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Categorias espaço-temporais: uma conexão com as

pedagogias
Iolanda Montano dos Santos1

Resumo
Neste texto, proponho uma discussão sobre algumas campanhas de saúde realizadas na escola,
problematizando o caráter curativo/terapêutico da Pedagogia. O trabalho aqui apresentado, a
partir da perspectiva foucaultiana, possibilita pensar algumas práticas de controle dos sujeitos na
escola. Refiro-me a algumas práticas disciplinares, corretivas e psicológicas como forma de
assegurar a normalização e a regulamentação das crianças na escola. Nesse sentido, o objetivo
deste artigo é discutir a Pedagogia como um campo cuja lógica estará diretamente associada
com a produção dos sujeitos, como um conjunto de práticas fundamentais para agir sobre os
cidadãos. Dessa forma, tais práticas favorecem o desenvolvimento de sujeitos cada vez mais
capazes de se autorregular e se autodeterminar de maneira consciente. Dirigir, moldar, guiar a
conduta dos indivíduos de forma que eles se tornem indivíduos de um certo tipo (ideal, educado,
consciente, enfim, cidadão) tem haver com aquilo que Foucault chamou de vontade de poder:
estruturar o eventual campo de ação dos outros.
Palavras-chave: pedagogias, corpos infantis, disciplinamento, normalização

Spatiotemporal categories: a connection to the pedagogies


Abstract
In this paper, I propose a discussion about some health campaigns in schools, problematizing the
healing/therapeutic character of Pedagogy. The work presented here, from a Foucauldian
perspective, contributes to think about some control practices on the subjects in school. I refer to
some disciplinary, corrective and psychological practices in order to ensure normalization and
regulation of children in school. In this sense, the aim of this paper is to discuss Pedagogy as a
field whose logic is directly associated with the production of subjects, as a set of fundamental
practices to act on citizens. Thus, these practices foster the development of subjects increasingly
able to self-regulate and self-determination in a conscious way. Directing, shaping, guiding the
conduct of individuals so that they become subjects of a certain type (ideal, educated, aware,
finally, citizen) is related with what Foucault called the will of power: to structure the possible
field of action of others.
Keywords: Pedagogies, children's bodies, discipline, normalization

1
Doutora em Educação pela UFRGS. Coordenadora do Curso de Pedagogia das Faculdades
Integradas São Judas Tadeu

Textura Canoas n.25 p.67-85 jan./jun. 2012


Neste texto2, proponho uma discussão que se insere no conjunto de
estudos que problematizei na minha Dissertação de Mestrado sobre algumas
campanhas de saúde realizadas na escola, discutindo o caráter
curativo/terapêutico da Pedagogia. O trabalho aqui apresentado, a partir da
perspectiva foucaultiana, possibilita pensar algumas práticas de controle dos
sujeitos na escola através de práticas disciplinares, corretivas e psicológicas
como forma de assegurar a normalização e a regulamentação das crianças na
escola. Não pretendo aqui fazer um estudo minucioso sobre as categorias
espaço-temporais, desejo apenas levantar algumas questões que me parecem
importantes à prática educacional, a partir do momento em que faço algumas
conexões entre as pedagogias —disciplinares, corretivas e psicológicas— e as
categorias de pensamento.

Sendo assim, o objetivo deste artigo é discutir as categorias espaço-


temporais como elementos do currículo e relacioná-las com as pedagogias para
entender melhor o espaço escolar, não somente como um lugar onde sujeitos
participam de um processo de ensino e aprendizagem, mas como um espaço
escolar vivido e experienciado, no qual expressam e se articulam determinados
discursos e práticas.

O ESPAÇO-TEMPORAL
Pode-se dizer que os espaços educativos constituem nossas maneiras de
pensar e de viver e, por isso, as categorias de espaço e de tempo não são
estruturas neutras, são espaços que estão carregados de significados e
transmitem valores, conteúdos, impõem normas e hierarquias e uma série de
símbolos estéticos, culturais e ideológicos. Considerando que o espaço escolar
é um desses elementos do currículo, Rocha (2000, p.117) acrescenta:
[...] é justamente o espaço escolar, seja ele edificado ou não,
aberto ou fechado, amplo ou mínimo, com funções e lógicas
específicas (ou não), que permite ou não movimentos de
ocupação e limitação, que institui práticas ou sequer as permite.
Mais do que isto: espaço de produção e reprodução de saber e
poder na medida em que, ao ser convencionalmente considerado
como (senão único, um dos) local privilegiado e legitimado de
concentração do saber (visto como) cientificamente organizado,
delimita usos, provoca rupturas, mantém hierarquias, disciplina,
controla, vigia e produz subjetividades.

2
Este texto foi apresentado na II Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação – II Colóquio
de Pós-Graduação (II SEPesq) - e publicado no CD do evento, realizado no Centro Universitário
Ritter dos Reis/UniRitter, Porto Alegre, em outubro de 2006.

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De acordo com Varela (1996), as categorias de pensamento estão
vinculadas a uma categoria espaço-temporal que varia em função das culturas
e das épocas históricas que estão constantemente se refazendo, de acordo com
as formas que o funcionamento do poder e do saber adotam em cada
sociedade. Segundo esta autora, podemos compreender que espaço e tempo
estão indissociavelmente conectados e, portanto, pode-se dizer que “categorias
espaço-temporais, poder, pedagogias, saberes e sujeitos constituem dimensões
que se entrelaçam no interior das instituições educativas” (Varela, 1996, p.39).

Escolano (1998, p.26), em recente trabalho sobre as relações entre tempo


e educação, refere-se às “categorias espaço e tempo não como simples
esquemas abstratos ou estruturas ‘neutras’ nas quais deságua a ação escolar”.
Dito de outra forma, “o espaço-escola não é apenas um cenário planificado a
partir de pressupostos exclusivamente formais no qual se situam os atores que
intervêm no processo de ensino e aprendizagem para executar um repertório de
ações” (Escolano,1998, p.26). Pois o espaço, segundo este autor, é:
[...] um programa, uma espécie de discurso que institui em sua
materialidade um sistema de valores, como os de ordem,
disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e
motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos
estéticos, culturais e também ideológicos. (...) No quadro das
modernas teorias da percepção, o espaço-escola é, além disso,
um mediador cultural em relação à gênese e formação dos
primeiros esquemas cognitivos e motores, ou seja, um elemento
significativo do currículo, uma fonte de experiência e
aprendizagem. Mais ainda, a arquitetura escolar, pode ser
considerada inclusive como “uma forma silenciosa de ensino”.
(Escolano, 1998, p.26)

Como afirma Le Corbusier (apud Rocha, 2000), a concepção


arquitetônica modernista previa soluções corretas, eficientes, padronizadas,
modernas para os mais diferentes problemas de construção, habitação e
mobiliário. O estilo deveria ser prático, com a rejeição total da arte decorativa.
Idéias de padronização, normalização, funcionalidade objetiva (forma idêntica
à função) são características inerentes à arquitetura modernista.

Na concepção desta autora, a escola, mesmo aquela anterior à época


Moderna, já estava impregnada por essa concepção moderna. Conforme
argumenta Rocha (2000, p.120),

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[...] a escola coerente com sua função de educar, disciplinar,
ordenar, regular; desenvolveu-se como um espaço de
domesticação, onde indivíduos menos sábios (alunos) sujeitam-
se aos mais sábios (professores) para tornarem-se também eles
homens de saber, que se crêem capazes, então, de ocuparem
espaços reservados àqueles e àquelas que têm o direito e o
merecimento ao poder.

De forma geral, pode-se dizer que “o edifício-escola serviu de estrutura


material para colocar o escudo pátrio, a bandeira nacional, as imagens e
pensamentos de homens ilustres, os símbolos da religião, algumas máximas
morais e higiênicas, o campanário e o relógio... Isso expressa toda uma
instrumentação da escola a serviço dos ideais nacionais, religiosos e
sociomorais” (Escolano, 1998, p.40).

AS PEDAGOGIAS DISCIPLINARES – O PODER DISCIPLINAR


De acordo com os estudos realizados por Hall (1997), o nascimento do
“indivíduo soberano”, entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o
Iluminismo do século XVIII, representou uma ruptura importante com o
passado. Portanto, alguns estudiosos argumentam que tal nascimento foi o
motor que colocou todo o sistema social da Modernidade em movimento.
Sendo assim, pode-se dizer que o sujeito do Iluminismo estava baseado numa
concepção de pessoa como um indivíduo centrado, unificado, dotado das
capacidades de razão, de consciência e de ação.

Com isso, o que Varela (1996) nos aponta é para o fato de que, com a
constituição dos Estados Modernos, o processo de individualização se
intensifica devido à crescente divisão social do trabalho, ao aumento da
densidade da população nas zonas urbanas, à acumulação primitiva do capital,
ao desenvolvimento da propriedade privada, à influência da ética protestante e
ao impulso da Administração3.

Como se pode perceber, foi a partir dessas transformações políticas,


econômicas, religiosas e culturais que começou a estabelecer-se sutis conexões
entre o processo de individualização e os modos de educação, ocorrendo,
assim, uma regulação social do espaço e do tempo, baseada em tecnologias de

3
Max Weber analisou, em relação ao surgimento da Administração, como o Estado Moderno, ao
exigir de uma parte importante de seus funcionários a superação de provas e exames nos quais
deviam demonstrar que possuíam conhecimentos e capacidades para desempenhar o cargo a
que aspiravam, inaugura, assim, uma vida individual —meritocrática— oposta à do sangue e da
linhagem que até então havia dominado (Varela, 1996).

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produção de subjetividades e constituição de saberes. A isso está relacionado o
fato de que ao se produzir determinadas subjetividades se estaria propondo que
sujeitos inteligentes, conscientes, educados serão mais autônomos, mais
independentes, mais responsáveis, serão capazes de promoverem
transformações sócio-político-econômico-culturais que visem melhoria de
vida, progresso, enfim, humanizações.

Com tais transformações ocorridas no século XVIII (acréscimo e


conservação das riquezas, inibição de motins e obtenção de maior segurança,
viabilização de um novo modelo de sociedade, ou seja, de controle social)
engendra-se um novo tipo de poder que Michel Foucault (1999) denominou
“poder disciplinar”. Tal poder parte do princípio de que é mais rentável vigiar
do que castigar; domesticar, normalizar 4 e fazer produtivos aos sujeitos é mais
rentável do que aprisioná-los ou eliminá-los. Em resumo, trata-se de uma nova
economia e uma nova tecnologia de poder.

Portanto, esse poder disciplinar se estendeu por todo o corpo social e,


mais concretamente, nas instituições educativas, o que implica a existência de
um espaço e um tempo disciplinares. A cada indivíduo há de se determinar um
lugar e uma localização precisa no interior de cada conjunto.

Ainda segundo Foucault (1999), os colégios das ordens religiosas e os


quartéis são considerados como sendo os lugares específicos onde começaram
a vigorar as tecnologias disciplinares5. Pode-se dizer que, a partir do século
XVIII, a classificação é um dos procedimentos de distribuição e divisão dos
colegiais no espaço escolar: filas de colegiais nas classes, nos corredores, na
igreja e nas excursões. Esta classificação se atribui a cada colegial em função
de seu êxito ou fracasso nas provas ou nos exames.

De acordo com Escolano (1998), a “espacialização” disciplinar é parte


integrante da arquitetura escolar e se observa tanto na separação das aulas

4
De acordo com Foucault (1999a, p. 302), a norma é o elemento que circula entre o disciplinar e
o regulamentador e que se aplica tanto ao corpo quanto à população e, assim, permite “controlar
a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica, esse
elemento que circula entre um e outro é a norma. A norma é que pode tanto se aplicar a um corpo
quanto a uma população que se quer regulamentar”. Esse autor salienta que “a norma está em
jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é que é o primeiro, e a norma se deduz
dele [...]” (Foucault, 2008, p. 83).
5
Segundo Varela (1996), em numerosos momentos históricos parece entrecruzar-se e reforçar-
se as tecnologias pedagógicas e militares no âmbito escolar, tal como sucede concretamente no
ensino dos jesuítas. E, de fato, Foucault, em Vigiar e Punir, dedica algumas páginas ilustrativas
para mostrar a forma que adotou o ensino nos colégios dos jesuítas.

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(graus, sexos, características dos alunos) como na disposição regular das
carteiras (como corredores), coisas que facilitam, além disso, a rotina das
tarefas e a economia do tempo. Sobre essa “ordem” escolar, Foucault (1999)
acrescenta:
[...] nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno
segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento,
ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa
série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber
ou das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no
espaço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos
méritos. (id., p.126)

Portanto, forma-se uma política das coerções que é um trabalho sobre o


corpo. Pode-se dizer que o corpo humano entra numa maquinaria de poder que
o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Ou ainda, uma “anatomia política”,
que é também igualmente uma “mecânica do poder”; tal “anatomia política”
define “como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente
para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as
técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina” (id., p.119). A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A
disciplina é, pois, entendida como: “(...) um tipo de poder, uma modalidade
para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas,
de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma 'física' ou uma
'anatomia' do poder, uma tecnologia” (Foucault, 1999, p.177).

Segundo esse raciocínio, as pedagogias disciplinares implicam também


mudanças importantes com relação ao tempo. Surge uma nova economia do
tempo de aprendizagem, pois se organizam as atividades de acordo com um
esquema de séries múltiplas, progressivas e de complexidade crescente;
distintos níveis separados por provas graduais, que correspondem a etapas de
aprendizagem e que compreendem exercícios de dificuldade cada vez maior.
Essa nova forma de perceber e organizar o tempo e o espaço escolar permite
“um controle do processo de aprendizagem e um controle de todos e de cada
um dos alunos, faz com que o espaço escolar funcione como uma máquina de
aprender e ao mesmo tempo possibilita a intervenção do mestre em qualquer
momento para premiar ou castigar e, sobretudo, para corrigir e normalizar”
(Varela, 1996, p.43).

Larrosa (1999) diz que a imagem do panóptico preside as análises


foucaultianas de Vigiar e Punir a propósito dos aparatos disciplinares.
Dispositivos para “tornar visíveis” as pessoas que capturam (crianças) e para

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“tornar eficazes” os processos que realizam (ensinar). Foucault (1999, p.165)
refere-se ao dispositivo panóptico:
[...] o Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa
composição. O princípio é conhecido: na periferia uma
construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas
janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção
periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a
espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o
interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o
exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. [...]
Cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e
constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza
unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer
imediatamente. [...] Cada um é visto, mas não vê; objeto de uma
informação, nunca sujeito numa comunicação.

Desse modo, pode-se supor que um dos efeitos importantes do panóptico


seja o de induzir, por exemplo, no detento, no doente ou na criança um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento
automático do poder. O panoptismo é capaz de: “[...] reformar a moral,
preservar a saúde, revigorar a indústria, difundir a instrução, aliviar os
encargos públicos... tudo isso com uma simples idéia arquitetural” (Foucault,
1999, p.165).

Para Foucault (1999), o exame é um dispositivo de visibilidade, de


vigilância; um dispositivo que inverte as relações de visibilidade habituais no
espaço pedagógico; mudanças no que se vê e se faz ver e no que se oculta. E é
por isso que este autor salienta que, em todos os dispositivos de disciplina, o
exame é altamente ritualizado. Como esclarece Foucault: “[...] o exame
combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É
um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e
punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são
diferenciados e sancionados.” (Foucault, 1999, p.154).

Como mostrou Foucault (1999), o poder disciplinar afeta o campo do


saber. Ao final do século XVIII, na medida em que o Estado se consolidou e
com o impulso da revolução industrial, começa a intervir direta ou
indiretamente na formação de cidadãos, através da eliminação dos saberes
inúteis ou economicamente muito custosos, da normalização, da
hierarquização e da centralização dos saberes.

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Nesse sentido, todas estas operações permitem sua seleção e controle e
implicam no surgimento de instituições que vão desde “A Enciclopédia” até a
Universidade controlada pelo Estado; numa ordem hierarquizada dos saberes
(tidos como) legítimos. Sendo assim, os saberes são reduzidos à disciplinas,
com uma organização e uma lógica interna específicas, dando lugar ao que na
atualidade conhecemos como ciências. Como salienta Varela (1996), é esse
disciplinamento dos saberes que é a própria condição de possibilidade da
formação das ciências.

Como se pode observar, as pedagogias disciplinares não devem ser


analisadas a partir da noção de repressão, já que seus efeitos mostram-se
produtivos, uma vez que se pode supor “uma mudança na percepção social do
tempo e do espaço, mudança que se manifesta, ao mesmo tempo, na
organização do espaço e do tempo pedagógicos, e em sua interiorização pelos
colegiais” (Varela, 1996, p.43). Portanto, essas pedagogias são também, por
um lado, instrumento na construção de uma nova subjetividade, o indivíduo, e,
por outro lado, na organização do campo do saber. Isso nos leva a pensar que o
poder disciplinar joga em dois terrenos, o da produção dos sujeitos e o da
produção dos saberes. As tecnologias disciplinares que constituem o indivíduo,
constroem seu “eu” e produzem um disciplinamento dos saberes.

As pedagogias disciplinares, em outras palavras, aplicam-se a novas


relações de poder que são “tanto menos visíveis quanto mais física e
materialmente estão presentes e quanto mais vinculadas estão ao processo de
aprendizagem” (Varela, 1996, p.44). Daí o entendimento de que o poder
disciplinar tenha, talvez, “suprimido as penalizações e os castigos físicos, já
que as sanções, as correções, constituem, a partir de agora, em repetir as
atividades, em repetir os exercícios, em fazer novamente a mesma coisa”
(Varela, 1996, p.44).

AS PEDAGOGIAS CORRETIVAS – NOVOS DISPOSITIVOS DE


PODER
Em princípios do século XX surge um novo tipo de poder a partir do
momento em que se retomam e reformulam as propostas educativas dos
ilustrados e especialmente o modelo pedagógico proposto por Rousseau.
Portanto, como diz Varela (1996), o Estado Moderno impõe novas pautas de
regulação social que são institucionalizadas através de processos de mudanças.
De um modo geral, tais mudanças têm como objetivo tentar solucionar a
questão social, neutralizar a luta de classes através de uma política de
harmonização dos interesses do trabalho e do capital que permitisse a

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integração da classe trabalhadora na escola. Desse modo, como já referi no
capítulo precedente, o que está no âmago do projeto educacional da
Modernidade é fazer da escola o locus privilegiado para a consecução dos
ideais do Iluminismo.

Então, a partir dessas novas pautas de regulação social, pode-se notar


que a escola cria uma ruptura com os modos de educação das classes
trabalhadoras, provocando o que se pode chamar de uma série de conflitos e
desajustes, inclusive uma resistência à escola disciplinar, que pode ser
interpretada como falta de disciplina, anormalidade ou delinqüência.

O como civilizar e domesticar essas crianças constitui o objetivo dessa


escola pública e obrigatória, na qual seguem reinando as pedagogias
disciplinares. Para tanto, faz-se necessário o surgimento de diferentes
instituições para educar as crianças consideradas como “inaptas”. Desse modo,
tais instituições se convertem em espaços privilegiados, em laboratórios de
observação. E foi nestas instituições de correção onde começou a ser aplicado,
por membros da Escola Nova, novos métodos e técnicas, produção de novas
formas de subjetividade inseparáveis de um novo estatuto do saber (aplicação
de testes mentais, reutilização do espaço e do tempo).

De acordo com Varela (1996), Montessori e Decroly aceitam (da mesma


forma que a maioria dos representantes da Escola Nova) a lei biogenética e a
lei do progresso, e pensam que para ser um bom civilizado a criança tem que
ser previamente um bom selvagem. Quase todos eles viam nos exames uma
das maiores imperfeições das pedagogias disciplinares.

Estes novos pedagogos – em sua maior parte oriundos da medicina, com


especialização em psiquiatria – aceitam as teorias rousseaunianas, isto quer
dizer, situam a criança no centro da ação educativa, acreditam em uma
aprendizagem através da ação. A partir dessa concepção, “a escola deve
adaptar-se aos interesses e tendências naturais da criança” (Varela, 1996,
p.46).

Segundo Escolano (1998), não apenas o espaço-escola deve ser


examinado como um elemento do currículo, mas também sua localização e
disposição na trama urbana dos povoados e cidades. Para estes reformadores e
pedagogos da Escola Nova, o lugar que a escola teve de ocupar na sociedade
foi um ponto de especial preocupação.

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Portanto, Giner (apud Escolano,1998, p.30) justificava a afirmativa
rousseauniana segundo a qual as cidades eram “abismos da espécie humana” e
formulava como ideal de toda moradia o “aproximar-se, até o último grau
possível, da vida ao ar livre”. Sendo assim, a escola também deveria se
configurar conforme esse critério pedagógico, e mais de acordo com a
concepção do médico e do higienista, em oposição ao que ele chamava a
“ditadura do arquiteto”.

Essas idealizações do espaço escolar foram especialmente expressivas no


discurso regeneracionista do início do século. Um texto da época, apontado
por Escolano (1998), sublinha que “a rua da escola” é como a nossa própria
rua (“uma rua que deves considerar como aquela em que está situada tua
casa”). A escola amplia o lar (“porque te dá aquilo que não encontras em tua
casa, por culta que essa seja”). Além disso, “patrocinar uma escola é a melhor
maneira de contribuir para o engrandecimento e melhoria material do povo,
assim como para o progresso da nação (expressão de uma das conhecidas
projeções filantrópicas dos homens da regeneração)” (Escolano, 1998 p.52).

Nessa perspectiva, a arquitetura escolar, além de ser um programa


invisível e silencioso que cumpre determinadas funções culturais e
pedagógicas, pode ser instrumentada também no plano didático, toda vez que
“define o espaço em que se dá a educação formal e constitui um referente
pragmático que é utilizado como realidade ou como símbolo em diversos
aspectos do desenvolvimento curricular” (Escolano, 1998, p.47). Em algumas
metodologias, inclusive, como a montessoriana que pode ser denominada
“ativa”, “o planejamento do ambiente e do espaço é parte constitutiva e
irrenunciável de um novo modo de considerar a criança, de tal maneira que os
objetos e o projeto educativo guardam, entre si, uma íntima relação”
(Escolano, 1998, p.47).

Considerando essa perspectiva, cabe ao mestre a missão de condicionar o


espaço e o tempo para dar forma e sentido a essas atividades. Segundo Varela
(1996), uma das finalidades da escola primária é “organizar o meio de forma
que a criança encontre nele os estímulos adequados a suas tendências
favoráveis. E para fundamentar cientificamente suas metodologias não irão
apenas observar as crianças, por exemplo, que estão recolhidas em instituições
especiais e fazer exames com elas, mas, além disso, procurarão descobrir as
leis que regem seu desenvolvimento” (Varela, 1996, p.47).

No contexto disso é que podemos dizer que o regeneracionismo e o


reformismo social constituíram a base teórica na qual ambos renovadores

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(Montessori e Decroly) se movimentaram. Montessori, por exemplo, enfatiza
que sua metodologia e seu material têm como finalidade alcançar a
concentração, a perseverança e a autodisciplina da criança. Nesse sentido, a
ação educativa deve produzir, ao afinal, uma personalidade equilibrada e
adaptada (Varela, 1996). Decroly (apud Varela, 1996, p.48), por sua vez,
afirma que: “ na luta contra a degeneração e suas múltiplas conseqüências, a
intervenção do médico deve, ao mesmo tempo, ser profilática e terapêutica e o
conceito terapêutico implica tratamento médico e pedagógico.”

Segundo Goellner (s/d), no tocante às atividades físicas e sua inserção no


contexto escolar, os métodos ginásticos alemão, sueco e francês que
despontaram no século XIX traduziram as primeiras sistematizações de
exercícios físicos, apresentando como objetivos, resguardadas as
especificidades de cada país: a regeneração da raça, a promoção da saúde e a
formação do homem forte e corajoso, útil à nação tanto pelo desempenho nas
guerras como pela atuação na esfera da produção industrial. E ainda, conforme
esta autora, a todo esse “conjunto de objetivos estava implícito um rigoroso
controle disciplinar manifesto nos desdobramentos de cada método e na
concepção de ser humano (biológico) e de movimento (anátomo-mecânico)
que tais métodos sustentavam e para os quais a Educação Física direcionou sua
atenção” (Goellner, p.5).

Aqui, cabe recorrer a Rousseau porque foram as suas idéias que, de certa
maneira, influenciaram algumas sistematizações acerca das atividades físicas
nos métodos ginásticos. Isto é, foi sua preocupação com o corpo de Emílio que
inspirou muitos dos pedagogos, médicos, fisiologistas e até militares a
elaborarem propostas metodológicas para a prática de exercícios de forma
sistematizada e, portanto, educativa.

Na sua proposta pedagógica, Rousseau (1973) defende a educação da


criança, e é também com ele que se inventa o conceito de infância que
conhecemos hoje, com vistas a proporcionar-lhe condições para que busque
um futuro melhor na vida em sociedade. Sustenta também a noção contrária
àquela que identificava na criança um adulto em miniatura, uma vez que prega
a necessidade de se respeitar as suas fases de desenvolvimento, inclusive no
que diz respeito ao seu esforço físico. Afinal, diz Rousseau: “a infância tem
maneiras de ver, de pensar, de sentir, que lhe são próprias, nada menos sensato
do que querer substituí-las pelas nossas” (Rousseau, 1973, p.75).

Ao longo de Emílio ou da Educação, parece que o autor indica


caminhos, através de suas máximas educacionais, no sentido de propor uma

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educação relacionada à liberdade e também aos cuidados com a saúde e com o
corpo. Para Rousseau, os exercícios físicos se constituem como uma forma de
se trabalhar o que ele chama de educação negativa. No caso de Emílio, essa
proteção se refere às relações humanas. Portanto, enquanto Emílio interage
com a natureza, mantém-se virtuoso e com tempo necessário para amadurecer
os seus sentidos.

É interessante que, mesmo com o desenvolvimento da medicina como


possibilidade à melhoria das condições de saúde da população, Rousseau
mostrava-se descrente em relação a tais argumentos dessa ciência. Descrente
da Medicina, mas inebriado pelo pensamento higienista, Rousseau (1973,
p.33) diz que “a única parte útil da medicina é a higiene; e a higiene é menos
uma ciência que uma virtude”.

Volto para a questão do controle do espaço e do tempo de aprendizagem.


O controle que o mestre exercia no “ensino tradicional” através da
programação das atividades e dos exames se desloca agora, tornando-se
indireto, para a organização do meio. E o objetivo não é tanto a disciplina
exterior, produto de um tempo e de um espaço disciplinares, mas a disciplina
interior, a autodisciplina, a auto-regulação.

Conforme Varela (1996, p.49), as pedagogias corretivas, ao colocar em


ação novas técnicas pedagógicas destinadas a condicionar o meio “à medida
das necessidades e interesses infantis, supõem uma transformação das
categorias espaço-temporais nas quais irá se desenvolver as atividades
escolares”.

De acordo com a lógica durkheimiana, pode-se dizer que surge o


sentimento do dever, ou seja, o dever de auto-repressão, de autocensura, de
submissão à autoridade, é tanto mais legítimo e reconhecido quanto mais
internalizado através da ação educativa (Marzola, 1995). Nas palavras de
Durkheim (1975, p.56), a autoridade do mestre, ao ser “um aspecto da
autoridade do dever e da razão”, deve ser empregada, portanto, para “dotar a
criança desse domínio de si mesma”.

Considerando tal afirmativa, pode-se pensar que, para o sucesso dessa


tarefa social, é necessário que o professor tenha aquele tipo de autoridade que
não lhe é atribuído de fora e que, segundo Durkheim (1975, p.55) “não pode
provir senão de fé interior”. Uma fé não propriamente nas suas capacidades
intelectuais ou nos seus sentimentos, mas uma fé “na missão que lhe cabe”,
como participante e oficiante desta “grande entidade moral que é a sociedade”.

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Portanto, nessas pedagogias corretivas, novas formas de socialização são
constituídas onde se supõe a possibilidade de uma socialização universal,
individualizada, válida para qualquer sujeito, desligada das classes sociais e do
contexto histórico e legitimadas por códigos chamados “experimentais”.
Produz-se, assim, uma negação dos conflitos sociais e das lutas pela
hegemonia social através da construção da “criança natural”.

Varela (1996, p.49) aponta que a partir disso configura-se todo um


mundo “em miniatura” que rompe com a rígida organização do espaço
disciplinar no qual “o estrado de madeira era o símbolo da autoridade e do
poder do mestre”. Montessori elaborou “o material de desenvolvimento,
sistemas de objetos —sólidos encaixáveis, tabuinhas, objetos geométricos,
campainhas, cartazes, barrinhas...— para educar os sentidos, a sensibilidade,
aprender o alfabeto, os números, a leitura, a escritura e a aritmética” (Varela,
1996, p.49). Nessa lógica, o tempo disciplinar também se rompe e deixa
margem a um tempo cada vez mais subjetivo —a criança poderá realizar uma
aprendizagem livre de coações. A mestra é, segundo suas palavras, “a guardiã
e protetora do meio”.

Para Decroly (apud Varela, 1996), por exemplo, o método da


globalização do ensino e seu programa dos centros de interesse se inscrevem
também na direção de que não apenas o material, o espaço e o tempo devem
adaptar-se às supostas necessidades e interesses individuais dos alunos, mas
também os saberes. A observação, a associação e a expressão, assim como a
supressão de horários fixos estão na base deste ensino “atrativo” através dos
centros de interesse, um ensino que permitirá a cada aluno adquirir, seguindo o
processo cognoscitivo global próprio de sua idade, um saber cuja organização
já não corresponde com a tradicional divisão das disciplinas.

A partir da redefinição da “infância”, que teve como iniciadores


Montessori e Decroly, baseados na lógica rousseauniana, é que se constituiu
um dos pontos básicos para uma nova construção e percepção do sujeito
psicológico. De certa maneira, quero dizer que a nova forma de exercício do
poder que se esboça no início do século XX, o psicopoder, emerge nessas
instituições educativas de correção e de educação pré-escolar.

PEDAGOGIAS PSICOLÓGICAS – O PSICOPODER


O fato de que os representantes da Escola Nova tenham sido médicos ou
tenham estado ligados à clínica explica uma posição privilegiada frente às
pedagogias tradicionais para impor suas teorias mais fundadas cientificamente.

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Com efeito, na época moderna, a relação poder-saber adquire um novo sentido
ao fundar a autoridade no conhecimento científico. Ou seja: ao proclamar a
subordinação do poder a um tipo de saber —o da ciência.

Segundo Marzola (1995), acreditava-se que o objetivo das ciências


sociais era o de planejar e orientar o desenvolvimento social através de uma
ação estatal mais racional, em direção a uma verdade última e transcendental.
Nesse caso, a investigação se converte numa estratégia para a racionalização e
inovação do social através da coleta de dados, sobretudo os estatísticos 6. Com
tais dados estatísticos, era possível identificar a origem dos males sociais,
como, por exemplo, a delinqüência, a doença e a pobreza. Enquanto Ciência, a
Estatística passa a determinar o curso de ação adequado para a solução desses
problemas.

Nesse sentido, em parte Freud e principalmente Piaget irão se constituir


em dois referenciais obrigatórios para a educação institucionalizada na medida
em que percebem o desenvolvimento infantil em etapas ou estágios
progressivos e diferenciados, assim como supostamente universais. A partir
dessas perspectivas, a criança é situada no centro do processo educativo e ao
mestre é dada a função de ajuda. O ensino deve adequar-se cada vez mais aos
interesses e necessidades dos alunos e a adaptação continua sendo o objetivo
principal da educação. Assim, como já mencionei anteriormente, a utilização
didática do espaço escolar e de seu entorno é uma característica comum a
todas as pedagogias denominadas “ativas”.

Segundo Escolano (1998), os estudos de Piaget, por exemplo, sobre a


psicogênese das estruturas topológicas na infância, que precedem as
construções do tipo euclidiano e projetivo, remetem igualmente à valorização
das primeiras experiências espaciais (na casa e na escola) como fatores
determinantes do desenvolvimento sensorial, motor e cognitivo. Brown e
Desforges (apud Escolano, 1998, p.48) mostram que “a construção de tais
estruturas é explicada pelos mecanismos de equilibração e auto-regulação,
constructos que na teoria piagetiana são aplicados para explicar todo o tipo de
desenvolvimento”. De acordo com Flavell (apud Escolano, 1998, p.48), os
trabalhos de Piaget sobre a concepção “do espaço na criança e sobre a

6
Foucault (2002, p.285; 288) relaciona a estatística —a ciência do Estado— ao “desenvolvimento
da arte de governar”, ou seja, a uma arte de governo que encontrou sua dimensão própria na
conexão com a emergência do problema da população. Ao permitir quantificar e isolar os
fenômenos específicos da população, a estatística constituiu-se no principal fator técnico desse
“desbloqueio”.

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aquisição de diversas noções físicas e geométricas mostram que a
representação do espaço na criança é uma construção internalizada a partir das
ações ou manipulações sobre o ambiente espacial próximo, do qual a escola
obviamente faz parte”.

Varela (1996) considera que as pedagogias psicológicas são


caracterizadas por um controle interior cada vez mais forte, uma vez que se
baseia em normas cientificamente marcadas pelos estágios do
desenvolvimento infantil. Como expressa Walkerdine (apud Varela, 1996, p.
51), as estratégias pedagógicas destinadas a um desenvolvimento sem coações
desta suposta “criança natural e universal implicavam uma constante
programação e vigilância do que se considerava o desenvolvimento correto”.
Diante dessa questão, pode-se dizer que esta criança foi vigiada e controlada
muito mais do que nas “velhas pedagogias”, porque não apenas se requerem
dela as respostas corretas, mas também agora era necessário que o assim
chamado verdadeiro mecanismo de desenvolvimento fosse controlado.
Walkerdine (1998, p.145) diz que
[...] as práticas pedagógicas estão totalmente saturadas com a
noção de uma seqüência normalizada de desenvolvimento da
criança, de forma que aquelas práticas ajudam a produzir a
criança como o objeto de seu olhar. Os aparatos e mecanismos
da escolarização envolvidos nessa produção vão desde a
arquitetura da escola e o arranjo das carteiras da sala de aula até
os materiais curriculares e as técnicas de avaliação.

No início da década de sessenta, do século passado, talvez se possa


afirmar que as leis e os estágios de desenvolvimento começam a ser
substituídos pelas leis do ritmo que estariam vinculadas a certas correntes da
psicanálise. Tais correntes procuram colocar no centro do processo de
aprendizagem o ritmo individual e as relações interpessoais. Portanto, cada
aluno tem um ritmo próprio, específico e que deve ser respeitado, assim como
toda a ação educativa deve procurar que “o aluno se expresse, se manifeste,
encontre seu estilo próprio, redescubra uma suposta ‘natureza natural’ original
e livre de coações” (Varela, 1996, p.52).

Desse modo, pode-se dizer que as leis do ritmo estão diretamente


relacionadas ao desenvolvimento do corpo, das linguagens, da gestualidade, da
imagem: esporte, expressão corporal e verbal, teatro, dança, música e outras
atividades que supõem determinadas operações de coordenação e de percepção
espaço-temporais que passam a fazer parte da educação institucional. É

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interessante salientar o que nos diz Rose (1998, p.38,39) sobre as ciências
psicológicas:
[...] educar, curar, reformar, punir —são, sem dúvida, velhos
imperativos. Mas os novos vocabulários fornecidos pelas
ciências da psique possibilitaram que as aspirações do governo
fossem articuladas em termos de uma administração das
profundezas da alma humana que estivesse baseada em seu
desenvolvimento. (...) As inscrições psicológicas da
individualidade permitem que o governo opere sobre a
subjetividade. A avaliação psicológica não é meramente um
momento de um projeto epistemológico, um episódio na história
do conhecimento: ao tornar a subjetividade calculável, elas
tornam as pessoas sujeitas a que se façam coisas com elas —e
que façam coisas a elas próprias— em nome de suas capacidades
subjetivas.

Por conseguinte, nesse suposto clima de não-diretividade, são atribuídos


ao mestre novos dispositivos de controle, que são considerados como sutis,
pois a ação educativa aproxima-se de uma espécie de psicoterapia cuja
finalidade seria desbloquear e eliminar as possíveis resistências. Dessa forma,
o que parece ser evidente é que, através de um processo de personalização,
incrementa-se um intenso e sistemático “trabalho sobre si mesmo”.

De acordo com Bernstein (apud Varela, 1996), a classe de alunos é


percebida, em sua organização, a partir de uma ótica psicológica (interações,
papéis, líderes, grupos dominados...), passando o controle através da
comunicação interpessoal. De certa forma, nesta perspectiva, parece que os
saberes e os conteúdos vão perdendo seu valor, como se conhecimento e
cultura se vissem relegados em detrimento de um processo de formação de
personalidades. Mas, é importante salientar, a partir dos estudos de Varela
(1996), que a formação destas subjetividades está relacionada não apenas com
a aplicação de específicas tecnologias de poder, mas também com a
psicologização e pedagogização dos saberes.

Frente ao poder disciplinar (característico das pedagogias tradicionais), o


psicopoder (característico das pedagogias psicológicas) baseia-se em
tecnologias cuja aplicação implica uma relação que torna os alunos tanto mais
dependentes e manipuláveis quanto mais liberados se acreditem; e, assim, esta
autora completa: “aprender a aprender é, em última instância, aprender a
escutar-se através dos outros” (Varela, 1996, p.53).

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Estamos vivenciando um tempo em que a sociedade parece estar voltada
cada vez mais à busca de si mesmo, a viver livremente e sem esforço com o
objetivo de formar seres comunicativos, criativos, empáticos, capazes,
portanto, de autocorrigir-se e auto-avaliar-se. Essas personalidades flexíveis,
sensíveis e “automonitorizadas”, de certa maneira, estão em estreita
interdependência com um neoliberalismo que tão bem se harmoniza com
identidades moldáveis e diversificadas em um mercado de trabalho cambiante
e flexível que precisa de trabalhadores preparados e disponíveis para
funcionar.

Poder lançar outros olhares para dentro da escola e do currículo, no


sentido de obter-se um maior ou um novo entendimento, é uma possibilidade
que Frago (1998, p.139) nos oferece:
[...] abrir o espaço escolar e construí-lo como lugar de um modo
tal que não restrinja a diversidade de usos ou sua adaptação a
circunstâncias diferentes, significa fazer do mestre ou professor
um arquiteto, isso é, um pedagogo e, da educação, um processo
de configuração de espaços. [...] em um espaço que, tendo em
conta o aleatório e o ponto de vista móvel, seja antes
possibilidade que limite.

Diante desse espaço e tempo subjetivados, psicologizados e “interiores”


de uma sociedade terapêutica, a escola considerada como “máquina de ver” e
“máquina de aprender” faz parte dessa trama de problemas relacionados com
as categorias, com as formas de subjetividades, com o estatuto do saber e com
os mecanismos de poder.

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