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Em busca de um objeto esquecido

A política e as políticas do urbano no Brasil*


Eduardo Cesar Leão Marques
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo - SP, Brasil. E-mail: ecmarq@uol.com.br

DOI: 10.17666/329509/2017

Sabemos pouquíssimo sobre as especificidades O silêncio recente parece considerar que a na-
da política e das políticas nas cidades brasileiras. Isso cionalização dos partidos a partir do período demo-
é surpreendente, pois 84% de nossa população vivia crático populista e a centralização política do período
em cidades e 66% morava em municípios com mais Vargas e do regime militar tiraram das cidades todo
de 50 mil habitantes em 2010, segundo o IBGE. dinamismo político. Por outro lado, esses momentos
Esse silêncio é ainda mais surpreendente, pois clás- foram mediados por descentralização nos períodos
sicos de nossa política, como Instituições políticas democrático populista e no atual, embora nesse úl-
brasileiras, de Oliveira Vianna (1949), e Coronelismo, timo combinando centralização e descentralização
enxada e voto, de Victor Nunes Leal (1948), trata- por políticas e fases de seus ciclos. Desde a última
vam justamente da relação entre o sistema político redemocratização, o nível local voltou a ganhar inte-
e o poder local, considerado central para se compre- resse empírico para a ciência política com o retorno
ender a política brasileira. Também aqui, portanto, da competição político-eleitoral às grandes cidades
se considerava que all politics is local politics, como e as reformas federalistas de políticas públicas, embora a
sustentou o norte-americano Byron Price em 1932. literatura brasileira sobre política tenha analisado
as cidades apenas quando tratava de participação so-
cial. Mesmo no debate recente sobre federalismo, o
* Agradeço a leitura atenta e os comentários detalhados
de Renata Bichir, Camila Saraiva e Valéria Macedo à nível local é a escala menos tematizada, talvez por
versão anterior deste texto. acreditar-se que as políticas federais tornariam os
Artigo recebido em 24/03/2016 governos locais meros implementadores “técnicos”,
Artigo aprovado em 07/04/2017 sem espaço para discricionariedade. Embora a ca-
RBCS Vol. 32 n° 95/2017: e329509
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pacidade de indução federal varie entre políticas, é O artigo está dividido em quatro seções, além
certamente tênue para as políticas do urbano – de desta introdução e de uma conclusão. Na seção que
construção do quadro construído e de gestão dos se segue, analiso a especificidade da política e das
serviços e equipamentos que caracterizam as cidades. políticas do urbano. Na segunda e na terceira, recu-
Este artigo pretende iniciar a tarefa de analisar a po- pero as tradições do estudo da política da cidade e
lítica e as políticas do urbano, sugerindo caminhos em seguida discuto o abismo analítico entre estudos
para a sua compreensão. urbanos e ciência política. Na quarta parte, sempre
Ainda que o silêncio dos debates nacionais não dialogando com o caso brasileiro, apresento os prin-
se justifique, ele é compreensível (e tem ecos inter- cipais elementos a considerar no estudo da política
nacionais), considerando as premissas abraçadas e das políticas do urbano – instituições, agências e
pelas duas principais comunidades profissionais e processos de produção de políticas; atores societais
acadêmicas que poderiam tratar do assunto. De um e suas relações; e legados históricos da política e das
lado, os temas urbanos acabaram explorados em políticas. Embora presentes na política em geral, to-
nossas ciências sociais principalmente pela sociolo- dos esses elementos apresentam importantes espe-
gia, focando dimensões societais de poder, mas sem cificidades urbanas. Ao final, retomo os principais
tematizar em detalhes as instituições políticas e suas elementos discutidos à guisa de conclusão.
ações. Os cientistas políticos, que as deveriam ana-
lisar por dever de ofício, pouco trataram do urba-
no. De outro, o campo dos estudos urbanos, para A especificidade da política do urbano
onde convergem geógrafos, planejadores e soció-
logos, quase sempre privilegiou processos e atores Antes de tudo, é fundamental definir o que en-
societais e não se interessou pelas instituições. tendo por política e políticas do urbano, visto que
Este artigo parte da premissa de que a política há visões disciplinares distintas sobre essas definições
do urbano apresenta especificidades pela sua associa- (Davies e Imbroscio, 2005; Judd, 2005). A política
ção com o espaço urbano, gerando elementos de três do urbano é entendida aqui como as ações, as nego-
ordens: espacialidades, percepções e propinquidade, ciações, as alianças e os conflitos acerca das políticas
além da existência de vários atores específicos da públicas urbanas e do poder das (e nas) instituições
cidade com comportamento peculiar. A compreen- políticas da cidade, assim como as próprias institui-
são dessas dimensões da política passa pela conside- ções. Em primeiro lugar, vale destacar que embora
ração de um conjunto específico de atores histori- haja dimensões do poder associadas à vida cotidia-
camente constituídos – elites políticas e burocracias na e às relações interpessoais interessam-me aqui os
locais, capitais do urbano e atores da sociedade civil elementos ligados às políticas e às instituições esta-
organizada –, no interior de redes formadas ao lon- tais. Seguindo Jobert e Muller (1987), políticas pú-
go das trajetórias desses indivíduos (e desses setores blicas são entendidas como o Estado em ação, mas
de política pública), e cercados pelas instituições políticas públicas urbanas incluem, em especial, as
do setor, o que denomino de tecido relacional do ações do Estado que incidem sobre o tecido urba-
Estado. Conceitos recentes como governança aju- no, seus territórios e a vida urbana. Não me refiro
dam a compreender as ações desses atores nas redes, a níveis de governo; embora no Brasil o município
mas apenas se considerarmos os padrões de relação esteja diretamente implicado, políticas estaduais e
presentes em nível local em várias políticas distintas federais também produzem impactos. Estão aqui
concomitantemente, e se esses forem compreendi- incluídas as políticas de produção direta do espaço
dos simultaneamente como lugar de ação social e construído, como transportes, infraestrutura e habi-
como produtos históricos da formação do Estado tação, mas também a regulação estatal sobre ações
em nível local. Uma ampla agenda de pesquisas so- privadas, como o licenciamento de empreendimen-
bre a política do urbano se coloca à frente, e con- tos, por exemplo. Entretanto, as políticas do urbano
tribuir para a construção de um arcabouço teórico também incluem ações do Estado que influenciam a
para o seu estudo é o objetivo deste trabalho. sociabilidade e a vida urbana, embora sem produzir
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diretamente o ambiente construído. Nesses casos, a tui-se em uma estrutura de médio alcance, que é
política cria e altera o espaço urbano ao influenciar constantemente construída e alterada pelos atores,
a maneira pela qual os habitantes vivenciam o co- mas que se apresenta para eles em um dado mo-
tidiano da cidade. A implementação local das po- mento como um conjunto de constrangimentos
líticas sociais, por exemplo, gera fluxos espaciais de e possibilidades, emoldurando a política, influen-
agentes públicos e usuários, ao mesmo tempo que ciando suas estratégias e a formação de preferências
se apoia em estratégias espaciais de localização de e visões de mundo. Reinterpretando Marx, pode-
equipamentos e programas. Evidentemente, muitas mos dizer que os homens fazem o espaço, mas não
outras políticas influem nas cidades, como as políti- o fazem como querem.
cas de emprego e renda, as políticas econômicas, as As relações entre espaço e instituições podem
políticas migratórias etc. Interessa-me aqui, contudo, ser divididas em três dimensões interpenetradas
entender os processos que cercam a política e as po- (Marques, 2016a e b). Em primeiro lugar, o espaço
líticas da cidade, em vez de incluir todas aquelas que é dimensão constitutiva das instituições e das prá-
ocorrem na cidade. ticas políticas, pois estas apresentam sempre uma
Este artigo parte da premissa da existência de dimensão espacial, o que a geografia denomina
uma especificidade da política e das políticas ur- espacialidade dos processos. Isso envolve as facetas
banas. A característica desse objeto é ontológica espaciais das instituições, como, por exemplo, os
e diz respeito à sua relação com o espaço urbano, distritos eleitorais na representação política, as esca-
entendido como o conjunto relacionado (e social- las do federalismo nas políticas públicas, os limites
mente construído) de vizinhanças, contiguidades, territoriais dos Estados nacionais e os trajetos das
distâncias e fluxos criados e recriados pelos atores campanhas eleitorais ou as estratégias espaciais de
do urbano, assim como os significados que dão sen- mobilização de movimentos sociais.
tido a esses atores. Dessa forma, o espaço define e Em segundo lugar, o espaço ocupa um impor-
constitui as disputas políticas, as instituições, a ope- tante papel na formação das percepções políticas,
ração dos governos e a política eleitoral nas cidades. pois “a forma que imaginamos o espaço tem conse-
Os modelos usuais da ciência política explicam di- quências” (Massey, 2005, p. 4). O espaço é uma das
versas dessas dimensões, mas outras necessitam de dimensões a moldar as percepções e as preferências
conceitos próprios, sobretudo quando se passa da sobre política, assim como as estratégias e as ações
cidade como unidade (em que os modelos da ciên- possíveis, gerando percepções espaciais (Méo, 1991).
cia política trabalham melhor) para dimensões e Exemplificando essa dimensão, podemos pensar no
processos internos a ela (em que a interação com o lugar da ideia de periferia em expressões artísticas de
espaço cria especificidades). protesto (como o Rap), na formação de identidades
O ponto de partida para entendermos as rela- regionais (e seus separatismos) ou na relação entre
ções entre política e espaço é a superação de uma padrões de segregação residencial e percepções so-
visão de espaço como plano cartesiano ou como bre justiça social e desigualdades.
página em branco, no sentido de incorporar a di- O terceiro enfoque é mais concreto e diz res-
mensão do social (Lefebvre, 1976) produzida por peito aos padrões de localizações, contiguidades,
interações sociais, múltiplas e em contínua mudan- distâncias e fluxos, o que Peter John (2005) define
ça. O espaço é, então, uma dimensão constitutiva como propinquidade. Em certo sentido, a propin-
da política, pois a política se localiza no tempo e no quidade (dimensão espacial concreta) representa a
espaço (Massey, 2005). Logo, como não existe po- cristalização de certas espacialidades (dimensão das
lítica fora do tempo, não é possível pensar política práticas). Incluem-se aqui tanto os efeitos do espa-
fora do espaço.1 ço herdado sobre o qual a política age, quanto os
Podemos construir uma analogia inicial da in- efeitos concretos das ações políticas sobre o espaço.
teração entre espaço e política com os efeitos das A existência de legados espaciais prévios estabelece
instituições, já amplamente discutidos pelo neoins- constrangimentos e possibilidades, gerando incen-
titucionalismo (Skocpol, 1992). O espaço consti- tivos e desincentivos para certas ações, assim como
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influenciando processos. Esse efeito está ligado a ciados diretamente com a construção, a manuten-
localizações pontuais, como os locais das escolas ção e a operação da própria cidade.
de melhor qualidade e seus distritos, com conse- Além deles, é importante citar membros da
quências para as desigualdades educacionais e as classe política que têm no urbano sua escala de
estratégias das famílias. Mas os fluxos da política e ação e suas formas de reprodução – políticos locais,
das políticas também apresentam efeito similar, operadores políticos locais de partidos, prefeitos e
como o traçado das linhas de ônibus e de metrô, com vereadores, incluindo os de reduto eleitoral, mas
efeitos similares sobre estratégias locacionais e de- também outros atados a eleitores e interesses eco-
cisões cotidianas. As ações políticas, por seu turno, nômicos que operam na escala da cidade. Outro
reconstroem cotidianamente tais localizações, flu- conjunto amplo de atores tipicamente urbanos são
xos, contiguidades e distâncias. as burocracias de nível da rua. Esses se caracterizam
As ações dos atores políticos (inclusive do Es- pela entrega direta de políticas e, como a maior
tado) especializam-se sobre essas estruturas espaciais parte das políticas é entregue na cidade, o espaço é
herdadas. Sabendo disso, os atores adiantam estra- uma dimensão central de suas ações.
tegicamente os efeitos do espaço sobre suas ações,
adaptando-as. Além disso, as localizações indicadas
levam a superposições no espaço, visto que é no es- As tradições do estudo da política da cidade
paço que os cidadãos encontram as políticas (e vice-
-versa), os políticos encontram os eleitores e as estru- O debate internacional sobre a política do ur-
turas de representação encontram os representados. bano nasceu nos Estados Unidos nos anos de 1950
Como as cidades são segregadas por grupos sociais, e 1960. Embora a cidade seja um objeto muito
o “onde” define quase sempre o “quem”, e a espacia- mais antigo, as análises pouco trataram de institui-
lidade das políticas influencia seu alcance e elegibi- ções políticas, governo ou políticas, concentrando-
lidade (Scott, 1998). Isso pode ajudar as políticas, -se em aspectos macrossociológicos, como em Karl
se estratégias territoriais forem pensadas e incorpo- Marx e Max Weber, ou centrando a atenção na so-
radas, como nas políticas europeias de mistura social ciabilidade nos centros urbanos, como em Georg
ou nas estratégias de busca ativa das políticas assis- Simmel e na Escola da Chicago.
tenciais brasileiras recentes (Torres, 2005). Entretan- Apenas nos anos de 1950, o chamado commu-
to, também pode reforçar desigualdades e enviesar nity power debate iniciou a discussão sistemática do
ações, como nos casos de zoneamentos urbanos ex- poder político na cidade. O debate é por demais
clusivistas ou da concentração de recursos em escolas conhecido, mas uma rápida recuperação ajuda a si-
de melhor performance, por exemplo. Em qualquer tuar os passos posteriores da literatura, visto que ele
situação, as ações e os interesses políticos dos vários informou tanto os estudos urbanos quanto a ciên-
atores especializam-se com tais localizações e fluxos, cia política, sendo, na verdade, o último momento
pois estes especificam valorizações da terra, benefí- de diálogo intenso entre esses campos.
cios para moradores e usuários desses espaços e votos Em 1953, Floyd Hunter publicou seu estu-
de eleitores impactados localmente. No caso da polí- do sobre o poder em Atlanta, sustentando que a
tica do urbano, as formas pelas quais policies produ- cidade era dominada por um grupo limitado de
zem politics são mediadas pelo espaço. atores políticos de forma ampla e continuada. Esse
Adicionalmente, mas não menos importante, a argumento convergia com a interpretação de Mills
política do urbano envolve processos e atores pró- (1956) de que na democracia representativa norte-
prios das cidades. Uma parte deles está associada -americana o poder da elite seria oriundo da po-
com a produção do espaço diretamente e inclui o sição social de seus integrantes em uma sociedade
que denomino “capitais do urbano” – incorpora- com grandes desigualdades. A reprodução desse
dores, construtores de infraestruturas, prestadores poder passaria pela reprodução da sociedade, pela
de serviços urbanos (Marques, 2016b). Esses atores herança de ativos e propriedades, mas também pe-
privados têm os seus processos de valorização asso- la socialização em escolas e universidades de elite,
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casamentos e amizades e locais de sociabilidade. tiveram o seu ápice em trabalhos precisos como o es-
Esses processos reproduziriam as posições e, conse- tudo de Pinçon-Charlot, Preteceille e Rendu (1979).
quentemente, o poder associado a elas. Embora não dissessem respeito ao Estado e às insti-
Contra essa interpretação, autores do que vi- tuições políticas do urbano, os avanços nessas duas
ria a se denominar “pluralismo” estudaram outras linhas de análise apresentaram aprendizados impor-
cidades, sustentando a pluralidade da democracia tantes para a política nas (e das) cidades.
norte-americana a partir do local. O principal de- Vale dizer que a sociologia urbana brasileira se
les foi Dahl (1961), que analisou historicamente a iniciou nesse momento. Obras anteriores do debate
política em New Haven. Nesse caso, poder político nacional já haviam discutido as características do
não era pensado como algo potencial e posicional, capitalismo nacional – baixos salários e trabalho
mas como a capacidade de um grupo de agir para informal como elemento central da posição depen-
fazer prevalecer seus interesses na formação de go- dente e periférica do país na divisão internacional
vernos e políticas. As dinâmicas da política seriam do trabalho. Kowarick (1979), contudo, inovou ao
originadas nos grupos de interesse, que representam conectar essas dimensões com as condições urbanas
as verdadeiras unidades de ação. Dahl sustentou concretas. Os padrões de exploração vigentes en-
que, apesar de intensas, as desigualdades sociais nos contrariam nas grandes metrópoles outras formas
Estados Unidos não seriam cumulativas em uma de espoliação viabilizadas pelos regimes autoritá-
sociedade com economia de mercado e governo re- rios da América Latina. A produção das periferias,
presentativo democrático. A trajetória histórica do baseada em autoconstrução dentro de loteamentos
país teria contribuído para uma pluralização da so- irregulares ou em favelas com escassa presença esta-
ciedade e da política, não havendo grupos capazes tal, passou a ser objeto de preocupação a partir de
de controlar a política de forma ampla e sustentada, então, o que levou a uma fecunda tradição de estu-
embora em alguns momentos pudessem se observar dos urbanos, como por exemplo a obra organizada
coalizões relativamente estáveis, mas que se dissol- por Maricato (1982). Apesar da contribuição dessa
veriam com o passar do tempo. literatura para o entendimento de nossas cidades,
Nos anos de 1960 e 1970, um terceiro corpo poucas foram as pistas deixadas por ela para des-
teórico entrou em cena com o forte impacto do vendar a política do urbano.
marxismo sobre os estudos urbanos. Também esse Os anos de 1970 e 1980 assistiram ainda ao
debate é por demais conhecido e analisado para ser surgimento internacional de duas outras visões so-
resenhado aqui. Entretanto, ao menos três perspec- bre a política da cidade – as máquinas de cresci-
tivas devem ser citadas, associadas respectivamente mento e os regimes urbanos. A ideia das máquinas
a Henri Lefebvre, à sociologia estruturalista (Ma- de crescimento teve origem nos trabalhos de Mo-
nuel Castells e Jean Lojkine) e à geografia crítica, loch (1976), sustentando que o federalismo fiscal
principalmente de David Harvey. Em nenhum des- norte-americano criou uma situação praticamente
ses autores, entretanto, as instituições políticas ou a inexorável para as elites políticas locais. O escasso
política foram objeto de atenção particular, haven- financiamento dos governos municipais teria dei-
do pouco espaço para a contingência que marca o xado as cidades sem fontes próprias de recurso e
campo da política.2 sem repasses sistemáticos de outros níveis gover-
Mas é importante destacar as contribuições des- namentais. Isso teria levado as cidades a depender
sa literatura que focaram elementos específicos, mui- fundamentalmente de investidores privados para
to relevantes para o estudo da política do urbano. desenvolver políticas. As coalizões urbanas, portan-
Em primeiro lugar, as contribuições a respeito dos to, buscaram construir ciclos de crescimento basea-
capitais do urbano, em especial do capital imobiliá- dos em renovação urbana e promoção imobiliária,
rio (Topalov, 1973), especificando seus circuitos de associando as elites políticas locais aos interesses da
valorização e suas relações com o espaço. Por outro terra, em especial aos da incorporação. Embora esse
lado, as associações entre os padrões de segregação modelo de interpretação tenha sido muito influen-
na cidade e a distribuição dos equipamentos urbanos te desde então, autores como Harding (1997) mos-
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traram que, na Europa, as elites políticas locais são (analisada por Floyd Hunter) entre 1946 e 1988. O
muito menos dependentes dos capitais do urbano resultado é talvez o modelo recente mais influente
em virtude de os governos locais terem fontes de fi- sobre a política do urbano. Stone partiu de uma
nanciamento e repasses dos governos centrais, além absorção crítica do pluralismo, rejeitando a ideia de
de serem grandes proprietários de terras. Outros que os grupos tenham poder equivalente e desta-
autores mostraram que mesmo nos Estados Unidos cando, nesse sentido, a força dos atores econômicos.
as cidades adotaram outros tipos de coalizão, até Para ele, portanto, os interesses dos negócios mui-
mesmo com políticas anticrescimento. tas vezes prevalecem (como enfatizado pelas growth
Esses argumentos dialogam com o caso brasi- machines), pois isso também seria do interesse dos
leiro, já que a recomposição de nosso federalismo agentes estatais, considerando sua competência em
tem sido uma das principais questões em torno das realizar ações e políticas. O Estado em nível local
reformas de políticas (Arretche, 2012a). Embora a poderia por vezes impor sua vontade, mas como
maioria das políticas urbanas seja uma atribuição as capacidades estão nas mãos do setor privado,
formal dos governos locais, os legados de políti- o mais comum seria que o governo se ativesse ao
cas prévias e aquelas gestadas em esferas superiores papel de coordenador. Para Stone, portanto, poder
influenciam intensamente as políticas nas (e das) não representa uma imposição sobre outros agen-
cidades. Além disso, os níveis locais de poder têm tes, mas a capacidade de realizar, deslocando a ideia
acesso a um conjunto significativo de recursos fi- de poder de controle para a produção.
nanceiros por repasses automáticos (via Fundo de Em outras palavras, os atores estatais seriam
Participação dos Municípios) ou por repasses espe- autônomos (como no pluralismo), mas os empre-
cíficos condicionados por políticas. Assim, o dese- sários teriam uma posição privilegiada (como no
nho do federalismo brasileiro diferencia a política marxismo, na teoria das elites e na tese das máqui-
do nosso urbano das máquinas de crescimento de nas de crescimento). Dinâmicas eleitorais e compo-
Moloch (1976), e a relação das elites locais com os sição do eleitorado seriam centrais, assim como os
interesses econômicos não é marcada pelo mesmo processos associados às burocracias e aos atores es-
tipo de dependência. Como será destacado a seguir, tatais. Como consequência, regimes urbanos seriam
a associação entre esses atores parece ser mais polí- arranjos informais entre agentes públicos e privados
tica, mais mediada pelo acesso ao fundo público e (políticos eleitos, empresas privadas, comunidades
mais ligada às eleições do que à promoção de certas profissionais e funcionários do Estado), que opera-
políticas vinculadas à terra (Marques, 2016a). riam conjuntamente para tomar decisões públicas e
No início da década de 1980 forjou-se outro realizar ações. Stone, portanto, abriu espaço para a
modelo explicativo nos Estados Unidos em diálo- explicação de variabilidade empírica e as diferencia-
go mais claro (e crítico) com a tradição pluralista. ções de regimes, embora pressuponha a existência
Sua origem remonta ao trabalho de Elkin (1985) de um único regime em certo local e período.
sobre regimes urbanos. Para ele, a máquina de cres-
cimento simplifica uma situação histórica que teve
nuances importantes nas cidades norte-americanas. As raízes do vazio analítico da política
Embora grande parte das decisões se encontre nas do urbano
mãos de proprietários privados, os políticos tam-
bém precisam construir vitórias eleitorais estáveis, As premissas dos dois principais campos de es-
o que nem sempre se alinha com os interesses do tudo envolvidos potencialmente com o estudo da
crescimento. Além disso, essas duas dimensões de- política do urbano – ciência política e estudos ur-
pendem de burocracias funcionais que fornecem os banos – levaram a uma grande ignorância mútua
serviços necessários para o desenvolvimento econô- com relação a suas produções respectivas.
mico e as reeleições. A maior parte dos cientistas políticos considera
A ideia dos regimes urbanos foi aperfeiçoada não haver especificidades na política e nas políti-
por Stone (1993), retornando à política de Atlanta cas locais, sendo estas apenas versões regionais de
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processos supralocais.3 Seguindo essa visão, estudar tempo pelo fato de, nas décadas de 1960 e 1970,
a política local (e políticas locais) seria uma ativida- os estudos urbanos terem sido capturados pela po-
de menor, pois os processos “realmente” relevantes lítica e de a ciência política ter sido colonizada pela
aconteceriam alhures, sendo o espaço apenas uma revolução behaviorista. Nesse sentido, o mainstream
folha em branco a ser preenchida. É verdade que se da ciência política desconsidera os estudos urbanos,
deve sempre considerar simultaneamente as escalas pois desde os anos de 1960 estes se dedicaram mais
local, regional, nacional e internacional. É igual- a salvar as cidades do que a estudá-las, adotando
mente correto que estudos recentes sobre geografia uma retórica excessiva sobre a questão urbana, o que
eleitoral, implementação local de políticas e mobi- gerou um consenso retórico e um modismo concei-
lização partidária do eleitorado começam a trazer tual.4 Esse discurso enxerga a cidade com um pes-
a escala local para o estudo da política no Brasil. simismo denominado por Judd de “tríptico noir”:
Entretanto, uma melhor compreensão da política tragédia, grande drama e futuro desastroso (expresso
do urbano depende da incorporação do espaço, e no título do artigo – “Everything is going to hell”).
não apenas da escala local, ao estudo da política. Para ele, embora dimensões como pobreza, vigilân-
Brincando com a formulação clássica de Harold cia, bolhas turísticas e enclaves fortificados estejam
Lasswel, a política não é apenas sobre “who gets presentes em grandes cidades mundo afora, a ênfase
what, when and how”, mas também “where”. Mais quase exclusiva nessas dimensões confunde a parte
do que uma escala de análise, trata-se de considerar com o todo e produz uma distopia nostálgica de
a ontologia espacial da política. algo que não existiu – o bairro operário da solidarie-
Por outro lado, desde os anos de 1970 disse- dade ou a comunidade de pequeno porte com rela-
minou-se entre os analistas das cidades a premissa ções horizontalizadas de poder. Essa postura resulta
de que o Estado e a política seriam epifenômenos de em um convite para se pregar argumentos retóricos
processos produzidos por atores e processos situados para convertidos.
na sociedade, em parte por influência de várias cor- Em resposta a Judd (2005), Imbroscio (2010)
rentes da literatura crítica (Castells, 1983; Harvey, segue a mesma linha de Stone, sustentando que a
1980). Nesse sentido, não seria necessário estudá-los, distância entre os campos é saudável, pois a ciên-
mas apenas focar a atenção em processos societais, cia política em geral partiria de uma visão empo-
observando seus efeitos sobre as instituições políti- brecida de poder, oriunda no pluralismo, além de
cas. Como já demonstrou ampla e variada literatu- sustentar uma separação entre Estado e mercado e
ra, essa premissa está também equivocada, pois os se recusar a ser impactada pela literatura crítica. O
processos no (e do) Estado e suas instituições, assim autor sustenta que o mainstream da ciência política
como as disputas concretas de poder por elas (e no continua dominado pelo behaviorismo e mais re-
seu interior), seguem dinâmicas próprias, mesmo centemente pela escolha racional, rejeitando o plu-
que possam estar influenciadas por processos ocorri- ralismo metodológico interdisciplinar necessário
dos na sociedade ou na economia. para se estudar a cidade.
Internacionalmente, as razões desse vazio têm Tenho que dizer que concordo parcialmente
sido debatidas intensamente. Stone (2010) susten- com argumentos de ambos os lados desse debate. De
tou que os estudos urbanos se desenvolveram de um lado, a ciência política tradicional realmente par-
forma relativamente isolada, pois o mainstream da te de uma visão formalista da produção de políticas
ciência política, partindo de premissas pluralistas se- e despreza os debates urbanos, inclusive os que po-
parou política e economia, silenciou sobre a questão deriam ajudá-la; de outro, os estudos urbanos foram
da desigualdade e acreditou que mandato e auto- mesmo impactados pelo “tríptico noir” e leem muito
rização legislativos seriam equivalentes à produção pouco a produção sobre política e políticas, descon-
de políticas, desconsiderando a sua implementação. siderando contribuições por preconceito ideológico
Judd (2005), em contrapartida, construiu uma ar- e começando do zero caminhos já trilhados.
guta (e ácida) crítica a esse desconhecimento mú- A produção brasileira, adicionalmente, tende a
tuo. Para ele, esse apartamento é explicado a um só abraçar teorias, métodos ou autores de forma única,
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assumindo dimensões quase identitárias. Isso tem que a autoridade decisória formal da maior parte
duas consequências negativas para a produção do co- das políticas do urbano seja municipal, as ações
nhecimento. Primeiro porque leva a um esforço de dos vários níveis de governo tornam imprescindível
aplicar o autor, o método ou a teoria de preferência analisá-las simultaneamente em variados desenhos
a qualquer objeto, ou então a escolher os objetos de federativos, dependendo do objeto.
forma a poder aplicar a teoria, e não o inverso. Se- A segunda dimensão institucional central diz
gundo porque gera uma recusa ao diálogo com outras respeito aos desenhos de agências, organizações e das
tradições, mesmo que sejam apropriadas aos temas em próprias políticas. Diferentes formatos criam con-
questão. Pode parecer óbvio, mas devemos conhecer o dições diversas de insulamento, levam à produção
máximo possível dos debates (e métodos) existentes e de capacidades e influenciam os tipos de conflito
fazer dialogar tradições ou mobilizar métodos e auto- político. Esse mecanismo é geral, mas os desenhos
res sempre que isso for profícuo. das políticas do urbano se espacializam, sobretudo
na entrega de serviços e políticas, influenciando a
sua efetividade e as relações entre agências e atores
Como então estudar a política do urbano, em dispersos territorialmente. Mais uma vez, o espaço
especial no Brasil? medeia a produção de politics pelas policies.
De forma associada, é preciso destacar as pecu-
A política e as políticas do urbano envolvem liaridades do ciclo de políticas do urbano e, em es-
basicamente os mesmos elementos da política em pecial, de sua implementação, já que as cidades são
geral, mas com importantes especificidades. Estas comumente o palco da entrega final de políticas pú-
envolvem principalmente: (i) instituições, agências blicas. A cadeia de produção é relativamente curta em
e processos de produção de políticas; (ii) atores so- uma estrutura de poucas camadas administrativas, e
cietais, suas relações entre si e com o Estado; e (iii) as atividades de decisão e de implementação são ainda
legados e processos que as produzem. Observemos mais interpenetradas do que em políticas de produ-
esses elementos separadamente. ção mais longa, mesmo em metrópoles. No caso das
políticas do urbano, embora argumentos do tipo top-
Instituições, agências estatais e processos de -down sobre a implementação continuem relevantes,
produção de políticas é ainda mais central a consideração do caráter criati-
vo (e não só executivo) das burocracias no âmbito da
As instituições enquadram a política pelas re- rua na entrega final das políticas. Essa proximidade dá
gras formais, pelas normas sociais e pelos desenhos um caráter interativo às decisões e à implementação,
organizacionais. Isso tem efeitos sobre dinâmicas influenciando-se mutualmente em processos de tenta-
políticas e sobre o encaixe (fit) dessas instituições tiva e erro e com a recuperação frequente de políticas
com agentes societais e suas estruturas de ação passadas, de forma similar ao “modelo da lata do lixo”
(Skocpol, 1992). A geografia de tais desenhos ins- de Cohen, March e Olsen (1972).
titucionais também tem consequências políticas, Vale dizer que a localização dos equipamentos
como mostrou Katznelson (1981) para a formação das políticas e seus traçados espaciais dão à política
do sistema partidário nos Estados Unidos. e às políticas do urbano um caráter ainda mais iner-
Curiosamente, apesar da ampla disseminação cial e dependente da trajetória do que em outras
desses argumentos, a incorporação do neoinstitu- políticas. Como já citei, nesse caso o “onde” define
cionalismo na análise urbana é baixa (Lowndes, o “quem”, beneficiando grupos localizados que se
2001). A primeira dimensão institucional central é empoderam pela espacialização própria da política,
o federalismo, ao menos no caso brasileiro. A capa- gerando mecanismos de retornos crescentes ainda
cidade de influência e de indução federal no Brasil mais fortes do que em políticas não espacializadas.
já foi demonstrada, sobretudo nas políticas sociais, A mobilização de habitantes de áreas de alta renda
por Arretche (2012a), mas isso não é tão claro no protegidas por zoneamento exclusivista constituem
caso das políticas do urbano. Entretanto, mesmo um exemplo desse tipo de mecanismo.
Em busca de um objeto esquecido  9

Outro tema de suma importância diz respeito cional a esses atores se origine na baixa capacidade
às capacidades estatais. O conceito aponta elementos técnica e de gestão de nossos governos locais, partin-
centrais para a produção de estratégias bem-sucedi- do da premissa de que não teriam ferramentas para
das em termos técnicos e políticos. Entretanto, pa- efetivamente influenciar políticas. Mesmo que isso
rece também evidente que carrega certa endogenia, possa ter sido parcialmente verdadeiro em momen-
ao designar um resultado (positivo) em vez de espe- tos anteriores, os dados existentes sugerem que a ca-
cificar os processos e as condições de sua produção. pacitação local tem aumentado bastante, ao menos
Talvez seja mais apropriado, portanto, analisar os para algumas políticas urbanas (Arretche, 2012b).
elementos que compõem as capacidades, entendidos Um conjunto de pesquisas recentes sobre São Paulo
de forma relativa e relacional (e não substantivada), aponta para resultados similares, sugerindo a cons-
pois se trata sempre de recursos em relação aos de trução continuada na última década de procedimen-
outros atores. No caso do urbano, elas envolvem o tos, burocracias e capacidades, ao menos nas políti-
desenvolvimento de procedimentos e ferramentas cas de trânsito, transporte público, limpeza urbana,
espacializados que regulam os conflitos entre atores assistência social e controle da atividade imobiliária
(em processos participativos, por exemplo), assim (Requena, 2014; Campos, 2015; Ralize, 2015; Bi-
como permitam a entrega das políticas. chir, Brettas e Canato, 2016; Hoyler, 2014). Fora do
Uma parte substancial dessas ferramentas en- Executivo, é evidente a consolidação de atores como
volve microinstituições ou elementos aparentemente o Ministério público, que tem contribuído para
técnicos e operacionais, mas que induzem resultados, abrir os processos decisórios das políticas urbanas e
fazem iniciativas alcançarem seu alvo ou mesmo au- aumentar a sua responsabilização.
tomatizam ações do Estado, reduzindo consideravel- Por fim, tem ficado cada vez mais claro que atores
mente os custos políticos subsequentes. Os chama- buscam seus interesses, mas são também informados
dos instrumentos de política pública (Lascoumes e por ideais e perseguem preferências substantivas
Le Galés, 2005) estruturam estratégias de produção de políticas. Quando atores se conectam no interior de
de políticas, mas não o fazem de forma neutra, e sim comunidades setoriais, redes de políticas e comu-
informados por visões, teorias e técnicas de interven- nidades epistêmicas (Haas, 1992), ideais e soluções
ção. Ao fazê-lo, definem elegibilidades, beneficiam também se encontram e se transformam. A frente de
ou desmobilizam atores e, sobretudo, influenciam pesquisas sobre ideais, agendas e paradigmas chegou
resultados. Esses instrumentos são especialmente ao urbano apenas recentemente com trabalhos sobre
importantes no urbano pela proximidade com a en- difusão ou mobilidade de ideais e soluções (Ward,
trega das políticas, com desenhos ou efeitos espacia- 2006), embora na pesquisa urbana nacional ainda
lizados. São muitos os exemplos recentes, mas cito permaneça pouco desenvolvida.5
apenas, para concretizar o argumento, o impacto de Em suma, destaco a importância de elementos
zoneamentos especiais de interesse social no uso do pouco incorporados nas análises de nosso urbano, in-
solo e no planejamento, e da associação entre cartão cluindo o papel do federalismo e dos atores estatais,
magnético e controle dos ônibus por GPS nas políti- os desenhos de agências e instituições (muitas vezes
cas de transporte público (Campos, 2015). espacializados), os ciclos de políticas (mais curtos e
Todos esses elementos se conectam com os ato- mais próximos da entrega final), uma certa dependên-
res estatais – as agências das políticas urbanas e os cia da trajetória espacial, as capacidades estatais e os
indivíduos e grupos que as operam. Esses são porta- instrumentos de políticas (também espacializados) e a
dores de interesses próprios irredutíveis a grupos da mobilidade de ideais e soluções de políticas públicas.
sociedade, além de disporem de recursos de poder,
até mesmo por se posicionarem na cadeia de produ- Atores societais e suas relações
ção das políticas. Agências e burocracias locais esti-
veram sempre envolvidas na produção de políticas Na trajetória da literatura de políticas públicas,
urbanas no Brasil, mesmo que de forma imbricada o destaque a atores é um elemento central desde as
com atores privados. Talvez o baixo destaque na- matrizes pluralistas já nos anos de 1940. A política
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 95

do urbano tem seus próprios atores, mas, sobretudo, (individual ou coletiva) e especificar mecanismos
imprime especificidades ao seu comportamento. de acesso e influência.
Embora cada política conte com atores distintos, Os capitais do urbano, entretanto, são dife-
sustento a importância de três grupos, além dos rentes considerando suas economias políticas e
atores estatais já mencionados – políticos, capitais suas relações com o Estado e com o espaço, como
do urbano e organizações da sociedade civil. explorado em Marques (2016b). A valorização da
Em primeiro lugar, devem ser citados atores terra foi sempre considerada um elemento chave,
classicamente destacados desde os debates pluralistas mas a variedade dos circuitos de valorização sugere
e elitistas – os políticos, especialmente em regimes maior atenção para a busca de acesso das empresas
democráticos. O acesso a cargos e ao poder via elei- ao fundo público. Nesse sentido, novamente os for-
ções lhes imprime uma lógica que remete à maxi- matos institucionais e os instrumentos de política
mização das chances de reeleição. Isso é geral, mas pública são importantes para analisar, por exemplo,
no caso dos políticos de base local os padrões eleito- se serviços de transporte ou de coleta de lixo são
rais de votação têm feições espaciais claras e estáveis, pagos por passageiro transportado/lixo coletado ou
constituindo redutos, mesmo em sistemas eleitorais quilômetro rodado (ou por uma combinação entre
com distritos plurinominais (Kinzo, Borin e Martins ambos), trazendo para o centro da análise os deta-
Jr., 2003). A espacialização dos votos e das políticas lhes dos instrumentos de pagamento e de regulação
só aumenta a identificação de beneficiários de cada dos serviços. As conexões entre contratos públicos,
política, gerando ainda mais incentivos para estraté- financiamento eleitoral e produção de políticas
gias espacializadas de credit claiming. Além disso, a são muito conhecidas, mas são pouco mobiliza-
imbricação entre Legislativo e Executivo é maior que das como mecanismo de influência sobre políticas
no âmbito federal, sendo o controle sobre áreas do públicas. É quase certo que essas conexões sejam
Executivo ainda mais central para a construção de também cruciais nas redes internas dos partidos po-
carreiras políticas baseadas em recursos clientelistas, líticos, veiculando recursos verticalmente e ligando
na mediação política e na construção de acesso entre eleições e políticos em várias escalas.
os eleitores, as instituições políticas e as agências do A participação desses capitais nas políticas do
Estado (Kuschnir, 2000). São pouco frequentes não urbano tem aumentado e se diversificado, não ape-
só os estudos sobre tais processos no Brasil, mas tam- nas no Brasil. Para Levi-Faur (2005), isso marca
bém sobre o Legislativo, o Ministério Público e o Ju- uma nova e sustentada divisão de tarefas entre Esta-
diciário com atuação local (Couto e Abrúcio, 1995; do e setor privado, com a crescente transferência da
Andrade, 1998). execução direta de políticas para empresas privadas,
Um segundo grupo diz respeito aos capitais do mas acompanhada do desenvolvimento de maiores
urbano. Refiro-me às empresas privadas cujos ciclos capacidades regulatórias nas mãos do Estado, o que
de valorização se ligam à produção da cidade e às ele denomina “capitalismo regulatório”. O resul-
políticas do urbano em sociedades capitalistas – tado não seria a menor participação do Estado na
concessionárias de transportes e limpeza, incorpo- economia, como defende o neoliberalismo e com-
radoras, construtoras etc. O termo explicita a he- batido por seus críticos, mas um Estado diferente,
rança marxista que destaca a economia política para visto que por vezes os aparelhos de regulação teriam
além de suas estratégias empresariais e também os porte e gastos até mais significativos.
circuitos de valorização que associam dimensões Trata-se de uma novidade histórica. No capi-
econômicas e políticas. Entretanto, rejeito premis- talismo competitivo do século XIX, o setor privado
sas de captura estrutural do Estado a priori. Mo- encarregava-se tanto de produzir políticas – ação
mentos de captura da política por grupos econô- capturada pela metáfora de remar (row) –, como de
micos podem acontecer, mas isso é consequência conduzi-las (steer) (Stoker, 1998b). As transforma-
do desenrolar da política e não de alguma estrutura ções do fordismo-keynesianismo justamente apare-
social pré-definida. Para demonstrar sua influência, lharam o Estado nesse sentido, ou seja, não só para a
portanto, é necessário investigar sua ação política produção, mas também para condução das políticas,
Em busca de um objeto esquecido  11

o que ficou conhecido como capitalismo de Welfare. no estudo de políticas na direção dos atores e das
As mudanças ocorridas a partir dos anos de 1970 alte- arenas relevantes, independentemente de sua loca-
raram novamente a situação o Estado agora concen- lização no Estado ou fora dele (Marques, 2003). O
tra-se mais na regulação (steer) que na produção efetiva ponto de partida mais apropriado, parece-me, seria
(row), que é cada vez mais realizada pelo setor priva- concentrar-se em quem governa o quê (e como),
do. Os padrões anteriores não foram substituídos, quem governa o que o Estado não governa (Le Ga-
mas se imbricariam com novos elementos, mudando lés, 2011). Os estudos se desdobram, nesse senti-
o funcionamento da economia e do sistema político. do, em análises não normativas sobre os diferentes
Esses deslocamentos demandam análises detalhadas conjuntos de atores envolvidos, suas conexões e as
sobre as formas de contratação e provisão de serviços instituições que os cercam (Marques, 2013).
para entendermos a elegibilidade, a responsabiliza- Esses elementos são especialmente importan-
ção de decisores e prestadores e o caráter distributivo tes para o caso brasileiro, em que diversas formas
das políticas. de relação entre público e privado envolvem arran-
Uma das formas mais gerais de enquadrar tais jos formais e informais na operação das políticas
transformações é entendê-las como mudanças nos (Marques, 2003). Embora o Estado esteja muito
padrões de governança. Foge aos objetivos deste ar- presente nas mais diversas esferas sociais, muitas
tigo discutir esse conceito polissêmico detalhadamen- vezes não apresenta condições de insulamento e
te.6 As definições mais correntes e aceitas, entretanto, capacidade para a formulação e a implementação
utilizam a palavra para designar conjuntos complexos de políticas. Alguns autores mobilizaram a ideia de
de organizações estatais e não estatais, conectadas por privatização do Estado para descrever as conexões
redes (Stoker, 1998a), levando a reorganizações do entre público e privado, enfatizando a explora-
governo no sentido de tornar permeáveis, interdepen- ção do primeiro pelo segundo no Brasil (Grau e
dentes e, por vezes, dúbias as fronteiras entre os setores Beluzzo, 1995). Cardoso (1970), por outro lado,
público e privado. O conceito é aplicado de forma va- desenvolveu a ideia de anéis burocráticos do po-
riada para analisar os formatos heterogêneos de con- der, definidos como círculos de interessados que
tratações envolvendo parcerias (Davies, 2003), em- conectariam setores do Estado com agentes priva-
presas de propósito específico (Judd e Smith, 2007), dos nesses setores. O conceito diferencia a inter-
distritos especiais (Ward, 2006), de forma avulsa ou mediação de interesses presente no país do lobby
em grandes projetos urbanos (Raco, 2014). norte-americano e do corporativismo europeu,
Para alguns, isso tudo representou uma resposta mas pouco contribui para especificar os detalhes
das organizações estatais à crescente heterogeneidade desses padrões, além de sugerir vínculos intencio-
das sociedades (Pierre, 1998; Peters, 2000; Stoker, nais e baixa inércia temporal.
1998a). Assim, o deslocamento analítico para a go- Sugeri, em contrapartida, o conceito de teci-
vernança resultou da conclusão de que a produção do relacional do Estado e de sua permeabilidade,
de políticas em certas condições pode não recorrer dialogando mais claramente com as teorias do Es-
à autoridade única do Estado, mas tampouco pode tado elitista e neoinstitucionalista e mobilizando a
prescindir dele. Resultariam então diversos formatos análise de redes como método (Marques, 2003). O
de governança, segundo condições e decisões locais tecido relacional expressa os padrões de conexão
(Pierre, 2011). Para críticos como Davies (2003), entre atores estatais e não estatais em redes baseadas
por outro lado, foi o produto combinado da crise em relações formais e informais de diversos tipos.
do fordismo, da ascensão da nova direita e do neoli- Essas redes estruturam o Estado internamente e o
beralismo, partindo da premissa de que a prestação conectam com o ambiente político mais amplo que
de serviços privados seria sempre superior à pública o cerca. A permeabilidade, por sua vez, diz respeito
e negativando a política, supostamente mobilizada especificamente às conexões entre o setor privado e
apenas por atores públicos. o Estado no interior daquele tecido. Esses padrões
Parece-me que o mais importante desse deba- são mais inerciais e menos intencionais que os des-
te diz respeito ao deslocamento analítico proposto critos pelos anéis burocráticos, visto que o tecido
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relacional do Estado é historicamente construído derando suas relações com o Estado e o espaço –
ao longo dos processos de produção dos setores de políticos, capitais do urbano e organizações e mo-
políticas. A partir dessa dimensão é possível com- vimentos da sociedade civil, sempre pensados de
preender como o Estado pode ser ao mesmo tempo forma conectada no interior das redes dos setores
mais central na produção de políticas, menos insu- de políticas em constante transformação.
lado e mais interpenetrado por agentes privados, do
que considerado pela literatura internacional. Legados históricos e o desenrolar da política e das
Por fim, é preciso destacar vários tipos de atores políticas
coletivos da sociedade civil. No caso brasileiro, esses
atores tiveram um papel direto na redemocratização, O terceiro e último elemento a considerar diz
na formulação da Constituição de 1988 e nas refor- respeito aos legados históricos. Em sentido geral,
mas setoriais das políticas do período militar. A par- políticas acontecem nos ambientes formados (i) pela
tir dos anos de 1990, os movimentos de corte mais construção histórica conjunta dos Estados e das socie-
tradicional – sindicatos e associações de bairro – dades; (ii) pelas relações que os conectam entre si (in-
reduziram sua visibilidade na cena pública, mas cluindo suas gramáticas políticas); e (iii) pela confor-
passaram a participar de forma intensa das novas mação dos objetos de intervenção das políticas. As po-
institucionalidades participativas então criadas – líticas do urbano, especificamente, são emolduradas
conselhos, conferências, entre outros (Gurza Laval- por legados relativos às estruturas institucionais das po-
le e Barone, 2015). Por outro lado, movimentos de líticas, aos seus atores e às próprias cidades, suas es-
corte diverso estão presentes na cena política, com truturas e características. Por isso, processos históri-
demandas identitárias, de condições minoritárias e cos diversos geram grandes diferenças entre países e
pautas urbanas (Alonso e Mische, 2016). cidades com relação, por exemplo, à centralização
Esses deslocamentos no ativismo societal fo- política dos governos nacionais, à presença e às ca-
ram acompanhados por fortes transformações na pacidades das burocracias e dos empresários e às suas
literatura. Na verdade, dentre todos os atores desta- formas de representação de interesse, aos instrumen-
cados, esses são aqueles sobre os quais acumulamos tos de intervenção ou de regulação estatal e às estru-
conhecimento mais sistemático no Brasil. Se até os turas fundiárias das cidades.
anos de 1990 a questão central envolvia os graus de No caso brasileiro, alguns elementos devem ser
autonomia dos movimentos, desde então a agen- considerados. Entre nós, a ação do Estado sobre
da de pesquisa incorporou as múltiplas formas de o urbano iniciou-se de modo significativo apenas
relação que esses movimentos têm entre si e com no final do século XIX com os serviços concedi-
as instituições políticas, tecendo comunidades de dos a empresas privadas nacionais, que após alguns
políticas e seus entornos e cruzando as fronteiras anos os repassaram a empresas estrangeiras, como
entre Estado e sociedade civil por diversas formas nos casos de bondes de tração animal, iluminação
de encaixe (Gurza Lavalle, Castello e Bichir, 2008). pública, água e esgotos e, posteriormente, bondes
Isso tem aproximado positivamente os estudos de a tração elétrica. Nos anos de 1910 e 1920, insti-
associativismo, movimentos sociais e políticas pú- tuições estatais da administração direta encampa-
blicas. Nesse sentido, a ideia já mobilizada de go- ram os serviços privados dos mesmos setores pelas
vernança pode deixar de designar os novos arranjos dificuldades de importação com a Primeira Guerra
de participação privada (pró-lucro) em políticas em Mundial e a Grande Depressão. Esse deslocamento
contraposição a instâncias participativas e integrar foi também impulsionado (e impulsionou) os cada
as diversas formas de inserção de agentes não es- vez mais presentes produtores nacionais de mate-
tatais em políticas públicas, conectados entre si e riais e obras, assim como as nascentes comunidades
com agentes do Estado no interior do seu tecido de políticas locais.
relacional. No início da década de 1960 e, em especial,
Resumindo, portanto, destaco três conjuntos depois do golpe militar de 1964, constituíram-se
de atores com especificidades no urbano, consi- empresas públicas integradas em sistemas federais
Em busca de um objeto esquecido  13

em políticas como saneamento, eletricidade, trens bém outros tipos de capitais do urbano, como os
metropolitanos e habitação, embora outras, como prestadores de serviços urbanos (empresas de ôni-
limpeza urbana, uso do solo e transportes sobre bus e limpeza urbana), as construtoras de obras pú-
pneus, tenham permanecido locais e sem regulação blicas e os incorporadores (Marques, 2016b). Em-
federal. Em várias áreas de política pública a pro- bora inexistam estudos sistemáticos, informações
dução foi massificada, mas com graves problemas esparsas sugerem uma grande interpenetração das
de qualidade, targeting, gigantismo e corrupção, elites políticas e econômicas locais com esses capi-
como já amplamente discutido (Draibe, 1989). tais, gerando múltiplos canais para a influência do
Nesse terceiro período, o setor privado esteve afas- setor privado sobre as políticas do urbano. O tema
tado da prestação direta das políticas, mas operou também envolve a centralidade da terra nos proces-
fortemente como contratado para a realização de sos de valorização de capitais do urbano e das elites
projetos, obras e serviços (Camargos, 1993). locais, dificultando muito a produção de políticas
Os anos de 1980 assistiram à desagregação das de regulação da terra.
agências nacionais responsáveis pelas políticas do re- O declínio das políticas do regime militar per-
gime militar para as cidades. Já havia nesse momento mitiu um importante ciclo de inovação de políti-
uma complexa rede urbana com grandes metrópoles cas do urbano nos anos de 1990, trazendo novas
marcadas por intensa pobreza e forte segregação resi- ações, como urbanização de favelas, regularização
dencial, periferias sem infraestrutura e grandes desi- de loteamentos, zoneamentos especiais, locação so-
gualdades de acesso a políticas, como mostra clássicos cial, mutirão cogerido, entre outras. Esse processo
de nosso urbano (Maricato, 1982; Kowarick, 1979). de inovação ganhou escala nacional nos anos 2000
A peculiar importância econômica e política com a criação do Ministério das Cidades, novas
dos capitais do urbano e, em especial, da construção instituições, fundos, conselhos e planos nacionais,
civil, no país impactou essa trajetória histórica. Em embora com baixo grau de insulamento e de ca-
contribuição já clássica, Lessa e Dain (1982) sugeri- pacidades. O investimento federal também vol-
ram a existência de uma tríplice aliança no capitalis- tou com o programa Minha Casa Minha Vida e o
mo nacional, com o Estado produzindo infraestrutu- PAC, mas desarticulado e em contradição parcial
ra e bens intermediários, o setor privado estrangeiro com os sistemas nacionais de políticas então em
concentrando-se na indústria de transformação mo- construção, em especial o Sistema Nacional de Ha-
derna e o setor privado nacional especializando-se bitação de Interesse Social. Embora tenham ocor-
no capital bancário, comercial e em indústrias de rido privatizações e concessões, estas pouco im-
baixa composição orgânica, como a construção ci- pactaram as políticas urbanas. Simultaneamente,
vil. Na verdade, o setor de construção foi em parte os governos locais aumentaram suas capacidades,
fomentado pelo próprio Estado brasileiro, pois suas desenvolvendo burocracias, agências, conselhos e
contratações o capitalizaram e o especializaram desde fundos, o que complexificou ainda mais a questão
os anos de 1950. O regime militar e depois as trans- federativa.
formações da economia brasileira nos anos de 1990 A maior parte dos serviços continuou sendo
só fortaleceram essa especialização, diversificando os prestada por entidades públicas, embora com a par-
portfolios dessas empresas e mesmo internacionali- ticipação diversa de empresas privadas, para além
zando-as. Como resultado, as construtoras estão hoje das clássicas contratações de projetos de engenharia
entre os principais capitais nacionais, vivem de con- e construção. Foram também constituídas entida-
tratos com o Estado, constroem e mantêm vínculos des regulatórias, mas sua atuação ainda não logrou
com governos e agências estatais, sempre financiam desfazer a simbiose e a superposição entre Estado
campanhas eleitorais e com frequência estão envol- e atores privados nas políticas do urbano. Esse ar-
vidas em escândalos de corrupção, como se tornou ranjo ganhou escala inédita com o projeto Porto
corrente no noticiário recente. Maravilha no Rio de Janeiro, concedendo todos os
No caso das cidades, a importância desses ato- serviços e políticas de uma região da cidade a um
res é ainda maior e diversificada, pois envolve tam- agente privado por um longo período, em diálo-
14  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 95

go com grandes projetos internacionais, como o da tuições políticas um lócus de dinâmicas e processos
Olimpíada de Londres (Saruê, 2015). em si, e não apenas um mero rebatimento de proces-
Também a política do urbano foi renovada sos produzidos fora deles. Isso não significa a adoção
desde a redemocratização, pelo menos em duas di- de análises estatistas, mas, ao contrário, indica a in-
mensões. Em primeiro lugar, intensificou-se a com- serção de diversos atores – estatais e não estatais – nos
petição eleitoral e partidária local, tornando urgen- contextos institucionais e relacionais e na produção de
te a compreensão das estratégias e das carreiras dos políticas com dimensões espaciais profundas.
políticos locais, aspectos ainda pouco explorados Creio ser urgente análises sobre a política e as
no geral (Limongi e Mesquita, 2011) e nos deta- políticas do urbano que adotam tais premissas. Esse
lhes (Kuschnir, 2000). A atual dinâmica também exercício depende da incorporação concomitante
trouxe transformações para o ativismo social de um de três conjuntos de elementos. Em primeiro lugar,
cada vez mais heterogêneo campo de organizações instituições, agências e processos de produção de
da sociedade civil, muitas vezes imbricado com- políticas com destaque para o federalismo, os atores
plexamente no sistema político e com as agências estatais, as agências, os processos de produção de
governamentais e suas ações (Gurza Lavalle, Cas- políticas com ciclos mais curtos e mais próximos do
tello e Bichir, 2008). A produção de políticas, por nível da rua e com dependência espacial, os instru-
seu turno, tem sido intensamente influenciada por mentos e as ideias de políticas. Em segundo lugar,
políticos, organizações estatais, burocracias e meca- atores societais incluindo políticos, capitais e ato-
nismos de participação social, em processos sempre res associativos – pressupondo suas relações entre
marcados pelas localizações e fluxos que os definem si e com o Estado em constante transformação. Por
e constituem. fim, os legados que produziram esses elementos;
O Estado brasileiro, portanto, esteve presente no caso das políticas do urbano, foram marcados
desde o final do século XIX na produção e na regu- por um arranjo peculiar em que o Estado sempre
lação de políticas, mas se apoiando sempre no setor esteve presente, mas com formas variadas de parti-
privado para diversas tarefas. Esses padrões foram cipação privada, mediadas por instituições formais
renovados recentemente com a relevância redobra- e também por padrões de relação e permeabilidade.
da do federalismo, o aumento das capacidades es- Recentemente, esses padrões vêm sendo reconstitu-
tatais em vários níveis, inclusive regulatórias, e com ídos pelo federalismo, por um aumento das capa-
políticas mais diversificadas, em parte pela crescen- cidades estatais e por um leque mais amplo de polí-
te importância da política local e do cada vez mais ticas impulsionadas pelo crescente dinamismo po-
dinâmico ativismo societal. lítico local.

Ao invés de concluir Notas

Como vimos, os debates internacionais se inicia- 1 É interessante notar como usamos a palavra “dinâmi-
ram no chamado community power debate, passaram ca” no sentido metafórico de transformação ou mu-
dança, em vez de “movimento” ou “deslocamento”,
pela sociologia marxista, pela teoria dos regimes e
quando se trata de transformações que também acon-
das máquinas de crescimento e, mais recentemente,
tecem no espaço e não só no tempo.
concentraram-se nos novos arranjos e governança. In-
2 Para uma discussão detalhada desses argumentos, ver
felizmente, consolidou-se uma divisão de campos dis-
Marques (2016a).
tintos para compreender as cidades e a política. A su-
3 Stone (2010) afirma que para o mainstream da ciên-
peração desse problema pressupõe entender o espaço
cia política, a política do urbano é sobre “educação e
como dimensão constitutiva da política e das políticas
coleta de lixo”.
e, simultaneamente, como pressuposto e resultado
4 É impressionante como os estudos urbanos geram no-
das práticas políticas e das ações do Estado. Por outro
vos conceitos e totalizações de vida efêmera. Alguns
lado, é imprescindível considerar o Estado e as insti-
Em busca de um objeto esquecido  15

dizem respeito a fenômenos novos e resistem melhor Cardoso, Fernando H. (1970), “Planejamento
ao tempo, como gentrificação e cidades globais, mas e política: os anéis burocráticos”, in Bety Lafer,
outros desaparecem, como megacidades. Um exemplo Planejamento no Brasil, São Paulo, Perspectiva.
recente é a mobilidade de políticas (Peck e Theodore, Castells, Manuel. (1983), A questão urbana.
2010), que enfocam processos já discutidos e partem
Rio de Janeiro, Paz e Terra.
de uma crítica muito limitada da literatura que ignora
a produção sobre ideias e agenda em políticas públicas.
COHEN, Michael; MARCH, James & OLSEN,
Johan. (1972), “A garbage can model of or-
5 Vale assinalar que a única subárea de nossos estudos ur-
banos a explorar a circulação de ideias analisa grandes
ganizational choice”. Administrative Science
projetos, em que essa circulação se aproxima da venda Quarterly, 17 (1): 1-25.
e/ou imposição de modelos, sendo criticada com base Couto, Cláudio & Abrucio, Fernando.
na literatura pós-colonial (Vainer, 2014). Dadas essas (1995), “Governando a cidade: a força e a fra-
ênfases, as diversas outras formas de circulação perma- queza da Câmara Municipal”. São Paulo em
necem entre nós muito pouco exploradas e teoricamen- Perspectiva, 9 (2): 57-65.
te desinformadas dos debates sobre políticas. Dahl, Robert. (1961), Who governs? Democracy
6 Em Marques (2013) resenho criticamente os usos do and power in an American city. New Haven,
conceito no Brasil e proponho um conceito alternati- Yale University Press.
vo, mapeando os padrões de governança presentes na Davies, Jonathan. (2003), “Partnerships versus
metrópole paulistana. Internacionalmente, ver Rho- regimes: Why regime theory cannot explain
des (2007) e Stoker (1998b).
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18  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 94

Em busca de um objeto IN SEARCH OF A FORGOTTEN A LA RECHERCHE D’UN OBJET


esquecido: A política e as SUBJECT: THE POLITICS AND OUBLIE : LA POLITIQUE ET
políticas do urbano no THE POLICIES OF THE URBAN LES POLITIQUES URBAINES AU
Brasil IN BRAZIL BRESIL

Eduardo Cesar Leão Marques Eduardo Cesar Leão Marques Eduardo Cesar Leão Marques

Palavras-chave: Política urbana; Políticas Keywords: Urban politics; Urban public Mots-clés: Politique urbaine; Politiques
públicas urbanas; Cidades; Estudos urba- policies; Cities; Urban studies; Political publiques urbaines; Villes; Études urbai-
nos; Ciência política science nes; Science politique

Este artigo discute um tema de grande This article discusses a theme of great Cet article aborde un sujet très important
importância, mas que curiosamente foi importance, but that is curiously little mais qui, curieusement, a été très peu
muito pouco estudado no Brasil – a polí- studied in Brazil: the city politics, and étudiée au Brésil. Il s’agit de la politique
tica (politics) das cidades, em especial das especially its metropolises. It is unusual (politics) des villes, en particulier des
grandes cidades. É surpreendente que o that Brazil had 84% of its population liv- grandes villes. Il est surprenant de savoir
Brasil tivesse 84% de sua população vi- ing officially in cities, but had never de- qu’en 2010 le Brésil comptait 84 % de
vendo oficialmente em áreas urbanas em veloped a dense debate dedicated to the sa population vivant officiellement dans
2010, mas não tenha desenvolvido um politics of its cities. The theme was ana- les zones urbaines et qu’il n’ait jamais
debate denso dedicado à política de suas lyzed only indirectly by the field of urban développé un débat dense consacré à la
cidades. O tema foi analisado apenas in- studies as a secondary dimension derived politique de ses villes. Le thème n’a été
diretamente pelos estudos urbanos, como of social processes, as well as by political abordé qu’indirectement par des études
uma dimensão derivada de processos so- science as a minor subject, derived by po- urbaines, comme une dimension déri-
cietais, e pela ciência política, como um litical dynamics operating at other scales. vée des processus sociaux, ainsi que par
assunto menor, derivado de dinâmicas This article intends to bring the subject les sciences politiques, comme un sujet
políticas situadas em outras escalas. Esse to the center of the analysis, taking into mineur, dérivé de dynamiques politiques
artigo pretende trazer o tema para o cen- account the specificities of urban politics, situées sur d’autres échelles. Cet article a
tro da análise, refletindo sobre as especifi- discussing critically the various traditions pour but de porter ce sujet au centre de
cidades da política do urbano, discutindo present in the national and international l’analyse, en une réflexion à propos des
criticamente as várias tradições presentes debates and suggesting a path for the spécificités de la politique de l’urbain,
nos debates nacionais e internacionais e construction of the line of analysis of the tout en discutant de façon critique les
sugerindo caminhos para a construção de subject for Brazilian cities. différentes traditions présentes dans les
tal enfoque para as cidades brasileiras. débats nationaux et internationaux et en
suggérant des voies pour la construction
d’une telle approche pour les villes bré-
siliennes.

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