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POVO, POPULAR E POPULISMO NO PENSAMENTO DE ENRIQUE DUSSEL

Marcos Gabriel Peletti

Resumo: O presente artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica realizada a partir da obra do
filósofo argentino Enrique Dussel. O objetivo do texto é apresentar ideias do autor sobre as formas
de governo que possibilitariam a libertação do povo frente aos regimes de cunho autoritário
presentes na América Latina no século XX. Para tanto, busca-se expor criticamente os conceitos
de povo, popular e populismo a partir do exame dos escritos do referido autor. Ainda,
problematizar a concepção de Estado, classes sociais, participação e representação, a fim de tecer
a análise sobre como os líderes populistas se apropriam e utilizam de forma equivocada, mas
proposital, o conceito de povo em seus discursos com o objetivo de exercer um poder fetichizado
em detrimento de um poder popular, exercido pelo povo por meio de uma efetiva participação.

Palavras-chave: Povo. Popular. Populismo. Enrique Dussel. Libertação.

1 INTRODUÇÃO
Importa, de início, assinalar que, diante dos debates acerca das formas de governo que
possibilitariam a libertação do povo e face aos regimes neofascistas de cunho militarista que
predominavam na América Latina, Enrique Dussel se insere no diálogo ao final dos anos 70 do
século passado, expondo o modo como se deu a ascensão dos estados populistas alguns anos antes.
Para isto busca explicitar em um apêndice do tomo IV da sua obra Para uma Ética da Libertação
Latino-Americana (1982) o contexto social e os discursos utilizados pelos líderes populistas na
época, fazendo uma análise que ele mesmo chama de ideológica (DUSSEL, 1982).
O objetivo deste trabalho é apresentar algumas reflexões sobre os conceitos de populismo,
povo e popular a partir de um estudo bibliográfico da obra do filósofo argentino Enrique Dussel,
o qual pode ser considerado um dos maiores expoentes do pensamento filosófico latino-americano,
em especial no que se refere à filosofia da libertação.
Na obra Para uma Ética da Libertação Latino-Americana Volume IV (1982), Dussel
começa a desenvolver a noção daquilo que entende por povo, voltando a trabalhar este conceito
na obra 20 Teses de Política (2007), onde distingue o povo de nação, atribuindo à camada social
que ele considera como povo o conceito latino de plebs (DUSSEL, 2007).
Outro ponto relevante ao abordar a obra do referido autor é distinguir o conceito de
populismo (palavra que adquiriu carga pejorativa) do conceito de popular. Tal distinção é feita
tanto na obra 20 Teses de Política como no artigo Cinco Tesis Sobre el Populismo (2020).
Neste sentido, o trabalho é desenvolvido pautado numa metodologia que se apresenta nos
moldes de pesquisa bibliográfica e está organizado de forma que, na primeira parte, é apresentada
a definição do autor sobre populismo, na sequência a concepção dusseliana de povo e, por fim, as
diferenciações estabelecidas entre os conceitos de popular e populismo.
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2 CONCEPÇÃO DUSSELIANA DE POPULISMO


Dentro do tomo IV da obra Para uma Ética da Libertação Latino-Americana (1982),
Enrique Dussel busca analisar o contexto social e os discursos populistas para entender como o
fenômeno do populismo se tornou possível na América Latina.
O processo histórico que possibilitou o surgimento do populismo está todo atrelado à crise
de 1929 e às guerras que colocaram as potências hegemônicas industrializadas em combate.
Assim, se explica a afinidade de líderes populistas pelos regimes fascistas, pois o inimigo era o
mesmo: a Inglaterra e os demais países já industrializados. Tanto populistas como fascistas “[...]
tinham também um projeto capitalista nacional, hegemonizado pela burguesia nacional e com o
apoio proletário e camponês” (DUSSEL, 1982, p. 191). Portanto, é possível ver que a conduta
“apaziguadora” é nota característica dos governos populistas, visto que não buscam promover uma
luta entre as classes, mas sim conciliar burguesia industrial e operários.

2.1 As classes sociais no momento do populismo


Considera-se, de início ser pertinente expor o modo como as classes sociais se organizavam
no período dos governos populistas, classes estas que sempre se relacionam de algum modo com
o governo populista. Dussel faz sua análise dividindo as classes em quatro grupos:
a) Burguesia interior ou nacional, que domina a indústria. Esta classe tem os operários
como aliados, visto que precisa se fortalecer pelo fato de estar em luta contra os latifundiários
(exportadores) e a oligarquia mercantil (importadores). Daqui pode-se afirmar que a classe
operária é aliada ao líder populista já que é responsável por aumentar o mercado interno, com uma
certa distribuição do capital (DUSSEL, 1982, p. 196).
b) A segunda classe abordada pelo autor é a dos oligarcas latifundiários, que detém o
excedente de produção que é exportado. Esta classe não consegue firmar aliança com os
camponeses. O governante populista se aproveita disso para inflamar a classe campesina contra os
latifundiários, no intuito de “[...] permitir que o capital excedente seja investido na industrialização
nacional, ou para que o Estado possa manejar a exportação agrícola” (DUSSEL, 1982, p. 196).
c) Os oligarcas mercantis ocupam a terceira classe analisada por Dussel, estes dominam
o mercado de importações e aliam-se à classe média, que tende a se sentir atraída pela produção
do centro. O governante populista também ocupa um lugar de oposição a esta classe combatendo-
a através da burocratização (DUSSEL, 1982, p. 197).
d) Os últimos a serem analisados são os marginalizados que, segundo Dussel, não chegam
a ser classes, pois chegam às cidades expulsos dos campos pela expansão dos latifúndios. Estes
são o alvo principal do discurso populista, já que as promessas utópicas dos líderes (justiça social,
ordem – conceitos que serão abordados mais à frente) os atingem em cheio. São os marginalizados
3

os responsáveis por conferir legitimidade ao governo populista, isto ocorre porque depositam no
líder a sua confiança. Ademais, a estrutura industrial jamais será capaz de abarcar todos estes
marginalizados, que serão um número maior a cada dia (DUSSEL, 1982, p. 197).
Desta análise é possível concluir que dentro de um governo populista a classe que exerce
a hegemonia é a burguesia industrial, se aliada à classe operária. Dussel (1982, p. 197) afirma que,
a partir do momento em que os operários não aceitam mais a aliança, uma revolução pode ser
desencadeada ou elas serão desmobilizadas, como ocorreu nos períodos de neofascismo.

2.2 O Estado populista


Diante do exposto acerca das classes sociais, é possível perceber que Dussel, concordando
com Vicente Lombardo Toledano, enxerga o Estado populista como aquele que é “[...]mediador e
o juiz da vida social” (TOLEDANO apud DUSSEL, 1982, p. 198). O Estado regula a luta entre as
classes, tentando mascarar os interesses opostos que existem entre elas. Ao contrário do que se
possa pensar há certa particularidade no Estado populista:

O Estado populista é um Estado capitalista, mas periférico. Esta última nota define-o em
sua essência, não é algo adventício, acidental. O ser periférico distingue o populismo do
fascismo de Hitler ou Mussolini; o ser capitalista o distingue dos socialismos populares
(como o de Cuba); o ser populista o distingue das democracias formais liberais ou
desenvolvimentistas (DUSSEL, 1982, p. 198).

Assim é possível denotar que, por mais que a organização do Estado populista tenha
elementos de outras formas de Estado, ele também tem elementos que não o deixam misturar-se
aos tipos de Estado que existiam no mesmo momento histórico.
Na sequência, Dussel faz uma importante distinção entre Estado e Governo, afirmando que
Estado “[...] é o lugar ou espaço, com autonomia relativa diante das classes dominadoras ou
hegemônicas, que possuem o poder econômico ideológico, onde se exerce também o poder
político” (DUSSEL, 1982 p. 198 [itálicos do autor]). Enquanto governo “[...] pelo contrário, é um
dos aparatos do Estado (juntamente com o exército, a polícia, a educação, os meios de
comunicação, etc.) no qual se exerce, mediante uma burocracia, o exclusivo poder político, embora
vinculado aos restantes” (DUSSEL, 1982, p. 198). Esta distinção é importante para apontar que o
fato de um Governo ser democrático ou autoritário não é suficiente para identificar um Estado
como populista ou não, pois estas são duas formas de governo e não de Estado. Ao longo da
história tivemos Estados populistas que se estabeleceram como democráticos – como, por
exemplo, o populismo de Getúlio Vargas no Brasil (de 3 de novembro de 1930 a 29 de outubro de
1945 e de 31 de janeiro de 1951 até 24 de agosto de 1954) ou de Juan Domingo Perón na Argentina
(de 4 de junho de 1946 a 21 de setembro de 1955 e de 12 de outubro de 1973 até 1 de julho de
4

1974) – e Estados populistas que tiveram governos totalitários – como foi o caso do governo de
Marcos Pérez Jiménez na Venezuela (de 1952 a 1958).
Ainda dissecando o Estado populista, Dussel afirma a forte unidade entre Estado, Governo,
Executivo, Partido único e Sindicatos. Para Dussel (1982, p. 199), “Esta é a coluna vertebral do
regime. A mediação entre governo e os sindicatos é realizada pelo partido”. É somente no discurso
que o líder contata o povo e, afim de manter-se no poder, faz com que a culpa dos erros recaia
sobre os mediadores.
Há um grande paradigma no Estado populista, uma vez que ele é “forjado” por meio da
mobilização popular, pois como vimos, quem confere legitimidade ao governo populista através
da confiança são os marginalizados, porém ao chegar ao poder o populista age de modo
desmobilizador, ou seja, mesmo governando em nome e com o apoio do povo, suas ações são em
favor da pequena burguesia nacionalista, que por sua vez conta com a destreza do líder em
transformar a luta de classes em mera aliança. E é justamente esta aliança que torna possível a
manutenção do Estado populista.
Findando esta breve análise de cunho histórico-econômico é preciso ressaltar que, segundo
o autor argentino, os Estados populistas duraram até meados de 1960, preparando os caminhos
para o advento de “[...]sistemas mais rígidos como o militarismo neofascista ou o experimental
socialismo” (OLIVEIRA, 2015, p. 106).

2.3 O uso ideológico de alguns termos no populismo


Seguindo a sua análise do populismo, Dussel deseja mostrar como certos termos, se
encobertos, podem ser utilizados para que o discurso do líder atinja diversos referentes devido à
sua ambiguidade:

Filosoficamente há certas categorias que, por serem abstratas ou ambíguas, permitem o


uso populista das mesmas. [...] Este uso populista não invalida tal categoria, mas mostra
que por sua significação analógica pode ser usada de maneira encobridora (DUSSEL,
1982 p. 210).

Nota-se que Dussel não quer retirar a validade de tais categorias, mas enfatizar o modo
como elas podem enganar, ou fazer com que referentes antagônicos sejam atingidos pelo mesmo
discurso. A seguir buscar-se-á dar exemplos destes termos que tem carga semântica ambígua. O
primeiro termo ou categoria analisada por Dussel é a de classes sociais. Nos discursos de Getúlio
Vargas, por exemplo, é possível notar como ele joga com o conceito de classe:

É preciso a colaboração de uns e outros no esforço espontâneo e no trabalho comum em


bem dessa harmonia, da cooperação e do congraçamento de todas as classes sociais.
5

(Muito bem; prolongados aplausos). [...] O Governo não deseja, em nenhuma hipótese, o
dissídio das classes nem a predominância de umas sobre outras (VARGAS, 1938, p. 205).

Como dito anteriormente, as classes constituem um elemento de suma importância para a


sustentação do governo populista. Por isso o líder populista deve colocar muito bem este termo
dentro de seu discurso a fim de levar a cabo o projeto de capitalismo nacional que tem por base a
conciliação da classe operária com a classe burguesa industrial. Num segundo momento, o autor
analisa como o líder populista joga com o conceito de propriedade privada. Também neste ponto as
classes sociais é que ditam o teor do discurso do líder populista.

O populismo nunca colocará em questão a propriedade privada, mas como não pode
defendê-la de maneira direta e evidente diante das massas, realiza um rodeio semântico:
trata-se de estender a toda população o maior número de propriedade possível (DUSSEL,
1982, p. 210).

Revendo a análise já apresentada das classes sociais1, é possível afirmar que o populismo
não coloca em xeque a propriedade privada pelo fato de que o sujeito que concentra a posse dos
bens privados é a burguesia, importante personagem para sustentação deste modelo de governo,
nem pode defender explicitamente a propriedade privada porque isso faria com que perdesse o
apoio dos seus outros pilares: as classes operárias e os marginalizados. Tal cenário explica porque
não houve reforma agrária contundente na época do populismo, o máximo que aconteceu foi o
minifúndio ou a distribuição de terras de pouca produtividade, e assim nem chegaram perto de
ameaçar os grandes latifúndios (DUSSEL, 1982, p. 210).
Outra nota marcante da concentração de bens é a privação das classes dominadas da
participação política. O autor argentino afirma que mesmo os sindicatos constituem o aparato
governamental populista, que os inflama contra os inimigos do projeto econômico, mas os
desmobiliza no que diz respeito ao questionamento ao mesmo projeto. Deste modo, “[...] as classes
populares são mediadoras de um projeto, mas não seus agentes principais” (DUSSEL, 1982, p.
211).
Ordem, trabalho e justiça social também são conceitos que sofrem rodeio semântico no
discurso populista. O peronismo, a título de exemplo, exaltava a soberania política, a
independência econômica e a justiça social como valores que tornariam possível a libertação
nacional. É preciso que as massas trabalhem em ordem e paz, produzindo acumulação suficiente
para o desenvolvimento nacional (DUSSEL, 1982, p. 211). É possível notar a presença de todos
estes elementos no discurso populista de Vargas:

1
Cf. subseção 2.1 As classes sociais no momento do populismo, p. 5.
6

A ordem e o trabalho! (Muito bem; palmas prolongadas). Em primeiro lugar, a ordem,


porque na desordem nada se constrói; porque em um país como o nosso [...] só a ordem
assegura a confiança e a estabilidade. O trabalho só pode se desenvolver em ambiente de
ordem. Por isso, a Lei do Salário Mínimo, que vem trazer garantias ao trabalhador, era
necessidade que há muito se impunha (VARGAS, 1938, p. 203).

As classes operária e marginalizada acabam aceitando o salário mínimo, por exemplo,


como uma conquista revolucionária, mas na verdade esta é uma necessidade do sistema capitalista,
que injeta dinheiro no mercado afim de que suas próprias mercadorias tenham giro (DUSSEL,
1982, p. 211). Também é difícil compreender o que exatamente é a justiça social, cada classe
entende à sua maneira:

[...]’justiça social’, é entendida por alguns, os oprimidos, como uma nova ordem cuja
hegemonia será exercida; por outros, a nova burguesia nacional, como uma nova ordem
capitalista onde a distribuição da riqueza será conseguida lentamente por meio de um
salário que irá compartilhando o desenvolvimento geral da sociedade como totalidade
(DUSSEL, 1982, p. 211).

Novamente, mais de um referente é atingido pelo termo utópico e ambíguo de “justiça


social”. Povo é outro termo essencial para o governo populista, e ele pode ter diversos significados,
mas, em geral, os líderes populistas colocam povo como aquele que escuta os seus discursos.
Assim como nos outros termos citados nos parágrafos anteriores, a categoria “povo” atinge
diversos referentes, permitindo que o discurso atinja tanto as massas como as classes dominantes
(DUSSEL, 1982, p. 208). Mas Dussel constrói um significado claro para o termo “povo”,
demarcando bem quem são os referentes desta categoria, por isso a sessão seguinte do artigo será
dedicada ao tema.

3 CONCEPÇÃO DUSSELIANA DE POVO


O conceito de povo já é abordado por Dussel em obras que marcam o início do seu
pensamento. No desenvolvimento inicial do conceito, o autor argentino considera que “[...] as
classes oprimidas, os trabalhadores, os camponeses, os marginalizados são o povo de nossas
nações” (DUSSEL, 1982, p. 101). Ainda sobre o assunto o autor escreve: “[...] a nação periférica
como totalidade não é povo, mas o é por suas classes oprimidas” (DUSSEL, 1982b, p. 77). A partir
de tais afirmações, já é possível assinalar que as classes dominantes não estão contidas na categoria
povo, porém, é pesquisando em produções mais recentes de Dussel que se pode encontrar uma
fundamentação detalhada sobre esta concepção de povo.
Para bem compreender o conceito de povo, é necessário verificar como ele aborda o poder,
a política, o político e a sua crítica à fetichização do poder.
7

3.1 A relação potentia e potestas


No pensamento dusseliano, a política se entrelaça ao poder, fala-se então de poder político.
O pensador argentino recupera uma visão de poder como potência, como vontade de viver, e esta
vontade “[...] nos empurra a evitar a morte, a adiá-la, a permanecer na vida humana” (DUSSEL,
2007, p. 26). Dussel enxerga a política como aquela que “[...] organiza e promove a produção,
reprodução e aumento da vida de seus membros” (DUSSEL, 2007, p. 26). Assim a política deixa
de ser apenas um campo de luta pelo poder ou pela sua manutenção no campo institucional.
Portanto, este poder político não só emana como pertence em sua totalidade ao povo.
Complementando sua argumentação, Dussel afirma que o poder exercido de modo despótico,
totalitário e militar ainda que se chame poder, é na verdade uma destruição do político como tal.
Ao poder político pertencente ao povo, Dussel denomina como potentia (DUSSEL, 2007, p.29).
A partir de tudo isto, percebemos que a potentia é uma espécie de poder em si e busca fazer
analogia com a semente que “[...] é uma árvore em si, não se havendo desdobrado, realizado,
crescido, aparecido à luz do mundo” (DUSSEL, 2007, p. 32). No entanto, se a potentia é poder em
si, a potestas é o poder político do povo fora de si, institucionalizado. Porém, tal desdobramento
da potentia em potestas possibilita tanto a fetichização do poder, que é a sua corrupção, como a
política exercida em favor da comunidade, nas palavras do próprio Dussel: “[...] a política será a
longa aventura do uso devido (ou corrompido) da potestas” (DUSSEL, 2007, p.33).
O poder contido na comunidade política existe apenas como potência, como um tipo de
poder que pode vir a ser, sem verificação empírica, tornando válida a premissa de que todo poder
só pode ser exercido na potestas, de modo institucional. A potestas é a institucionalização da
comunidade, a construção de mediações para o exercício do poder. Em virtude da
institucionalização das potestas e frente a impossibilidade de uma democracia direta permanente,
tem início o exercício delegado do poder através dos representantes. Este exercício delegado do
poder político permite que o todo, realizando diferentes funções, alcance objetivos mais complexos
(DUSSEL, 2007, p. 34).

3.2 A fetichização do poder

Não é possível cerrar os olhos para os possíveis riscos que advém com o desdobramento
da potentia em potestas. O que pode ocorrer é uma separação de potentia e de potestas, ou seja, a
fetichização do poder político que se caracteriza pela absolutização da vontade do representante,
a potestas, que deve ser fundamentada pelo poder do povo (potentia) que se converte em poder
político (DUSSEL, 2007, p. 35).
8

O poder fetichizado, por exemplo, propunha Hobbes2, faz com que o representante aja de
modo a dominar o povo, não mais praticando um “[...] exercício delegado do poder da
comunidade” (DUSSEL, 2007, p. 45, itálicos do autor).
Nota-se que Dussel pensa no modo como a política deve ser exercida, não sendo possível
a participação direta constantemente, o representante deve se utilizar dos instrumentos para
realizar as reinvindicações daqueles que detém o poder por natureza, ou seja, o povo. A partir do
momento em que os interesses pessoais do ou dos representantes se sobressai aos da coletividade,
já não é mais a política verdadeira acontecendo, mas sim a manifestação de uma forma corrompida
e deturpada – fetichizada – desta.

3.3 O “povo” como vítima


Nem o melhor dos sistemas políticos arquitetados pode ser considerado perfeito. Frente a
essa imperfeição é possível afirmar que ocorrem efeitos negativos e os produtos destes efeitos são
as vítimas “[...] que de algum modo se encontram em assimetria na participação, ou simplesmente
foram excluídas da mesma” (DUSSEL, 2007, p.87). É do movimento destas vítimas que surgem
os movimentos sociais, que procuram contestar a ordem vigente (SOLÍS, 2015, p. 3).
Hernandez Solís nos ajuda a compreender que:

O primeiro ponto com respeito a noção de ‘povo’ é ver a sociedade não como algo
homogêneo, mas sim, como um espaço onde encontramos diferenciação e desigualdade.
Onde há um setor que não satisfez as suas demandas. Por demandas, Enrique Dussel
entende a insatisfação das necessidades (SOLÍS, 2015, p. 3)3.

Mais uma vez se esclarece a compreensão de que não há uma sociedade perfeita, é um
lugar de lutas e de diferenças. Diversos setores não satisfizeram suas demandas e têm diversas
reinvindicações. Aí começa a nascer um problema: tais movimentos – feminista, antirracista,
indígenas, camponeses, etc. – têm suas reinvindicações particulares, mas como unificar todas essas
reinvindicações? Dussel, do mesmo modo que Ernesto Laclau, sugere a formação de um hegemón
analógico4 que seja capaz de incorporar todas as pautas do povo, “[...] embora possa [...] haver
algumas que tenham prioridade” (DUSSEL, 2007, p. 91). Como exemplo deste hegemón, Dussel

2
Conforme nos explica Oliveira (2015, p. 35), para que o poder em Hobbes tivesse origem no povo, para que o
soberano fosse autorizado pelo mesmo, seria necessário pressupor que existisse um povo antes mesmo do Estado, o
que é impossível, visto que a atribuição de poder do povo ao soberano através do contrato social é fictícia. Deste modo
o povo é mero coadjuvante, e não protagonista como quer Dussel.
3
Devido ao fato deste material não ter tradução para o português, fez-se necessária uma tradução comparada com
outras obras traduzidas de Dussel, que asseguram a precisão dos termos fundamentais traduzidos.
4
Aqui, o termo hegemón analógico quer fazer referência a algo como reinvindicação universal (DUSSEL, 2007, p.
90).
9

cita o processo de emancipação espanhol, ocorrido em 1810, que teve “Liberdade” como demanda
principal.
Enrique Dussel aponta para a necessidade de uma categoria que englobe todos esses
movimentos que se encontram em luta, encontrando justamente na categoria “povo” esta
possibilidade. A descrição de “povo” que tem primazia no pensamento de Dussel é a dada por
Fidel Castro:

Entendemos por povo, quando falamos de luta, a grande massa resoluta [...], que anseia
por grandes e sábias transformações de todas as ordens e está disposta a obtê-las, quando
acredita em algo ou alguém, sobretudo quando crê suficientemente em si mesma [...] Nós
chamamos povo, se de luta se trata, os 600 mil cubanos que estão sem trabalho [...]; os
500 mil operários do campo que moram em cabanas miseráveis [...]; os 400 mil operários
industriais e trabalhadores braçais [...] cujos salários passam das mãos do patrão às do
usuário [...]; aos 100 mil pequenos agricultores, que vivem e morrem trabalhando uma
terra que não é deles [...] os 30 mil mestres e professores [...]; os 10 mil profissionais
jovens [...] desejosos de luta e cheios de esperança [...] Esse é o povo, que sofre todas as
desgraças e é, portanto, capaz de pelejar com toda a coragem (CASTRO, 1975, p. 39).

Em textos posteriores, outros movimentos são inclusos na categoria “povo”, como, por
exemplo, os meninos abandonados, as mulheres na sociedade machista, os idosos, etc. Fato é que
todo este trabalho acerca da ideia de “povo” gera uma cisão na comunidade política, de modo que
os oprimidos e excluídos estão em oposição “[...] às elites, às oligarquias, às classes dirigentes de
um sistema político” (DUSSEL, 2007, p. 93). A estes excluídos que se opõem à dominação, Dussel
chama de plebs.
Com esta distinção, Dussel quer que o “povo” (plebs) se configure em um ator político
coletivo, ligado sempre a conjunturas críticas, de modo a constatar o hegemón analógico das suas
diversas reinvindicações, definindo táticas e assumindo o papel de arquiteto da história. Fazendo
referência a Gramsci, Dussel define o “povo” (plebs) como o bloco social dos excluídos e
oprimidos, usando o conceito de bloco para retirar a ideia de pedra com consistência única,
salientando o bloco como um conjunto que pode ser integrado e desintegrado, com força e
consistência variáveis (DUSSEL, 2007, p. 94).
Ainda, outros setores da sociedade podem pertencer à categoria de povo, como a burguesia
nacional que está em desvantagem perante a agressividade das empresas multinacionais, os
intelectuais comprometidos e os críticos do sistema dominante, pois “‘povo’ é a conformação em
um bloco de uma multiplicidade de setores sociais, antagônicos ao sistema de dominação” (SOLÍS,
2015, p. 4, tradução nossa).
Este “povo” é uma categoria ampla, mas a sua construção ideológica ainda está em
constituição. A luta ainda não é o momento de emancipação, mas parte do longo trajeto pela
libertação. Dussel faz a genial analogia com o deserto e a terra prometida, afirmando que o deserto
10

é o caminho “duro, exaustivo, cheio de perigos”, até a libertação – terra da promessa – (DUSSEL,
2007, p. 123).
É válido salientar que numa confrontação com outras categorias, “povo” é muito mais
abrangente, podemos comparar com a “classe trabalhadora”, por exemplo. O conceito de “classe
trabalhadora” é fundamental para uma sociedade cujo modo de produção é o capitalismo, mas há
de se considerar que em algumas conjunturas, como no Peru da década de 1920, o capitalismo
sequer existe, inexistindo também a classe trabalhadora, por isso, em socorro das vítimas que
existem em todos os sistemas políticos vem a categoria de “povo”.

4 POVO, POPULAR E POPULISMO


A partir da minuciosa delimitação do que é “povo” se torna mais simples enxergar qual foi
o grande problema dos governos populistas, a confusão de “povo” – categoria que era
propositalmente mantida dentro de uma ambiguidade nos discursos populistas – com nação5,
todos, incluindo os que constituíam a classe dominante no período do populismo histórico, eram
considerados como povo, tornando mais dificultosa a luta das vítimas que não tinham uma
categoria que as abarcasse em sua totalidade e ao mesmo tempo em sua condição de excluídos.
Contudo, Dussel assinala que o popular é este que não considera o “povo” como a totalidade da
comunidade política, mas que é construído justamente pelo “povo” (DUSSEL, 2007b, p. 11).
Este poder popular é construído pelo “povo” que luta, que deixa de ser meramente uma
coisa utilizada pelos que compõe o bloco dominante. Para que essa luta desencadeie uma libertação
é preciso que se entre em consenso, que surja o já citado hegemón analógico.

Quando os oprimidos e excluídos tomam consciência de sua situação, tornam-se


dissidentes. A dissidência faz perder o consenso do poder hegemônico, o qual, sem
obediência, se transforma em poder fetichizado, dominado, repressor (DUSSEL, 2007, p.
99).

A partir dessa consciência o povo começa seu processo de libertação, justamente por
entender que é dominado e coisificado. Cria-se aqui uma “crise de hegemonia”, que segundo
Dussel (2007, p.99) é um momento que antecede as mudanças na ordem política.
É claro que a potentia pode ser organizada pelo bloco hegemônico de modo a defender
seus interesses e a manutenção de seu poder colocando-se contra o “povo” que se inflama,
justamente neste momento se apresenta a hiperpotentia, nomenclatura que designa a soberana
autoridade do povo que é capaz de promover as grandes transformações no curso histórico, pois:

5
Para Dussel (2007b, p. 11), nação é “toda a população nascida em um território organizada sob a estrutura política
institucional de um Estado”
11

Esse antipoder diante do poder dominador, esta hiperpotentia diante da potentia, efetua
eficazmente a transformação da potestas, agora a serviço do povo. A eficácia dos fracos
é maior do que muitos supõem (DUSSEL, 2007, p. 101).

O “povo” precisa ser forte e ter ciência de que o processo de libertação terá momentos de
perseguição, mas caso manter-se firme na luta colherá bons frutos. Os que estão em luta encontram
na história exemplos para alimentar a sua valentia, Napoleão foi derrotado pelo povo espanhol, o
povo iraquiano resistiu bravamente aos ataques da maior potência bélica do mundo. Para que o
“povo” seja derrotado é preciso que todos os membros que o compõem sejam assassinados
(DUSSEL, 2007, p. 101)
No momento em que o “povo” consegue estabelecer-se no poder desenha-se um governo
popular, mas que tem muitos perigos. Novamente, o exercício delegado do poder pode gerar
grandes problemas se o representante passa a governar para satisfazer interesses pessoais, também
os partidos políticos podem pender a um monopólio do poder, capaz de os levar à uma profunda
corrupção, a exemplo do ocorrido a partir de 1984 com a derrocada das ditaduras militares na
América Latina (DUSSEL, 2007b, p.12).
Afim de evitar tais desastres, Dussel propõe que o poder do “povo” seja mantido por meio
de uma democracia mais direta, onde os indivíduos assumem responsabilidades cotidianas. O autor
argentino alvitra que nos pequenos distritos, que devem funcionar dentro dos municípios, teriam
reuniões semanais para discutir assuntos que vão desde a Constituição e suas leis até a segurança
da comunidade, por exemplo. Deste modo, nasceria um poder cidadão, que tem a política como
uma atividade cotidiana e fiscalizaria os demais poderes (executivo, legislativo e judiciário).
Entretanto, é importante assinalar que a representação não está excluída deste modelo de
governo, pois “[...] sem representação a participação cai num caos ingovernável [...]. Sem a
participação a representação se torna aniquiladora, se torna fetichizada, se corrompe” (DUSSEL,
2007b, p. 14). Mostra-se de vital importância pensar num justo meio entre a participação, para que
não se torne demasiado autorreferente, e a representação, para que não ignore o grito dos que lutam
por condições melhores.
Dussel segue argumentando sobre a necessidade de um representante:

A reflexão é político estratégica, porque se situa no nível da luta. Neste nível [...] não é
necessária somente a teoria, mas também a fé, a crença como convicção subjetiva que
permite opor-se ao ‘estado de direito’ injusto. Deve-se crer nos postulados (o Reino da
Liberdade, a Dissolução do Estado, a Sociedade sem classes), mas também em alguém
(DUSSEL, 2007b, p. 15, [itálicos do autor])6.

6
Novamente pela ausência de traduções da obra, fez-se necessária uma tradução comparada.
12

O “povo” pode ter um plano político com estratégias bem definidas, mas deve encontrar
alguém que tenha as qualidades necessárias para exercer um mandato com o objetivo de levar o
povo a alcançar as suas metas e reinvindicações, pois todas as revoluções que ocorreram ao longo
da história tinham à sua frente algum líder emblemático, como Lênin na Revolução Russa, Fidel
Castro em Cuba, Evo Morales na Bolívia, etc. (DUSSEL, 2007b, p.17).
Este representante do povo deve ser um genuíno “intelectual orgânico” organizado e capaz
de dar passos estratégicos a curto e a longo prazo. O líder popular não pode ser um político de
profissão, que busca encontrar em tal ofício algum tipo de lucro, mas deve ser aquele que encontra
no exercício político a sua vocação7 e movido por seus ideais e sua responsabilidade ética decide
servir a sua comunidade. O líder ou representante popular firma um acordo onde jura fidelidade
às lutas e reinvindicações do “povo”, exercendo assim aquilo que Dussel chama de “poder
obediencial” (DUSSEL, 2007b, p. 16).
Assim o “povo”, detentor original do poder, precisa manter-se sempre atento e
participativo, pois se o líder que é defendido e assume compromisso com as pautas desse mesmo
“povo” começa a embaralhar o poder com suas vontades próprias ele descaracteriza o governo
popular e deturpa a política, se, por outro lado, mantém-se fiel aos que lhe confiaram o poder,
torna-se instrumento necessário para o desenvolvimento do poder do “povo”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo o artigo foi norteado por um objetivo principal, a saber: diferenciar um Estado
populista de um Estado popular. A análise histórica e semântica promovida por Dussel acerca dos
governos e Estados populistas nos mostram as principais defecções deste modelo, quais sejam, o
apaziguamento das classes sociais e a confusão de povo com nação. Dada a impossibilidade de
perfeição em qualquer modelo de governo, haveria de ser destacada uma categoria que englobasse
todas as pessoas vítimas das imperfeições dos sistemas governamentais.
A categoria capaz de abranger todas as vítimas é o “povo”, que é o detentor original do
poder político. O governo popular se constrói em diálogo e concordância com as reivindicações
deste “povo”, tendo a frente um líder que nunca age a partir de interesses particulares, mas sempre
em prol de uma melhor qualidade de vida do “povo” que lhe concede o poder, tal objetivo é
alcançado através de uma participação mais efetiva do “povo” na própria política.
A noção de povo como portador original do poder, bem como avalizador do poder do
representante político é muito importante quando posta em confronto com a realidade política
vivida no Brasil, onde constantemente a democracia é colocada em xeque. Na perspectiva

7
Tal noção de política como profissão ou vocação é encontrada originalmente num curto excerto de Max Weber
(1864-1920) denominado A política como profissão/vocação, publicado originalmente em 1917.
13

dusseliana somos nós, o “povo” desta nação que devemos nos levantar e decidir quais são os
caminhos que devem ser tomados, a partir do momento que tomamos consciência da própria força,
a máxima “o povo unido jamais será vencido” torna-se real, pois o bloco popular é o dono dos
lugares políticos.
Quando nos damos conta de tudo isso transformamos a realidade. Foi exatamente esta
possibilidade imanente de transformação do mundo num lugar mais justo e inclusivo que me
motivou a produzir este breve excerto, tendo como referência a obra do filósofo Enrique Dussel.

6 REFERÊNCIAS
CASTRO, Fidel. La revolución cubana. Cidade do México: Era, 1975.

DUSSEL, Enrique. Para uma Ética da libertação Latino-Americana. Política. São Paulo:
Edições Loyola, 1982. V. IV.

_______. Filosofia da Libertação. São Paulo: Edições Loyola, 1982b.

_______. Vinte Teses de Política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

_______. Cinco tesis sobre el “populismo”. Cidade do México: Universidad Autonóma


Metropolitana, 2007b. Disponível em: <https://museo-
etnografico.com/pdf/puntodefuga/161116dussel.pdf>. Acesso em 17 mar. 2022.

OLIVEIRA, Jéssica Fernanda Jacinto de. Da Potentia à Potestas: a constituição do poder político
em Enrique Dussel. 2015. 135 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea)
- Universidade Estadual do Oeste do Parana, Toledo, 2015.

SOLÍS, A. F. Hernández. El concepto “pueblo” en la obra de Enrique Dussel. Revista Analéctica,


2015. Disponível em:
<https://arkhoediciones.com/analectica/analectica/index.php/analectica/article/view/40>. Acesso
em 17 mar. 2022.

VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil. 10 de novembro de 1937 a 25 de julho de 1938.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. V. V.

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