Estou na Europa e não estou bem. Essa definitivamente não
é uma legenda instagramável. Na verdade, a frase pode causar alergia a muita gente. Mas não se preocupem, tenho uma explicação que não vai abalar os sonhos de vocês. Vivemos uma pandemia. A obviedade dessa informação, que tem sido o uníssono dos quatro cantos do planeta nos últimos dias, precisa ser dita por aqui como demonstração das razões que me levam a organizar essas palavras: o ato de escrever como estratégia de conseguir estar na Europa e estar bem.
Meu humor parece a bunda de Pabllo Vittar quando faz
quadradinho. Altos e baixos. Por altos, entenda-se apenas bem. Por baixos, desespero total de saber que não estou no Brasil. E porra, como estar aqui tem me confirmado algo que sempre soube: o quanto sou sortudo por ser brasileiro e por morar lá. Toda aquela história de alegria e festa, o clichezão. Mas vai além, porque é entender a complexidade da qual foi formada essa alegria e essa festa. Somos um povo feliz porque conhecemos o genocídio dos indígenas e negros. Somos um país que nunca foi pra ser. Formados de acasos, de esparadrapos. A gente é foda demais e continua sofrendo demais.
2.
Soube que viria fazer um período do meu mestrado em
Letras na Universidade de Coimbra em maio do ano passado. Desde então formei um rosário de esperas: a documentação para o passaporte, a documentação para o visto, a compra das passagens, a escolha da melhor data, a carta de aceite, a compra dos euros. O medo de tudo dar errado e eu não vir. Ou o medo de tudo dar certo. Ou o medo de eu vir e tudo dar errado.
Por alguma mágica ou mesmo medo do que perderia, não
nutri muitas expectativas das inúmeras possibilidades que morar na Europa durante um período seria capaz de me proporcionar. Apesar de ver o dinheiro da bolsa na minha conta, a carta de aceite no meu e-mail, o visto em minhas mãos, algo ainda me dizia não ser possível. Eu sabia de onde falava esse sentimento. Talvez ele tenha me protegido de uma sobrecarga de frustração ao estar aqui num cenário de pandemia.
Ir ao supermercado mercado, que fica no shopping aqui
perto de casa, que tem o auspicioso nome de Alma, tem sido um esboço tragicômico. Não se pode ficar parado 1 segundo à vista dos seguranças, caso contrário eles irão até você a perguntar o que se estar a fazer ali e afirmar que é expressamente proibido a demora naquele espaço, algo que, aliás, é nos lembrado a cada 3 segundos nos alto-falantes do supermercado: tenha sua lista de compras e pegue somente aquilo de que necessita, não demore, volte pra sua casa, mantenha distância de 2 metros de cada pessoa. Ou, caso a polícia veja você acompanhado de mais duas pessoas: separados, mesmo que morem juntos.
As medidas são compreensíveis quando se sabe da situação
na Itália e na Espanha. Mas, excluindo-se esse contexto, o que fica é mais uma sensação de onde-porra-eu-vim-parar- meu-deus. se no Brasil de agora provavelmente acontece algo parecido. No Brasil que eu deixei e eu conhecia, no dia 8 de março de 2020, o cenário era outro e, portanto, o que fica é mais uma cutucada a me dizer que estou em terra estrangeira.
3.
Moro em um convento desativado. Azulejos com a imagem
de Santo Antônio dão o indício de que o espaço era de orações e reclusão. Há uma certa comicidade em estar aqui em plena pandemia. Há 40 quartos, divididos em 3 pavimentos. O meu é o do meio. Tapetes vermelho sangue estiram-se ao longo do corredor. Os pontos de luzes amareladas adicionadas a inevitável escuridão provocada pela altura das paredes e o ranger do piso de madeira dão a atmosfera de filme de terror necessária para os momentos que, durante a madrugada, preciso ir ao banheiro; e se, por ventura, alguma outra bexiga ou estômago resolve confirmar sua existência, a taquicardia é certa.
Os dias de isolamento talvez só não sejam maiores por conta
da dimensão desse espaço. Há uma área externa, com várias laranjeiras em que se observa a cidade. O convento fica no alto de mais um dos muitos morros a formarem Coimbra. Imaginar a cidade um pouco como se fosse uma Olinda ampliada, ou algumas avenidas como pertencentes à João Pessoa, é um conforto e talvez necessidade inevitável num gesto de diálogos e afirmações identitárias.
Tenho parado de fazer divisões entre café da manhã (ou
pequeno almoço, como chamam por aqui), almoço e jantar. parece que estamos presos a um único dia que se repete num movimento de looping infinito. Mas, pra não dizer que tudo é igual, as histórias, que poderiam integrar qualquer roteiro de seriado adolescente, acontecem e evoluem por aqui: uma situação quase que inevitável quando se têm 15 jovens morando debaixo do mesmo teto, fazendo da ociosidade, provocada pelo confinamento, o melhor tempero para o chacoalhamento de ânimos. O sol tem se posto em torno das 20h. Imagino como uma compensação para mim que tenho acordado entre as 12h- 14h todos os dias. O clima em geral é frio, mas nos últimos dias, o céu tem se fechado e tudo parece se alinhar ironicamente. As metáforas surgem óbvias: literalmente o tempo está fechado em todo o mundo. Acabo a encontrar humor e ironia em todos os lugares. Em específico, o que me rendeu bons momentos de riso foi a utilização de uma das novas músicas de Pabllo Vittar como trilha sonora para as chuvas filmadas pelas câmeras de celulares de muita gente nos meus stories. Mas também há outra dimensão a se considerar.
Não sei se sou eu a buscar alinhamento e explicações para
tudo (vamos assumir que sim, afinal este texto se alimenta disso), mas a música Rajadão, com sua letra e melodia puxadas do universo gospel, reúne universos ilustrativos de representações que provavelmente estão a acontecer devido a pandemia: o encontro da mãe evangélica e do filho gay. Rajadão abraça 500 Graus de Cassiane.
Pabllo talvez tenha conseguido, com a música, um elo
realmente poderoso entre a mãe integrante da assembleia de deus, restrita a um modo de vivência de sexualidade machista e patriarcal, e o filho homossexual, afastado da igreja, mas cuja reminiscência da fase evangélica expressa- se nos louvores que integram a playlist da hora da faxina ou de uma social em casa com os amigos.
E por que diabos eu falo sobre este encontro? Pelo motivo de
que ele é uma imagem necessária para olharmos com menos ansiedade para a quarentena e a pandemia. O acesso a perceber as coisas mais importantes. Gosto de imaginar que Rajadão seja o gesto das pazes da família evangélica com o filho gay. Tanto a música de Cassiane, como a de Pabllo, dão um sentido positivo para a tempestade, o que advém da esteira dos ensinamentos bíblicos sobre a necessidade de passar por provas, e do ensinamento daí apreendido, para depois ganhar a vitória. As músicas se alinham ao focar na tempestade. e a esta altura, inevitavelmente, lembro-me de Iansã como a entidade do Candomblé que comanda os ventos, as tempestades e os trovões. “Ela faz da insegurança, a sua força, e do risco de morrer, o seu alimento”, Maria Bethânia canta. A chuva tem poder e tem vitória; vida para as plantações, para o sertão. “O lindo pra mim é o céu cinzento”, Maria Bethânia cantando novamente aqui.
4.
Na semana passada completei 1 mês de Europa,
praticamente o mesmo de quarentena. Comecei a pensar no encaixe perfeito dessas duas situações. É como se o destino houvesse falado: Luís, haverá uma pandemia no mundo e você irá passá-la em outro continente.
Em fevereiro, no carnaval, o Coronavírus era apenas uma
notícia distante, lá da china. No Brasil, ainda não havia nada notificado. E lá estava eu na luta para não ser esmagado por um pitú gigante no pingo do meio dia em Olinda.
Hoje, uma amiga de Natal confirmou que está com Covid-19.
ela faz residência farmacológica em um hospital de Recife. Meu irmão mais velho também faz residência em Recife. O hospital que ele vai todos os dias se tornou o de referência para recebimento de casos.
A falta de vontade de continuar a escrever esse diário
também foi alimentada por pensar na falta de vontade que as pessoas têm de ler um texto sobre a minha vida. O que me lembra a desimportância natural dada à vida das pessoas que não são próximas, característica da cultura européia, que eu já tinha conhecimento e que foi confirmado por uma amiga aqui do intercâmbio. Enquanto, no Brasil, o passatempo da gente é ler as mensagens do zap alheio nos Xiaomi de pessoas aleatórias no ônibus.
Gosto de falar sobre mim. A maior parte do tempo estou
ocupado pensando sobre a minha própria vida. E ainda tem aquele magnetismo do drama (releiam o parágrafo anterior). Organizar as informações de forma a criar uma narrativa que sempre me coloque como vítima do destino. É quase irresistível. confortável e gostoso. E é chato pra caralho, entediante para quem vê. dia desses passei e revirei os olhos por um texto assim, vitimoso. E fiquei: ai, to fazendo o mesmo.
Impossível não falar da gente o tempo todo. Mas podemos
aprender a falar de uma maneira que cause conexões interessantes. Compartilhar emoções e reconhecer as emoções dos outros é o que ainda faz todo mundo não se matar — há muitas exceções, como sempre.
Então, eu escrevo textos porque quero fazer com que as
pessoas não se matem? Não necessariamente. Quer dizer, óbvio que eu não quero que ninguém se mate. Mas escrevo textos porque quero aprender a me comunicar melhor. Talvez seja do mesmo sentimento que um dos meus flatmades italianos teve ao escrever, em português, sobre como tinha sido a sua semana (era a lição de casa do curso de idiomas): ele também queria se comunicar melhor.
Também escrevo esses textos pra guardar como um souvenir
da Europa. Já que eu vim apenas com uma mala de mão e uma mochila pra cá, além de pouco dinheiro. Então toma texto de souvenir pra todo mundo. Vou mandar em arquivo .word, todo marcado de amarelo pra combinar com o sorriso amarelo de desapontamento que todo mundo vai ter quando eu voltar com essa justificativa fofa e sem graça.