formada em classes, na qual uma tem mais privilégios, em
função da posse da propriedade, do que outras.
As revoluções burguesas, que você viu na última seção, tiveram
por objetivo ampliar o poder econômico dessa classe nascente, que
tem mais propriedades e privilégios, e também seu poder político.
Entre as finalidades das revoluções burguesas estava a restrição ou
a extinção do poder real, que representava o poder de uma classe
cujo poder econômico se esvaía, e a assunção ao poder político da
nova classe economicamente dominante, a burguesia. A Revolução
Francesa é o melhor exemplo.
No entanto, o domínio do poder político pela burguesia trouxe
diversas formas de ver o Estado, de entender seu papel e de pensar
o projeto de sociedade que o Estado almejava Entre essas visões,
destacam-se a visão liberal e a marxista. O Liberalismo procurou
consolidar as relações do Capitalismo e encontrou em vários filósofos
e economistas ressonâncias para suas ideias. Entre os principais,

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 81


podemos destacar o próprio John Locke, que você conheceu na
Seção 2.1, John Stuart Mill (1806-1873) e Adam Smith (1723-1790). Já a
visão marxista ou o Marxismo surgiu como resposta aos desequilíbrios
provocados pelo Capitalismo, entre os quais o avanço da pobreza e
da desigualdade social. Seu principal nome foi Karl Marx (1818-1883).
Além de pensarem as questões referentes à ordem social, esses
pensadores também refletiram sobre a ordem política e o papel do
Estado na consolidação de um projeto de sociedade, constituindo uma
visão sobre como Estado e Sociedade Civil devem se relacionar, legando
aos futuros governantes caminhos para sua gestão. Vamos conhecer?
Segundo o Dicionário Houaiss (s.d.), liberalismo é a:

doutrina cujas origens remontam ao pensamento de


Locke (1632-1704), baseada na defesa intransigente
da liberdade individual, nos campos econômico,
político, religioso e intelectual, contra ingerências
excessivas e atitudes coercitivas do poder estatal

Pela definição do dicionário Houaiss, o Estado aparece como um


ente contra o qual se precisa lutar em função de ações que impõe aos
cidadãos determinadas condutas. Não deveria o Estado conduzir os
cidadãos? Por quais motivos não pode o Estado ser o orientador das
condutas de seus cidadãos ou mesmo de agir de maneira mais autoritária
ou coercitiva? Para respondermos essas questões, vamos voltar a Locke.
Para John Locke, o Estado é constituído para garantir os direitos
naturais, entre os quais a liberdade e a propriedade. A propriedade
de bens ou da vida para Locke são direitos naturais individuais. O
Estado proposto pelo pensador visa garantir a liberdade individual,
podendo ser considerado um Estado que promove, reconhece e
garante a atribuição dos direitos fundamentais ou naturais, como
a vida, a propriedade e a liberdade, seja essa de pensamento, de
propriedade, de religião, de reunião, entre outras (OPPENHEIM, 1998;
BOBBIO, 1998). Todos esses direitos são considerados do indivíduo e
não necessariamente da coletividade. A isso se soma a ideia de que o
Estado, nessa acepção, garante aos homens a liberdade econômica,
da livre concorrência e do livre mercado.
Associado à democracia como forma de governo, o Liberalismo
garante aos indivíduos o exercício de seus direitos por meio da

82 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


participação política, que se efetiva pelo sufrágio universal e pela
representação política, no entanto, assegura também que o Estado
liberal terá limitações em seu poder, conforme estabelecido nas
cartas magnas (constituição), permitindo que a Sociedade Civil possa
agir conforme os preceitos da liberdade.
Dessa forma, dentro da concepção liberal, há limites à regulação
do mercado, por exemplo. É consenso que a ideia de Estado mínimo,
comum nos países ocidentais após a década de 1980, e até a década
de 1930, que corresponde à ausência do Estado na regulação do
mercado e na intervenção na economia, entre outros fatores, é um
exemplo de Estado liberal.
Exemplificando
A partir de 1930, o governo brasileiro investiu fortemente na produção,
com a implantação das chamadas indústrias de base, como a Companhia
Siderúrgica Nacional. Além disso, ficaram sob a gestão estatal o
fornecimento de água e luz e o sistema de telecomunicações. A partir
de 1990, vários desses serviços e dessas indústrias foram vendidos ou
concedidos para exploração da iniciativa privada. Um dos argumentos para
esse processo, que levou o nome de desestatização, foi a necessidade de
reduzir as funções do Estado, deixando a iniciativa privada livre para atuar.

Em oposição a essa visão de Estado, podemos recuperar a proposta


marxista. Surgida no século XIX, ela em primeiro lugar, considera
o Estado liberal como órgão que defende e promove os direitos
de uma única classe social, a burguesia. Para Karl Marx e Friedrich
Engels, parceiro estimado de Marx em suas pesquisas e reflexões,
no clássico Manifesto do Partido Comunista, “um governo moderno
é tão somente um comitê que administra os negócios comuns de
toda a classe burguesa” (MARX; ENGELS, 2001, p. 27). Friedrich Engels
fortalece essa ideia em sua obra A origem da família, da propriedade
privada e do Estado.

Como o Estado nasceu da necessidade de conter o


antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo,
nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o
Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente
dominante, classe que, por intermédio dele, se converte
também em classe politicamente dominante e adquire
novos meios para a repressão e exploração da classe

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 83


oprimida. Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos
senhores de escravos para manter os escravos subjugados;
o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para
manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes;
e o moderno Estado representativo é o instrumento de
que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado.
(ENGELS, 1984, p. 193-194)

Assim, fazendo crítica à doutrina liberal que vê a liberdade dada


aos indivíduos como fundamento do exercício dos seus direitos, o
Estado na visão marxista, diferentemente, centraliza a economia, a
política e as regras sociais. Em Manifesto do Partido Comunista, Marx
e Engels propõem várias formas de suprimir o Estado burguês liberal,
que variam desde o confisco das terras e sua gestão pelo Estado até
a educação pública e gratuita. Apesar da proposta de Estado em Marx
e Engels estar relacionada com a gestão estatal da produção, ela
também apresenta soluções para reduzir a pobreza e a desigualdade
social, com a universalização dos direitos sociais, como saúde,
educação e habitação. É possível perceber os princípios marxistas no
Estado Keynesiano ou Estado de Bem-Estar Social, que ampliou os
direitos sociais financiados pelo Estado para o conjunto da população
e regulou a economia.
Reflita
O liberalismo apresentou-se como uma ideologia que visa a concorrência
e a liberdade, no entanto, em nome delas, mantém a desigualdade. A
constituição dos Estados de Bem-Estar e da geração dos direitos sociais,
tratada por Marshall, em Cidadania, Classe Social e Status, procurou reduzir
as desigualdades, ampliando o papel do Estado na promoção da saúde, da
educação e dos direitos básicos a todos aqueles que vivem em sociedade.
Alguns chamam essa ampliação de Comunismo ou mesmo consideram
o Estado paternalista ou assistencialista. No entanto, o que seria dos mais
pobres sem os direitos sociais? Como pessoas que têm salários baixos
conseguiriam ter acesso à saúde e à educação se estas fossem apenas
pagas? Responda às perguntas e pense sobre os limites da visão marxista e
da visão liberal de Estado.

Atualmente, em diversos países, ainda há disputas das duas visões,


as quais têm se integrado e disputado espaço nos governos das
nações ocidentais. A elas são agregadas formas de atuar internamente

84 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


no Estado. As principais ficaram conhecidas como via americanista
ou via ibérica.
O americanismo, como sugere a palavra, baseia-se na cultura
política que se desenvolveu a partir da independência norte-americana.
Essa cultura política se desenvolveu pelo cultivo da racionalidade e do
individualismo nas relações entre cidadãos e Estado. A esfera pública
e privada da vida são, nessa cultura surgida da ruptura com o domínio
colonial inglês, distintas e se interpenetram pouco. Além disso, a ação
dos agentes no Estado é do tipo racional com relação a fins, como diz
Weber (2001), ou seja, sua ação é mais guiada pelo resultado racional
que pode obter do que por paixões, tradições ou afetos.
Nesse tipo de dominação, considerada típica ideal, ou seja, não
é encontrada em estado puro, o que governa a vida dos indivíduos
são as leis e os indivíduos legitimam o Estado e seu governante pela
crença na força do estatuto (WEBER, 2001). Dessa forma, cada um
se vê representado no estatuto, no caso, a Constituição, e vê nela
garantida suas liberdades e também a igualdade entre os homens.
No caso americano, conforme relatado por Tocqueville, em seu livro
A Democracia na América (2005), liberdade e igualdade caminham
juntas, ou ao menos deveriam caminhar.
Perante a Constituição e o Estado, na via americanista, todos os
cidadãos têm, em tese, os mesmos direitos e liberdades iguais. Por
isso, aliando a via americanista ao liberalismo, visões de meritocracia
são comuns em países cujas formações estão vinculadas a processos
de ruptura com as velhas amarras coloniais. É da força dessa ruptura
que surgem constituições que pretendem amparar a liberdade
econômica e política. Entretanto, no Capitalismo, isso é difícil, pois
os pontos de partida não são iguais, mas é possível dizer, diante das
questões levantadas pelo americanismo, que os homens podem
construir a si próprios, visto que suas liberdades estão garantidas. É a
ideologia norte-americana do self made man.
Quando falamos do Estado no americanismo, estamos dizendo
que esse ente é resultado de um processo de ruptura com o velho
estatuto colonial no qual a constituição é fundada com o intuito de
garantir uma nítida separação entre o velho sistema de dependência
e o novo mercado. Nesse novo Estado e mercado, cidadãos e Estado
exercerão diferentes papéis no desenvolvimento da sociedade. O
Estado atuará no sentido de garantir as liberdades civis, isto é, ir e vir.

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 85


Isso, claro, não quer dizer que todas as desigualdades e os defeitos do
sistema são suprimidos; muito pelo contrário, é esse pacto político que
estabelece os padrões da livre concorrência e de uma sociedade civil.
No americanismo, a noção de sociedade depende antes da noção
de indivíduo. É tarefa primeiro do 'eu', isso é, de um indivíduo buscar
a maximização dos resultados e, para isto deverá concorrer com um
outro seu concidadão. Essa maneira de viver a sociedade e a política
está intimamente relacionada à religião cristã protestante, que prega
que cada indivíduo é responsável por si e pela busca da redenção.
Há, pois, uma diferença do tipo de cidadão que nascerá em países
católicos que podem confessar seus pecados. Para o protestante em
terras norte-americanas, ex-colono da Inglaterra, não há confissão
e, por isso, sua cultura será voltada ao trabalho como prática de se
afastar dos pecados.
Assim, no americanismo, isto é, na via americana de construção
do Estado Moderno, há uma íntima relação entre os valores
religiosos protestantes e a noção de indivíduo e de cidadania. A ética
predominante será aquela do trabalho, da concorrência, da disputa,
do contrato formal e não mais das formas comunitárias e tradicionais,
tais quais os favores, os laços afetivos e a barganha. Daí que a política
na via americanista desata os nós com o passado colonial e cria uma
sociedade de indivíduos que disputam interesses no mercado e no
Estado.

Pesquise mais
Para saber mais sobre a influência da religião protestante nos valores
do trabalho e na formação da sociedade norte-americana, leia A ética
protestante e o espírito do capitalismo.

Fonte: WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2. ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Essa cultura política é que dará bases ao modelo de Capitalismo


predominante a partir do século XIX. É essa via americanista que
torna o mercado mais robusto, que amplia o lucro dos capitalistas e
que naturaliza as desigualdades sociais, posto que o lugar de classe
ocupado por cada indivíduo será visto mais como resultado dos
seus esforços pessoais, do mérito, do que resultado das injustiças
vinculadas ao processo de acumulação do capital.

86 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


No Brasil, as relações entre Estado e sociedade civil funcionam
de maneira diferente. Não que não haja a ética do trabalho,
da concorrência e da disputa. No entanto, no Brasil, as formas
comunitárias e tradicionais são mais fortes.
É porque somos um país formado pela via ibérica. A via ibérica ou
iberismo traz uma relação diferente entre Estado e sociedade e entre
público e privado. No estado brasileiro, o que vigora é o tipo ideal de
ação tradicional e o tipo de dominação tradicional. Por mais que haja
um estatuto, uma Constituição que oriente as ações dos homens e
do Estado, a força das tradições é mais forte.
É só pensar nas famílias que se perpetuam na política brasileira,
seja pela tradição que possuem ou pela força do dinheiro, ou mesmo
o peso que as religiões têm nas decisões, mesmo sendo o Brasil um
Estado laico. Aqui, público e privado parecem uma coisa só. Faoro
(2004) chama isso de patrimonialismo, uma das características do
iberismo.
Essa relação advém da formação do nosso Estado e do processo
de independência do Brasil. O Brasil formou-se como colônia
portuguesa, considerada por Caio Prado (2011) como colônia de
exploração. O objetivo da colonização portuguesa no Brasil foi a
exploração das terras. A vinda da Família Real para o Brasil propiciou
o projeto de povoamento do país. No entanto, fez também com que
a nossa independência não se caracterizasse como ruptura, como
vimos no caso da Revolução Americana. A Independência do Brasil
foi proclamada pelo Príncipe Regente e a relação com Portugal não
foi rompida efetivamente. Mesmo com a Proclamação da República,
em 1889, as elites que governaram o Brasil no período colonial e
mesmo no Império, permaneceram no poder.
Essa ausência de ruptura, característica da via ibérica, faz com
que a relação entre público e privado seja quase indistinta. Como
nos mostra Sérgio Buarque de Holanda (2006), práticas como
compadrio são comuns não apenas na Sociedade Civil, mas também
nas relações com o Estado. O nepotismo - prática na qual os sujeitos
utilizam de suas relações de poder para empregar ou colocar em
cargos membros de sua família - é corrente em Estados no qual a via
ibérica é comum.
Por isso, no Brasil, país no qual a via ibérica aparece fortemente,
o pessoalismo dá o tom. Não somos Santos, Souza ou Silva. Somos

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 87


Carla, Rodrigo e Maria. A expressão “você sabe com que está
falando?” é comum por aqui. Segundo Roberto Damatta (1997),
ela marca a separação entre indivíduos - entendidos no plano da
igualdade - e pessoas - compreendidas no plano da desigualdade e
da hierarquia. No Brasil, as relações são entre pessoas e não entre
indivíduos. Aqui, utilizamos nossas posições sociais e cargos para
obter privilégios e vantagens, sejam eles públicos ou privados, afinal
ambos se interseccionam, se influenciam mutuamente. Às vezes, é
difícil diferenciar sobre quais esferas estamos tratando. Isso não se
restringe apenas à Sociedade Civil. É corrente também no Estado, que
pode ser considerado privatista e patrimonialista. Aqui é comum o
patrimônio do Estado ser usado para interesses privados. Eis aqui um
legado do iberismo.
Pesquise mais
Para saber mais sobre as diferenças entre indivíduo e pessoa e como
essas questões são vistas pelo brasileiro, assista ao Programa Roda Viva,
com o sociólogo e cientista político Antônio Carlos Almeida, sobre a
pesquisa A Cabeça do Brasileiro. Disponível em: <https://youtu.be/
dsSy4fEVKTI>. Acesso em: 5 jun. 2017.

No iberismo, por conta das tradições e da presença dos privilégios,


a Revolução Burguesa é inexistente, ou melhor, ela acontece pelo
alto. Como vimos anteriormente, as revoluções burguesas são
marcadas por ampla participação da população e têm a burguesia
como classe protagonista. Todas elas, em especial a Revolução
Americana e a Revolução Francesa, contaram com a participação
popular e suplantaram o poder do rei e da nobreza, das aristocracias
e do clero em favor de um poder das classes sociais, no qual as ações
racionais-legais se tornem maiores que as ações tradicionais.
Nas revoluções pelo alto, ou como diria Gramsci (2002), na
revolução passiva, as classes sociais, em especial a burguesia, tomam
o poder. Elas não fazem isso por meio da união das classes ou mesmo
por meio da batalha, elas “assaltam” o poder, seja por Golpe de Estado
ou por uma Revolução que não envolve a aliança de classes e se
constitui como um acordo entre as elites, ou seja, a ruptura pode
efetivamente não acontecer, como são os casos da Independência e
da Proclamação da República no Brasil. Em ambos os casos, a elite do
Estado realizou as mudanças, sem efetivamente mudar os atores que

88 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


governariam. Esse tipo de revolução ou melhor de modernização
conservadora é comum em países de via ibérica.
Agora que você já viu as visões marxista e liberal de Estado e
também conheceu as vias americanista e ibérica, podemos voltar às
questões de João.
Assimile
Dominação racional-legal: tipo de dominação baseada na força do
Estatuto, das leis. A legitimidade desse tipo de dominação é dada pela
legitimidade legal do governante. É o tipo ideal de dominação das
sociedades democráticas.

Dominação tradicional: tipo de dominação fundamentada na força da


tradição. A legitimidade do governante é fundada no seu poder perante
a tradição.

Sem medo de errar


A situação-problema desta seção fala da disputa de narrativas em
torno da Política Nacional de Participação Social - PNPS.
No fundo, este debate reflete duas visões de Estado e de mundo,
em disputa há muito tempo, como vimos no “Não pode faltar”. Desde
a visão liberal do Estado, na qual os homens são livres e iguais e o
Estado deve preservar isso, sem regular a vida e as ações dos homens,
apenas criando um ambiente favorável ao seu crescimento; a visão
marxista, que considera que o Estado deve interferir fortemente na
economia, conduzindo-a e permitindo que o povo tenha acesso a
boas condições de vida, proporcionadas pelo Estado.
Parte dos Estados procura equilibrar essas duas visões, no entanto,
em alguns países, a visão liberal tem-se mostrado mais forte, como é o
caso do Brasil. Após a década de 1990 e a assunção de Fernando Collor
de Mello ao poder, a visão liberal de Estado foi ganhando mais corpo.
Um projeto de privatizações de empresas estatais foi encampado e
levado adiante, assim como foi realizada uma abertura econômica,
que possibilitou maior participação das empresas privadas em áreas
como a Saúde e a Educação. Já durante os governos de Fernando
Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, a visão liberal ganhou mais
força, com a continuidade dos projetos de privatização e ampliação
da participação do capital privado - incluindo capital estrangeiro -

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 89


na economia. Os governos de Luís Inácio Lula da Silva, após 2003,
procuraram equilibrar essas visões, voltando a economia para
âmbito nacional, com incentivos fiscais ao capital privado nacional,
e a criação de programas sociais, como Bolsa Família e ProUni, cujo
principal objetivo é reduzir as desigualdades sociais. No entanto,
quando falamos em equilíbrio, é porque os anos de Governo Lula
também permitiram que o capital financeiro tivesse grandes lucros,
ou seja, a redução das desigualdades não veio desacompanhada da
livre concorrência e dos ganhos do mercado.
Este debate também tem relação com as chamadas vias
americanista e ibérica, visto que a PNPS previa a participação das
organizações da sociedade civil de forma a reduzir a influência de
interesses privados na condução das políticas. No entanto, a presença
das organizações da sociedade civil em conselhos de políticas
públicas também era vista como uma apropriação do Estado por
determinados grupos.
Volte às visões do Estado e analise de que forma a proposta da
PNPS apresentada na situação-problema se encaixa em uma delas ou
mobiliza pontos das duas. Reflita novamente também como o debate
em torno da PNPS reflete uma disputa de narrativas em favor de cada
uma das visões de Estado.

Avançando na prática
O Brasil e a regulação do livre mercado
Descrição da situação-problema
Márcio é um analista de sistema que resolveu mudar de carreira.
Ele começou a fazer cursos para fabricação de cerveja artesanal e
com o dinheiro recebido da saída da empresa na qual trabalhava,
resolveu investir em uma pequena fábrica de cerveja artesanal.
Logo que começou a elaborar o projeto, Márcio viu que
seria preciso cumprir com um conjunto de requisitos: desde a
contratação de um químico responsável até a fiscalização em
torno do produto que será produzido e vendido.
Márcio considerou o setor de bebidas um setor bastante
regulado, mesmo para alguém que quer produzir em pequena
escala e de forma artesanal, levantando algumas questões: quais

90 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


os motivos para tamanha regulação? Em um Estado liberal, o
mercado não é livre para produzir e o Estado apenas estabelece
orientações básicas?
Vamos recordar alguns pontos da Seção para ajudar Márcio
com suas questões.

Resolução da situação-problema
Como vimos nesta seção, o Estado de tipo liberal caracteriza-se
pelo estímulo à individualidade e à livre concorrência, enquanto o
Estado de tipo marxista tem por fundamento a gestão dos meios
de produção e a socialização dos bens sociais.
No entanto, os tipos liberal e marxista de Estado não aparecem
em sua visão pura, ou, como é possível dizer, a realização desses
tipos na realidade requer a extrapolação do conceito puro.
No caso de Márcio, o Estado de tipo liberal permite a produção
de cerveja artesanal por qualquer pessoa, desde que ela cumpra
com alguns requisitos mínimos que visam garantir a qualidade
do produto. O Estado, nesse caso, não é produtor ou gestor dos
meios de produção, mas um ente que garante a livre concorrência
e a qualidade dos produtos e serviços entregues a população, o
que também é fundamental no Estado de tipo liberal.
A não regulação do mercado pode levar a problemas
econômicos sérios, como os vistos em 2008, na crise financeira
das hipotecas norte-americanas, que abalaram as estruturas do
mercado financeiro no mundo.
Dessa forma, mesmo em um Estado de tipo liberal, que
fomenta a competição, são estabelecidas normas e orientações
para que essa livre concorrência possa se dar de forma a não lesar
o próprio mercado, ou seja, o Estado de tipo liberal, a partir de
uma pequena regulação, garante que o mercado se desenvolva
de maneira saudável, permitindo aos produtores terem melhores
produtos e disputarem o mercado livremente.

Faça valer a pena


1. “Ela abrange, primeiro, o domínio íntimo da consciência, exigindo a
liberdade de consciência no mais compreensivo sentido, liberdade de

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 91


pensar e de sentir, liberdade absoluta de opinião e de sentimento sobre
quaisquer os assuntos práticos ou especulativos, científicos, morais ou
teológicos. [...] Em segundo lugar, o princípio requer a liberdade de dispor
o plano de nossa vida para seguirmos nosso próprio caráter, de agir
como preferirmos, sujeitos às consequências que possam resultar; sem
impedimento da parte de nossos semelhantes, enquanto o que fazemos
os prejudica, ainda que considerem a nossa conduta louca, perversa ou
errada. Em terceiro lugar, dessa liberdade de cada indivíduo segue-se a
liberdade, dentro dos mesmos limites de associação entre os indivíduos,
liberdade de se unirem para qualquer propósito que não envolva dano,
suposto que as pessoas associadas sejam emancipadas e não tenham sido
constrangidas nem iludidas”.

Fonte: MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1991.
A citação acima fala do conceito de:
a) Iberismo.
b) Marxismo.
c) Liberalismo.
d) Americanismo.
e) Revolução Passiva.

2. “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e


sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado
onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis
restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados
Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou
bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a
igual proteção das leis” (Décima Quarta Emenda. Constituição dos Estados
Unidos da América).
A Décima Quarta Emenda da Constituição norte-americana busca garantir:
a) Privilégios.
b) Liberdade.
c) Vantagens.
d) Hierarquização.
e) Igualdade.

3. “No Brasil nunca houve, de fato, uma revolução, e, no entanto, a propósito


de tudo fala-se dela, como se a sua simples invocação viesse a emprestar
animação a processos que seriam melhor designados de modo mais
corriqueiro. Sobretudo, aqui, qualificam-se como revolução movimentos
políticos que somente encontraram a sua razão de ser na firme intenção
de evitá-la, e assim se fala em Revolução da Independência, Revolução

92 U2 - Ciência Política e Estado Moderno


de 1930, Revolução de 1964, todos acostumados a uma linguagem de
paradoxos em que a conservação, para bem cumprir o seu papel, necessita
reivindicar o que deveria consistir no seu contrário, a revolução.

Fonte: VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e descaminhos da revolução


passiva à brasileira. Dados, Rio de Janeiro, 1996, v. 39, n. 3, s.p.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0011-52581996000300004>. Acesso em: 28 jun. 2017.
É comum em países que adotaram a via __________, a ausência de
_________ com a velha ordem. Nesses países, o tipo de revolução
ocorrido pode ser chamado de Revolução _________.
a) Ibérica, rupturas, passiva.
b) Americanista, rupturas, burguesa.
c) Americanista, rupturas, passiva.
d) Ibérica, continuidade, passiva.
e) Ibérica, continuidade, burguesa.

U2 - Ciência Política e Estado Moderno 93


Referências
ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: Ática, 1988.
BOBBIO, Norberto. Democracia. In: BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
BRASIL. Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014. Institui a Política Nacional de
Participação Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social - SNPS, e dá outras
providências. Diário Oficial [da União], Poder Executivo, 26 maio 2014, p. 6. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/decreto/d8243.htm>.
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U2 - Ciência Política e Estado Moderno 95


Unidade 3

Formas e exercício do poder

Convite ao estudo
Deixar-se governar é algo inerente ao princípio de
organização política dos povos. Desde os tempos das antigas
civilizações, cuja cultura deu base à formação dos valores que
regem o mundo ocidental, pode-se encontrar uma divisão
clara entre aqueles que mandam e exercem o poder - os
governantes - e aqueles que seguem as leis criadas pelos que
governam - os governados. Se hoje falamos em cidadãos
e representantes, já houve um tempo (como aquele em que
tratamos na primeira unidade) em que se falava em soberanos
e súditos. Essa mudança, operada ao longo dos séculos nas
formas de dominação, poder e autoridade, foi observada por
muitos autores e, atualmente, é possível estudá-las não só no
seu aspecto histórico, mas também no teórico: por que nos
deixamos governar? Quais são as características daqueles que
exercem o poder? Como evoluímos de formas tradicionais
de dominação para formas mais modernas, compatíveis com
o que chamamos de cidadania? As formas e os sistemas
políticos, sob os quais vivemos hoje, guardam relações com o
passado? A partir do contexto apresentado, refletiremos, nesta
unidade, sobre as formas de dominação, poder e autoridade,
a contribuição da crítica marxista para reflexão do problema,
bem como as formas de governo, a divisão dos poderes e os
sistemas políticos atuais.
Seção 3.1
Formas de dominação, poder e autoridade
Diálogo aberto

Gaspar é um entusiasta dos livros de história. Ele adora as passagens


que descrevem os grandes acontecimentos políticos e, sobretudo,
os grandes líderes políticos. Em meio as suas leituras, ele sempre se
questiona como Napoleão conseguiu reunir um imenso exército de
franceses para lutar por seus propósitos. Por que foi Napoleão que
liderou o período pós-revolucionário daquele país e não qualquer
outro francês?
Outro dia, Gaspar se fez a mesma pergunta sobre Hitler. Como um
homem com ideias tão perigosas conseguiu liderar um país inteiro, a
Alemanha, atraindo todo o mundo para a Segunda Grande Guerra?
Quando lê sobre a história do Brasil, Gaspar fica se perguntado
como Getúlio Vargas conseguiu iniciar as transformações que
modernizaram o Brasil?
Na verdade, perguntas como a de Gaspar foram feitas por
importantes autores da Filosofia e das Ciências Sociais, que nos
deixaram importantes explicações sobre como o ser humano exerce
o poder e a autoridade sobre outrem.
Nesse contexto, veremos as ideias desses autores na tentativa de
encontrar respostas às indagações de Gaspar.

Não pode faltar


Uma maneira de responder às indagações de Gaspar – que,
diga-se de passagem, são perguntas que nós mesmos fizemos em
algum momento de nossas vidas - é recorrer a diversos autores da
filosofia e do pensamento político moderno e contemporâneo, pois
muitos deles se ocuparam de pensar como e por quê os homens e
as mulheres se deixam dominar, bem como o que é o poder e como
este legitima a ação de um indivíduo sobre outros.
No entanto, antes de recorrermos a alguns autores, para que
nos ajude a responder às questões de Gaspar, devemos nos voltar
ao significado da palavra poder. Afinal, o que é poder e como ele é

98 U3 -Formas e exercício do poder


constituído?
Para buscar o significado de uma palavra, como “poder” - que
aqui ganha ares de conceito -, o primeiro passo é recorrermos ao
dicionário. Segundo o Dicionário Houaiss, da Língua Portuguesa
(2009, p. 1513), poder significa:

Ter a faculdade ou a possibilidade de [...] ter influência;


ter autorização para; ser capaz de; estar em condições
de; ter força, vontade ou energia moral para; direito
ou capacidade de decidir, agir e ter voz de mando;
autoridade; supremacia em dirigir e governar as ações
de outrem pela imposição de obediência; domínio;
influência.

Na verdade, o texto, o verberte do dicionário que procura definir


a palavra poder, ocupa quase a página toda, o que mostra que essa
palavra, esse conceito, não é de fácil definição. O poder é algo difícil
de definir e, talvez, por isso mesmo, ele possa ser usado - como de
fato é - de diversas formas e em muitos sentidos.
Assim, para buscarmos uma definição um pouco mais precisa na
direção que aqui nos interessa, a da política, aceitaremos que na vida
social o poder significa duas coisas bem específicas: a) a capacidade
de agir em uma determinada direção, seguindo certos interesses
e objetivos, e b) a capacidade de um agente social determinar o
comportamento e a atitude de outro agente social. Dessa forma no
primeiro caso, temos a concepção de fazer o que se pretende fazer
e, no segundo, desprende-se a ideia de fazer que o outro faça aquilo
que você quer que ele faça e como você quer isso.
Desse modo, poder, em política, é a capacidade de agir no sentido
de orientar e/ou determinar a ação de outrem. A isso denominamos
dominação. Domina quem tem poder e este, por isso mesmo, é o
que dá sentido à dominação.
Na prática,

o homem não é só sujeito, mas também o objeto do


poder social. É poder social a capacidade que um pai
tem para dar ordem a seus filhos ou a capacidade de
um Governo de dar ordem aos seus cidadãos. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 2010, p. 933)

U3 - Formas e exercício do poder 99


Assimile
Como você pode perceber, o conceito de poder é polissêmico, isto
é, pode ser compreendido de diversas formas. Em todo caso, é bom
não se esquecer de que, quando a palavra “poder” é utilizada na política,
estamos falando do poder de um sobre os outros de dominação e de
autoridade.

Seguindo o que diz a citação anterior, o que tem um pai sobre


o filho se não poder, isso é autoridade? Do mesmo modo, o que o
Governo exerce ao dar ordem aos seus cidadãos se não dominação?
O poder é a fonte da autoridade e da dominação. Só está autorizado
a mandar e dominar aquele que detém poder.
Até aqui esclarecemos o que é o poder, mas ainda fica a questão:
o que faz que um indivíduo, um agente social, obedeça a outro? No
mesmo sentido, qual é a fonte e de onde vem o poder utilizado por
aquele que exerce autoridade e domina?
Para responder a essas indagações - que são as mesmas de Gaspar
- vamos recorrer às ideias de Etienne de La Boétie, autor francês que
viveu entre a primeira e a segunda metade do século XVI, escritor do
ensaio Discurso da servidão voluntária.
Nesse texto, La Boétie propõe uma reflexão que poderíamos
resumir em uma pergunta: afinal, por que muitos homens e mulheres
(a sociedade) se deixam dominar por apenas um indivíduo (o
governante)? Para o autor, aquele que domina um coletivo humano
será sempre um Tirano. Vejamos em suas palavras:

No momento, gostaria apenas que me fizessem


compreender como é possível que tantos homens,
tantas cidades, tantas nações às vezes suportem tudo de
um Tirano só, que tem apenas o poderio que lhe dão,
que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto
aceitam suportá-lo, e que não poderia fazer-lhes mal
algum se não preferissem, a contradizê-lo, suportar tudo
dele. Coisa realmente surpreendente (e, no entanto, tão
comum que se deve mais gemer por ela que surpreender-
se) é ver milhões e milhões de homens miseravelmente
subjugados e, de cabeça baixa; submissos a um julgo
deplorável; não que a ele sejam obrigados por força

100 U3 -Formas e exercício do poder


maior, mas porque são fascinados e, por assim dizer,
enfeitiçados apenas pelo nome de um que não deveriam
temer, pois ele é só [...]. (LA BOÉTIE, 1999, p. 74)

La Boétie denominou esse fenômeno em que um único indivíduo


(o governante) se torna capaz de dominar um conjunto de indivíduos
(os governados ou súditos) de "servidão voluntária"; depreende-se,
pois, que muitos se deixam ser governados por um voluntariamente,
muitas vezes, sem ao menos questionar o porquê dessa relação de
dominação. Nesse sentido, a dominação pode ser compreendida
como algo quase inconsciente, muito embora seja real, concreta e
cotidiana.
Figura 3.1 | O filósofo francês Étienne de La Boétie (1530-1563)

Fonte: <https://goo.gl/Hu6c86>. Acesso em: 31 jul. 2017.

Segundo o autor, são três as fontes dessa "dominação voluntária",


ou seja, são três as fontes do poder entre os homens. Vejamos:
1) O costume: os homens se deixam dominar porque são educados
a serem dominados. De geração em geração, nos é transmitida a
ideia de que um único homem deve ser responsável pela condução
da vida coletiva. A educação, transmitida de pai para filho, perpetua
e "naturaliza" as relações de dominação. De certo modo, podemos
argumentar que está implícita a ideia de que a humanidade desconfia
do pacto coletivo se nele não estiver contida a ideia de que alguém
deve ser responsável pelo destino comum. Para o autor, nascemos
em sociedade e nela sempre houve aquele que comanda e aqueles
que são comandados. Podemos argumentar, também, por meio
das ideias do autor, que há um princípio coletivo que fundamenta a
dominação entre os homens.

U3 - Formas e exercício do poder 101


2) O encantamento: os homens se deixam encantar pelos que
dominam. Isso ocorre porque há sempre uma distância, por maior
ou menor que seja, entre o dominante e os dominados. Utilizando-
se dessa distância, os governantes jogam com o poder para se fazer
temer, para persuadir, convencer e usar os governados. Isso explica
porque na dominação deve haver persuasão por parte do governante,
mesmo que, para isso, ele utilize de ardil, carisma e/ou força. Assim,
além do princípio coletivo da dominação, há um fundamento subjetivo
da autoridade. Deixamo-nos governar porque somos “encantados”
pelas palavras do líder, por seus atos e por sua expressão.
3) A estrutura da dominação: segundo La Boétie (1999), há uma
rede de dominação que faz que do topo à base da pirâmide todos
se deixem governar. Em volta do tirano, do governante, há sempre
uma dezena de fiéis seguidores - seus ministros, secretários, agentes
diretos. Estes, por sua vez, por estarem bem próximos ao tirano, têm
poder para, sobre seus domínios, ter um outro conjunto de dezenas
e dezenas de indivíduos fiéis.
Assim, esses últimos, por estarem próximos daqueles que são
próximos do governante, também se sentem poderosos e, por isso,
têm também sobre seu domínio, outras dezenas de dominados, e
assim por diante. Esse jogo piramidal “distribui” o poder e gera uma
rede, uma estrutura de dominação que leva os homens, de dezenas
a milhões, a se atarem no centro da trama representada por um, o
governante. Assim, quanto mais próximos do centro estiverem os
indivíduos, mais poder têm, e quanto mais distantes, menos poder
possuem. De todo modo, pode-se argumentar que, na trama que
leva à dominação voluntária, todos têm alguma parcela de poder.
Os três elementos propostos por La Boétie, como fundamentos
do poder, podem, no entanto, ser desconstruídos. Repare que no
argumento do autor, para que o dominante domine, deve haver uma
rede, uma estrutura de dominação que gera a crença e o costume.
Assim, podemos argumentar que se a rede se quebra em algum
ponto, se os dominados deixam de estar confiantes, encantados pelo
dominante, não passarão à frente a ideia de que aquele governante
continuará governando.
Dito isso, dependerá dos muitos dominados deixarem de servir
voluntariamente na rede de dominação, para que o governante perca
a legitimidade de sua autoridade. Na inter-relação entre o costume,

102 U3 -Formas e exercício do poder


a crença e a estrutura do poder, não pode haver desconfiança ou
descontentamento por parte dos súditos, dos dominados. Daí que
o governante é, de certo modo, tão refém de seu próprio poder e
autoridade quanto os governados.
Será a fonte da autoridade o bom uso do poder pelo governante?
La Boétie, em sua obra Discurso da servidão voluntária, afirma que a
democracia não era um regime comum a muitos países, mas parece
que seus argumentos são válidos para pensarmos sobre a política na
atualidade; afinal, nas democracias contemporâneas, governantes que
não fazem bom uso do poder recebem rapidamente a desconfiança -
para não dizer aversão - dos cidadãos.
A visão de La Boétie não é a única que nos interessa para responder
às questões sobre o poder, às indagações de Gaspar e, nesse ponto,
às nossas perguntas. Outro filósofo francês, chamado Auguste Comte
(1798-1857), contribuiu com suas ideias para fundamentarmos a noção
de poder, autoridade e dominação para além do que discutimos até
aqui.
Segundo Comte (1978), os homens pesam e reagem à realidade
social de formas diferentes ao longo da história. Assim é, porque, no
passado, a legitimidade dos governantes podia ser explicada e aceita
pelo direito divino que esses pareciam possuir. A crença no poder
de um governante, nas sociedades antigas, provinha de um Estado
Teológico, no qual a fé era o centro da legitimidade.
Com o passar do tempo, nos séculos anteriores ao
desenvolvimento do Capitalismo (XVII e XVIII), os homens passaram a
desconfiar um pouco da ideia de que Deus era o centro do universo
e, por isso, desapegaram-se um pouco da legitimidade pela fé, dando
os primeiros passos rumo a uma indagação racional da natureza e
das formas de dominação. Nesse Estado Metafísico, os homens
passaram a organizar a representação e desataram os nós de uma
estrutura de poder vinculada apenas ao mundo espiritual, mas ainda
alimentavam crenças e não se desvencilharam por completo daqueles
“encantamentos” aos quais se referia La Boétie.
Com o desenvolvimento da atividade industrial e do Capitalismo
típico do século XIX (contexto no qual viveu Comte), o autor
vislumbrou a necessidade de os homens se voltarem à razão, à
técnica e à ciência como as verdadeiras fontes de poder. Nesse
ponto, deveriam mandar e governar, não que acreditamos pela fé ou

U3 - Formas e exercício do poder 103


pelos costumes que deva mandar, mas, por outro lado, deve mandar
e governar quem demonstra ter capacidade técnica e científica
para governar. O verdadeiro governante é aquele que conhece os
instrumentos capazes de gerar a ordem social, o desenvolvimento
industrial, tutelando os governados rumo ao final da história da
evolução humana. Este, o último estágio da relação de poder entre
os homens, estágio este fundamentado na ciência de governo, é o
Estado Positivo ou Científico.

[...] o poder deve pertencer aos cientistas, senhores


das decisões essenciais. Somente eles têm os meios -
em particular graças à sociologia, que é o saber sobre
a estática e a dinâmica sociais - de impor a felicidade
e a virtude pela ordem e pelo progresso. (CHÂTELET;
DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 2000, p. 121-122)

Comte é considerado um dos pais fundadores da Sociologia.


A concepção dessa ciência, para o autor, estava intimamente
relacionada à positivação do poder em uma dimensão técnica.
Assim, a Sociologia deveria ser a ciência típica dos governantes, pois,
por meio de sua aplicação, conseguiriam agir de forma científica,
administrando os problemas sociais e encaminhado a sociedade para
ordem e, consequentemente, para o progresso.
Assim, o Estado governado pelo sociólogo, cuja fonte de poder
baseava-se na técnica, deveria ser, para Comte, o indutor da vida
econômica e da organização social. Se o poder estava, baseado
na técnica, o governante não precisaria ser eleito; o que nos leva a
pensar que a teoria de Comte, embora possa parecer eficiente, nada
tinha de democrática.
Figura 3.2 | O filósofo francês Auguste Comte (1798-1857)

Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b3/Auguste_Comte.jpg>. Acesso em: 20 maio 2017.

104 U3 -Formas e exercício do poder


As ideias de Auguste Comte não venceram totalmente. A
maior parte das nações não escolhem ou se deixam dominar por
governantes apenas pela sua capacidade técnica de intervir na
correção de problemas econômicos e sociais, mas, em todo caso,
podemos argumentar que parte do legado das ideias positivistas do
autor acabaram por influenciar nossa maneira de ver o poder. Afinal,
esperamos sempre que os governantes conheçam tecnicamente as
questões relacionadas à realidade social que governarão.
Exemplificando
A ideia de Comte de que o Estado deve ser governado por técnicos
acompanhou o desenvolvimento das democracias modernas e,
atualmente, há diversas funções específicas nos governos que requerem
formação e conhecimento específico de seus ocupantes. Comte, na
verdade, achava que os sociólogos deveriam, pela natureza de sua
especialização, ser os governantes do futuro. Isso, de fato, não se realizou,
mas é curioso pensar que, no Brasil, temos um exemplo histórico da
relação dos sociólogos com a política, afinal, um de nossos presidentes -
Fernando Henrique Cardoso -, que ocupou o Poder Executivo Nacional
entre 1994 e 2002, é sociólogo de formação.

Para finalizarmos essa parte de nosso estudo, voltado à alguma


compreensão das ideias de Auguste Comte sobre o poder e a
dominação, vale uma citação de um texto do autor:

A sã política não poderia ter por objeto fazer caminhar


a espécie humana, que se move por impulso próprio,
segundo uma lei tão necessária quanto a da gravitação,
embora mais modificável. Tem por finalidade facilitar
sua marcha, esclarecendo-a. Há uma grande diferença
entre obedecer à marcha da civilização, sem disso dar-
se conta, e obedecer-lhe com conhecimento de causa.
As mudanças que ela determina não ocorrem menos no
primeiro caso do que no segundo, mas se fazem esperar
mais tempo e, sobretudo, somente se operam depois de
terem produzido, na sociedade, funestos abalos, mais
ou menos graves, segundo a natureza e a importância
dessas mudanças. (COMTE, 1978, p. 186-187)

Nessa parte, de nosso estudo, já avançamos o suficiente na reflexão


sobre o poder, a dominação e a autoridade, a ponto de caminharmos
rumo às ideias do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920).

U3 - Formas e exercício do poder 105


Esse autor desenvolveu uma teoria sobre o poder e a dominação
que ficou muito conhecida e até hoje é muito difundida e utilizada
por sociólogos, cientistas políticos e economistas. Trata-se da teoria
sobre os três tipos de dominação legítima. Veremos que a teoria
de Weber se assemelha um pouco com as ideias do primeiro autor
que abordamos, La Boétie, mas são um pouco mais refinadas, dado
que Weber estrutura tipos de dominação cuja legitimidade, isto é, a
aceitação do dominante pelos dominados, está baseada em motivos
de ordem racional, mas também históricas e subjetivas.
Figura 3.3 | O sociólogo alemão Max Weber (1864-1920)

Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/16/Max_Weber_1894.jpg>. Acesso em: 20 maio 2017.

Segundo Max Weber, a dominação, portanto, o poder de um sobre


outros, pode estar fundamentada: a) na burocracia; b) na tradição e c)
no carisma. Vejamos o que significa cada uma delas.
A fonte do poder na dominação de tipo racional-legal ou
burocrática é aquela baseada nas normas, nas leis e na estrutura do
Estado, bem como nos processos legais que levam à eleição ou à
contratação dos indivíduos que serão responsáveis pelo mando e/ou
pelo governo. Quando falamos, por exemplo, em eleição, estamos
falando de um processo organizado de forma racional, pelo qual
os indivíduos concorrerão ao poder. Do mesmo modo que, por
exemplo, um indivíduo, para se tornar juiz e exercer o mando nos
tribunais, precisa ter formação específica para isso e se candidatar
em um concurso público. O que define as regras das eleições, dos
concursos, é justamente a lei e, por isso, os ocupantes do poder,
nesses casos, têm seu poder baseado na estrutura do Estado, nos
regimentos e processos legais, na burocracia. A dominação, dessa
forma, é racional-legal ou burocrática e "a associação dominante é
eleita ou nomeada" (WEBER, 2002, p. 128).

106 U3 -Formas e exercício do poder


O segundo tipo de dominação definida por Max Weber é aquela
baseada na tradição. A fonte do poder na dominação tradicional é a
crença nos costumes e nas ordenações antigas. Pense, por exemplo,
nas antigas monarquias absolutistas da Europa, nas quais o poder de
governar era transmitido de pai para filho. Nesse caso, o critério de
escolha do governante não são leis que possibilitam a concorrência
entre candidatos, mas sim a hereditariedade. O mesmo pode se
pensar sobre a escolha dos Papas no Vaticano. A fonte de seu poder
está garantida na antiga crença cristã e não simplesmente na figura do
religioso que pleiteia o cargo. A dominação tradicional é baseada no
padrão de transferência do poder de geração para geração no sentido
de que se acredita que "se sempre assim foi, assim continuará sendo".
Nas palavras de Max Weber, nesse tipo de dominação "obedece-se à
pessoa em virtude de sua dignidade própria, santificada pela tradição:
por fidelidade. O conteúdo da ordem está fixado pela tradição (...)"
(WEBER, 2002, p. 131).
O terceiro e último tipo de dominação legítima pensado por Max
Weber é a carismática. Segundo o autor, a dominação carismática
ocorre "em virtude de devoção afetiva à pessoa do senhor e seus
dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: a faculdades
mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória"
(WEBER, 2002, p. 134-135). Pense, por exemplo, na relação entre
um pastor e seus fiéis: é uma relação de dominação, cuja fonte do
poder do pastor sobre seus seguidores está baseada, sobretudo,
na capacidade de oratória, expressão física e no carisma que ele
desempenha frente à sua plateia. No entanto, não só os religiosos
precisam ter carisma para dominar; veja, por exemplo, que mesmos
os políticos que concorrem em eleições, precisam demonstrar algum
tipo de carisma, passar confiança a seus eleitores, falar bem e fazer
seus votantes acreditarem em suas promessas.
Pesquise mais
Para saber mais sobre Max Weber, consulte a nota biográfica e o resumo
das principais ideias do autor.

Fonte: RODRIGUES, L. O. Max Weber. 2017. Disponível em: <http://


mundoeducacao.bol.uol.com.br/sociologia/max-weber.htm>. Acesso
em: 20 maio 2017.

U3 - Formas e exercício do poder 107


Esses três tipos de dominação, pensados por Weber, só estão
separados na teoria, pois, na realidade, um líder político, um
governante ou um mandatário precisa ter um pouco de cada um
para conseguir governar. De nada vale um candidato concorrer em
uma eleição se ele não tiver carisma e se não conhecer as tradições
da localidade e dos cidadãos que governará. Desse modo, podemos
argumentar que quem exerce poder exerce por múltiplas qualidades
que é capaz de apresentar.
Reflita
Se levarmos em conta as ideias de La Boétie, Comte e Max Weber,
chegamos à conclusão de que um governante não governa apenas
porque tem capacidade de governar, mas também porque deve ser
reconhecido como tal pelos governados. O poder e a dominação, enfim,
não estão apenas em um indivíduo, pelo contrário, estão em todos. É
justamente esse poder coletivo - dos súditos; governados ou cidadãos -
que fornece o poder do tirano, do mandatário ou do governante.

Sem medo de errar


Uma vez realizada a leitura desta seção, podemos ajudar Gaspar a
resolver suas indagações.
Baseado nas ideias dos autores que lemos, poderíamos responder
que, provavelmente, Napoleão expressava carisma em seus discursos
e convocações para as batalhas que travou. Naquele momento,
nenhum outro francês, possivelmente, conseguiu se expressar
com tamanha convicção e carisma. Os franceses acreditaram em
Napoleão porque seu discurso era convincente. O conceito de
dominação carismática de Max Weber "cai como uma luva" para essa
compreensão. Por outro lado, poderíamos argumentar que Napoleão
possuía conhecimentos técnicos de guerra, afinal, era militar. Se
seguirmos o que propunha Auguste Comte, esse conhecimento
técnico de Napoleão contribui, de maneira decisiva, para que a
população confiasse em suas estratégias e em seus discursos.
Por fim, não era daquela época o costume de chefes militares
comandarem processos políticos. Na Antiguidade romana, por
exemplo, já era muito comum que o governante fosse também
chefe militar. Nesse sentido, podemos argumentar que havia entre os
franceses de inícios do século XIX uma certa crença na tradição - tal

108 U3 -Formas e exercício do poder


como afirmava Max Weber - ou nos costumes - tal como afirmava La
Boétie - de que militares podem ser bons chefes de governo.
Gaspar também se perguntou como um homem com ideias tão
perigosas como Hitler conseguiu liderar um país inteiro, a Alemanha,
atraindo todo o mundo para a Segunda Grande Guerra.
Poderíamos argumentar no mesmo sentido que argumentamos
para entender a fonte do poder de Napoleão. Em todo caso, o
resultado do poder e do governo de Hitler nos leva a pensar que o
poder e a dominação nem sempre resultam no bem comum para os
governados e os cidadãos.
Ademais, Gaspar se perguntou como Getúlio Vargas moveu o país
do contexto rural para o urbano?
Entre todos os presidentes brasileiros, Getúlio Vargas é o mais
reconhecido pelo seu carisma e por sua capacidade de discursar e
se fazer entender e acreditar por diferentes setores da sociedade. Foi,
reconhecidamente, um dos políticos mais carismáticos da história
do país. Poucos foram os momentos da história do Brasil em que as
ruas foram tomadas por tantas pessoas como em seu funeral. Ainda,
se lembrarmos que La Boétie dizia que a distribuição do poder na
estrutura do Estado era fundamental para que o governante pudesse
governar, podemos argumentar que nenhum outro governante
brasileiro produziu uma estrutura de governo tão centralizada e,
ao mesmo tempo, grande o suficiente para compartilhar cargos e
comandos, como Getúlio Vargas.

Faça valer a pena


1. Segundo a teoria positivista de Auguste Comte, a humanidade legitimou
a dominação de diferentes modos ao longo da história. Isso porque ela
evolui através de diferentes graus de desenvolvimento da razão e da
ciência, itens diretamente relacionados com a forma de organizar o Estado.
Tendo isso em vista, classifique as afirmativas a seguir como verdadeiras
(V) ou falsas (F):
( ) A humanidade passou por uma etapa em que o poder tinha bases
teológicas.
( ) A humanidade passou por uma etapa em que o poder tinha bases
metafísicas.
( ) A humanidade passou por uma etapa em que o poder tinha bases
metapolíticas.

U3 - Formas e exercício do poder 109


( ) A humanidade passou por uma etapa em que o poder tinha bases
teosóficas.
( ) A humanidade passou por uma etapa em que o poder tinha bases
teóricas.
A alternativa que aponta a sequência correta é:
a) V-V-V-V-V.
b) V-F-V-F-F.
c) F-V-V-F-F.
d) V-V-F-F-F.
e) V-V-V-F-F.

2.
Coisa realmente surpreendente (e no entanto tão comum
que se deve mais gemer por ela que surpreender-se)
é ver milhões e milhões de homens miseravelmente
subjugados e, de cabeça baixa; submissos a um julgo
deplorável; não que a ele sejam obrigados por força
maior, mas porque são fascinados e, por assim dizer,
enfeitiçados apenas pelo nome de um que não deveriam
temer, pois ele é só (...). (LA BOÉTIE, 1999, p. 74)

Tendo em vista o texto supracitado, o que La Boétie acha surpreendente?

a) O fato de que muitos homens governam porque são fascinados pelo


poder.
b) O fato de que os governantes são sempre tiranos.
c) O fato de que um único homem é capaz de governar muitos.
d) O fato de que todos estão naturalmente subjugados.
e) O fato de que o poder é sempre utilizado para o bem comum.

3. Em sua obra, Max Weber se dedicou à compreensão dos fenômenos


relacionados às relações de poder e dominação. Sua teoria sobre os tipos
de dominação legítima se notabilizou por sintetizar e sistematizar três
conceitos, cujo significados remetem a como acontecem as relações de
poder e autoridade.
Segundo Max Weber, a dominação pode ser burocrática, carismática
e______.
a) Estrutural.
b) Tradicional.
c) Teológica.
d) Democrática.
e) Positiva.

110 U3 -Formas e exercício do poder


Seção 3.2
A crítica marxista das formas de dominação
Diálogo aberto

Na seção anterior, vimos que o exercício do poder e da autoridade


configura diferentes tipos de dominação, os quais podem ser
utilizados para pensar situações históricas específicas de forma
que compreendemos melhor como um líder exerce o poder e
porque tantos outros se deixam governar. Vimos que uma inter-
relação complexa de elementos subjetivos, racionais e históricos
são fundamentais para a compreensão do conceito de poder e de
autoridade histórica e que encontrará sua determinação atual no
Estado.
Ao ler a unidade anterior, Gaspar respondeu suas perguntas, mas
ainda ficou com algumas dúvidas. Ele passou a se perguntar por que,
em geral, os homens que exercem o poder são ricos e por que os
que são governados são, na maioria, pobres? Gaspar passou a se
perguntar se não havia alguma relação entre a economia e a política:
a dominação teria alguma relação com as classes sociais? Por que,
em geral, os ricos têm mais chances de ocupar postos de comando?
Nesta seção, veremos como as ideias de Karl Marx contribuem
para as novas indagações de Gaspar. Dessa forma, continuaremos a
conversa sobre poder e dominação, mas teremos como foco o papel
do sistema capitalista nesse contexto.

Não pode faltar


Em um famoso texto escrito em 1846, dois pensadores
revolucionários alemães escreveram que os filósofos tinham
apenas “interpretado o mundo de diferentes maneiras” e que a
partir daquele momento deveriam tratar “de transformá-lo”. A frase
é de efeito. Perceba que há nela uma crítica a todos aqueles que
- antes dos autores - se dedicaram a pensar o mundo, mas não se
envolveram concretamente com uma atividade que pudesse mudá-
lo, transformá-lo. A frase, importante para compreender a crítica do
poder e da dominação que vamos ler nesta unidade, está no final de

U3 - Formas e exercício do poder 111


um livro intitulado A ideologia alemã, escrito por Karl Marx (1818-1883) e
seu companheiro de outros importantes textos, Friedrich Engels (1820-
1895). Pode-se afirmar que, a partir das ideias desses autores (sobretudo
Marx), a forma de se pensar a política jamais foi a mesma. Nascia ali
uma maneira crítica de reflexão sobre o poder e a dominação, na qual
a economia e a política eram partes de um mesmo problema.
Nessa concepção, mais tarde denominada marxista, visa-se refletir
sobre a economia política do capitalismo por meio de um método
de leitura da história - o dialético - que descortina desigualdades e
contradições típicas da dominação econômica e política que se
espraiou pelo mundo desde as primeiras décadas do século XIX.
Essa corrente de pensamento estuda a história do
desenvolvimento tecnológico, as bases concretas e materiais
da vida humana (materialismo) e as lutas sociais decorridas dos
conflitos entre o capital (leia as grandes empresas e os capitalistas) e
o trabalho (leia os trabalhadores, operários e funcionários). Segundo
a perspectiva dialética, as relações existentes entre os homens e o
trabalho, entre os homens e outros homens, entre os dominantes
e dominados, bem como entre o homem e o mundo, são relações
que portam conflitos e contradições. O materialismo histórico se
dedica, por meio da dialética, à reflexão sobre estas contradições
contidas nos fenômenos sociais, visando sua superação.
Não esqueçamos da frase de Marx e Engels: as ideias não devem
servir apenas para “interpretar o mundo”, mas sim para “transformá-lo”.
Pesquise mais
Friedrich Engels (1820-1895) é, ao lado de Marx, com quem escreveu
diversos textos importantes sobre história, sociedade e política, um dos
mais importantes teóricos do Socialismo. Para saber mais sobre a vida e
a obra de Engels, acesse o link a seguir. Disponível em: <https://www.
marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/e/engels.htm>. Acesso em:
13 jun. 2017.

Karl Heinrich Marx, nasceu em 1818, na Prússia (futura Alemanha).


Estudou Direito e Filosofia em Berlim, onde debateu e desenvolveu
teses sobre Georg W. Friedrich Hegel (1770-1831), o mais importante
filósofo alemão até aquele momento. Com postura crítica e combativa
aos modelos tradicionais de reflexão filosófica, não se adaptou à
carreira universitária, o que o levou à atividade jornalística, bem como

112 U3 -Formas e exercício do poder


à militância política junto às ligas e aos partidos operários.
Nesse ponto, vale notar que Marx estava vivendo justamente em
um período em que o Capitalismo se desenvolvia a passos largos. As
lutas políticas que levaram à ascensão da burguesia, haja vista que
a Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa
(1789) ocorreram menos de três décadas do nascimento do autor,
faziam emergir uma atividade industrial extremamente produtiva,
movida pela revolução do vapor e por milhões de trabalhadores
assalariados: a classe operária, sem o que não podemos deixar de
considerar a existência simultânea de milhões de trabalhadores que
não os industriais, como os camponeses.
É impossível compreender as ideias de Karl Marx sem levar
em consideração que ele viveu e escreveu no momento onde o
Capitalismo ganhava uma forma mais dinâmica, bem como um
conteúdo mais conturbado, no qual o autor viu surgir entidades
de representação dos trabalhadores e movimentos políticos de
expressão que denunciavam as desigualdades resultantes da
exploração capitalista.
A partir das reflexões que desenvolveu em textos, tal como
A ideologia Alemã, junto com seu amigo Engels, Marx se dedicou
profundamente à análise e à crítica do sistema capitalista. O legado de
suas reflexões está reunido em dezenas de livros que influenciaram
e ainda influenciam milhares
Figura 3.4 | Karl Marx (1818-1883)
de personalidades políticas e
intelectuais em todo o mundo.
Aliás, seria impossível pensar
importantes acontecimentos
históricos - como a Revolução
Russa de 1917 - sem as
ideias de Karl Marx. Entre as
principais obras do autor estão:
Manuscritos Econômicos
Filosóficos (1844); Manifesto do
Partido Comunista (1848); O
18 Brumário de Luís Bonaparte
(1852); e sua obra máxima O
Capital - crítica à economia Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/
política (1867). thumb/f/fc/Karl_Marx.jpg/1200px-Karl_Marx.jpg>. Acesso
em: 13 jul. 2017.

U3 - Formas e exercício do poder 113


Para entendermos a posição teórica de Karl Marx (e não só teórica,
posto que deveria guiar a prática), vale lembrar das sistematizações
sobre o poder e a dominação que estudamos na seção anterior.
Com base nas ideias de Marx, poderíamos criticar os pensadores
da seção anterior argumentando que as ideias ali expostas não são
frutos apenas de classificação mental; pelo contrário, os conceitos
elaborados por quem quer que seja para a compreensão do mundo,
estão sempre relacionados com as práticas sociais. Assim, um
filósofo que se ocupe em explicar como a dominação funciona,
acaba por gerar significados que estão relacionados à realidade
concreta da dominação e, muitas vezes, de forma inconsciente,
reforçar ideologicamente o princípio da dominação. Estará se
ocupando de pensar o mundo, mas não em transformá-lo.
Em outras palavras, para Marx, a análise da política não está
desligada da condição de existência, tampouco das relações sociais
em sua especificidade material. Assim, a relação do homem com
a natureza, do homem com o trabalho, utilizado para transformar
a natureza, bem como a relação do homem com outro homem
no sentido de organizar a transformação da natureza é o que cria
desigualdades entre quem domina e quem é dominado, sobretudo
no sistema capitalista. É essa luta de classes, entre os o que trabalham
e os que fazem trabalhar, que funda a sociedade política. Daí porque
chamamos esse tipo de abordagem de crítica à economia política.
Na sua crítica à economia política, o autor denota que o Estado
no Capitalismo se converte em um ente ocupado pelos interesses
daqueles que mantêm os meios de produção, isto é, os donos de
indústrias e de máquinas, os burgueses. Esses ocupam o Estado e
os parlamentos para usar essas instituições a favor de suas atividades
econômicas e não dos cidadãos. Aliás, segundo o pensamento
marxista, o próprio conceito de “cidadão” é uma criação ideológica
da burguesia utilizada como recurso para desviar a atenção da
exploração.
O fato é que, pela posição de classe que ocupam como resultado
histórico das revoluções burguesas, os patrões, os donos dos meios
de produção, bem como os donos de terras, utilizam o Estado como
ferramenta de dominação daqueles que, antes de serem cidadãos,
são, na verdade, operários e trabalhadores de todos os tipos. É por
meio da mão de obra de milhões de assalariados que os patrões se

114 U3 -Formas e exercício do poder


mantêm nas estruturas políticas da sociedade determinando tudo
o que lhes convêm, como a democracia, os valores políticos, as
convenções sociais e religiosas, bem como o valor do salário. Assim,
asseguram a manutenção de sua posição e de seus privilégios por
meio da direção intelectual da sociedade. Para fazer refletir mais
sobre esse aspecto, vejamos as palavras de Marx (1966, p. 245):

As ideias da classe dominante, em todas as épocas, são


também as ideias dominantes, ou seja, a classe que é
a força material dominante da sociedade é também
a força espiritual dominante. A classe que dispõe dos
meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo,
dos meios de produção intelectual, se bem que, estando
estes contidos naqueles, as ideias dos que não dispõem
dos meios de produção intelectual ficam, ao mesmo
tempo, subordinados a essa classe dominante. As ideias
dominantes nada mais são do que a expressão ideal
das relações materiais dominantes, são essas relações
materiais dominantes apreendidas sob a forma de ideias
e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma
classe a classe dominante.

Assim, para Karl Marx, não se trata de ficar classificando ou


sistematizando formas de dominação ou mesmo argumentando
como e/ou porquê a dominação funciona, como disseram muitos
pensadores antes e depois dele. Isso, para autor, só contribui para
perpetuar as formas de dominação tal como compreendidas em sua
materialidade. O que há, na verdade, não é uma relação pacífica entre
dominantes e dominados, mas sim, uma luta de classes.
É essa luta entre dominantes donos dos meios de produção e
trabalhadores vendedores de mão de obra para aqueles que fazem
trabalhar, que transforma a vida material e faz avançar a tecnologia e
produz história. Assim, a história é resultado da luta de classes.
O problema é que enquanto essa relação de dominação estiver
naturalizada, enquanto os trabalhadores não tomarem plena
consciência de que são explorados, suas vidas serão determinadas
pelas máquinas, tal como são produzidas as mercadorias, bem
como pelo monopólio da terra em mãos dos grandes latifundiários,
tais quais aqueles que dominam milhares de camponeses. Aliás, é
por meio da mercadoria, da força de trabalho em diversos setores,

U3 - Formas e exercício do poder 115


e da necessidade criada para sua obtenção que toda a estrutura
do Capitalismo se assenta. Afinal, trabalhadores trabalham para os
donos dos meios de produção (terras e máquinas) que produzem
mercadorias, que, mais tarde, são compradas por aqueles que a
produziram em alguma etapa.
Desse modo, segundo Marx, a emancipação política do homem
está diretamente relacionada à sua emancipação social. O problema,
não é só dizer como a dominação funciona, mas sim propor uma
estratégia para colocar fim a ela. Somente modificando a estrutura da
relação de trabalho e da dominação burguesa sobre o operariado (a
relação social) é que será possível transformar o Estado e emancipar
o homem político.
Segundo o autor, para cumprir com esse objetivo, a classe
trabalhadora deverá conduzir o processo histórico rumo ao
Socialismo, expropriando os meios de produção, as máquinas dos
capitalistas e gerenciando, por meio da ditadura do proletariado, uma
etapa de forte controle estatal, que garanta a distribuição igualitária do
trabalho e do resultado da produção: as mercadorias. Esse processo
traria consciência histórica aos trabalhadores, pois todos teriam noção
concreta da exploração a que eram submetidos e o Estado, dirigido
fortemente por um partido revolucionário, encarnaria o princípio da
igualdade, pondo fim à luta de classes.
Assim, portanto, o Socialismo é, para Marx, uma etapa de construção
da emancipação social e política do homem, na qual o Estado será
responsável pela administração direta dos meios de produção, bem
como pela distribuição dos resultados obtidos na produção.
Esse estado de coisas em que a dominação de uns sobre outros
é substituída pela dominação de todos os trabalhadores levará, se
bem conduzido, a humanidade à sua emancipação política ou à
etapa superior do Socialismo: o Comunismo. Alcançado esse estágio,
estarão suprimidas as desigualdades resultadas da dominação anterior
e da consequente luta de classes. Assim, segundo Marx (1966, p. 241):

O comunismo não é para nós nem um estado a ser


criado nem um ideal ao qual a realidade deva se ajustar.
Chamamos de comunismo o movimento real que
elimina o atual estado de coisas. As condições desse
movimento resultam de bases atualmente existentes (…)

116 U3 -Formas e exercício do poder


[e] o comunismo se distingue de todos os movimentos
que até agora o precederam pelo fato de que subverte a
base de todas as relações de produção e trocas anteriores
e de que, pela primeira vez, ele conscientemente encara
todas as condições naturais existentes como criações dos
homens que até agora o precederam, despojando tais
condições de seu caráter natural e submetendo-as ao
poder dos indivíduos unidos.

Karl Marx é um daqueles pensadores que pode ser compreendido


como um filósofo da história, pois, para ele, a humanidade passou por
diferentes fases de desenvolvimento e produção das forças produtivas
e, em cada uma delas, a luta de classes nos apresenta, também, de
diferentes formas, mas conserva a dominação daqueles que têm
os meios de produção sobre aqueles que não os têm. Daí porque
nas sociedades antigas havia servos e escravos e, nas modernas,
trabalhadores.
Desse modo, aqueles que não têm meios de produção estarão
sempre à mercê do poder e da dominação econômica e cultural
daqueles que são os proprietários dos meios de produção. Assim, é
que no Feudalismo, por exemplo, os vassalos estavam sob o julgo dos
suseranos e depois das revoluções burguesas que colocaram fim ao
poder da aristocracia, ficando os trabalhadores sob a dominação dos
burgueses capitalistas. Em qualquer um dos casos, a classe dominante
determina e domina a massa trabalhadora com o objetivo de fazê-la
trabalhar pelo mínimo de seu custo de vida, acumulando capital por
meio das mercadorias produzidas pelo trabalho de outrem.
Isso quer dizer que a dominação política que impede a emancipação
do homem no Capitalismo está diretamente relacionada à questão da
posse dos meios de produção, bem como ao sistema de troca das
mercadorias. Daí a necessidade, para Marx, de revolucionar a ordem
burguesa para que os trabalhadores, o proletariado, possam ter o
controle dos meios de produção, bem como da direção intelectual
e cultural da sociedade. Dessa forma, o processo de acumulação
do capital seria interrompido, emancipando o homem material e
economicamente, bem como cultural e politicamente falando. Dessa
maneira,

U3 - Formas e exercício do poder 117


Marx, evidentemente, enfatiza as diferenças entre as
revoluções, em particular as de origem burguesa e as
de origem proletária. Mas os traços gerais do conceito
são bastante claros nos dois casos. Em primeiro lugar,
não se deve esperar que as revoluções venham ocorrer
em épocas de prosperidade geral: “As revoluções de
verdade só explodem nos períodos em que se chocam
entre si dois fatores: as forças produtivas [...] e o regime
[...] de produção. Em segundo lugar, as revoluções
são transformações sociais de alcance global, isto é,
transformações que dizem respeito à sociedade em
conjunto. (WEFFORT, 2002, p. 236)

As ideias de Karl Marx foram amplamente difundidas ao longo da


segunda metade do século XIX, sendo repensadas e interpretadas
de múltiplas formas ao longo do século XX. Ainda em nossos dias,
há diversos historiadores, cientistas políticos, sociólogos e filósofos
que se ocupam em interpretar e refletir sobre o mundo por meio do
materialismo histórico e do método dialético proposto pelo filósofo
alemão. Assim, as teorias de Marx deixam um legado importante para
a reflexão política nos séculos posteriores, pois:

Politicamente, retira da sua teoria um ensinamento


decisivo: a luta de classe operária só pode ter como
objetivo a supressão dessa extorsão e a instituição de
uma sociedade na qual os produtores seriam senhores de
sua produção e organizariam seu trabalho de tal modo
que o fim da atividade de trabalho não seria a troca -
simples meio -, mas o uso, a fruição empírica. (CHÂTELET;
DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 2000, p. 135)

Reflita
Como vimos, Karl Marx não queria apenas que suas ideias fossem
entendidas como um conjunto de expressões e conceitos para
interpretar e refletir sobre o mundo. Marx esperava que a compreensão do
funcionamento do Capitalismo impulsionasse a luta dos trabalhadores.
Assim, suas ideias deveriam mover revoluções que colocassem fim à
exploração do trabalho pelos donos dos meios de produção.

As ideias de Marx, de fato, moveram revoluções pelo mundo, tal como

118 U3 -Formas e exercício do poder


a Revolução Russa de 1917 e a Cubana, de 1959. Nenhuma delas,
entretanto, acabou com a relação de dominação do capital sobre
os trabalhadores, mas o legado dessas revoluções - lutas trabalhistas,
fortalecimento dos sindicatos, trabalhadores organizados em busca de
melhorias das condições salariais e de trabalho - ficou mais robusto
em todo o mundo, principalmente no século XX.

Reflita: será que as ideias de Marx atingiram, pelo menos em parte,


seus objetivos?

À corrente de intelectuais que se dedicam a essa tarefa,


denominamos marxista. O Marxismo é um método, uma forma de
interpretar e refletir os problemas políticos e sociais da humanidade
por meio do materialismo dialético. Todos os intelectuais dessa linha
de pensamento tendem a pensar o mundo não só por meio de
formas abstratas do pensamento ou conceitos puramente teóricos,
mas sim por meio de uma reflexão que leva em conta o mundo
material, os meios de vida, as forças produtivas na relação com as
formas de pensar o mundo.
Além de ser uma corrente teórica e de ação política que influenciou o
pensamento de diversos autores mundo afora, tais como Georg Luckács,
Antonio Gramsci, Walter Benjamin, Adorno, entre outros, o Marxismo
condicionou também o governo de diversas nações socialistas.

Assimile
Denominamos “marxista” a corrente de intelectuais e políticos que desde
finais do século XIX aderiram às ideias revolucionárias de Karl Marx.
Para esses pensadores e/ou homens de ação, não basta apenas criar
modelos teóricos para pensar o mundo; as ideias devem, por outro lado,
estar relacionadas à realidade concreta no sentido de transformá-la. Seria
impossível listar aqui todos os autores ligados a essa corrente, pois são
muitos. Em todo caso, vale assimilar que quando falamos em Marxismo,
estamos falando do pensamento e da prática política que tem por
objetivo a busca da emancipação econômica e política da humanidade.

O caso mais emblemático da relação entre o Marxismo e a


organização política de um Estado aconteceu na União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), formada em 1922 após a Revolução
Russa de 1917.

U3 - Formas e exercício do poder 119


A Revolução Russa foi a maior revolução socialista da história
e tentou levar a cabo as ideias de Karl Marx. Entre os líderes da
revolução estavam importantes marxistas, seguidores e intérpretes
da obra O Capital, do autor. Entre esses, vale destacar Vladimir Lenin
(1870-1924) e Leon Trotsky (1879-1940) que, como queria Marx, não
foram homens que se ocuparam só de teorizar sobre o mundo, pelo
contrário, tentaram revolucioná-lo.
Exemplificando
Vladimir Lenin é um excelente exemplo de intelectual e político que, a
partir das ideias de Marx, conduziu um processo revolucionário, cujos
resultados alcançaram a geopolítica global até a década de 1990. A
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, resultado da Revolução
Russa de 1917, é o maior exemplo histórico de uma mudança política
revolucionária de intensa relação com as ideias de Karl Marx.

Sem medo de errar


Agora ficou fácil responder à indagação de Gaspar, pois as ideias
de Marx contribuem muito para a compreensão da relação entre
o poder econômico e o poder político, bem como compreender
melhor a relação entre as classes sociais e a dominação.
Na verdade, para Marx, as bases materiais acabam por condicionar
ou determinar muito a forma como a sociedade estará organizada
em termos políticos. Segundo o autor, ao longo de toda a história,
o que determinou a dominação de alguns homens sobre outros foi
justamente a divisão do trabalho. Aqueles que detinham a propriedade
da terra podiam submeter aqueles que não tinham terras ao
trabalho. O mesmo se verifica no Capitalismo - sistema econômico
predominante desde o século XIX - no qual aqueles que têm a
propriedade dos meios de produção, das máquinas que produzem
as mercadorias e das terras que produzem gêneros alimentícios, bem
como empresas que produzem serviços, submetem os que não têm
máquinas, terras e empresas ao trabalho.
No Capitalismo, para Marx, o Estado tem como prioridade
proteger a posse da propriedade ao invés do trabalhador. Daí a
necessidade dos trabalhadores se unirem na luta por seus direitos,
tais como aumento dos salários e melhorias nas condições de

120 U3 -Formas e exercício do poder


trabalho. Em todo caso, para Marx, bem como para muitos autores
marxistas, não basta apenas uma luta por melhorias, pois a verdadeira
emancipação política do homem depende de sua emancipação
material, do rompimento das relações de trabalho que submetem os
trabalhadores à dominação dos donos dos meios de produção: os
burgueses. Assim, a única forma de libertar o homem integralmente
seria por meio de uma revolução socialista.
A revolução socialista retiraria, por meio da ditadura dos
trabalhadores e de um forte controle estatal, os meios de produção
das mãos dos capitalistas, e o resultado da riqueza produzida em
mercadorias, seria igualmente distribuído para a sociedade. Desse
modo, as desigualdades típicas do capitalismo seriam aniquiladas
e estariam postas as bases materiais e culturais que levariam a
humanidade à sua libertação plena. Assim, não seria mais necessário
o Estado, pois não existiriam mais desigualdades ou luta de classes,
o homem poderia fruir a vida e não mais trabalhar para quem possui
os meios de produção. Este, o fim da história humana para Marx: o
Comunismo.
Embora haja experiências socialistas reais em várias nações, não
se pode dizer que o Socialismo e o Comunismo lograram o êxito
imaginado por Marx. De todo modo, o legado das ideias do filósofo
alemão ensinou e ensina que há muitas contradições nas relações do
homem com o mundo e do homem com o homem.
Essas contradições não são naturais, posto que são frutos da luta
de classes que, no sistema capitalista, é sinônimo de desigualdade e
de dominação econômica e política.

Faça valer a pena


1. Diferentemente de outros pensadores que acabam por sistematizar
apenas conceitualmente os elementos que compõem o fenômeno da
dominação entre os homens, Karl Marx propõe que a dominação só pode
ser entendida dentro das contradições encerradas no plano da realidade
material concreta.

Considere as afirmações, a seguir, sobre a visão marxista acerca da


dominação entre os homens, que resultaria:
I. Da evolução natural que opõe dominantes e dominados.
II. Da propriedade dos meios de produção pelos dominantes.
III. Do processo político comunista.

U3 - Formas e exercício do poder 121


IV. Da concorrência entre os dominantes.
V. Da dominação proletária.
Estão corretas apenas:
a) As afirmações I e II.
b) As afirmações III e IV.
c) A afirmação II.
d) As afirmações I e V.
e) As afirmações IV e V.

2. Segundo Karl Marx, a história do mundo é baseada em uma constante


tensão entre aqueles que têm os meios de produção e aqueles que
trabalham para os que têm os meios de produção. No Capitalismo, essa
tensão chega a um limite nunca antes observado, posto que as contradições
entre os burgueses e os trabalhadores se acirram de forma decisiva.
A este processo de tensão entre burgueses e proletários, Marx chamou:
a) Disputa de capital.
b) Acumulação socialista.
c) Luta de classes.
d) Tensão de partes.
e) Crise de relações.

3. Muitos teóricos da corrente marxista de pensamento acreditam que a


emancipação política do homem, isto é, o fim da dominação de uns por
outros está diretamente relacionada ao fim do sistema capitalista e da
reprodução das desigualdades sociais.
Seguindo o que propõe Karl Marx, a emancipação política do homem só
ocorrerá no:
a) Capitalismo.
b) Socialismo.
c) Comunismo.
d) Social capitalismo.
e) Anarquismo.

122 U3 -Formas e exercício do poder


Seção 3.3
Formas e sistemas de governo
Diálogo aberto

Uma vez que já sabemos, pela leitura das seções anteriores, como
se configuram o poder e a autoridade no sistema capitalista e já
estamos capacitados a fazer uma reflexão crítica do presente, é hora
de voltarmos um pouco para aspectos menos teóricos e mais formais
da realidade política.
Gaspar, personagem curioso pela história, resolveu descansar um
pouco das leituras na frente da TV. Ao ver o noticiário que falava sobre
as eleições na França, Gaspar ouviu o jornalista dizer que aquele país
era semipresidencialista. Pensou: mas o que é isso? A França não é uma
República, como o Brasil? O Brasil já foi Monarquia, afinal D. Pedro II
foi imperador. Monarquia, República, Semipresidencialismo? O Brasil,
como os EUA, não é um país presidencialista? E, para piorar, a notícia
seguinte era sobre a Inglaterra: um país monárquico e parlamentarista.
Logo pensou: qual é a diferença entre o presidencialismo e o
parlamentarismo?
Logo depois, o noticiário falou que o presidente do Brasil havia
indicado um novo ministro para o Poder Judiciário e que haveria
novas eleições para a presidência da Câmara dos Deputados que,
com o Senado, compõe o Poder Legislativo. República, Monarquia,
Parlamentarismo, Presidencialismo, Semipresidencialismo, Poder
Legislativo, Executivo, Judiciário. É muita coisa para entender sobre
as formas, os sistemas e a divisão dos poderes. É a isso que se dedica
esta seção. Vamos, enfim, conhecer esses conceitos!

Não pode faltar


Quando nos voltamos à compreensão de um dado sistema
político, isso é, de como um estado-nação organiza os poderes de
Estado e, consequentemente, as regras para o exercício do poder,
três dimensões devem ser levadas em consideração: 1) a forma de
governo; 2) o sistema de governo; e 3) a divisão dos poderes do

U3 - Formas e exercício do poder 123


Estado.
A forma de governo diz respeito à organização do Estado, em
termos gerais, de suas estruturas de poder, bem como quais são os
fundamentos da institucionalidade constitucional. Em outras palavras,
em quais valores culturais da política o Estado está fundamentado.
No Ocidente, desde há muitos séculos, duas formas de governo têm
sido utilizadas para dar bases à estrutura geral das constituições, a
Monarquia e a República.
A segunda dimensão, voltada aos sistemas de governo, tem
relação com a forma escolhida para o exercício do poder de fato, com
o modo pelo qual os governantes serão escolhidos, como governam
e se mantêm no poder. Nos últimos 150 anos, são dois os sistemas
mais utilizados: o presidencialista ou o parlamentarista, mas, nesse
caso, há também países que optaram por um modelo que mistura
características dos dois sistemas, aqueles semipresidencialistas ou
de presidencialismo dual.
Para início de conversa, vale dizer que a política no Brasil funciona
dentro do sistema presidencial, tal como os Estados Unidos da América
e a Argentina. Esses três países são Repúblicas Presidencialistas.
Já a Inglaterra, que adotou a forma de estado monárquico, optou
há séculos pelo sistema parlamentarista. A França, que tal como o
Brasil é uma República, logo depois do fim da II Guerra Mundial fez a
opção pelo sistema semipresidencial. Assim, existem três diferentes
sistemas de governo: o presidencialista, o parlamentarista e o
semipresidencialista.
Em geral, as monarquias modernas optaram pelo sistema de
governo parlamentarista e, as Repúblicas, pelo sistema presidencialista,
mas não é uma regra, pois países de forma de governo republicano
podem optar, também, pelo parlamentarismo, como é o caso da
Itália e da Índia.
Além disso, há uma terceira dimensão relacionada à estrutura
da política nos Estados-nação contemporâneos e nisso todos são
muito parecidos, pois, em geral, os poderes de Estado estão divididos
em três: o executivo, o legislativo e o judiciário. Essa divisão, que
chamamos “tripartite”, é praticamente comum a todos os países de
sistema presidencial, mas, nos parlamentaristas, a separação entre o
executivo e o legislativo é um pouco diferente. Veremos, nesta seção,
como acontece essa separação dos poderes nos diferentes sistemas.

124 U3 -Formas e exercício do poder


Definiremos, primeiramente, as características das duas principais
formas de governo, cujas origens remontam à Antiguidade clássica,
mas que ainda estão em uso, modernizadas à atualidade.
A palavra monarquia indica pelo prefixo mono (um) e pelo sufixo
arquia (chefia) a ideia de que a chefia do estado é exercida por apenas
um indivíduo, o monarca, também denominado rei ou rainha. Essa
forma de estado é a mais antiga utilizada pelos seres humanos na
organização política das sociedades e guarda relação histórica com
velhas organizações tribais e comunitárias.
Nesse sistema, a fonte do poder do monarca não está identificada
com a democracia, tampouco com os votos dos cidadãos. Pelo
contrário, a fonte do poder do chefe de Estado está diretamente
relacionada às antigas tradições e à linhagem social dos indivíduos que
governam. Por isso, uma característica da monarquia é a transferência
do poder pelo critério da hereditariedade, em que os filhos substituem
os pais após a morte destes. O poder de estado nas monarquias é,
dessa forma tradicional, hereditário e vitalício.
Até o século XVIII, antes das revoluções burguesas - como a
francesa, de 1791 - os monarcas governavam de forma absoluta, sem
nenhum contrapeso político originado no princípio eleitoral. Eles
tinham direito divino e, em muitos casos, tornavam-se tiranos. As
monarquias absolutistas foram comuns até o início do século XIX, em
países como França, Inglaterra, Espanha e Portugal.
Após as revoluções burguesas, os monarcas perderam poder,
pois não mais conseguiam garantir a fonte do poder de estado
nas tradições culturais e religiosas. Portanto, muitas monarquias
absolutistas foram convertidas em monarquias constitucionais, nas
quais os reis e as rainhas teriam de conviver com o parlamentarismo
(assunto do qual trataremos a seguir), isto é, com o voto e com as
eleições - e perderam boa parte do poder de execução das leis, ou
seja, o poder de governo. Existe uma famosa formulação que afirma
que nas monarquias constitucionais modernas os “reis reinam, mas
não governam”. São chefes de estado, mas não de governo.

Assimile
Há uma diferença entre “poder de estado” e “poder de governo”. O chefe
de Estado é um representante geral da nação, cuja relação com o poder

U3 - Formas e exercício do poder 125


acontece em um sentido mais diplomático e cultural. Já o chefe de
governo é o responsável pela execução das leis, utilização do orçamento
público, bem como a escolha de ministros e secretários. Assim, nas
monarquias constitucionais modernas, os reis ou as rainhas têm poder
de estado, mas não de governo. A chefia do governo é exercida, em
geral, pelo primeiro-ministro, isto é, um membro do parlamento eleito
para as funções de governo. Assim, o poder de estado é separado do
poder de governo e os reis ou as rainhas reinam, mas não governam.

Assim como a Monarquia, a forma republicana também é muito


antiga, mas seu sentido político é muito diverso.
O prefixo res vem do latim “coisa” e o sufixo pública indica a
dimensão ligada ao aspecto público, aquilo que pertence a todos.
República significa “a coisa que é de todos” e não apenas de “um”
como na forma monárquica.
A República deve ser, portanto, a forma de governo amparada
na relação com a maioria da comunidade, na qual a escolha do
governante está ligada à ideia de consenso comunitário, bem como
na igualdade de direitos entre os cidadãos. Assim, na sua forma mais
atual, a República está diretamente relacionada às eleições, ao voto
livre e secreto e à concorrência entre diferentes projetos políticos que
disputam o poder de Estado.
Diferentemente das monarquias, o poder não está baseado na
hereditariedade, nem em mandatos vitalícios, dado que é a dinâmica
dos costumes e não a permanência destes que dá base ao poder.
A forma republicana é, em tese, naturalmente democrática
e preza pela concorrência, pela igualdade e pela alternância dos
representantes políticos. No entanto, a chefia do poder de Estado e
de governo se realizará de forma diferente, dependendo do sistema
que uma dada República adota para suas instituições políticas.
Por isso a necessidade de compreendermos a diferença entre o
presidencialismo, o parlamentarismo e o semipresidencialismo, bem
como a relação entre os poderes de Estado nesses sistemas.

Exemplificando
Em geral, as monarquias constitucionais optaram historicamente pelo
sistema de governo parlamentarista e, as Repúblicas, pelo sistema

126 U3 -Formas e exercício do poder


presidencialista. A Inglaterra e a Dinamarca, por exemplo, são países
cuja forma de Estado é monárquica e o sistema de governo é
parlamentarista.

Já entre os países que optaram pela forma de governo republicana, é


mais comum a opção pelo sistema presidencialista, tal como ocorre no
Brasil e nos Estados Unidos.

Não obstante, há países cuja forma de governo é republicana, mas o


sistema é parlamentarista, como a Alemanha e a Itália.

No sistema de governo presidencial ou presidencialista, o


presidente eleito pelo voto direto será responsável pelo poder de
Estado e de governo simultaneamente.
Este sistema de governo derivou da organização da independência
dos Estados Unidos da América, logo após a revolução que, em fins
do século XVIII, separou este país dos domínios da monarquia inglesa.
Como os EUA foram o primeiro país a se tornar independente no
mundo americano, o seu arranjo constitucional e o seu sistema de
governo tiveram forte influência em todas as nações do continente.
Assim, os sistemas presidenciais são mais antigos e comuns em países
da América do Norte, da América Central e do Sul.
Nesse sistema, optou-se por uma distinção clara entre os poderes
de Estado, pois o presidente é o chefe do Poder Executivo, responsável
por executar as leis, mas não que não pode criá-las. A criação das
leis fica a cargo do poder legislativo, cujos membros (deputados) são
eleitos em eleições distintas das presidenciais. Por fim, um terceiro
Poder, o Judiciário, encarrega-se de fiscalizar as ações dos Poderes
Executivo e Legislativo.
No sistema presidencial, o chefe do Poder Executivo, isto
é, o presidente eleito direta ou indiretamente pelos cidadãos,
estará encarregado da chefia do Estado e do governo, pois será
o representante das instituições e da diplomacia, bem como da
escolha dos ministros e secretários de governo e da execução das
políticas e do orçamento público. Para complementar a definição do
presidencialismo, podemos listar suas principais características:
a) Há uma clara distinção entre os Poderes Executivo e Legislativo,
pois o presidente e os membros do parlamento são eleitos de forma

U3 - Formas e exercício do poder 127


distinta para cumprir diferentes funções.
b) O presidente acumula as funções de chefe de Estado e de
governo.
c) A duração do mandato presidencial é definida previamente na
Constituição, em geral, em 4 ou 5 anos.
d) Os ministros e os secretários de Estado e de governo são
escolhidos pelo presidente eleito.
e) O Poder Legislativo cria as leis, mas não pode executá-las em
sua administração, ficando isso a cargo exclusivo do chefe do Poder
Executivo, isto é, o presidente.
Se o presidencialismo é o sistema de governo predominante nas
Repúblicas do continente americano, o mesmo não se pode dizer
das velhas monarquias europeias, que tiveram que aliar as tradições
à representação política democrática. Nesses países, tal qual a
Inglaterra, que é o modelo clássico de Monarquia Constitucional, o
parlamentarismo é o sistema de governo que coloca as regras da
formação e implantação das leis.
Para melhor compreender o parlamentarismo, comparando-o
ao processo histórico com o presidencialismo, deve-se levar em
consideração que:

Quando os Estados europeus começaram a praticar o


governo constitucional, todos eles (exceto a França, que
se tornou uma república em 1870) eram monarquias; e as
monarquias já têm um chefe de Estado hereditário. Mas
enquanto na Europa não havia espaço (pelo menos até
1919) para os presidentes eleitos, no Novo Mundo quase
todos os Estados chegaram à independência como
repúblicas (o Brasil e, de certo modo, o México foram
exceções temporárias) e, portanto, precisavam eleger
os chefes de Estado, isto é, seus presidentes. (SARTORI,
1996, p. 100)

Diferentemente do presidencialismo, no parlamentarismo a chefia


de Estado está separada da chefia do governo, pois o chefe de governo
não é eleito diretamente pelos cidadãos, mas sim pelos membros do
parlamento, pelos representantes do povo que conformam o Poder
Legislativo.

128 U3 -Formas e exercício do poder


Nesse sistema, os cidadãos votam diretamente nos deputados
que formarão o Poder Legislativo. Estes, depois de eleitos, disputarão
eleições internas, por meio das quais elegerão, entre eles, um chefe do
Poder Legislativo, que será o chefe do governo: o primeiro-ministro.
Assim,

Quando se fala de parlamento e de parlamentarismo, se


faz normalmente referência a fenômenos políticos cujo
desenvolvimento histórico se insere na curva temporal
que vai da Revolução Francesa até os nossos dias.
Contudo, em quase todos os países europeus houve,
mesmo nos séculos anteriores, instituições denominadas
“parlamentos”; embora por vezes fossem também
chamadas de “estados gerais”; “cortes”; “estamentos”.
(COTTA, 2010, p. 877)

Perceba que há, no parlamentarismo, uma relação direta entre o


Poder Legislativo e a chefia do governo, pois o governante advém
não de eleições diretas populares, mas sim do primeiro parlamentar
eleito por seus pares.
Na verdade, é como se o Poder Executivo estivesse embutido no
Legislativo, de modo que não é possível, na maior parte dos países
que optaram por esse sistema, definir previamente o tamanho dos
mandatos, uma vez que as disputas entre os parlamentares podem
levar a processos de desconfiança, que afastam o primeiro-ministro
para que outro seja escolhido em seu lugar.
Quando se trata de países em que a forma de governo é
monárquica, como no caso da Inglaterra ou da Noruega, o rei ou a
rainha constitui a chefia de Estado, exercendo a representação geral
e diplomática da nação, mas a execução das leis, do orçamento
e das políticas públicas fica a cargo do primeiro-ministro, eleito
indiretamente pelo Poder Legislativo, formado por deputados
eleitos diretamente. Assim, temos a seguintes características para
uma definição do sistema de governo parlamentarista:
a) O chefe de governo é eleito indiretamente pelo corpo legislativo
(deputados) que foi eleito diretamente.
b) O tamanho de mandato do chefe de governo não está
previamente definido, visto que ele pode cair ou se estender,
dependendo da confiança dos seus pares, dos deputados que
representam o Poder Legislativo.

U3 - Formas e exercício do poder 129


c) Existe uma espécie de integração entre os Poderes Legislativo
e Executivo, pois o último é expressão do primeiro, uma vez que o
chefe de governo (do Poder Executivo) é eleito entre os membros do
parlamento (Poder Legislativo).
d) Quando se trata de sistemas de governo parlamentaristas em
monarquias constitucionais, o primeiro-ministro é o chefe de governo
e o rei ou a rainha é o chefe de Estado e, assim, diferentemente
do presidencialismo, as chefias de Estado e governo não ficam
relacionados à mesma pessoa.
Desse modo,

Não há dúvida de que os sistemas presidencialistas e


parlamentaristas podem ser definidos por mútua exclusão;
um sistema presidencialista não é parlamentarista e o
inverso é também verdade. Mas a distribuição dos casos
concretos nessas duas categorias leva a contrastes
marcantes. (SARTORI, 1996, p. 97)

Não obstante, para melhor fixar as diferenças entre um e outro


sistema de governo, vale registrar que:

[...] o regime parlamentar é por essência monista,


repousa na expressão de uma única vontade popular: a
que resulta das eleições legislativas e se corporifica no
Parlamento. Em contraste, os regimes presidenciais são
dualistas, pois a vontade popular se cristaliza por duas
vias: as eleições legislativas e a eleição presidencial.
(ALENCASTRO, 1993, p. 29-30)

Reflita
Pelo resultado dos processos de independência política em inícios do
século XIX, todos os países do continente americano, ao se desligarem
do domínio das velhas monarquias europeias, seguiram o exemplo dos
Estados Unidos e optaram por formar repúblicas presidencialistas para
viver o novo contexto pós-colonial. Apenas um país americano não
escolheu a República presidencial como sistema e forma de governo
após sua independência: o Brasil. Diferentemente de seus vizinhos
latinos, a opção brasileira foi pela Monarquia parlamentarista. Será que as
elites brasileiras preferiram a tradição à modernidade?

130 U3 -Formas e exercício do poder


Além dos sistemas presidencialista e parlamentarista, há um
terceiro tipo, cuja origem remete à Constituição Francesa organizada
após o final da Segunda Guerra Mundial. Buscando um sistema que
aliasse características presidencialistas e parlamentaristas, nasceu o
semipresidencialismo ou o presidencialismo dual.
Nesse sistema, as chefias de Estado e de governo eram
compartilhadas por um presidente eleito pelo voto direto dos cidadãos
e por um primeiro-ministro indicado pelo presidente e referendado
por deputados que também foram eleitos pelo voto direto.
Assim, o chefe do Poder Executivo, eleito diretamente, e o primeiro
entre os membros do Poder Legislativo, eleito indiretamente, deverão
compartilhar atribuições na execução das políticas de estado.
Pode-se dizer que a ideia, nesse caso, é aliar a força e a legitimidade
das eleições gerais e democráticas às forças políticas que estão em
jogo no Poder Legislativo, buscando uma maior integração entre
essas instituições e, teoricamente, ajustando melhor o pacto nacional.
Isso porque, em tese, no presidencialismo clássico, como o
presidente não é eleito pelo parlamento, ele precisará - uma vez eleito
- buscar apoio entre os membros do parlamento para conseguir
governar, o que pode resultar em trocas e barganhas entre os Poderes
Executivo e Legislativo, que não necessariamente são salutares ao
conjunto da população.
Já no parlamentarismo clássico, a falta de um representante
executivo eleito diretamente pela população poderia levar a sucessivas
crises de legitimidade e governabilidade, o que de fato ocorre às vezes.
Assim, o modelo semipresidencial ou de presidencialismo dual
seria uma forma de alcançar equilíbrio entre os Poderes Executivo e
o voto direto e o Legislativo e o voto indireto, favorecendo o pacto
institucional e, consequentemente, a governabilidade e a legitimidade
do governo.
Em todo caso, seja qual for a forma e o tipo de sistema de governo
escolhido por um estado-nação, o que resultará em uma situação
de maior ou menor democracia ou de maior ou menor eficiência
de um governo está para além das definições institucionais. Assim,
a participação efetiva da maior parte da população em questões
políticas é o que pode, de fato, garantir que um dado governo seja
responsável e eficaz.

U3 - Formas e exercício do poder 131


Dessa maneira não existe a melhor forma ou o melhor sistema
de governo; mas existem sistemas de governos diferentes em
sociedades com cultura e história diversas. A qualidade do governo
e da democracia em cada país dependerá da qualidade do voto dos
eleitores e de como estes cobram e fiscalizam a ação dos governantes,
sejam eles presidentes ou primeiros-ministros.

Pesquise mais
A mais antiga forma de governo é a monárquica. Por sua longevidade,
ela já se expressou de muitas formas e modos ao longo da história e seu
significado pode ser aprofundado, tal como você pode pesquisar mais
no link a seguir. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/a-camara/
documentos-e-pesquisa/estudos-e-notas-tecnicas/areas-da-conle/
tema6/estudo-sistemas-de-governo-br-fr-e-eua>. Acesso em: 3 ago. 2017.

Sem medo de errar


Agora ficou fácil compreender porque nem sempre países
republicanos são presidencialistas, bem como, em geral, as monarquias
constitucionais optam pelo sistema de governo parlamentarista.
A primeira coisa é lembrar sempre que forma de governo é
diferente de sistema de governo. São duas as formas de governo mais
comuns: 1) a Monarquia e 2) a República, e podem ser três os sistemas
de governo: 1) Presidencialista; b) Parlamentarista; e c) Presidencialista
Dual ou Semipresidencialista.
Gaspar agora sabe que a forma de governo tem a ver com o
fundamento geral das instituições. Isso quer dizer que a Inglaterra,
ao fazer a opção pela Monarquia, não quis deixar de lado velhas
tradições da cultura política, que estão relacionadas aos princípios de
hereditariedade e representação histórica.
Já os Estados Unidos da América, ao optarem pela forma
republicana, valorizaram a dinâmica da esfera pública nos fundamentos
do Estado, superando tradições em busca de uma representação
mais coletiva e diversa.
No entanto, a Inglaterra teve de organizar as instituições
representativas e, ao escolher o modelo parlamentarista, delegou ao
Poder Legislativo a escolha do chefe de governo responsável pela
execução dos orçamentos e das políticas de estado, bem como pela

132 U3 -Formas e exercício do poder


escolha de seus ministros e secretários. Lá, o Poder Executivo nasce
no interior do Legislativo. O primeiro-ministro é o chefe de governo
e, a rainha, a chefe de Estado. É claro que, embora haja muita pompa
para a rainha, quem manda efetivamente porque chefia o governo é
o primeiro-ministro, eleito pelo parlamento.
No caso de países como os EUA e o Brasil, que fizeram a opção
pelo sistema de governo presidencialista, a chefia do Estado e do
governo está embutida em apenas uma pessoa, presidente eleito
diretamente. Ele, entretanto, terá de conviver com os representantes
do legislativo, eleitos separadamente. Assim, embora o presidente
possa dar concretude às leis por meio de programas e orçamentos,
ele dependerá da ação legislativa no que tange à criação de leis que
o permita governar.
Enfim, ao ver as notícias sobre as eleições na França, Gaspar
entendeu com facilidade o que significa o semipresidencialismo
naquele país: o presidente é eleito diretamente pela população e
o primeiro-ministro é referendado indiretamente pelo parlamento.
Ambos terão de compartilhar o poder de Estado e de governo,
acordando suas decisões quanto aos rumos das políticas que serão
praticadas.

Avançando na prática
Entre o velho e o novo
Descrição da situação-problema
Lendo um capítulo de um livro de história da América, Gaspar
notou que todos os países que se tornaram independentes entre
fins do século XVIII e início do século XIX, tornaram-se repúblicas
presidencialistas, exceto o Brasil.
Diferentemente de todas as outras nações do Norte, do Centro e
do Sul do continente americano, apenas o Brasil escolheu ser uma
Monarquia. Gaspar ficou intrigado.
Por que o Brasil teria feito uma escolha tão diferente de seus
vizinhos? E mais: o que significava, de fato, o Brasil ser uma Monarquia
e não uma República?

U3 - Formas e exercício do poder 133


Resolução da situação-problema
Uma vez que a forma de governo tem relação direta com os
fundamentos políticos e culturais de um estado-nação, a escolha
pelo tipo de governo adotado deixa ver certos interesses que podem
estar por trás das instituições.
Gaspar pensou que se o fundamento da República é a coisa
pública, a coisa de todos e o fundamento da Monarquia é o poder
de um amparado nas tradições e na hereditariedade, talvez não
houvesse muito apreço dos brasileiros no início do século XIX pela
questão pública.
Se o Brasil optou por ser uma Monarquia em 1822, diferentemente
de todos os outros países do continente americano, é porque,
provavelmente, havia interesses tradicionais que condicionaram a
criação das instituições nacionais. De fato, basta pensar que D. Pedro
I, imperador do Brasil, era filho do Rei de Portugal, D. João VI. O
primeiro monarca do Brasil não era brasileiro.
Nesse contexto, Gaspar pensou: o Brasil se tornou independente
de Portugal, assim como antes os EUA se tornaram independentes da
Inglaterra, mas não rompeu com as tradições de seus colonizadores
e, por isso, optou pela Monarquia, na qual os laços de sangue são
mais importantes que “a coisa de todos”.

Faça valer a pena


1. A forma de governo diz respeito à organização do Estado, em termos
gerais, de suas estruturas de poder, bem como quais são os fundamentos
do poder de Estado e de governo. Em outras palavras, em quais valores
culturais da política o Estado está fundamentado. No Ocidente, desde há
muitos séculos, duas formas de governo têm sido utilizadas para dar base
à estrutura geral das constituições, a Monarquia e a República.
Os significados das palavras Monarquia e República são:
I – Mono = um; arquia = governo, isto é, o governo de um.
II – Res = cidadãos; pública = todos, isto é, governo dos cidadãos públicos.
III – Mono = todos; arquia = poder, isto é, poder de todos.
IV – Res = coisa; pública = todos, isto é, a coisa de todos.
a) I e IV são verdadeiras.
b) II e III são verdadeiras.
c) III e IV são verdadeiras.
d) I e II são verdadeiras.
e) I e III são verdadeiras.

134 U3 -Formas e exercício do poder


2. Em geral, as monarquias constitucionais optaram historicamente
pelo sistema de governo parlamentarista e, as Repúblicas, pelo sistema
presidencialista. A Inglaterra e a Dinamarca, por exemplo, são países cuja
forma de Estado é monárquica e o sistema de governo é parlamentarista.
Já entre os países que optaram pela forma de governo republicana, é mais
comum a opção pelo sistema presidencialista, tal como ocorre no Brasil e
nos Estados Unidos.
Além do presidencialismo e do parlamentarismo, há um terceiro sistema
de governo, o:
a) Paraparlamentarismo.
b) Superpresidencialismo.
c) Monarquismo democrático.
d) Semipresidencialismo.
e) Suprarepublicanismo.

3. Há um sistema político no qual optou-se por uma distinção clara entre


os poderes de Estado, pois o presidente é o chefe do Poder Executivo,
responsável pela administração direta, que não pode criá-las. A criação
das leis fica a cargo do Poder Legislativo, cujos membros (deputados) são
eleitos separadamente das eleições presidenciais. Por fim, um terceiro
Poder, o Judiciário, encarrega-se de fiscalizar as ações dos Poderes
Executivo e Legislativo.
O trecho anterior diz respeito a qual tipo de sistema de governo?
a) O parlamentarista.
b) O presidencialista.
c) O monárquico.
d) O republicano.
e) O semiparlamentarista.

U3 - Formas e exercício do poder 135


Referências
ALENCASTRO, L. F. Cultura democrática e presidencialismo no Brasil. Novos Estudos,
Cebrap, São Paulo, n. 26, p. 21-30, mar. 1993.
BOBBIO, N. Democracia. In: BOBBIO, N.; MATEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de
Política. 11. ed. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1998.
CHÂTELET, F.; DUHAMEL, O.; PISIER-KOUCHNER, E. História das ideias políticas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
COMTE, A. Comte: sociologia. São Paulo: Ática, 1978.
COTTA, M. Parlamento. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de
política. v. 2. Brasília: UNB, 2010.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
LA BOÉTIE, E. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1999.
MARX, K.; ENGELS, F. Obras escogidas en dos tonos. Moscou: Editorial Progresso, 1966.
SARTORI, G. Engenharia constitucional. Brasília: UNB, 1996.
WEBER, M. Weber: sociologia. São Paulo: Ática, 2002.
WEFFORT, F. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2002. v. 2.

136 U3 -Formas e exercício do poder


Unidade 4

Sistemas eleitorais e
partidários
Convite ao estudo
Unindo um olhar sobre o desenvolvimento histórico a
uma abordagem conceitual, convidamos você a trilhar um
percurso que se inicia pelo entendimento dos partidos políticos.
São instituições que se relacionam com o poder e com a
representação, sendo que para formalizá-la, é necessário ter um
conjunto de normas legalmente reconhecidas, estruturando
nossas escolhas, o que chamamos de sistemas eleitorais. A
competição e a relação entre os partidos não ficam de fora
da exigência dessa normatização, eis que temos os sistemas
partidários.

A ideia é aprofundar o assunto da unidade anterior, quando


nos voltamos às questões das formas de dominação, poder
e autoridade, pois na era Contemporânea, o fenômeno da
dominação política se transformará na representação política,
que é a fórmula de organização do poder após as revoluções
burguesas ocorridas entre o fim do século XVIII e o primeiro
quarto do século XIX.

Assim, aumentaremos a nossa capacidade de reflexão e


conhecimento por meio da ampliação de conceitos e teorias
da Ciência Política voltados à compreensão das relações entre
a sociedade e o Estado.

Para isso, iniciaremos a discussão sobre o conceito clássico


de partido político, verificando o contexto de seu surgimento,
bem como sua importância e função no desenvolvimento da
política contemporânea.

A seguir, na segunda seção da unidade, abordaremos a


crítica ao típico partido político surgido no século XIX, para
compreender as novas organizações partidárias surgidas no
contexto de emergência das lutas sociais relacionadas ao
mundo do trabalho, isto é, aos partidos políticos que visam não
só participar do jogo da representação política, mas também ser
instrumentos de transformação da ordem social.

Assim, ao abordarmos o assunto, faremos uma revisão de


tópicos já discutidos sobre a relação da política com a economia
e da crítica ao sistema capitalista pela corrente socialista.

Ao final, na terceira seção da unidade, conheceremos como


estão organizados os diferentes sistemas eleitorais e partidários.
O objetivo é esclarecer o que são eleições majoritárias e
proporcionais, bem como entender quais são as diferenças
entre os sistemas bipartidários e pluripartidários.

Assim, essa unidade perseguirá questões como: o que são


partidos políticos? Qual é sua função? Como funcionam os
sistemas eleitorais? Quais são os sistemas partidários existentes?

Dessa maneira, vamos aprofundar o debate sobre o poder e


a representação política?

138 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Seção 4.1
Partidos políticos
Diálogo aberto
Nesta seção, discutiremos as principais teorias voltadas à
conceituação e à compreensão dos partidos políticos. A ideia é, ao
final, saber o que são e como nasceram os partidos políticos, quais
são suas funções, bem como quais são as diferenças existentes entre
os tipos de partidos políticos que podem estar relacionados à elite
política, a uma massa social ou a quadros dirigentes profissionais.
Sobre a importância do tema, atualmente, estão cadastrados no
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) 35 partidos políticos que atuam na
política brasileira (<http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/
registrados-no-tse>. Acesso em: 12 ago. 2017.). Esses partidos têm
bases sociais e políticas distintas e isso ocorre no jogo político de
todas as nações em que os sistemas representativos vigoram.
E não é só no jogo político, nos diferentes países, que a noção
de partido se aplica. Vejamos, por exemplo, o que ocorreu em uma
faculdade de São Paulo quando os alunos se organizaram para formar
um centro acadêmico:
Um ex-aluno, já formado na instituição, chamado Robson,
convocou uma reunião com os alunos do curso de Pedagogia para
a criação de um Centro Acadêmico. A ideia de Robson era reunir ex-
alunos formados na instituição e alunos que ainda estavam cursando
a faculdade para montar o que ele denominava de um “Centro
Acadêmico integrado dos alunos e ex-alunos do curso de Pedagogia”.
Ao abrir a reunião e contar sua proposta, um grupo de alunos,
embora concordasse com a criação de um centro acadêmico, não
assentiu a ideia de reunir ex-alunos e alunos vigentes na mesma
entidade. A discussão logo se formou e dividiu os mais de 40
participantes da reunião.
Uma parte concordava com Robson, outra discordava dele e,
consequentemente, concordavam com Rosana, que liderou a crítica
à proposta de Robson.
Um terceiro grupo, no entanto, se opôs às duas visões,
argumentando que a decisão sobre o tipo de organização a ser

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 139


formada tinha que partir de um diálogo com todos os alunos, já que
apenas 40 dos 174 alunos do curso estavam presentes.
No debate, três grupos de interesse divergiam em como organizar
o Centro Acadêmico.
Será esse caso um exemplo de formação e conflito, tal qual ocorre
com os partidos políticos?
A leitura desta unidade permitirá a reflexão sobre o tema e uma
resposta à questão.
Boa leitura!

Não pode faltar


Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009, p.
1439), a palavra “partido” diz respeito aquilo "que se partiu"; que está
"quebrado; fragmentado" ou "dividido em partes". Essa definição, que
a princípio pode não parecer muito elucidativa para a política, ajuda a
compreender a origem e o uso do termo para designar associações
humanas voltadas à disputa do poder.
Essa é a primeira definição que devemos buscar para uma
compreensão do que vem a ser um partido político: uma associação,
um clube de interesse, uma organização coletiva, em que membros
se reúnem segundo uma intenção determinada para disputar o poder
dentro de uma comunidade, uma organização, um grupo social.
No sentido mais específico e, também, como veremos, histórico,
os partidos políticos guardam relação com as facções, ou agremiações
de interesses. Por isso, a palavra significa “quebra”; “fragmentação”
e “divisão”, pois não se pode esperar que em uma determinada
comunidade, organização ou sociedade, todos os membros pensem
as mesmas coisas, compartilhem dos mesmos ideais e busquem os
mesmos fins.
Pelo contrário, o que em geral, se observa nas relações humanas
é o princípio da alteridade, isto é, da diferença e alteração entre uns
e outros; e não só nas diferenças de classe, etnia, credo etc., mas
também na diversidade de opinião, de ideologia, de preferência por
uma ou outra via de construção política do que julgam ser bom para
o presente e para o futuro.
Por um lado, os partidos são a expressão política da diversidade de
pensamento, por outro, da identidade ou unidade de finalidades , pois

140 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


sempre haverá aqueles que compartilham, em meio a complexidade
das diferentes formas de pensar e agir politicamente, mais ou menos
a mesma ideologia, a mesma visão de mundo, isto é, formas mais ou
menos parecidas de pensar o passado, o presente e o futuro.
O partido político deve ser a instituição na qual indivíduos de
ideologia similar se agremiam no sentido de tornar exequível parte
de sua maneira de pensar e agir no mundo, sempre com a intenção
determinada de liderar politicamente as transformações institucionais
e sociais de seus contextos históricos.
Entre os muitos pensadores e teóricos que se ocuparam de pensar
os partidos políticos, o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920)
registra uma definição muita oportuna para contribuir na resposta à
questão: o que é um partido político? Vejamos o que disse o autor:

Os partidos têm seu lar na esfera do poder. Sua ação


dirige-se ao exercício de poder social, e isto significa:
influência sobre uma ação social, de conteúdo qualquer:
pode haver partidos, em princípio, tanto num clube social
quanto num Estado. A ação social típica dos partidos (...)
implica sempre a existência de uma ação associativa, pois
pretende alcançar, de maneira planejada, determinado
fim - seja este de natureza objetiva: uma imposição
de um programa por motivos ideais ou materiais,
seja de natureza pessoal: prebendas, poder e, como
consequência deste, honra para seus líderes e partidários,
ou, o que é o normal, pretende conseguir tudo isto em
conjunto. (WEBER, 1999, p. 185)

Segundo o autor, um partido político - além daquilo que já


consideramos - é uma associação humana diretamente relacionada
ao poder; ou melhor, à disputa do poder político. Essa agremiação
que disputa o poder político objetiva aumentar sua parte efetiva de
participação nas decisões políticas conforme aquilo que pensa ser -
segundo um programa previamente organizado - o mais adequado
para atingir seus objetivos.
Para isso, segundo o que deixa entrever a citação do sociólogo
alemão, os partidos tenderão sempre a buscar seus objetivos por
meio da atração de um número cada vez maior de adeptos. Uma vez
que os partidos políticos são, antes de tudo, entidades de associação
e agremiação fundadas em torno de interesses específicos, tanto

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 141


maior poderá ser o seu poder quanto mais politicamente predispostos
estiverem os membros que o compõem.
Dessas considerações iniciais é possível depreender que um
partido político pressupõe a participação efetiva de indivíduos
interessados em uma certa direção de disputa do poder e que, dentro
das organizações partidárias, haverá aqueles responsáveis por recrutar
novos adeptos ao programa e à ideologia do partido.
Isso quer dizer que os partidos políticos têm lideranças responsáveis
por manifestar o programa partidário e atrair correligionários aos seus
objetivos. O problema é que, historicamente, os partidos nasceram
nas mãos daqueles que já estavam de algum modo relacionados ao
poder constituído.
A esse respeito, o cientista político francês Duverger (1917-2014)
registrou que:

Chamam-se igualmente 'partidos' as facções que


dividiam as Repúblicas antigas, os clãs que se agrupavam
em torno de um condottiere na Itália da Renascença, os
clubes onde se reuniam os deputados das assembleias
revolucionárias, os comitês que preparavam as eleições
censitárias das assembleias revolucionárias, bem como
as vastas organizações populares que enquadram
a opinião pública nas democracias modernas. Essa
identidade nominal justifica-se por um lado, pois traduz
certo parentesco profundo: todas essas instituições não
desempenham o mesmo papel, que é o de conquistar o
poder político e exercê-lo? (DUVERGER, 1970, p. 20)

O fato é que os primeiros partidos políticos nasceram, como sugere


a citação de Duverger, de situações históricas, nas quais a disputa do
poder separava grupos e opiniões em um sentido programático.
Em todo caso, a definição mais moderna do conceito que
pressupõe o aparecimento de lideranças responsáveis por fazer
propaganda das ideias políticas dos programas partidários, está mais
diretamente relacionada ao início do século XIX em alguns países
europeus e nos Estados Unidos. Essas lideranças estão ligadas
às disputas parlamentares surgidas com o advento do sistema
representativo organizado após as revoluções burguesas.

142 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Assimile
Partidos políticos são instituições resultadas da agremiação entre
indivíduos que têm um interesse comum e cuja disputa por esses
interesses acontece na competição pelas instituições de comando
político. Partidos políticos são associações humanas que objetivam
conquistar o poder; o controle político dos demais.

Assim, os primeiros partidos políticos surgidos no mundo


contemporâneo são agremiações parlamentares ligadas aos
interesses específicos da classe burguesa em ascensão, que buscará
na sociedade, o respaldo (eleitores) para a consecução de seus
programas ideológicos.
Os partidos políticos nascem de uma relação fortemente
hierárquica e, embora haja representação e as lideranças precisem de
votos para chegarem ao poder nas democracias, há acima das bases
eleitorais do partido, um grupo de notáveis já relacionados ao poder
preestabelecido, que oligarquicamente comandam os eleitores. Isso
afasta a "totalidade dos membros inscritos" do programa partidário
e o partido tende a ter "um fim em si mesmo, dando-se propósitos
e interesses próprios" que o "separa pouco a pouco da classe que
representa" (MICHELS, 1982, p. 234).
O sociólogo alemão Robert Michels (1876-1936) sugere que todo
partido tende a essa "lei de bronze da oligarquia", pois, segundo o
autor,

Toda organização de partido representa uma potência


oligárquica repousada sobre uma base democrática.
Encontramos em toda parte eleitores e eleitos. Mas
também encontramos em toda parte um poder quase
ilimitado dos eleitos sobre as massas que elegem.
A estrutura oligárquica do edifício abafa o princípio
democrático fundamental. O que é oprimido, o que
deveria ser. Para as massas, essa diferença essencial
entre a realidade e o ideal é ainda um mistério. (MICHELS,
1982, p. 238)

Ainda nesse sentido, segundo o autor:

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 143


Um partido não é nem uma unidade social, nem uma
unidade econômica. Sua base está formada pelo seu
programa. Este pode muito bem ser a expressão teórica dos
interesses de uma determinada classe. Mas, na prática, cada
um pode aderir a um partido, independentemente de seus
interesses privados coincidirem ou não com os princípios
enunciados no programa. (MICHELS, 1982, p. 232)

Em todo caso, a despeito dos problemas de hierarquia e de


formação histórica dos partidos cuja origem está diretamente
identificada com as elites burguesas, com as oligarquias do capitalismo
do século XIX, enfim, com os notáveis, devemos ter em mente que
partidos políticos existem mesmo em realidades em que não há
democracia representativa e eleições livres.
Como exemplo histórico desse fenômeno basta pensar no Partido
Nacional Socialista na Alemanha nazista chefiada por Hitler. O partido
era uma agremiação para fazer valer o programa político do Estado
e irradiar e propagar sua ideologia à sociedade. O partido era um
instrumento de propaganda para a difusão de uma “ideologia oficial”,
não uma agremiação para reunir correligionários que enfrentariam
outros partidos em eleições livres.
Isso nos leva a pensar que existem diferentes tipos de partido
nascidos em contextos e situações históricas específicas. Em todo
caso, antes de discorrermos acerca desses tipos de partidos, vale,
para completarmos a reflexão sobre o conceito de partido político, a
definição do cientista político italiano Sartori (1924-2017): "um partido
é qualquer grupo político identificado por um membro oficial que se
apresenta nas disputas, e é capaz de colocar através de eleições (livres
ou não), candidatos a cargos públicos." (SARTORI, 1982, p. 72)
Por outro lado, pode-se pensar também em diversos partidos
políticos nascidos de agremiações sindicais e operárias, cujas lutas
relacionadas à melhoria das condições de trabalho, de salário etc.,
levaram à formação de lideranças e grupos interessados em combater
a ideologia burguesa, que fez nascer os primeiros partidos. Logo, nem
todos os partidos nasceram da atuação de notáveis, pois há aqueles
relacionados à classe trabalhadora.

144 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Pesquise mais
O portal do Supremo Tribunal Eleitoral (TSE) brasileiro traz interessantes
informações sobre a história da legislação partidária e eleitoral e dos
partidos políticos do país desde 1945 aos nossos dias. Constitui, uma
importante e oficial fonte de pesquisa para a ciência política. Disponível
em: <http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos>. Acesso em: 15
jul. 2017.

Em todo caso, se o que caracteriza qualquer partido político


é seu interesse deliberado em participar da luta política e disputar
poder político, de outro lado são as diferenças internas, no tipo de
organização e na origem da agremiação, que indicam a necessidade
de se falar em diferentes tipos de partidos políticos. O fato é que:

A estrutura dos partidos caracteriza-se pela sua


heterogeneidade. Sob o mesmo nome, designam-se três
(...) tipos sociológicos diferentes pelos seus elementos de
base, pelo seu arcabouço geral, pelos laços de atributos
comuns que ali se unem, pelas instituições dirigentes.
(DUVERGER, 1970, p. 35)

O primeiro tipo de partido político se aproxima daquilo que a


literatura de ciência política chama de “partidos dos notáveis” ou
“partido elitista”. Esse tipo de partido busca se estabelecer por meio
do agrupamento e projeção de personalidades capazes de gerar
uma identificação que possa garantir apoio social e eleitoral, sem que
seja necessário a formação de grandes grupos de correligionários ou
adeptos diretamente filiados ao partido.
Nessa tipologia partidária, os notáveis, isto é, as personalidades que
disputam processos eleitorais e de escolha dentro e fora do partido,
devem ser capazes de fazer representar antes as vontades sociais do
que somente o programa partidário.
Como casos típicos desse tipo de partidos, basta pensar nos dois
dos Estados Unidos: o democrata e o republicano. Naquele país, os
partidos dependem mais de candidatos fortes, capazes de expressar
a vontade nacional em seus discursos, do que de um grande número
de filiados e seguidores do partido.
Para que isso fique mais claro, vale dizer que naquele país não

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 145


existem apenas os dois partidos citados e que são deveras conhecidos.
Pelo contrário, existem dezenas de partidos políticos organizados
pelos mais diferentes modelos e ideologias políticas, mas apenas
os dois - o democrata e o republicano - têm chance de disputar a
política nacional, visto que têm bases nacionais capazes de produzir
lideranças de projeção em todo o país.
Em arranjos políticos parlamentaristas (tal como alguns que
citamos no final da unidade anterior), também é comum a formação
de partidos que dependem de notáveis para lograr êxito eleitoral.
Na Inglaterra, por exemplo, a escolha do primeiro ministro é muito
mais influenciada pela capacidade política e notoriedade da liderança
partidária do que pelo tamanho e/ou do número de filiados dos
partidos concorrentes.
Diferentemente dos partidos de tipo elitista, cuja identificação
histórica está relacionada aos interesses da burguesia ascendente
desde o início do século XIX; há partidos cuja relação contextual está
ligada à ascensão dos movimentos operários e socialistas de fins do
século XIX.
A esses partidos que nasceram das agremiações sindicais e
socialistas, a ciência política chama “partido político de massa”, pois
diferentemente do “partido dos notáveis”, a estrutura do partido não
advém da luta parlamentar, mas, sim, das associações e seções da
base de trabalhadores que fornecem lastro político às iniciativas do
partido que podem ou não se realizar na disputa eleitoral.
Esse tipo de partido tem uma estrutura piramidal: na base, o
conjunto dos trabalhadores distribuídos nas diferentes localidades; no
meio, um grupo de dirigentes regionais responsáveis pelas atividades
de recrutamento e propaganda partidária; e. enfim, a cúpula do
partido formada por lideranças eleitas pelos delegados enviados das
diferentes seções regionais.
A esse tipo de partido, cuja origem está diretamente relacionada,
como dissemos, à luta dos trabalhadores e ao fortalecimento das
ideologias socialista e comunista, estará reservada à próxima seção
de nossa unidade.
Há, entretanto, um terceiro tipo de partido, ao qual a ciência política
denomina “partido de quadros”. Se a fonte do poder organizacional dos
“partidos de massa” está na quantidade de adeptos ao seu programa
e, no caso dos “partidos de notáveis”. é a notoriedade das lideranças

146 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


que garantem êxito eleitoral à agremiação; no caso dos partidos de
tipo “de quadros” é a qualidade, a preparação, a formação técnica,
política e a capacidade de gerenciamento administrativo e financeiro
das lideranças do partido que darão bases ao seu desempenho.
Um partido dito “de quadros” precisa ter entre seus correligionários
indivíduos "cujo nome, prestígio e fama servirão como aval do
candidato", que terá por trás de si "técnicos (...) que conheçam a arte
de manipular os eleitores e organizar campanhas". Assim, "o que os
partidos de massa obtêm com o número, os partidos de quadro
obtêm com a qualidade." (DUVERGER, 1970, p. 102)
Exemplificando
Grande parte dos partidos políticos brasileiros nasceu de disputas
parlamentares em diferentes momentos históricos e são, por isso,
mais próximos dos assim chamados “partidos da elite” ou dos notáveis.
Vejamos: os três maiores partidos brasileiros são o Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), que nasceu do grupo parlamentar
chamado MDB que fez oposição ao regime militar entre 1966 e 1979;
o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), por sua vez, saiu
com dissidência do PMDB nas discussões parlamentares suscitadas no
processo constituinte de 1987. Apenas o Partido dos Trabalhadores (PT),
fundado em 1980, nasceu baseado em sindicatos e organizações da
sociedade civil. Nasceu fora, portanto, da lógica dos antigos grupos que
já estavam no poder. Assim, para exemplificarmos por meio da história do
país, PMDB e PSDB são partidos que podem ser compreendidos pelo tipo
de partido dos notáveis e o PT como um partido de massas. No entanto,
o próprio PT foi adquirindo ao longo do tempo uma característica que
o aproximou do partido de quadros e pode-se argumentar que acabou,
também, por se aproximar da lógica tradicional dos partidos elitistas.

Não obstante, o que enumeramos até aqui são definições didáticas


que ajudam a pensar sobre a característica principal de um ou outro
partido em diferentes conjunturas e situações históricas.
Em todo caso, como quase tudo em política, não há receita
nem modelo teórico seguidos à risca, pois em realidade, um partido
originado nas massas pode vir a formar uma elite dirigente, como
afirma Michels (1982), bem como um partido de notáveis pode vir a
receber cooperação de quadros técnicos capazes de aprimorar seu
contato com os eleitores.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 147


Se nesse ponto já sabemos o que vem a ser um partido político,
bem como quais são os três principais tipos de partidos - de notáveis,
de massas e de quadros - resta ainda refletirmos um pouco sobre a
função dos partidos políticos.
Os partidos políticos cumprem, por assim dizer, com duas
importantes funções nos sistemas políticos contemporâneos:
a primeira função está relacionada à opinião pública e ao que os
cientistas políticos chamam "questionamento político" (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 2010, p. 904). Isso quer dizer que os
partidos políticos cumprem a função de orientar suas práticas,
em parte, baseados em certas prioridades da sociedade que estão
anunciadas em acordo ou desacordo com o status quo, com o
sistema e a situação vigentes.
Reflita
Atualmente, o Brasil tem 35 diferentes partidos disputando o poder
político no país. Se os partidos devem cumprir a função de conduzir
os questionamentos políticos da sociedade nas disputas eleitorais, será
que há, de fato, 35 diferentes projetos políticos no Brasil? Ou serão os
partidos políticos brasileiros resultados de uma distância entre a teoria e a
prática políticas? Ainda, o que significaria na verdade a existência de tantos
partidos? Há interesses por trás disso? Poderia ser diferente? Reflita.

Ao mesmo tempo em que o partido deve ser um fio condutor


do questionamento político da sociedade, ele é, por excelência, a
instituição protagonista no processo eleitoral e exerce a função de
ser concorrente na disputa política, para mais tarde, se lograr êxito
na eleição e conquistar o poder, governar em nome dos enunciados
previstos no seu programa ideológico. Programa esse, resultado da
sua primeira função, ser um condutor do questionamento político,
para cumprir com sua segunda função, disputar uma concorrência
eleitoral, para, se eleito, governar.
O grande problema que se coloca, entretanto, é aquele voltado
ao que diz o programa ideológico dos partidos e como seus agentes
se comportam na prática. Nas mais diversas conjunturas, casos e
contextos é difícil encontrar uma situação em que as lideranças de
um determinado partido agem com rígida disciplina, observando os
enunciados de seus programas partidários, tanto no momento de
concorrer à eleição quanto no momento de governar, quando eleitos.

148 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Evidentemente que, muitas vezes, as lideranças partidárias e os
programas dos partidos são alterados ou não são seguidos à risca
porque as condições objetivas, isto é, a realidade dos fatos políticos,
tais como desenrolados em um determinado contexto, podem exigir
que os partidos e seus correligionários mudem de tática para poder
alcançar sucesso em suas propostas. Por isso, táticas e estratégias
podem parecer distantes do programa original dos partidos, portanto,
podem ser utilizadas para enfrentar diferentes contextos e conjunturas.
Assim, mais uma vez, será necessário lembrar o que parece ser
lugar comum em política: as teorias servem à compreensão sobre as
práticas nos mais diversos contextos, mas as práticas, por sua vez, não
obedecem à teoria.

Sem medo de errar


Os partidos políticos são instituições cujas origens históricas
são imprecisas, mas na sua versão moderna estão diretamente
relacionados à ascensão da classe burguesa aos organismos de
condução dos negócios políticos do Estado.
Assim, desde o início do século XIX, pode-se encontrar,
principalmente na Europa e nos Estados Unidos, organizações
políticas, cuja identificação de seus membros buscava a disputa das
instituições de governo para o cumprimento daquilo que julgavam
ser o melhor, segundo o programa de suas agremiações, facções.
Os partidos políticos começam a existir no contexto de
organização e disputa do poder nos parlamentos surgidos com os
sistemas representativos, resultados das revoluções burguesas. Assim,
os partidos servirão e ainda servem para conduzir os questionamentos
da sociedade nos processos de disputa política, bem como
organizadores oficiais a representar o interesse de grupos e eleitores
nos processos de concorrência eleitoral.
Desse modo, os partidos, em geral, expressam interesses de
grupos, classes, regiões e localidades e devem ser mais ou menos
diferentes e heterogêneos entre si e mais ou menos íntegros e
homogêneos internamente.
Como são resultados das lutas políticas e das expressões de
coletivos e/ou lideranças políticas em diferentes contextos históricos,
eles não necessariamente existem apenas em nações livres e
democráticas, haja vista que, mesmo em ditaduras ou regimes de

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 149


exceção, houve o uso de partidos políticos para a divulgação da
ideologia oficial do Estado.
No caso da disputa política formada em torno da criação do Centro
Acadêmico Integrado dos alunos e ex-alunos do curso de Pedagogia
da faculdade cursada por Robson, o problema não é diferente.
Repare que todos os três grupos envolvidos na discussão de como
deveria ser a composição do Centro Acadêmico concordavam com
o mesmo objetivo: criar a instituição de representação dos alunos.
Em todo caso, como, em geral, são as questões políticas voltadas
à organização de instituições e propostas, a ideia de Robson, que
aqui podemos pensar como uma elite partidária (pois devemos
considerar que entre todos os participantes da discussão ele era o
único já formado, um notável, por assim dizer), não foi aceita de saída.
Rosana, por pertencer a um outro grupo social (o dos alunos que
ainda cursavam a faculdade de Pedagogia) não achou cabível que a
iniciativa da criação do Centro Acadêmico partisse de um ex-aluno;
ela se colocou como uma liderança da parte dos alunos que a seu
ver não estava ali representada. Ela se colocou como um quadro
dirigente de uma proposta contrária ao pensamento de Robson.
Já o terceiro grupo de alunos se assemelha mais a uma iniciativa
partidária de massa, uma vez que achava importante considerar a
totalidade dos alunos no processo de criação do Centro Acadêmico.
Assim, é a luta política que divide opiniões e partidos, muitas vezes
em busca de objetivos comuns. Perceba que não só “o que se quer
fazer” é o ponto de discussão, mas também o “como se quer fazer”.

Faça valer a pena


1. Entre os teóricos da sociologia e da ciência política que se dedicaram
a reflexões e à elaboração de modelos de explicação e crítica sobre
partidos políticos, Robert Michels se destaca por registrar aquilo que ficou
conhecido como lei de bronze da oligarquia.
Segundo os pressupostos teóricos do autor, é correto afirmar que:
a) Todo partido político tende à formação de uma hierarquia que separa as
lideranças dos liderados.
b) Todo partido político é e tende a ser, em qualquer caso, um instrumento
da construção da democracia.
c) Os partidos políticos são típicos das democracias e, por isso, impedem a
formação de oligarquias.
d) Os partidos políticos são expressões do conjunto dos seus membros.

150 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


e) Os partidos políticos tendem, historicamente, a enfraquecer as relações
de hierarquia entre seus membros.

2. Os partidos políticos têm diferentes origens históricas e sociais, de modo


que pode se falar em partidos ou agremiações de interesses específicos
desde tempos remotos. A definição contemporânea de partido político,
no entanto, está associada a eventos relativamente recentes da história do
Ocidente.
Assim, é correto afirmar que os primeiros partidos políticos modernos
nasceram logo após:
a) As revoluções proletárias.
b) As revoluções burguesas.
c) O surgimento do feudalismo.
d) A reforma protestante.
e) A Segunda Guerra Mundial.

3. Embora os primeiros partidos políticos tenham nascido de grupos


parlamentares relacionados às transformações políticas, econômicas
e sociais decorrentes da ascensão da burguesia às instituições estatais,
houve, em fins do século XIX, uma importante mudança na composição
dos partidos políticos.
Essa mudança na composição dos partidos políticos foi ocasionada,
principalmente, pela:
a) Organização política dos donos de indústria.
b) Organização política dos camponeses.
c) Organização política da classe trabalhadora.
d) Organização política dos setores de classe média.
e) Organização política dos clubes de classe.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 151


Seção 4.2
Partidos políticos revolucionários
Diálogo aberto
Após estar formado o “Centro Acadêmico integrado dos alunos e
ex-alunos do curso de Pedagogia”, uma nova situação se colocou aos
alunos envolvidos no jogo político universitário.
Além dos grupos envolvidos na questão entre a participação dos
ex-alunos e dos alunos atuais, uma nova frente política se formou
dentro da instituição.
Trata-se de um grupo de alunos que viu na oportunidade da
agremiação ao Centro Acadêmico não só um espaço para debater
questões da faculdade e do curso, também um espaço para debater
questões relacionadas à educação do país.
Mais de 50 alunos se engajaram nessa nova frente preocupada
com questões educacionais e lançaram uma chapa (um partido, por
assim dizer) chamada “Frente universitária de luta pela educação”.
Diferentemente dos outros colegas que também participaram da
formação do Centro Acadêmico, esse grupo achou que as discussões
em torno de questões da faculdade e da transição de grupos no Centro
Acadêmico eram uma discussão menor se comparada à questão da
educação no país. Assim, na opinião dessa nova corrente, o papel de
um Centro Acadêmico era ir além das questões políticas institucionais
da faculdade, era servir de espaço para uma participação que mude a
situação da educação no país.
Será que isso ocorre na política em geral? São grupos e partidos
que se formam com interesses que vão além dos institucionais e
eleitorais? Vamos à leitura desta seção em busca de uma reflexão
sobre isso.

Não pode faltar


Na seção anterior, iniciamos o estudo do tema dos partidos
políticos com vistas a compreender sua definição conceitual, sua
história, bem como a função que essas organizações exercem na
disputa pelo poder.

152 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Ao visitar os principais autores que trataram do tema, vimos que
existem diferentes tipos de partido, cuja origem e significado políticos
são diversos na sua composição e também na forma específica que
se articulam para a participação nos conflitos políticos e nas disputas
eleitorais.
Os tipos abordados, no entanto, não dão conta de uma
compreensão voltada às organizações partidárias nascidas de
interesses mais gerais que aqueles - de origem facciosa - apontados
na seção anterior.
Assim, trataremos agora de abordar o conceito e a função de
partidos políticos que foram idealizados e criados à guisa de organizar
a luta social das vanguardas políticas, principalmente aquelas surgidas
no início do século XX.
Trata-se do tipo de organização partidária surgida no contexto da
revolução popular socialista realizada na Rússia em 1917. Trata-se de
uma abordagem sobre organizações partidárias, que têm o objetivo
de carrear o processo de luta que envolve a massa dos trabalhadores
contra as desigualdades e as contradições resultadas do sistema
capitalista.
Essas organizações partidárias se diferenciam das demais, pois não
querem apenas concorrer e participar da ordem política e eleitoral
vigentes; querem, por outro lado, constituírem-se em instrumento
ativo de organização das lutas dos trabalhadores no sentido de
liderar uma revolução social ampla. Assim, pode-se dizer que partidos
políticos do tipo revolucionário querem cumprir não só com uma
função política, mas também social.
Esse tipo de organização partidária, denominada revolucionária,
nasceu em 1898, nos antecedentes da Revolução Russa de 1917,
baseada nas ideias políticas de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels
(1820-1895).
O fato é que àquela época, na Rússia, havia diversas organizações
políticas e sociais sintonizadas com o vanguardismo revolucionário,
isto é, organizações cujo propósito era enfrentar a ordem vigente
controlada pela antiga classe dominante no território: a aristocracia
dos Czares, a monarquia vigente no controle e na dominação
da política russa. Dado que esse tipo de organização partidária
está vinculado ao que estamos chamando aqui de “vanguarda”, é
necessário o entendimento do significado do termo.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 153


A palavra vanguarda vem da expressão francesa avant-garde, cuja
tradução literal indica o pelotão frontal de um exército ou a “guarda
de frente”. Em política, o uso do termo passa a ser comum no início
do século XX para aludir aqueles movimentos ou organizações
políticas, sociais, artísticas, científicas e ou culturais que combatem o
status quo, isto é, a transformação da ordem vigente. Uma vanguarda
é, portanto, em termos políticos e sociais, um movimento que quer
romper com a ordem vigente em seus múltiplos sentidos. Para isso,
propõem o novo, anunciando novas formas de pensamento e ação
frente ao que julgam ser elementos do atraso.
Assim, são as diversas vanguardas políticas e sociais, que no início
do século XX reagiam à ordem dominante dos czares russos, que
vão dar lastro - diferentemente dos partidos políticos clássicos, onde
a força social de um grupo de interesse faz surgir a organização - à
formação do Partido Operário Social-Democrata Russo, fundado em
1898. Pelas características de reunião de diversos grupos sociais, o
partido se relaciona ao grupo político conhecido historicamente como
“Bolcheviques”, palavra da língua eslava que significa “maioritário”.
Dessa forma, o partido político de tipo revolucionário está
identificado com o conjunto dos trabalhadores e da sociedade, isto
é, com a maioria. Não se trata de uma organização partidária liderada
por aqueles relacionados ao mundo político preexistente, mas,
sim, de uma organização que representa o conjunto da sociedade,
arregimentados contra a ordem vigente em busca do novo.

Assimile
“Partidos políticos revolucionários” são partidos políticos cujo programa
ideológico prevê não somente a participação em eleições e a
concorrência com outros partidos, pois pretendem ser instrumentos
de transformação do mundo, rompendo com as estruturas políticas e
econômicas vigentes no sentido de organizar uma nova ordem social.

Para compreendermos a teoria que dá bases a esse tipo de partido


político, temos, inevitavelmente, que recorrer às ideias daquele que
foi o principal líder do Partido Operário Social-Democrata Russo e da
Revolução Socialista de 1917, o político e teórico comunista russo,
Vladimir Ilyich Lênin (1870-1924).

154 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Lênin, como é mais conhecido, desde a juventude participou de
diversas atividades e movimentos políticos de vanguarda na Rússia
governada pelos czares. Essas atividades - ilegais e clandestinas - o
colocaram em pleno contato com a leitura e a difusão das ideias
políticas de Karl Marx e Friedrich Engels.
Entre as diversas lideranças das correntes vanguardistas que criaram
o esteio político para a Revolução Socialista, Lênin se destacou como
orador e teórico, sendo, em pouco tempo, reconhecido como o
mais importante líder da corrente bolchevique; a corrente da maioria
dos camponeses e operários.
Em um texto intitulado Os partidos políticos na Rússia, escrito
por Lênin, em 1912, o político e teórico deixa entrever sua crítica aos
partidos políticos e afirma que:

Para orientar-se na luta dos partidos, não é preciso


acreditar em suas palavras; é preciso estudar a história,
menos o que eles dizem de si próprios, do que eles
fazem, como procedem para resolver diferentes
problemas políticos, como se comportam nos problemas
que dizem respeito aos interesses vitais das diferentes
classes sociais: proprietários fundiários, capitalistas,
camponeses, operários etc. (LÊNIN, 1978, p. 125)

O autor sugere que os verdadeiros objetivos e as verdadeiras


intenções de um partido político e, portanto, de seus membros, não
podem e nem devem ser avaliados por sua propaganda; por aquilo que
o partido diz ser bom ou ruim por meio da divulgação de seu programa
político. Por outro lado, os verdadeiros objetivos e intenções de um
partido político, seja ele qual for, só podem ser avaliados observando-
se a prática objetiva de seus membros quando na ação política. Assim,
para Lênin, um partido que visa ser instrumento de transformação
política, econômica e social não poderá apenas cumprir um papel
panfletário dessas ideias, visto que deverá conduzir seus membros e
correligionários para práticas políticas revolucionárias.

Reflita
No senso comum, os partidos políticos são, por vezes, compreendidos
como organizações que pouco se relacionam com o interesse da

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 155


sociedade, sendo vistos mais como instrumentos de disputa da elite
política. Em todo caso, vale refletir que foi por meio de um partido
político que se operou uma das maiores revoluções populares da
história, ocorrida na Rússia em 1917.

A prática política de um partido deve estar associada aos “interesses


vitais das diferentes classes sociais” e, portanto, um partido político
revolucionário só pode associar-se aos interesses das classes sociais
cuja representação política não está colocada no plano da disputa
política e eleitoral clássica. O partido deve ser a organização condutora
da ideia da revolução com a participação efetiva de intelectuais
especializados no tema da transformação social e da prática da
mudança social com a participação efetiva dos camponeses e
trabalhadores, ou seja, das classes cujos interesses estão identificados
com a transformação social e com a ruptura do capitalismo. Eis que,
no partido político idealizado por Lênin,

Os operários conscientes, sem nada liquidar, agrupando-


se para contrariar as influências liberais, organizando-se
como classe, desenvolvendo todas as formas possíveis
de agrupamento sindical etc., agem ao mesmo tempo,
como os representantes do assalariado contra o capital,
como os representantes da democracia consequente
contra o conjunto do regime caduco [...] (LÊNIN, 1978,
p. 135)

Lênin propunha que um partido político, enquanto a revolução


ainda não foi realizada e que, portanto, ainda não se destituíram as
relações entre o mercado e o parlamento, entre o mercado e os
partidos, deva competir dentro da lógica vigente, isto é, no ambiente
de competição partidária, tal como ele se estabelece entre os partidos
políticos clássicos, disputando votos e correligionários, mas tendo em
vista o alcance da meta revolucionária.
Em todo caso, uma vez reconhecido o fato de que as vanguardas,
as massas, enfim, o povo, passam a fazer parte da luta política
e se engajam no programa ideológico do partido, é necessário,
segundo Lênin, não perder de vista que o objetivo do partido político
revolucionário não é só ganhar o controle do Estado e do governo,

156 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


mas, também, romper com a lógica vigente, isto é, a lógica capitalista
e de controle dos grupos políticos de elite, fundamentando os passos
para a revolução social. O partido, cumprindo seu objetivo político
que é alcançar o controle das instituições estatais, deverá operar as
tarefas necessárias para o alcance da revolução social; a implantação
do socialismo.
Desse modo, [...] já que as instituições representativas existem, já
que as massas desceram para a arena política, (...) todo partido deve
necessariamente, em tal medida ou em tal outra, apelar ao povo
(LÊNIN, 1978, p. 129).
Em todo caso, a inflexão que um partido, cujas intenções
são revolucionárias, deve fazer junto ao povo, não podem estar
relacionadas com as velhas formas de se fazer propaganda dos
partidos políticos da classe burguesa, pois:

Todos os partidos burgueses, isto é, os que montam


guarda em torno dos privilégios econômicos dos
capitalistas, fazem propaganda de seus respectivos
partidos exatamente como os capitalistas fazem
propaganda de suas mercadorias (...). Infelizmente, a
propaganda política induz ao erro infinitamente maior,
é muito mais difícil desmascará-la, a mentira fixa-se aqui
muito mais solidamente. (LÊNIN, 1978, p. 124)

Dessa forma, impõem-se aos partidos políticos que objetivam a


revolução, opor-se às velhas formas de propaganda partidária que
refletem os interesses da classe burguesa e, portanto, segundo
o autor, a mentira. Deve-se compreender que, para Lênin (1978),
a propaganda partidária dos partidos burgueses se assemelha à
propaganda comum dos produtos capitalistas, que querem fazer que
o povo acredite em uma falsa necessidade e seja conduzido a uma
representação de classe que não a sua.
Para o autor, os momentos de crise política fazem surgir novos
partidos, isto é, novos interesses de classe, e competirá a uma
organização que pretenda ser instrumento da transformação política
denunciar o sistema mentiroso de propaganda partidária de classes
que não correspondem aos reais e verdadeiros interesses dos
trabalhadores em específico e do povo em geral. Todos os governos
são obrigados a encontrar apoio nas classes, mas o partido que

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 157


objetiva fazer a revolução e o novo governo deve ser o partido de
uma única classe, que é a trabalhadora.
Assim, a classe trabalhadora deverá ser expressão direta do partido
político e o partido político expressão direta da classe trabalhadora.
O partido político que atende ao interesse do povo não pode
simplesmente falar ou fazer propaganda em nome do povo. Por outro
lado, o partido deve ser formado pelo povo; o povo deve fazer parte
constitutiva do partido. Está aí a diferença do partido revolucionário
para os partidos típicos da classe burguesa. Nesse ponto, recorremos,
mais uma vez, às palavras de Lênin, para compreendermos a questão:

É, sobretudo, na época das crises profundas que abalam


todo um país que se vê aparecer claramente a divisão
de toda a sociedade em partidos políticos. Os governos
então obrigados a procurar apoio nas diferentes classes
da sociedade; a luta áspera faz com que rejeitemos
as frases, tudo o que é mesquinho e superficial; os
partidos políticos retesam todas suas forças, apelam às
massas populares, que, guiadas por seu instinto seguro,
esclarecidas pela experiência da luta à luz do dia, seguem
os partidos que representam os interesses de tal ou tal
classe. (LÊNIN, 1978, p. 125)

Assim, o partido político, para Lênin, que deseja ser a real e


objetiva representação dos interesses da classe trabalhadora, deve ser
necessariamente revolucionário, pois terá a missão de conscientizar,
por meio de dirigentes intelectuais, o povo contra as mentiras
partidárias da classe burguesa. Essas mentiras partidárias estão
associadas e relacionadas às contradições do sistema capitalista, que
deve ser superado por meio da revolução capaz de ser empreendida
apenas por um partido composto por uma massa organizada, sob as
intenções revolucionárias.
Para Lênin (1978), este partido político revolucionário, cuja
constituição está plenamente identificada com o conjunto dos
dirigentes socialistas e da classe trabalhadora, não deverá ser apenas
mero participante da propaganda eleitoral e da disputa partidária
no cenário da competição política burguesa. Por outro lado, sendo
revolucionário, o partido deverá ser instrumento da consolidação de
forças políticas que permitam destituir o Estado do capitalismo e alçar

158 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


a organização partidária revolucionária para o controle absoluto do
Estado.
Assim, a formulação do partido político por Lênin é uma crítica do
Estado Burguês com vistas à revolução e à consequente implantação
do Estado socialista que, na formulação de alguns filósofos e cientistas
políticos, é, na verdade, um Estado-Partido (CHÂTELET; DUHAMEL;
PISIER-KOUCHNER, 2000). Assim, para Lênin, o Estado socialista deve
surgir da organização partidária da classe trabalhadora, do povo. O
Estado, no socialismo, não é resultado da disputa entre partidos, mas,
sim, da representação e da ação direta da classe trabalhadora. Desse
modo:

A teoria do Partido (ou da organização revolucionária) é


o verdadeiro cadinho do leninismo. Constitui o principal
acréscimo feito por Lenin e Marx, ao mesmo tempo
em que (...) permite a Revolução na Rússia. Parte de
uma certa concepção da consciência de classe e leva
a um certo tipo de organização do proletariado. É “na
prática que o homem deve provar a verdade, ou seja, a
realidade e a potência de seu pensamento”. E, em nome
da unidade dialética entre pensamento e real, Lenin
não deixará de revisar Marx (...). O marxismo não é [para
Lênin] uma filosofia especulativa, mas uma ciência para
transformar o mundo. Essa transformação só se realizará
através de uma dialética da teoria e da prática. O agente
dessa dialética será o Partido. (CHÂTELET; DUHAMEL;
PISIERKOUCHNER, 2000, p. 218)

Na visão de Lênin, uma vez que o processo de consciência


estivesse em andamento na classe trabalhadora, seria possível, por
meio da revolução, romper com os estatutos do Estado burguês e
impor o governo do Estado-partido do povo.
No entanto, a concepção do filósofo e ativista político italiano
Antonio Gramsci (1891-1937) adiciona novos elementos para a reflexão
sobre a teoria e a prática dos partidos e organizações revolucionárias.
Gramsci (2004) sugere que o Estado burguês não opera apenas
por meio dos partidos que representam os interesses da classe
burguesa, mas, também por meio do que ele denominava “aparelhos
ideológicos” das classes.
Nessa concepção, para além dos partidos, as instituições, tal

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 159


como a igreja, a escola e a imprensa, cooperam ideologicamente no
sentido de fazer operar e divulgar a ideologia da classe dominante,
atrasando ou mesmo impedindo a tomada de consciência pelas
classes subalternas.
Desse modo, uma vez posta a ideologia burguesa como
hegemonia, dificilmente a classe trabalhadora ou a classe subalterna,
estaria capacitada a tomar a frente do processo revolucionário,
organizando partidos ou instituições capazes de se contrapor com
eficiência às tradicionais instituições moldadas segundo as ideias da
burguesia.
Exemplificando
Um exemplo histórico de Partido Político do tipo revolucionário é o
Partido Comunista inspirado nos escritos de Marx e Engels, sobretudo
no “Manifesto do Partido Comunista” de 1848. A experiência desse tipo
de partido foi realizada em diversos países, como o Brasil, que assistiu à
fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1922. Com muitas
mudanças em relação ao seu programa e às suas forças originais, esse
partido existe até hoje no quadro partidário do país.

Mais tarde, em 1961, nasceu a primeira dissidência do PCB e foi criado


o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O PCB se constitui mais como
partido de quadros e o PCdoB pretendia ser um partido de quadros e de
massa. Esse também existe até hoje com um programa um tanto quanto
diferente do original.

Ainda, um outro grupo saído do PCB no fim da década de 1980 criou


o Partido Popular Socialista (PPS), que ao longo das últimas décadas
abandonou parte de seu programa inicial, alinhando-se mais aos partidos
de centro.

Para Gramsci, um partido político que objetiva ser revolucionário


deverá buscar aparelhar intelectual e moralmente a sociedade,
influindo de forma decisiva nas instituições responsáveis pela
perpetuação da ideologia dominante. Os partidos não podem reduzir
seu círculo de atividades à luta política, mas, sim, à disputa moral e
intelectual da sociedade.
Para isso, é fundamental que os partidos estejam munidos não
só da força quantitativa dos trabalhadores, mas também de uma
vigorosa participação de intelectuais organicamente relacionados à
classe trabalhadora, influindo na direção moral e ideológica, dando

160 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


coesão ao conjunto dos associados ao processo revolucionário.

Exemplificando
Na história recente do Brasil, um partido político formado entre fins da
década de 1970 e inícios dos anos 1980 é emblemático para a discussão
dos partidos políticos que visam a busca da transformação social por
meio de seu programa.
Trata-se do Partido dos Trabalhadores (PT). Embora nos últimos anos
esse partido tenha participado ativamente da política institucional, tendo
elegido dois presidentes, promovido reformas sociais importantes e,
contraditoriamente, se envolvido em graves casos de corrupção, não se
pode deixar de considerar que ele foi formado de modo muito diferente
dos demais partidos políticos brasileiros.
O PT nasceu a partir da onda grevista da classe metalúrgica na região
do ABC paulista e por meio do novo sindicalismo da década de 1970
(sindicato de professores, bancários, metalúrgicos etc.) com amplo
apoio das pastorais católicas, bem como da intelectualidade universitária,
formando uma ampla base social em todo país.
Assim, é um dos poucos partidos brasileiros - se não o único - com os
fundamentos fincados na sociedade civil organizada e não apenas na
elite política tradicional.
Pode-se afirmar, a partir dos termos teóricos, que o PT foi e é ainda
um partido de quadros e massa com um programa e objetivo bastante
distinto dos seus concorrentes.
Assim, mesmo que sua relação com o poder tenha se revelado ambígua,
dado que fez composições com partidos aparentemente antagônicos
ao seu programa original, ele ainda é considerado por muitos um partido
da esquerda política.

Dialogando com as ideias de Nicolau Maquiavel (1469-1527),


Gramsci propôs que o partido político revolucionário deveria ser o
“Príncipe Moderno”, isto é, o ente capaz de conduzir política, social
e moralmente a sociedade. Deve exercer função basilar na coesão
social e assim alterar a ideologia burguesa para os reais interesses da
classe trabalhadora.
Por isso, os dirigentes intelectuais têm, para Gramsci (2004),
proeminência na organização partidária e no consequente processo
revolucionário, posto que:

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 161


A ligação orgânica entre a estrutura social e o ideológico-
político é assegurada pelos intelectuais (...). São eles que
asseguram a hegemonia da classe dirigente, elaboram e
difundem sua concepção do mundo em todas as classes,
por intermédio da filosofia, da religião, do folclore, ou
simplesmente do senso comum. (CHÂTELET; DUHAMEL;
PISIER-KOUCHNER, 2000, p. 218)

Enfim, qual é o papel, a função política e social de um partido


que se coloca como instrumento da revolução, segundo Gramsci?
Uma citação acerca do tema, escrita pelo autor nos seus famosos
Cadernos do Cárcere (livros que escreveu no período em que estava
preso na Itália por questões políticas entre 1926 e 1937), nos dá a
resposta para a questão:

(...) O partido político, para todos os grupos, é


precisamente o mecanismo que realiza na sociedade civil
a mesma função desempenhada pelo Estado, de modo
mais vasto e mais sintético, na sociedade política, ou seja,
proporciona a soldagem entre intelectuais orgânicos de
um dado grupo, o dominante, e intelectuais tradicionais;
e esta função é desempenhada pelo partido precisamente
da dependência de sua função fundamental , que é a de
elaborar os próprios componentes, elementos de um
grupo social nascido e desenvolvido como “econômico”,
até transformá-los em intelectuais políticos qualificados,
dirigentes, organizadores de todas as atividades e
funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma
sociedade integral, civil e política. (GRAMSCI, 2004, p. 24)

De fato, as ideias de Lênin moveram uma revolução e as de


Gramsci nos ajudam a compreender os partidos políticos não apenas
como instituições que disputam o poder político, mas, também, como
organizações responsáveis pela perpetuação ou mudança de valores
históricos e sociais. Não é pequena a função e o papel dos partidos
políticos; ainda mais daqueles que pretendem ser instrumentos de
transformação social.

162 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Pesquise mais
Um interessante site brasileiro, intitulado Gramsci e o Brasil, reúne
análises de intelectuais brasileiros que pensam o país na relação com
as ideias do filósofo italiano. Disponível em: <http://www.acessa.com/
gramsci/index.php>. Acesso em: 15 jul. 2017.

Sem medo de errar


Para compreendermos as questões referentes ao Centro
Acadêmico, temos de levar em conta que embora os partidos políticos
estejam associados, no senso comum, às organizações utilizadas
por membros da elite política (assim como parece ser o ex-aluno da
Faculdade de Pedagogia), nos processos eleitorais e na disputa pelo
poder, não existem apenas partidos desse tipo.
Há, na história, exemplos de partidos e teorias partidárias cujos
objetivos estão para além das disputas eleitorais (assim como
parecem propor os alunos que não estão preocupados apenas com
a organização do Centro Acadêmico, mas sim “como” o centro será
organizado e, sobretudo, por quem). Houve e há partidos, tais como
o Partido Comunista, cuja base ideológica almeja a transformação
social ou até mesmo a revolução do modo de produção capitalista.
Assim, partidos políticos denominados “revolucionários”
apresentam programas que vão além da disputa partidária e
ambicionam ser a organização política das classes menos favorecidas.
Nesses partidos, as intenções não são apenas eleitorais, mas,
também, sociais, na medida em que querem se estabelecer como
instrumento das classes subalternas, do povo, na construção de
uma sociedade mais justa desenvolvida sob outro sistema que não o
capitalista: o socialista.
Em todo caso, como deixa entrever o exemplo do grupo formado
no Centro Acadêmico, há partidos políticos que não desejam apenas
participar da construção de um mundo melhor apenas pela lógica
eleitoral; querem, ao mesmo tempo, ativar debates sobre questões
pertinentes às mudanças necessárias à transformação da ordem
vigente rumo a uma sociedade mais justa. Assim são os partidos que
objetivam ser instrumentos de transformação social.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 163


Avançando na prática
Por onde anda a ideologia no Brasil?
Descrição da situação-problema
Olhando o noticiário político, Helena se perguntou que tipo de
pessoas se filiavam aos partidos políticos no Brasil. A curiosidade
dela estava alimentada pelos últimos acontecimentos: crise política,
casos e mais casos de corrupção. O jornalista, ao apresentar a
notícia, falava em crise de representação e falência dos partidos.
Argumentava ainda que os partidos políticos no Brasil funcionavam
mais como instituições simplesmente voltadas à eleição do que
necessariamente entidades em que os eleitores poderiam confiar
no que diz respeito a programas ideológicos; e que os partidos
políticos no Brasil não apresentavam propostas efetivas para a
transformação dos problemas sociais, tais como redistribuição de
renda e redução das desigualdades.
Helena ficou se perguntando se, de fato, todos os partidos
políticos brasileiros eram como o jornalista estava falando.

Resolução da situação-problema
Ao longo da história política do Brasil, podemos encontrar
pouquíssimos partidos políticos cujos programas ideológicos
eram voltados ao tema da revolução social. Pode-se falar no
Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, ou o Partido
Comunista do Brasil (PCdoB), fundado em 1961, mas nenhum
deles logrou êxito, seja na composição de suas bases sociais, seja
do ponto de vista eleitoral. Ao longo da história brasileira, temos
assistido muito mais ao nascimento e à permanência de partidos
políticos cujas bases sociais e os programas ideológicos não visam
a revolução social, mas sim apenas o jogo político tradicional que
visa a disputa pelos cargos e pelo controle das instituições estatais.
Pode-se argumentar, entretanto, que alguns partidos políticos
brasileiros anunciam reformas e transformações sociais mais
robustas, mas quando as realizam, buscam fazer isso de forma um
tanto quanto conservadora, compactuando suas decisões com os
líderes e os grupos capitalistas.
Entre os mais de trinta partidos que conformam a realidade

164 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


da disputa eleitoral no país, a maior parte deles, entretanto, não
disputa o poder político por meio de programas revolucionários
ou de transformação social; pelo contrário, os partidos políticos
brasileiros são, em grande parte, partidos dedicados apenas ao
jogo eleitoral, associando-se por meio de coligações partidárias
aos partidos tradicionais.
A esse tipo de partido, muito distanciado do tipo revolucionário,
denominamos fisiológico, ou seja, tratam-se de partidos cujos
objetivos estão muito mais voltados ao jogo político institucional e
eleitoral do que a representação das demandas dos mais humildes
e/ou da massa trabalhadora. A história política do Brasil é permeada
por casos do tipo e se configura mais em um padrão conservador
do que revolucionário ou de transformação social.

Faça valer a pena


1.
A teoria do Partido (ou da organização revolucionária) é
o verdadeiro cadinho do leninismo. Constitui o principal
acréscimo feito por Lênin e Marx, ao mesmo tempo em
que (...) permite a Revolução na Rússia. Parte de uma
certa concepção da consciência de classe e leva a um
certo tipo de organização do proletariado. (CHÂTELET;
DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 2000, p. 218)

Marque V para verdadeiro ou F para falso para as proposições a seguir a


respeito dos partidos políticos revolucionários:
( ) Os partidos políticos revolucionários estão relacionados às teorias dos
pensadores liberais de inícios do século XIX.
( ) Os partidos políticos revolucionários buscam suas bases sociais na
classe trabalhadora.
( ) Os primeiros partidos políticos revolucionários foram organizados
entre o fim do século XIX e o início do século XX.
( ) Os partidos políticos revolucionários visam realizar a transformação
social por meio das eleições.
a) V – F – V – F.
b) F – F – F – V.
c) F – V – V – F.
d) F – V – F – F.
e) V – V – V – V.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 165


2. Leia o trecho a seguir:
Partidos políticos denominados ___________ apresentam programas
que vão além da disputa ___________ e ambicionam ser a organização
política das classes ___________. E assim construir uma nova sociedade,
em novas bases.
Escolha a opção que completa corretamente as lacunas do texto:
a) Revolucionários – revolucionária – menos favorecidas.
b) Revolucionários – eleitoral – trabalhadoras.
c) Burgueses – partidária – burguesas.
d) Tradicionais – física – menos favorecidas.
e) Tradicionais – partidária – poderosas.

3. Para Gramsci, um partido político que objetiva ser revolucionário,


deve buscar aparelhar intelectual e moralmente a sociedade, influindo de
forma decisiva nas instituições responsáveis pela perpetuação da ideologia
dominante. Os partidos não podem reduzir seu círculo de atividades
somente à luta política eleitoral, mas também, à disputa moral e intelectual
da sociedade. Desse modo, segundo Gramsci, aparelhar ideologicamente
a sociedade significa:
a) Constituir apoio direto na classe burguesa, considerando-a no processo
revolucionário.
b) Combater a ideologia burguesa vigente para alterar a visão de mundo
hegemônica.
c) Operar uma revolução silenciosa que resulte na tomada do poder pelo
proletariado.
d) Perseguir os burgueses, bem como acabar com a igreja e com as
instituições tradicionais.
e) Introduzir o tema da revolução para a burguesia, fazendo que ela entre
para o partido político.

166 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Seção 4.3
Sistemas partidários e eleitorais
Diálogo aberto
Nesta seção, estudaremos os diferentes sistemas partidários e
eleitorais com o objetivo de demarcarmos seus usos e suas diferenças,
bem como suas implicações para a organização da democracia nos
Estados-nação contemporâneos.
A ideia é que, ao final, você saiba a diferença entre os sistemas
partidários de um, dois ou mais partidos e como funcionam as
eleições de turno único, de dois turnos e o critério básico das eleições
proporcionais. Vamos ver se assim conseguimos ajudar a Alice, pois
ela sempre se confunde quando o assunto é eleição! Pelo telejornal,
ela viu que na cidade de São Paulo se um dos candidatos concorrentes
ao cargo de prefeito não obtém 50% mais um dos votos, a eleição é
levada ao segundo turno. Por outro lado, ela viu no mesmo telejornal,
que na cidade de Luiz Antônio, no interior paulista, que o candidato
mais votado para prefeito - independentemente de ter ou não mais
de 50% dos votos - é considerado eleito.
Em certa ocasião, ouviu dizer, também, que alguns vereadores
são eleitos com um número pequeno de votos nominais, pois, na
verdade, os votos na legenda de seu partido são contabilizados como
seus. E, ainda, se houver uma coligação de vários partidos, os votos
são somados entre todas as legendas.
Vamos ver se com a leitura desta seção podemos ajudar Alice a
entender melhor o funcionamento do sistema eleitoral e partidário.

Não pode faltar


Em outras seções desta unidade, falamos sobre a história,
os diferentes tipos, bem como as funções dos partidos políticos
modernos e contemporâneos.
Uma vez que já temos os conceitos fundamentais sobre partidos
políticos em mente, resta conhecer um pouco mais sobre como
os sistemas partidários podem ser estudados e, também, como os
partidos e os candidatos concorrem em diferentes sistemas eleitorais.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 167


A princípio, as proposições sobre como são e como funcionam
os sistemas partidários e eleitorais, são asserções didáticas, definições
operacionais, pois seria impossível analisar em profundidade o sistema
partidário e eleitoral de cada Estado-nação por meio de um único
critério de classificação.
Assim, o que os cientistas políticos dedicados ao tema propõem
são definições didáticas que permitem uma classificação ampla, na
qual pode se enquadrar os diversos tipos de sistemas partidários e
eleitorais existentes.
Ainda, há países - como o Brasil - que embora tenham um tipo
de sistema partidário, fazem uso de dois ou mais tipos de eleições
para os processos que fazem eleger os diferentes cargos nas esferas
executivas e legislativas. Mais à frente, para ilustrar melhor o que
dizemos, vamos falar um pouco mais do caso brasileiro; por ora,
vamos começar falando dos diferentes tipos de sistemas partidários.
Segundo o cientista político italiano Pasquino (2011), o mais
eficiente e mais utilizado critério para uma classificação de sistemas
partidários é aquele desenvolvido pelo cientista político francês
Duverger (1970).

O impulso inicial para a análise e a classificação dos


sistemas partidários advém de Duverger. Em seu clássico
estudo, Duverger (1970) se limitou a distinguir os sistemas
partidários sobre a base de um único e simples critério:
o numérico. Assim, classificou os sistemas partidários
como monopartidários, bipartidários e multipartidários
(PASQUINO, 2011, p. 178).

As três chaves propostas por Duverger são de fácil compreensão:


nos sistemas denominados monopartidários, só há um partido;
nos bipartidários, dois; e nos multipartidários, três ou mais partidos
concorrendo por cargos executivos e legislativos.
Estas simples definições enganam se levarmos em conta apenas
o “impulso inicial” do critério numérico. Na verdade, os sistemas
são categorizados não pelo número de partidos existentes em um
determinado Estado-nação, mas sim pelo número de partidos
em disputa com chances reais de conquistar cargos políticos nos
diferentes poderes.
Vejamos, por exemplo, o caso dos Estados Unidos da América.

168 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Não é incomum ouvir que naquele país o sistema de partidos é
bipartidário. De fato, o sistema é bipartidário porque apenas os partidos
republicano ou democrata têm chances reais de conquistar cargos nos
governos e no legislativo; mas há pelo menos mais de uma centena
de partidos políticos registrados nos EUA. Esses partidos podem
participar das eleições nos diversos níveis (presidente; governadores
de estado; deputados etc.), mas pela história de composição das
instituições partidárias e pelas características do sistema, apenas os
partidos republicano e democrata têm correligionários suficientes
para conseguir disputar as eleições com chances reais de vitória.
Assim, o sistema partidário efetivo é resultado do número de
partidos que influem diretamente no sistema eleitoral e dele participam
e não só no número de partidos existentes.
Os sistemas chamados monopartidários são aqueles em que
apenas um partido tem chances reais de conquistar cargos no governo.
Sistemas desse tipo, no entanto, são resultado mais de situações
autoritárias ou de hegemonia de um único padrão ideológico do que
das disputas entre diferentes entes partidários capazes de chegar ao
poder.
Como exemplo de uma situação monopartidária, podemos citar
a China, pois naquele país apenas os membros do partido comunista
podem disputar - entre os membros do próprio partido - lugar e
assento nas estruturas de poder.
Já no terceiro tipo de sistema partidário denominado
multipartidário, três ou mais partidos políticos têm chances reais de
disputar e conquistar cargos governamentais e/ou legislativos.
Como exemplo de uma situação de sistema multipartidário,
pode-se citar o Brasil; país em que pelo menos dois ou três partidos
têm chances reais de eleger um candidato ao cargo máximo da
federação (a presidência da República) e outros 35 partidos disputam,
com chances reais de eleição, cargos no poder legislativo (câmara e
senado). Entretanto, nem todos os 35 partidos conseguem sempre
eleger candidatos para esses postos.
Para além do critério básico de Duverger, pelo qual podemos
depreender os três tipos de sistemas partidários, devemos levar em
consideração as proposições de Sartori (1982) que relaciona o critério
numérico ao caráter competitivo de cada sistema.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 169


Para Sartori (1982), nas situações em que predomina o
monopartidarismo, tal como a China, tem-se um sistema não
competitivo, regido por uma lógica de funcionamento em que
a hegemonia pragmática ou ideológica impede o pluralismo e a
alternância. Nas situações em que predomina o bipartidarismo, a lógica
de funcionamento do sistema é a competitiva regida, principalmente,
pela alternância. As situações multipartidárias são, também, fruto
de sistema competitivo, mas além da alternância, há o princípio do
pluralismo político por trás da lógica de funcionamento do sistema.
Trocando em miúdos e combinando o critério numérico de
Duverger com a classificação de competitividade de Sartori, temos o
seguinte esquema:
• Monopartidarismo = um partido com chances reais de
chegar ao poder = sistema não competitivo = princípio da hegemonia
ideológica.
• Bipartidarismo = dois partidos com chances reais de chegar
ao poder = sistema competitivo = princípio da alternância ideológica.
• Multipartidarismo = três ou mais partidos com chances reais
de chegar ao poder = sistema competitivo = princípio do pluralismo
ideológico.
Pode-se estabelecer uma compreensão na qual quanto menos
competitivo for um sistema partidário, mais distante da alternância e
da pluralidade ele estará; ou seja, quanto mais competitivo for um
sistema partidário, mais democrático ele poderá ser.
Reflita
Embora seja possível estabelecer relações entre a quantidade de
partidos e a pluralidade política é somente a partir da análise do
cotidiano e a da história política de cada nação que podemos chegar a
conclusão de que é mais ou menos democrático. Reflita sobre o Brasil.
O país tem mais de três dezenas de partidos políticos. A sociedade
brasileira pode ser considerada plural: são diferentes ideologias que
disputam o poder no país. Quanto ainda é necessário avançar em
termos de domocracia?

No mesmo sentido, quanto mais partidos houver disputando


cargos em um determinado sistema, teoricamente, mais competitivo
e mais pluralista ele tende a ser, o que aumentam as chances de
parcelas ideologicamente minoritárias da população participarem do

170 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


jogo político e eleitoral.
A essa altura de nossos estudos sobre política, não são as formas e
os tipos utilizados nas classificações elaboradas por cientistas políticos
que podem, de fato, dizer o quanto uma dada realidade é ou não
mais ou menos democrática, pois os condicionamentos históricos -
como surgiram, como e por quem são constituídos os partidos, por
exemplo - parecem ser os itens mais seguros a serem investigados
quando do estudo de uma ou outra situação. Os conceitos não são
nada sem história, pois:

Em última análise, dado que cada sistema de partido é


(...) produto de circunstâncias históricas que remontam
a um passado longínquo, de determinados sistemas
eleitorais e da sua introdução em fases específicas
do desenvolvimento e (...) de opções políticas e de
capacidades organizativas, para chegarmos a uma
avaliação adequada e aprofundada dos vários sistemas
partidários, não podemos nunca prescindir do contexto
social, político, econômico e cultural em que tais
sistemas operam (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO,
2010, p. 1173).

Assim, se a teoria parece dar por certo que a quantidade de partidos


resulta em mais ou menos pluralismo, o mesmo não se pode dizer da
realidade, pois não são raros os casos em que pequenos e diversos
partidos - em realidades multipartidárias - se coliguem, formando um
grande bloco ideológico ou, mesmo separadamente, representem o
mesmo conjunto de ideias ou de interesses.
Não é incomum que em realidades multipartidárias formem-se
partidos fisiológicos, isto é, partidos sem força eleitoral que acabam
orbitando os grandes partidos que têm chances de chegar ao poder,
para trocar vantagens e apoios desvinculados do programa oficial do
partido.
Enfim, os sistemas partidários, embora possam ser classificados
didaticamente nas chaves que vimos aqui, não são passíveis de serem
analisados qualitativamente sem se levar em consideração a história e
o contexto de cada situação.
Em todo caso, os partidos existem para representar e expressar
diferentes correntes de opinião e assim organizar candidaturas que

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 171


concorrem a cargos políticos em processos eleitorais. Os processos
que elegem candidatos podem ser estudados por meio dos sistemas
eleitorais.

Sistemas eleitorais
Os tipos de sistemas eleitorais existentes podem ser sintetizados
em: I) sistema majoritário simples e sistema majoritário absoluto e II)
sistema proporcional e suas variações. Assim,

São dois os modelos tradicionais de sistemas eleitorais: o


majoritário e o proporcional. Todos os outros não são nem
mais nem menos do que modificações e aperfeiçoamentos
destes. Compreende-se imediatamente por que todos os
outros giram em torno deles (...). (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2010, p. 1175)

Nos sistemas majoritários, o princípio eleitoral está baseado


no critério da maioria de votos obtidos, isto é, nesses sistemas, os
candidatos que conseguem arrecadar mais votos são eleitos sobre
aqueles com número inferior de votos.
Já no sistema proporcional, o princípio é que os candidatos sejam
eleitos levando-se em consideração cotas ou quocientes relacionados
ao número total de votos validados em uma dada eleição.
Assim, para exemplificar os diferentes tipos de sistema eleitoral,
vamos considerar as eleições no Brasil, pois o país utiliza dois tipos
de eleição majoritária (a simples e a absoluta), bem como o sistema
proporcional para eleição do poder legislativo.
Tomaremos, em primeiro lugar, o cargo de presidente da república.
O cargo para a chefia do executivo nacional no Brasil é disputado
segundo o sistema majoritário absoluto, também conhecido como
sistema majoritário de dois turnos.
Nesse sistema, os candidatos concorrem tentando arrecadar
a maior quantidade de votos possível dos eleitores. Estará eleito
aquele que ao final do processo tiver conseguido 50% mais um dos
votos. Caso nenhum dos concorrentes (e podem ser vários, já que
o sistema de partidos é multipartidário) tenha obtido 50% mais um
dos votos no primeiro turno, dessa forma, os dois mais votados são
submetidos a mais uma eleição. Assim, um dos dois terá mais de 50%

172 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


dos votos válidos e será eleito. Por isso, o sistema majoritário absoluto
é também chamado de sistema de dois turnos. Aqui, vale dizer, os
votos válidos são todos aqueles que foram de fato contabilizados para
os candidatos concorrentes, debitando-se os brancos e os nulos.

Exemplificando
O sistema majoritário absoluto ou de dois turnos é mais utilizado nas
eleições presidenciais. São muitos os países que atualmente fazem uso
desse sistema, como Áustria, Benin, Brasil, Chile, França, Moçambique,
Uruguai etc.

No Brasil, o mesmo critério das eleições presidenciais - majoritário


absoluto - se aplica às eleições de governador de estado e prefeitos
de cidades com mais de 200 mil eleitores. Em municípios cuja
quantidade de eleitores é inferior a 200 mil indivíduos, aplica-se o
critério das eleições majoritárias simples ou de um turno: o candidato
mais votado - mesmo que não tenha obtido 50% mais um dos votos -
é eleito. O mesmo ocorre para as eleições dos senadores da república.
Assim, o Brasil combina os dois tipos de eleição majoritária: a
absoluta ou de dois turnos para presidente da república, governadores
de estado e prefeitos de cidades com mais de 200 mil eleitores e a
simples, para senadores e prefeitos de cidades com menos de 200
mil eleitores.
Vale reparar que as eleições majoritárias se aplicam à disputa de
cargos dos poderes executivos (presidente; governador; prefeito) e
apenas um cargo legislativo (senador) é disputado, no Brasil, por esse
sistema eleitoral.
Assimile
Embora haja, mundo afora, variações e diferenças nos processos por
meio dos quais as eleições são realizadas, há dois tipos de sistemas
eleitorais: o sistema majoritário e o sistema proporcional. O Brasil, por
exemplo, adota os dois sistemas; o majoritário para a eleição de cargos
executivos e senadores e o proporcional para a eleição dos cargos
legislativos.

Todos os outros cargos legislativos (deputados federais, deputados


estaduais e vereadores) são eleitos pelo sistema proporcional.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 173


Atualmente, votar para um cargo proporcional é uma
tarefa simples. O eleitor precisa apenas digitar o número
de seu candidato ou, caso pretenda votar na legenda, o
número de seu partido. Mas existe uma série de detalhes
que tornam a operação da representação proporcional
mais complexa do que imagina um cidadão comum.
(NICOLAU, 2015, p. 238)

Vejamos os pontos de complexidade das eleições proporcionais


por meio de uma eleição hipotética para uma câmara de vereadores
com 21 cadeiras em disputa, na cidade imaginária de Politópolis, onde
residem 220 mil eleitores.
Nas últimas eleições de Politópolis, doze legendas partidárias,
algumas coligadas, lançaram centenas de candidatos para concorrer
as 21 cadeiras em disputa. Dos 220 mil eleitores da cidade, 214.818
votaram em algum desses candidatos; 5.182 eleitores votaram em
branco, nulo ou não compareceram à votação.
Para que possamos entender o funcionamento das eleições
proporcionais de lista aberta no Brasil, vamos, passo a passo, ver o
que ocorreu nessa eleição hipotética.
O primeiro passo é calcular o quociente eleitoral. O quociente
eleitoral é obtido dividindo-se o total de votos válidos (comparecimento
eleitoral menos os nulos e os brancos) pelo número de cadeiras em
disputa no parlamento (câmara de vereadores no âmbito municipal;
assembleia legislativa no âmbito estadual ou câmara dos deputados
no âmbito federal).
Assim, seguindo o exemplo, os 214.818 votos válidos devem ser
divididos pelas 21 cadeiras em disputa: 214.818 / 21 = 10.229.
O resultado dessa divisão, 10.229 mil votos, é o quociente eleitoral,
isto é, quantos votos cada cadeira em disputa representa.
O segundo passo consiste em verificar quantos votos cada partido
ou coligação obteve na eleição, somando-se os votos nos candidatos
e nas legendas. No sistema proporcional brasileiro, os votos são
contabilizados pela legenda ou pelas legendas que se uniram, se
coligaram, para disputar a eleição.
Nessa eleição hipotética, sete partidos concorreram sozinhos e
outros cinco partidos concorreram em duas coligações diferentes.

174 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


A Tabela 4.1 mostra a quantidade de votos que cada partido ou
coligação obteve:
Tabela 4.1 | Votos obtidos por cada partido em Politópolis
Partido ou coligação Votos obtidos
PTTD 92.587
PYGT 40.250
PFD - PDV - PYU 28.752
PTK 23.570
PMTU - PFDD 12.350
PNDI 10.002
PTDG 5.068
PCTD 1.254
PY 985
Total 214.818
Fonte: elaborada pelo autor.

No terceiro passo, os votos contabilizados de cada partido ou


coligação são divididos pelo quociente eleitoral (10.229 votos). O
número inteiro, resultado dessa divisão, indica o número de cadeiras
conquistadas pelo partido, isto é, o número de candidatos que o
partido ou a coligação elegeu.
Tabela 4.2 | Número de cadeiras conquistadas por cada partido, segundo divisão
dos votos no partido ou coligação pelo quociente eleitoral em Politópolis

Partido ou coligação Votos obtidos Votos / quociente Eleitos


PTTD 92.587 9,05 9
PYGT 40.250 3,93 3
PFD - PDV - PYU 28.752 2,81 2
PTK 23.570 2,30 2
PMTU - PFDD 12.350 1,21 1
PNDI 10.300 1,01 1
PTDG 4.700 0,46 0
PCTD 1.324 0,13 0
PY 985 0,10 0
Total 214.818 21,00 18

Fonte: elaborada pelo autor.

Ao observar a Tabela 4.2, note que como o resultado não retorna


um número inteiro, haverá sobra de cadeiras, que terão de ser
distribuídas no próximo passo, pois 18 das 21 cadeiras em disputa
foram ocupadas. Note, também, que alguns partidos (PTDG - PCTD

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 175


e PY) não obtiveram um número de votos equivalente ao quociente
eleitoral. Esses partidos não conseguiram o mínimo de votos
necessários - 10.229 votos - para eleger ao menos um candidato.
O quarto passo é fazer o cálculo para preenchimento das três
cadeiras que sobraram. Para isso, procede-se o critério das maiores
médias por rodada de distribuição. Como há três cadeiras não
preenchidas, serão realizadas três rodadas de maiores médias.
Para isso, deve-se considerar os votos obtidos por cada partido e
dividir pelo número de cadeiras que ele já conquistou, adicionando-
se mais um, pois se quer calcular a chance de cada partido obter
mais uma cadeira. Assim, o PTTD que obteve 92.587 votos e já tem
9 cadeiras, deverá ter esse total de votos divido por 10 cadeiras.
Procede-se o mesmo com todos os partidos que já pegaram cadeiras.
A maior média da rodada leva à cadeira disponível. Como são três
disponíveis, deve-se realizar esse procedimento três vezes. A partir da
segunda vez, deve-se considerar o número de cadeiras que um dos
partidos pegou a mais na primeira rodada e assim sucessivamente.
Os partidos que não obtiveram o mínimo de votos equivalente ou
superior ao quociente, não participam desse processo por terem
caído na cláusula de barreira.
Vejamos a Tabela 4.3, para saber quais partidos ficaram com as
três cadeiras que sobraram:
Tabela 4.3 | Distribuição das sobras de cadeiras nas eleições legislativas de
Politópolis

Partido ou Votos Já
Rodada 1 Rodada 2 Rodada 3 Cadeiras
coligação obtidos eleitos

9.258 9.258 * 9.258


PTTD 92.587 9 10
(92.587÷10) (92.587÷10) (92.587÷10)
* 10.062 8.050,0 8.050,0
PYGT 40.250 3 4
(40.250÷4) (40.250÷5) (40.250÷5)
9.584 * 9.584 7.188
PFD - PDV - PYU 28.752 2 3
(28.752÷3) (28.752÷3) (28.752÷4)
7.856 7.856
PTK 23.570 2 7.856 (23.570÷3) 2
(23.570÷3) (23.570÷3)
6.175 6.175
PMTU - PFDD 12.350 1 6.175 (12.350÷2) 1
(12.350÷2) (12.350÷2)
5.150 5.150
PNDI 10.300 1 5.150 (10.300÷2) 1
(10.300÷2) (10.300÷2)
PTDG 4.700 0 0 0 0 0
PCTD 1.324 0 0 0 0 0
PY 985 0 0 0 0 0
Total 214.818 18 - - 21

Fonte: elaborada pelo autor.

176 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


O quinto passo diz respeito a quais candidatos estão eleitos e isso
está diretamente relacionado ao critério da lista aberta e à existência
de coligações. Para exemplificar, pegaremos o exemplo da coligação
PFD - PDV e PYU, que obteve 28.752 votos, elegendo dois candidatos
de saída e mais um quando da distribuição das sobras.
A lista aberta quer dizer que os eleitores puderam, no momento
da votação, escolher um candidato em específico (voto nominal) ou
um partido (voto de legenda). Independentemente do tipo de voto,
a soma considerada para a distribuição de cadeiras, como vimos na
Tabela 4.1, é realizada pelo computo dos votos nas legendas. Se se
trata de uma coligação, são considerados os votos dos partidos e/ou
dos candidatos dos partidos que compõem a coligação.
A Tabela 4.4 mostra a composição da coligação PFD - PDV - PYU,
que conquistou três cadeiras nas eleições legislativas de Politópolis;
depois de contabilizados todos os votos nas legendas que compõem
a coligação, é organizada uma lista que dispõe um ranking dos
candidatos mais votados. Como a coligação, no caso, obteve votos
suficientes para três cadeiras, dessa maneira, os três candidatos mais
votados da coligação são considerados eleitos.
Essas regras referentes à distribuição das cadeiras considerando o
voto nos partidos de uma coligação não mais terão efeito a partir de
2020, pois a reforma política aprovada em outubro de 2017 estabelece
o fim das coligações partidárias nas eleições proporcionais.
Desse modo estará vetado, a partir das eleições municipais em
2020, aos partidos políticos brasileiros que se coliguem para discputar
eleições para vereadores e deputados estaduais e ou federais.

Tabela 4.4 | Ranking dos candidatados da coligação PFD - PDV - PYU nas eleições
legislativas de Politópolis
Candidato Partido Votos individuais Colocação
Avelar PFD 23.875 →1º
Antônio João PDV 2.809 →2º
Maria Quitéria PYU 1.487 →3º
João Pina PFD 214 4º
José Ayres PFD 124 5º
João Romão PYU 87 6º
Dona Carmem PYU 69 7º
Elton Cesário PYU 52 8º
Legendas Coligação 35 -
28.752

Fonte: elaborada pelo autor.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 177


Ao observar a Tabela 4.4, vale reparar que o candidato Avelar
encabeçou a chapa, pois sozinho obteve votos suficientes para que a
coligação conquistasse duas cadeiras. Repare também que nenhum
dos outros dois candidatos eleitos (Antônio João e Maria Quitéria)
obtiveram o mínimo que vale uma cadeira (10.229 votos). Note
que os três eleitos, neste caso, tiveram mais do que 10% dos votos
do quociente eleitoral (1.022) e por isso foram eleitos. Se um deles
tivesse tido menos do que isso, não poderia ser eleito e esta vaga
seria distribuída aos outros partidos, como sobra. Esta barreira dificulta
que sejam eleitos deputados com pouco votos, "puxados" por quem
tenha tido muitos votos.
No sistema proporcional de lista aberta é assim: os mais votados
são eleitos e os votos que “sobram”, para além dos necessários para sua
eleição, acabam por favorecer os menos votados, que acabam tendo
chances de serem eleitos; no mesmo sentido, pode-se argumentar
que mesmo aqueles que tiveram votação inexpressiva, contribuem
para a eleição de seus companheiros de chapa, na medida em que
todos os votos são somados por legenda ou pelas legendas coligadas.
No entanto, vale ressaltar que outra mudança aprovada na
reforma política de outubro de 2017 incidirá, a partir das eleições
de 2018, sobre os partidos pequenos, ditos nanicos uma vez que
foi determinada uma cláusula de barreira segundo a qual todo e
qualquer partido político envolvido na disputa eleitoral para a câmara
dos deputados deverá obter um mínimo de 1,5% do total de votos da
eleição, distribuídos em pelo menos 9 estados da união.
Os partidos políticos que não cumprirem essa meta estarão fora
da disputa, bem como não terão acesso ao fundo partidário criado
pela reforma, tampouco terão tempo de TV na propaganda eleitoral.
Assim, na prática, essas novas regras visam inviabilizar a entrada de
políticos de partidos nanicos na câmara federal.
Importante frisar que, segundo a reforma aprovada, esse percentual
da cláusula de barreira vai subir gradualmente e, em 2030, a exigência
será de pelo menos 3% dos votos.

Lista fechada versus lista aberta


Se o sistema em Politópolis fosse de lista fechada, assim, os eleitores
não poderiam votar em um ou outro candidato específico; não

178 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


haveria o voto nominal. Nos sistemas proporcionais de lista fechada,
os eleitores votam apenas no partido que prévia e internamente
definiu uma lista de candidatos.
Dessa forma, no sistema de lista fechada (como na Bélgica), os
eleitores escolhem apenas o partido e o partido é quem decide - pelo
número de cadeiras alcançadas pelo critério proporcional - quais de
seus correligionários assumirão as cadeiras conquistadas.
Os defensores desse sistema opinam que ele é melhor do que
o sistema de lista aberta, porque evita o voto personalizado e a
troca de votos por benefícios privados. Ainda, outro argumento dos
defensores dessa modalidade é que os partidos ficam fortalecidos,
pois disputam internamente a ordem de seus candidatos, impedindo
que “aventureiros políticos” encabecem a chapa por serem populares,
mas não necessariamente entenderem de política e, assim,
participariam das eleições apenas “políticos profissionais”, envolvidos
com a máquina e a disputa de seus partidos.
Já os defensores da lista aberta argumentam que essa modalidade
é mais democrática, pois possibilita maiores chances a novatos ou
jovens lideranças de serem eleitos, sem que para isso precisem
desempenhar uma trajetória de disputa no interior de uma instituição
partidária.
Pesquise mais
O site do Tribunal Superior Eleitoral dispõe um excelente passo a passo
do funcionamento das eleições proporcionais no Brasil. Para ficar
ainda mais claro como elas funcionam, pesquise mais no link a seguir.
Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/
Setembro/saiba-como-calcular-os-quocientes-eleitoral-e-partidario-nas-
eleicoes-2016>. Acesso em: 6 set. 2017.

Nos sistemas proporcionais em que a lista é fechada, os partidos


organizam internamente, antes do processo eleitoral, um rol de
candidatos. Esse rol é então divulgado de modo que os eleitores
escolham em que legenda votar, sabendo quais são os nomes dos
correligionários do partido que poderá entrar, mas não poderá votar
- como acontece no sistema de lista aberta - em um candidato
específico.
Assim, no sistema de lista fechada, o voto é sempre no e do
partido; já no sistema de lista aberta - tomando como exemplo o caso

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 179


brasileiro - o voto pode ser dado ao candidatado, nominalmente,
ou no partido. Ao final, entretanto, o voto será contabilizado na
composição do quociente eleitoral do partido, somando-se todos os
votos dos candidatos para a legenda.
No sistema de lista fechada, entrarão os candidatos pela ordem
definida previamente pelo partido, uma vez que os votos são da
legenda. No sistema de lista aberta, são eleitos os mais votados
nominalmente e os votos que sobressaem da proporção necessária
para a cadeira são considerados para a legenda, que poderá eleger
outros candidatos na ordem dos mais votados.
Não obstante, é sempre bom lembrar que o poder legislativo pode
propor mudanças no sistema eleitoral de um Estado-nação, sugerindo
correções, atualizações do número de cadeiras, bem como alteração
do tipo de eleição.

As eleições distritais
Há outra modalidade que pode ser utilizada para eleições
legislativas que não são proporcionais, mas sim majoritárias. Trata-se
do voto distrital.
Nesse sistema, cada estado e/ou município é dividido em distritos
eleitorais e os candidatos mais votados (por isso é uma modalidade
majoritária) em cada distrito são eleitos para as cadeiras em disputa.
Depreende-se daí que cai por terra o voto de legenda, bem como
o efeito que candidatos mais votados possam “puxar” candidatos
com menos votos no partido ou na coligação. Os defensores dessa
modalidade de eleição dizem ser essa a característica mais positiva
do sistema.
Os críticos desse sistema dizem que ele tende a aprofundar as
relações de ordem privada e as trocas clientelistas, bem como favorecer
candidatos cuja posição econômica ou política em uma determinada
região já é de destaque, impedindo, assim, o aparecimento de novas
lideranças, tornando o processo menos democrático.
Uma variação dessa modalidade é o voto distrital misto, em que
o eleitor vota duas vezes: uma em um candidato do seu distrito e
outra para a legenda partidária de sua preferência. Uma vez realizadas
as eleições, metade das cadeiras em disputa é destinada aos eleitos
pela maioria e outra metade é distribuída pelo critério proporcional

180 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


(tal como vimos no passo a passo) pelas legendas. Esse modelo seria
um meio termo para tentar agradar aos críticos das modalidades
proporcionais e distritais.
Enfim, esperamos que você tenha compreendido um pouco mais
os sistemas partidários e eleitorais e que você possa não só refletir
sobre o sistema de seu país, mas também tornar sua participação
política mais consciente.
Pesquise mais
O cientista político Jairo Nicolau é um dos maiores especialistas
dedicados ao tema dos sistemas eleitorais. Para saber mais sobre os
diferentes sistemas, vale a leitura de seu livro Sistemas eleitorais.

Fonte: NICOLAU, Jairo. Sistemas eleitorais. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

Sem medo de errar


Em uma cidade como São Paulo, que tem mais de 8 milhões de
eleitores, o sistema eleitoral utilizado é o da maioria absoluta ou de
dois turnos. Logo, se não houver no primeiro turno algum candidato
que alcance 50% mais um dos votos, é realizado um segundo turno
entre os dois candidatos mais votados.
O sistema majoritário absoluto ou de dois turnos é utilizado, no
Brasil, para a eleição de presidentes da república, governadores de
estado e prefeitos de cidades que tenham mais de 200 mil eleitores.
Em municípios com menos de 200 mil eleitores - como é o
caso da cidade paulista de Luiz Antônio - as eleições para prefeito
são majoritárias simples, isto é, apenas um turno é realizado e o mais
votado entre os concorrentes ganha a eleição.
A eleição majoritária simples também é utilizada, no Brasil, para
a eleição dos senadores. Aliás, o cargo de senador é o único cargo
legislativo que no país é eleito por eleições majoritárias. Todos
os outros cargos legislativos - vereadores, deputados estaduais e
deputados federais - são eleitos pelo sistema proporcional.
Por isso, os candidatos a esses cargos legislativos são eleitos
em lista aberta (voto nominal), mas a contabilização dos votos com
relação ao quociente eleitoral (a quantidade de votos aos quais
equivale cada cadeira em disputa) é feita por meio da soma de todos

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 181


os votos na legenda dos partidos em disputa. Assim, um candidato
que obteve poucos votos nominais pode ser eleito caso o seu partido
tenha tido uma votação expressiva.

Avançando na prática
Eleições proporcionais em Antares
Descrição da situação-problema
Toni mora em Antares, cidade onde há 80 mil habitantes e 62
mil eleitores.
Ele votaria pela primeira vez para eleger os vereadores da
cidade e ficou sabendo que haviam 15 vagas disponíveis na câmara
municipal.
Ao procurar saber qual era o critério para a escolha dos
vereadores da cidade, um amigo lhe disse que não eram
simplesmente os mais votados que entravam, mas sim que os
votos eram distribuídos em proporção, considerando o número
de votos em cada partido.
Toni queria saber mais, mas seu amigo Marcelo, apesar de saber
que a distribuição dos votos era proporcional, não sabia ao certo
como os votos eram distribuídos.

Resolução da situação-problema
Na legislação eleitoral brasileira, os representantes legislativos,
tal como os vereadores de Antares, são eleitos pelo sistema
proporcional de lista aberta, isto é, os eleitores podem votar tanto
nominalmente nos candidatos, quanto nas legendas.
Para a compreensão da distribuição de cadeiras em Antares,
Toni deverá, primeiramente, saber quantos votos válidos foram
computados na eleição, ou seja, quantos eleitores compareceram
à eleição e quantos desses votaram em algum candidato, pois
os votos válidos são o resultado do comparecimento eleitoral
subtraídos os votos nulos e brancos. Em Antares, foram computados
naquela eleição 48 mil votos válidos.
Depois de obter esse número, Toni deverá proceder o cálculo
do quociente eleitoral. O quociente eleitoral é o resultado do
comparecimento eleitoral dividido pelo número de cadeiras em
disputa. No caso de Antares, 15 cadeiras estavam em disputa. Assim,

182 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Toni deverá dividir 48.000 votos por 15 cadeiras. O resultado é
um quociente de 3.200, isto é, cada cadeira em disputa equivale à
representação de 3.200 votos.
Depois disso, Toni deverá verificar quais partidos participaram
da eleição e quantos votos cada um teve. No caso, participaram da
eleição os partidos UIT, PTY e UDD.
O partido UIT obteve 24 mil votos; o PTY 14 mil votos e a UDD
10 mil votos.
Dividindo-se o número de votos de cada partido pelo quociente
eleitoral, chega-se à quantidade de cadeiras ocupadas por cada
partido: sete da UIT; quatro da PTY e três da UDD.
Ao fazer esse cálculo, Toni notou que ficou sobrando uma
cadeira. Para saber qual partido preencherá a cadeira que sobrou,
ele deverá proceder o cálculo da maior sobra entre os partidos,
que é obtido dividindo-se o número de votos do partido pelo
número de cadeiras que ele obteve na eleição, mais um. Assim,
para a UIT, a conta é 24.000 / 7 + 1 = 3.000; para o PTY, 14.000 /
4 + 1 = 2.800; e para a UDD, 10.000 / 4 = 2.500.
A maior média obtida é da UIT e, assim, essa legenda fica com
a cadeira que restou.
Toni ainda se perguntou: quais candidatos de cada partido se
elegeram? A resposta: os mais votados de cada partido, isto é,
aqueles nos quais os eleitores mais votaram.
Toni era eleitor de uma candidata da UDD, chamada Tamara
Linhares, mas ela infelizmente, para Toni, ficou na 4ª posição do
ranking dos mais votados de sua legenda e por pouco não foi eleita,
pois o partido teve votação suficiente apenas para três cadeiras.

Faça valer a pena


1. A literatura de Ciência Política caracteriza os sistemas eleitorais em
dois tipos: os sistemas majoritários e os sistemas proporcionais. Em cada
situação, isto é, em cada país, os processos eleitorais são realizados com
variações, mas sempre em torno desses dois tipos de sistema.
Escolha a opção correta que indica os tipos de sistemas majoritários
utilizados:
a) O majoritário simples e o complexo.
b) O majoritário simples e o aberto.
c) O majoritário em turno único e o em dois turnos.

U4 - Sistemas eleitorais e partidários 183


d) O majoritário pleno e o relativo.
e) O majoritário aberto e o fechado.

2. No Brasil, o mesmo critério das eleições presidenciais - majoritário


absoluto - se aplica às eleições de governador de estado e prefeitos de
cidades com mais de 200 mil eleitores. Em municípios cuja quantidade de
eleitores é inferior a 200 mil indivíduos, aplica-se o critério das eleições
majoritárias simples ou de um turno: o candidato mais votado - mesmo
que não tenha obtido 50% mais um dos votos - é eleito. O mesmo ocorre
para a eleições dos senadores da república.
Assim, no Brasil, todos os postulantes aos cargos executivos são escolhidos
por meio de eleições:
a) Proporcionais.
b) Majoritárias.
c) Proporcionais e majoritárias.
d) Absolutas em dois turnos.
e) Em lista fechada.

3.

Atualmente, votar para um cargo proporcional é uma


tarefa simples. O eleitor precisa apenas digitar o número
de seu candidato ou, caso pretenda votar na legenda,
o número de seu partido. Existe uma série de detalhes
que tornam a operação da representação proporcional
mais complexa do que imagina um cidadão comum.
(NICOLAU, 2015, p. 238)

a) Comparativo eleitoral.
b) Quociente eleitoral.
c) Divisor eleitoral.
d) Múltiplo eleitoral.
e) Percentual eleitoral.

184 U4 - Sistemas eleitorais e partidários


Referências
BOBBIO, N.; MATEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: UNB, 2010.
v. 2.
CHÂTELET, F.; DUHAMEL, O.; PISIER-KOUCHNER, E. História das ideias políticas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Disponível em: <http://www.
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U4 - Sistemas eleitorais e partidários 185


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