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2/5/2021 O lado B do trabalho social dos evangélicos fundamentalistas

Obras antissociais: o lado B do


trabalho assistencial das
igrejas evangélicas
fundamentalistas
Vistos como a ala “do bem” das congregações radicais, seus trabalhos sociais
impõem uma visão de mundo e direitos humanos a seus atendidos. E não é a da
Constituição do Brasil.
Fábio Marton
5 de Fevereiro de 2021, 2h03

Foto: Ian Cheibub/picture alliance via Getty Images

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Existe um lado positi v o no reacionarismo evangélico fun


mentalista? A pergunta convida uma concessão. E essa concessão costu-
ma ser quase sempre a mesma: que essas igrejas fazem um trabalho so-
cial importante ao atender aos mais necessitados e prover uma rede de
suporte a eles. Ocupam o lugar do estado onde este se mostra ausente.

Impedir que alguém não morra de fome é, sem dúvida, uma coisa boa.
Mas por que a conversa deveria parar por aí? O que acontece depois que
o necessitado, compreensivelmente, pega o pão sem ver a mão? Foi um
almoço grátis? A história acaba nisso? Não há consequências? Quem as
igrejas evangélicas fundamentalistas tentam salvar da penúria? E por
que querem salvá-lo?

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“O que passa batido a quem faz elogios à obra social fundamentalista é


que há uma teologia por trás, que parte de um pressuposto pessimista”,
afirma o teólogo Ricardo Gondim, pastor líder da progressista Igreja Be-
tesda. Desvinculada da Assembleia de Deus em 2008, ela conta com 5
mil membros em três estados e aceita abertamente membros LGBTQ+.
“É a teologia da queda e do pecado original, que diz que as pessoas são
inerentemente pecadoras e nasceram debaixo da ira de Deus”.

Salvar um ser humano caído é diferente de salvar um ser humano com


valor inerente. Começa pelo propósito principal. “O que realmente im-
porta é salvar almas, evitar que as pessoas sejam punidas eternamente”,
afirma o pastor. “Essas intervenções sociais não são legítimas, têm uma
intencionalidade teológica por trás, que nunca é transparente.”

A obra social fundamentalista, é, em primeiro lugar, uma missão. É um


erro interpretar de forma materialista (atender uma necessidade deste

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mundo) o que é uma obra missionária, que atende às necessidades “do


outro mundo”. O propósito principal de uma obra social fundamentalis-
ta não é sanar males sociais, mas criar mais fundamentalistas.

Vinícius Esperança, antropólogo da Universidade Estácio de Sá, do Rio


de Janeiro, foi testemunha desse processo. Em sua pesquisa, que resul-
tou na dissertação “O foco de todo mal: estado, mídia e religião no Com-
plexo do Alemão”, Esperança acompanhou obras em favelas, onde pasto-
res e policiais militares se aliaram para criar uma nova ordem. “Um con-
selho evangélico decidiu que, para receber benefício social, a pessoa pre-
cisava participar do culto. Vai no culto, depois recebe ajuda. E sugerir
qualquer coisa era comprar briga. É um modelo de cruzada, cujo objeti-
vo final é a evangelização”, descreve Esperança.

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Dessa forma, fundamentalistas são criados. E passam a ver as coisas de


forma diferente. Assim como fundamentalistas têm explicações para as
coisas físicas que destoam dos consensos da ciência, eles também têm
suas explicações próprias para os males sociais, que divergem das inter-
pretações feitas pelas ciências humanas. Neste caso, a explicação é: falta
de Jesus na vida.

A resposta cabe a perguntas que todo mundo se faz, como “o que causa
a miséria?” ou “o que causa a criminalidade?”, até aquelas que só um
fundamentalista faria, como “o que falta na vida de quem tem orienta-
ções sexuais não heteronormativas ou de quem vota na esquerda?”

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Essa mudança rumo ao ultraconservadorismo, promovida pelas ações


dos “defensores da família”, pode, na realidade, destruí-las. Isso vem
acontecendo nos conselhos tutelares, organizações voluntárias com ob-
jetivo de  proteger as crianças de abusos. O que acontece é que, hoje, os
fundamentalistas definem o que é abuso a seu gosto.

Bolsonaro contou com o palanque de igrejas fundamentalistas. Evaristo Sa/AFP via Getty Images

No Conselho Tutelar de Araraquara, interior de São Paulo, Kate Ani Beli-


antini, mãe de uma adolescente de 12 anos, foi denunciada pela avó,
evangélica, e o conselho, de maioria também evangélica, acatou a de-
núncia. O “abuso”? A participação da criança no ritual de iniciação no
candomblé.

Uma história quase idêntica foi revelada em outubro, em Olinda, Per-


nambuco. Um pai denunciou a mãe pelo mesmo motivo e conseguiu a
guarda exclusiva da criança, mesmo não tendo participado de sua cria-

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ção até então. “Muitos conselhos tutelares são objeto de desejo de lide-
ranças evangélicas”, diz Esperança. “Estão sendo usados como uma ex-
tensão desse projeto missionário já faz um tempo. É também um espaço
para disseminação de seu projeto de cidadania.”

Há um lado ainda mais mórbido na “beneficência fundamentalista”: a


cura gay, feita, em grande parte, por clínicas sem fins lucrativos em lo-
cais remotos. Há todo um ativismo de psicólogos evangélicos para que o
Conselho Federal de Psicologia reconheça como válido o tratamento de
algo que não é doença. A homossexualidade deixou de ser considerada
um problema de saúde pela OMS há mais de trinta anos.

Mas os psicólogos “de Cristo” seguem com o falso tratamento, banido


pelo Supremo Tribunal Federal. Vítimas denunciam clínicas mantidas
por igrejas como verdadeiros campos de tortura. Em alguns casos, a clí-
nica religiosa, supostamente de tratamento contra drogas, aproveita-se
de acusações falsas dos pais para “tratar” os filhos LGBTQ+ à força.

E há um terceiro lado da dis-


solução de famílias pela “ca-
ridade” fundamentalista,
que é o da deseducação sexu- Os direitos humanos
al, promovido por um ativis- que os
mo travestido de “proteção fundamentalistas
das crianças”. Ao tornar
qualquer conversa sobre
desejam não estão
sexo tabu e tentar excluir a na Constituição. Eles
educação sexual das escolas, rejeitam esses
as igrejas fazem o jogo dos
abusadores. O estigma de ter
direitos.
sofrido um crime sexual, já
tão grande na sociedade, é
ainda mais marcante nessas igrejas, onde as pessoas preferem descon-

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versar. Ou temem represálias ao contestar suas autoridades religiosas


ou, em alguns casos, denunciar os próprios pastores envolvidas em
abusos.

Defender “a família”, para os novos cruzados de Cristo, é defender que


pessoas LGBTQIA+ não possam formar famílias. Permitir a adoção por
pessoas assim é, ao fundamentalista,  uma violação a um “direito huma-
no da criança”.

“Eles têm uma concepção toda particular de direitos humanos”, afirma


Vinícius Esperança. “As pessoas ridicularizam Damares, acham que a
pauta dos costumes é cosmética, mas está no cerne, na base, e ela é a
ministra mais popular de Bolsonaro.” Damares estar na pasta de Direitos
Humanos não é mero escárnio. É um plano.

A ministra Damares ocupa o centro da agenda bolsonarista ultraconservadora. Foto: NurPhoto via
Getty Images

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Os direitos humanos que os fundamentalistas desejam não estão na


Constituição. Eles rejeitam esses direitos. Os direitos deles são como o
“direito de nascer e crescer num ambiente ‘moral’”, o que significa cen-
surar exposições de arte. O “direito a não ser exposto à blasfêmia”. O di-
reito a opinar que gays e candomblecistas são possuídos pelo demônio.
O direito a ditar quem vai para o inferno.

A pessoa não é convertida apenas a uma religião diferente da que her-


dou dos pais. É convertida a um projeto político diferente da democracia
de 1988. É o que Esperança chama de “cidadania conservadora”. “Um
modelo de cidadania não contestatório, que não faz críticas ao modelo
de segurança pública militarista de direita. E com todas as pautas de gê-
nero, costumes, aquela cara de coisa bolsonarista”, diz o antropólogo. É
a cidadania de quem respeita a autoridade como divina, algo constituído
por Deus. É a cidadania dos “direitos humanos para humanos direitos”.

As críticas a esse modelo de


cidadania conservadora difi-
cilmente prosperam, porque
Essa ideia de encontram sempre o argu-
salvação pela mento de que é impossível ir
mudança pessoal é contra as ações sociais. Mas
“pelo menos estão fazendo
onde igrejas algo”, certo? A pessoa que
fundamentalistas e a abandonou o álcool ou as
direita secular se drogas pela igreja resolveu
um problema. Também di-
encontram. minuiu as despesas com fes-
tas. Regularizou seus docu-
mentos, formalizou sua
união, com benefícios legais. Arranjou um emprego de outro evangélico.
Não morreu de fome. A pessoa mudou de vida e se sente melhor. Quem

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vai julgar? Melhor deixar tudo como está, porque, do contrário, tería-
mos mais fome e violência.

Caímos então em outra armadilha. Essa ideia de salvação pela mudança


pessoal é onde igrejas fundamentalistas e a direita secular se encontram.
É parte do pensamento conservador antiestatal que considera obras soci-
ais privadas religiosas um bem em si mesmas. Um bem tão grande que
poderiam substituir totalmente qualquer serviço social estatal.

Ao converter o beneficiário de sua caridade, o religioso conservador ini-


cia sua doutrinação dizendo ao ajudado que ele precisa se livrar do que
quer que o tenha “levado” a sua situação de miséria. Na visão do religio-
so conservador, ganhar subsistência “por nada” na Caixa Econômica Fe-
deral patrocina atitudes e comportamentos que seriam a razão para a
pobreza.

Essa é uma ideia política conservadora secular. Não é nem de longe ex-
clusividade de evangélicos fundamentalistas. Nunca faltou parente em
mesa de Natal para dizer que o Bolsa Família estava arruinando os po-
bres, fazendo-os mamar no estado e se “encostar”.

Pastores reacionários põem a culpa em Satã, que forçou o recém-conver-


tido a fazer coisas erradas. E pregam que, depois de exorcizado e com a
chance de mudar de vida, se a coisa continuar a dar errado, a culpa é…
bem, dele mesmo. De quem falhou em ter f é ou se portar como um cris-
tão. O que casa com a visão direitista de que diferenças sociais são causa-
das por (falta de) mérito. Mérito enquanto cidadão capitalista, mérito en-
quanto cristão.

O que a igreja fundamentalista formou no Brasil são cidadãos que dis-


cordam da ideia de direitos humanos presentes na nossa Constituição.
Para os quais a Constituição “socialista” é um impedimento. Impedimen-
to à obra de Deus, pois facilita às pessoas continuarem no caminho do
Diabo com concessões “gratuitas”. Impedimento à justiça de Deus, pois
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os “direitos humanos” entram no caminho da polícia e exércitos e os im-


pede de agir em sua missão divina. Impedimento ao “direito humano”
real, que é nascer para servir a Cristo.

Você tem, enfim, um cidadão teocrático, autoritário, conspiratório, anti-


científico, individualista. Um ultraconservador. O pobre contra assistên-
cia social. A mulher contra o aborto e educação sexual. O “ex” gay que
agora ajuda aos outros a se “curarem”. O famoso, supostamente incoe-
rente, pobre de direita, que vai concordar que a PM entre atirando na
favela.

E, se algum inocente sofrer, bem, é como as mortes causadas pela pan-


demia: Deus já escolheu quem morre, e o Mito no Planalto nada tem a
ver com isso. “A explicação é dada a partir dessa noção de que há um
Deus que está aviltado”, afirma o pastor Gondim. “Deus está indignado
com o pecado humano e Ele tem todo direito de, como os evangélicos
brasileiros gostam de dizer, pesar a mão. Ele pesa a mão de uma manei-
ra indiscriminadamente caprichosa. Seus critérios, a gente nem sabe
quais são, mas são Dele, e eu não posso reclamar.”

O resultado está nas urnas, para a perplexidade de uma esquerda econo-


micista que acha que tudo se resume a uma questão de atendimento a
necessidades materiais. Nas eleições municipais, Bolsonaro foi um aza-
rão. Não é impossível ver os fundamentalistas virando as costas a ele
como fizeram com Flordelis: agora ela é “feiticeira” e todo mundo finge
que nunca se inspirou em nada do que disse ou cantou. Bolsonaro, a
gente espera, um dia passará. O ultraconservadorismo fundamentalista?
É uma luta de gerações. Pergunte aos americanos dos estados que deram
maioria a Trump.

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