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Luís Henrique Marques Ribeiro – Paraíba

Uma pandemia para um intercâmbio em Portugal

1.

Estou na Europa e não estou bem. Essa definitivamente não


é uma legenda instagramável. Na verdade, a frase pode
causar alergia a muita gente. Mas não se preocupem, tenho
uma explicação que não vai abalar os sonhos de vocês.
Vivemos uma pandemia. A obviedade dessa informação, que
tem sido o uníssono dos quatro cantos do planeta nos
últimos dias, precisa ser dita por aqui como demonstração
das razões que me levam a organizar essas palavras: o ato de
escrever como estratégia de conseguir estar na Europa e
estar bem.

Meu humor parece a bunda de Pabllo Vittar quando faz


quadradinho. Altos e baixos. Por altos, entenda-se apenas
bem. Por baixos, desespero total de saber que não estou no
Brasil. E porra, como estar aqui tem me confirmado algo
que sempre soube: o quanto sou sortudo por ser brasileiro e
por morar lá. Toda aquela história de alegria e festa, o
clichezão. Mas vai além, porque é entender a complexidade
da qual foi formada essa alegria e essa festa. Somos um povo
feliz porque conhecemos o genocídio dos indígenas e negros.
Somos um país que nunca foi pra ser. Formados de acasos,
de esparadrapos. A gente é foda demais e continua sofrendo
demais.

2.

Soube que viria fazer um período do meu mestrado em


Letras na Universidade de Coimbra em maio do ano
passado. Desde então formei um rosário de esperas: a
documentação para o passaporte, a documentação para o
visto, a compra das passagens, a escolha da melhor data, a
carta de aceite, a compra dos euros. O medo de tudo dar
errado e eu não vir. Ou o medo de tudo dar certo. Ou o medo
de eu vir e tudo dar errado.

Por alguma mágica ou mesmo medo do que perderia, não


nutri muitas expectativas das inúmeras possibilidades que
morar na Europa durante um período seria capaz de me
proporcionar. Apesar de ver o dinheiro da bolsa na minha
conta, a carta de aceite no meu e-mail, o visto em minhas
mãos, algo ainda me dizia não ser possível. Eu sabia de onde
falava esse sentimento. Talvez ele tenha me protegido de
uma sobrecarga de frustração ao estar aqui num cenário de
pandemia.

Ir ao supermercado mercado, que fica no shopping aqui


perto de casa, que tem o auspicioso nome de Alma, tem sido
um esboço tragicômico. Não se pode ficar parado 1 segundo
à vista dos seguranças, caso contrário eles irão até você a
perguntar o que se estar a fazer ali e afirmar que é
expressamente proibido a demora naquele espaço, algo que,
aliás, é nos lembrado a cada 3 segundos nos alto-falantes do
supermercado: tenha sua lista de compras e pegue somente
aquilo de que necessita, não demore, volte pra sua casa,
mantenha distância de 2 metros de cada pessoa. Ou, caso a
polícia veja você acompanhado de mais duas pessoas:
separados, mesmo que morem juntos.

As medidas são compreensíveis quando se sabe da situação


na Itália e na Espanha. Mas, excluindo-se esse contexto, o
que fica é mais uma sensação de onde-porra-eu-vim-parar-
meu-deus. se no Brasil de agora provavelmente acontece
algo parecido. No Brasil que eu deixei e eu conhecia, no dia
8 de março de 2020, o cenário era outro e, portanto, o que
fica é mais uma cutucada a me dizer que estou em terra
estrangeira.

3.

Moro em um convento desativado. Azulejos com a imagem


de Santo Antônio dão o indício de que o espaço era de
orações e reclusão. Há uma certa comicidade em estar aqui
em plena pandemia. Há 40 quartos, divididos em 3
pavimentos. O meu é o do meio. Tapetes vermelho sangue
estiram-se ao longo do corredor. Os pontos de luzes
amareladas adicionadas a inevitável escuridão provocada
pela altura das paredes e o ranger do piso de madeira dão a
atmosfera de filme de terror necessária para os momentos
que, durante a madrugada, preciso ir ao banheiro; e se, por
ventura, alguma outra bexiga ou estômago resolve confirmar
sua existência, a taquicardia é certa.

Os dias de isolamento talvez só não sejam maiores por conta


da dimensão desse espaço. Há uma área externa, com várias
laranjeiras em que se observa a cidade. O convento fica no
alto de mais um dos muitos morros a formarem Coimbra.
Imaginar a cidade um pouco como se fosse uma Olinda
ampliada, ou algumas avenidas como pertencentes à João
Pessoa, é um conforto e talvez necessidade inevitável num
gesto de diálogos e afirmações identitárias.

Tenho parado de fazer divisões entre café da manhã (ou


pequeno almoço, como chamam por aqui), almoço e jantar.
parece que estamos presos a um único dia que se repete
num movimento de looping infinito. Mas, pra não dizer que
tudo é igual, as histórias, que poderiam integrar qualquer
roteiro de seriado adolescente, acontecem e evoluem por
aqui: uma situação quase que inevitável quando se têm 15
jovens morando debaixo do mesmo teto, fazendo da
ociosidade, provocada pelo confinamento, o melhor tempero
para o chacoalhamento de ânimos.
O sol tem se posto em torno das 20h. Imagino como uma
compensação para mim que tenho acordado entre as 12h-
14h todos os dias. O clima em geral é frio, mas nos últimos
dias, o céu tem se fechado e tudo parece se alinhar
ironicamente. As metáforas surgem óbvias: literalmente o
tempo está fechado em todo o mundo. Acabo a encontrar
humor e ironia em todos os lugares. Em específico, o que me
rendeu bons momentos de riso foi a utilização de uma das
novas músicas de Pabllo Vittar como trilha sonora para as
chuvas filmadas pelas câmeras de celulares de muita gente
nos meus stories. Mas também há outra dimensão a se
considerar.

Não sei se sou eu a buscar alinhamento e explicações para


tudo (vamos assumir que sim, afinal este texto se alimenta
disso), mas a música Rajadão, com sua letra e melodia
puxadas do universo gospel, reúne universos ilustrativos de
representações que provavelmente estão a acontecer devido
a pandemia: o encontro da mãe evangélica e do filho gay.
Rajadão abraça 500 Graus de Cassiane.

Pabllo talvez tenha conseguido, com a música, um elo


realmente poderoso entre a mãe integrante da assembleia de
deus, restrita a um modo de vivência de sexualidade
machista e patriarcal, e o filho homossexual, afastado da
igreja, mas cuja reminiscência da fase evangélica expressa-
se nos louvores que integram a playlist da hora da faxina ou
de uma social em casa com os amigos.

E por que diabos eu falo sobre este encontro? Pelo motivo de


que ele é uma imagem necessária para olharmos com menos
ansiedade para a quarentena e a pandemia. O acesso a
perceber as coisas mais importantes. Gosto de imaginar que
Rajadão seja o gesto das pazes da família evangélica com o
filho gay.
Tanto a música de Cassiane, como a de Pabllo, dão um
sentido positivo para a tempestade, o que advém da esteira
dos ensinamentos bíblicos sobre a necessidade de passar por
provas, e do ensinamento daí apreendido, para depois
ganhar a vitória. As músicas se alinham ao focar na
tempestade. e a esta altura, inevitavelmente, lembro-me de
Iansã como a entidade do Candomblé que comanda os
ventos, as tempestades e os trovões. “Ela faz da insegurança,
a sua força, e do risco de morrer, o seu alimento”, Maria
Bethânia canta. A chuva tem poder e tem vitória; vida para
as plantações, para o sertão. “O lindo pra mim é o céu
cinzento”, Maria Bethânia cantando novamente aqui.

4.

Na semana passada completei 1 mês de Europa,


praticamente o mesmo de quarentena. Comecei a pensar no
encaixe perfeito dessas duas situações. É como se o destino
houvesse falado: Luís, haverá uma pandemia no mundo e
você irá passá-la em outro continente.

Em fevereiro, no carnaval, o Coronavírus era apenas uma


notícia distante, lá da china. No Brasil, ainda não havia nada
notificado. E lá estava eu na luta para não ser esmagado por
um pitú gigante no pingo do meio dia em Olinda.

Hoje, uma amiga de Natal confirmou que está com Covid-19.


ela faz residência farmacológica em um hospital de Recife.
Meu irmão mais velho também faz residência em Recife. O
hospital que ele vai todos os dias se tornou o de referência
para recebimento de casos.

A falta de vontade de continuar a escrever esse diário


também foi alimentada por pensar na falta de vontade que
as pessoas têm de ler um texto sobre a minha vida. O que me
lembra a desimportância natural dada à vida das pessoas
que não são próximas, característica da cultura européia,
que eu já tinha conhecimento e que foi confirmado por uma
amiga aqui do intercâmbio. Enquanto, no Brasil, o
passatempo da gente é ler as mensagens do zap alheio nos
Xiaomi de pessoas aleatórias no ônibus.

Gosto de falar sobre mim. A maior parte do tempo estou


ocupado pensando sobre a minha própria vida. E ainda tem
aquele magnetismo do drama (releiam o parágrafo
anterior). Organizar as informações de forma a criar uma
narrativa que sempre me coloque como vítima do destino. É
quase irresistível. confortável e gostoso. E é chato pra
caralho, entediante para quem vê. dia desses passei e revirei
os olhos por um texto assim, vitimoso. E fiquei: ai, to
fazendo o mesmo.

Impossível não falar da gente o tempo todo. Mas podemos


aprender a falar de uma maneira que cause conexões
interessantes. Compartilhar emoções e reconhecer as
emoções dos outros é o que ainda faz todo mundo não se
matar — há muitas exceções, como sempre.

Então, eu escrevo textos porque quero fazer com que as


pessoas não se matem? Não necessariamente. Quer dizer,
óbvio que eu não quero que ninguém se mate. Mas escrevo
textos porque quero aprender a me comunicar melhor.
Talvez seja do mesmo sentimento que um dos
meus flatmades italianos teve ao escrever, em português,
sobre como tinha sido a sua semana (era a lição de casa do
curso de idiomas): ele também queria se comunicar melhor.

Também escrevo esses textos pra guardar como um souvenir


da Europa. Já que eu vim apenas com uma mala de mão e
uma mochila pra cá, além de pouco dinheiro. Então toma
texto de souvenir pra todo mundo. Vou mandar em
arquivo .word, todo marcado de amarelo pra combinar com
o sorriso amarelo de desapontamento que todo mundo vai
ter quando eu voltar com essa justificativa fofa e sem graça.

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