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Administração – Princípios e Tendências – Francisco Lacombe – Editora Saraiva 100

SUPLEMENTOS – Cap. 03

A ÉTICA E A ADMINISTRAÇÃO

1. CONCEITUAÇÃO DA ÉTICA

Ética é uma tentativa de separar o certo do errado; um estudo dos juízos


para apreciar a conduta humana do ponto de vista do bem e do mal.

Na vida cotidiana nos deparamos com uma infinidade de problemas como


os seguintes:

1. Devo avisar ao meu chefe que seu subordinado, meu amigo, usa o tempo do
expediente para vender trabalhos artesanais aos colegas?
2. Devo dizer sempre a verdade? Há ocasiões em que é preferível mentir? Quais?
3. Tenho o direito de atirar num suspeito que se aproxima de mim à noite em lugar
perigoso antes de ser agredido?
4. Devo cumprir uma ordem que não me parece eticamente correta, ou é preferível
arriscar meu conceito na empresa, ou mesmo meu emprego?
5. Posso usar no meu produto matérias primas de baixa qualidade, com a
finalidade de baixar o custo, quando o risco de ser descoberto é remoto e os
malefícios aos consumidores pequenos?
6. Posso usar o tempo de expediente na empresa numa situação de emergência
para obter ganhos monetários adicionais?
7. Devo avisar ao chefe que meu colega e amigo não é competente ou “não veste
a camisa” da empresa?
8. Posso empregar um amigo na empresa, mesmo sendo ele competente, mas não
o mais competente para a posição?
9. Posso dar prioridade a investimentos na qualidade do produto em detrimento de
investimentos na segurança dos empregados?
10. Posso usar software pirata?
11. Posso vender sem nota fiscal para assegurar a sobrevivência da empresa e
o emprego de pessoas que me são leais?
12. Posso vender sem nota fiscal para aumentar meus lucros, meus
investimentos e criar novos empregos?

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13. Posso comprar sem nota fiscal para conseguir um abatimento no preço do
produto?
14. Posso promover um subordinado competente, embora não o mais
competente para a posição em tela porque ele me é leal? Porque é meu amigo?
15. Posso distorcer um pouco a verdade para vender um produto quando os
danos para o comprador são muito pequenos?
16. Posso usar na empresa que me emprega atualmente informações
confidenciais que aprendi em emprego anterior e em relação aos quais não
firmei nenhum compromisso de não utilizar em outra organização? Em que
condições?
17. Posso usar na empresa que me emprega atualmente informações
confidenciais que aprendi num emprego anterior se isto for indispensável para a
manutenção do meu emprego?
18. Posso comprar num camelô, que visivelmente não está registrado e não
paga imposto, a fim de obter um preço mais baixo?
19. Posso comprar num camelô, que visivelmente não está registrado e não
paga imposto, para conseguir um produto de que necessito e não posso obtê-lo
de outra forma?
20. Posso avançar o sinal vermelho à noite, em lugar perigoso, quando não
vem nenhum carro na outra direção, mesmo que não haja sinal visível de
perigo?
21. Posso avançar o sinal vermelho de dia, em lugar pouco perigoso, quando
não vem nenhum carro na outra direção e não há pedestres querendo
atravessar a rua?
22. Posso fazer campanha eleitoral por um amigo, que não parece ser bom
candidato, mas vai me favorecer, embora respeitando a legislação?

Todas essas situações são eminentemente práticas e caracterizam


problemas que não afetam apenas a pessoa que as analisa. As respostas não são
simples e, quase sempre, envolvem muitas variáveis e não apenas as que estão
explicitadas na questão. Existem situações ambíguas de julgamento difícil. Nesses
casos, as pessoas têm necessidade de recorrer a princípios e normas que
orientem suas ações. Casos semelhantes podem ter soluções diferentes,
dependendo das variáveis envolvidas.

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“Em situações como estas, os indivíduos se defrontam com a necessidade


de pautar seu comportamento por normas que se julgam apropriadas para definir
ações mais dignas de serem cumpridas. Estas normas são aceitas intimamente e
reconhecidas como obrigatórias: de acordo com elas, os indivíduos compreendem
que têm o dever de agir desta ou daquela maneira. Nestes casos, dizemos que o
homem age moralmente e que neste seu comportamento se evidenciam vários
traços característicos que o diferenciam de outras formas de conduta humana.
Sobre este comportamento, que é o resultado de uma decisão refletida e, por isto,
não puramente espontânea ou natural, as outras pessoas julgam, de acordo
também com normas estabelecidas, e formulam juízos a respeito da pessoa que
agiu desta ou daquela forma.” 121

Nenhuma sociedade pode sobreviver e progredir sem um conjunto de


princípios e normas que defina o tipo de comportamento socialmente aceito
como ético. Desde tempos pré-históricos as sociedades tinham padrões de
comportamento socialmente aceitos como válidos e bons. Moisés precisou do
decálogo para liderar o povo que o seguia. “O homem primitivo sempre viveu com
certas normas consuetudinárias que regulamentavam as relações entre os
indivíduos e a comunidade e, ainda que de forma embrionária, já tinham um
122
caráter moral.”

“O que designa a ética? Não é uma moral, a saber, um conjunto de regras


próprias a uma cultura, mas uma metamoral, uma doutrina se situando além da
moral, uma teoria sobre o bem e o mal, os valores e os julgamentos morais... À
diferença da moral ela enuncia os princípios ou fundamentos últimos. Pela sua
dimensão mais teórica, pela sua vontade de atingir a fonte, a ética se distingue da
moral e detém uma primazia em relação à última... Ela diz respeito à teoria e à
123
fundação, às próprias bases das prescrições ou julgamentos morais.”

124
Luciano Zajdsnajder identifica as seguintes formas de ser ético:
121
SANCHEZ VASQUEZ, A. - Ética - Editora Civilização Brasileira; Rio de Janeiro,1970; pg. 6.
122
SANCHEZ VASQUEZ, Adolfo - Op. cit. - pg. 75.
123
RUSS, Jacqueline - La Pensée Éthique Contemporaine - Presses Universitaires de France; Paris,
1994; pg. 5.
124
ZAJDSZNAJDER, L. - Ser Ético - Editora Gryphus; Rio de Janeiro, 1994; pgs. 137 a 148.

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1. A primeira idéia do ético é o cuidado com o nosso ser e com os outros.


2. A segunda idéia do ético é a consideração das pessoas.
3. A terceira idéia é a da responsabilidade. Esta idéia parte do fato de que nossas
ações têm conseqüências que podemos antever e sobre as quais, diante das
ações que são de nossa escolha, temos responsabilidades. A responsabilidade
tem de ser considerada especialmente em relação a danos ou outros efeitos
negativos de tais ações.
4. A quarta idéia ética é a de limites. São marcos que aparecem impostos às
ações - individuais ou grupais - e que dizem que certas fronteiras não devem ser
ultrapassadas, ou que certos atos devam ser realizados.
5. A quinta idéia é a da veracidade. A idéia de veracidade tem a ver com os
limites, pois se trata de uma obrigação imposta pela realidade. Ser verdadeiro
significa apresentar os fatos como ocorrem ou ocorreram e buscar
interpretações e explicações para suas causas.
6. A sexta idéia ética é a da liberdade. Ela se realiza nas diversas esferas: do
íntimo, do privado e do público.
7. A sétima idéia ética é a da leveza da vida e do festejar da vida. A leveza da vida
significa que ela não pode ser levada inteiramente a sério.

2. AVALIAÇÃO DAS AÇÕES E DECISÕES

Introdução

Entre as muitas abordagens existentes, podemos distinguir duas escolas


principais para avaliação das ações sob o prisma da ética: (a) - o utilitarismo e (b) -
os princípios universais de responsabilidades e obrigações.

O Utilitarismo

O utilitarismo, defendido por Jeremy Bentham e John Stuart Mill, pode ser
resumido no princípio de que a moral se justifica quando os desejos humanos
concordam com seus preceitos e coloca a felicidade como bem supremo a ser
perseguido pela humanidade, reconhecendo a impossibilidade de alcançá-la em

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sua plenitude. De forma simplificada, dizemos que o utilitarismo prega que se
ninguém é prejudicado, a decisão é ética. Extrapolando este princípio, concluímos
que o balanço das boas conseqüências sobre as más é o que conta para a
avaliação ética, i.e., é válido o comportamento que produz o maior bem para o
maior número. Levando isto às últimas conseqüências, justificara-se o hedonismo
como ético, desde que os benefícios obtidos sejam superiores aos malefícios
causados. Não era este o ponto de vista de Bentham e, muito menos, de Mill.

“Mill rejeitou a noção de uma natureza humana fixa e imutável dominada


exclusivamente por desejos egoístas. Em oposição a Bentham e Ricardo,
argumentou que a psicologia moral dos homens era dotada de “espantosa
maleabilidade” e que o auto-interesse estreito nem sempre prevalecia, uma vez
que, para muitos homens, “motivos como a consciência ou a obrigação moral
haviam sido de fundamental importância... Bentham, contestou Mill, perdeu de
vista o elemento moral na constituição humana. Ele “nunca reconheceu o homem
como um ser capaz de desejar, como finalidade em si, a conformidade do seu
próprio caráter ao seu padrão de excelência, sem esperança de benefício ou medo
de dano provindo de qualquer outra fonte que não a sua própria consciência. O
fulcro da posição milliana foi trazer o princípio da perfectibilidade humana para o
centro do palco. Cada indivíduo, acreditava Mill, é dotado de um impulso de auto-
aperfeiçoamento, isto é, de um desejo de tornar-se melhor como pessoa humana e
de uma capacidade crescente de pautar sua conduta à luz de suas próprias
126
deliberações e consciência moral...”

Os princípios universais

A escola dos princípios universais se baseia na existência de valores válidos


em qualquer cultura e situação como a honestidade, a eqüidade, a justiça, o
respeito, a liberdade de consciência, o direito à segurança e o de propriedade. Sob
este enfoque, os princípios tornam-se mais importantes do que suas
conseqüências: se uma ação ou decisão viola um desses princípios ela é antiética,
mesmo que não prejudique ninguém.

MILL, John Stuart - El Utilitarismo - Ed. Cast.: Alianza Editorial; Madrid, 1994.
125

126
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo – Vícios Privados, Benefícios Públicos?: A Ética na
Riqueza das Nações – Companhia das Letras; São Paulo, 1993; pgs. 42 e 45.

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Alguns autores acrescentam uma terceira escola: a da integridade do autor


das ações: se uma pessoa tem bom caráter e boas intenções suas ações são
éticas. Mas se uma pessoa tem bom caráter e boas intenções ela segue os
princípios universais e respeita o próximo e o resultado da análise das ações sob
este prisma não deve diferir do resultado obtido sob o enfoque dos princípios
universais.

O enfoque legal e o enfoque justo

Podemos acrescentar o enfoque legal e o enfoque justo. Sob o enfoque


legal estaremos sendo éticos, se respeitarmos a legislação e os direitos de
liberdade, incluindo o de ir e vir; a integridade física; a propriedade; a privacidade;
o pensamento e a expressão de todos. Sob o enfoque da justiça, teremos
obrigações adicionais, sob o argumento de que nem sempre a legislação é justa,
i.e., nem tudo o que é legal é justo. Além disso, temos vários tipos de justiça
destacando-se a justiça compensatória e a distributiva. A compensatória sustenta
que as pessoas devem ser recompensadas pelos seus esforços e pelos resultados
obtidos, desde que dentro dos limites da legislação e dos valores aceitos pela
sociedade, bem como punidas pelos males que tiverem causado. A distributiva
sustenta que indivíduos que são similares quanto a uma decisão devem ser
tratados similarmente e, além disso, que se deve tentar, na medida do possível,
uma distribuição eqüitativa dos bens disponíveis, i.e., dar às pessoas o que elas
precisam. Estes dois conceitos de justiça com freqüência se chocam e conduzem a
decisões diferentes.

Como avaliar situações ambíguas

Algumas decisões são muito difíceis de avaliar sob o ponto de vista ético por
envolverem ambigüidades. Nestes casos, devemos tentar uma avaliação
considerando as abordagens acima. Existem, porém, alguns princípios que não
admitem ambigüidades. A honestidade é uma dessas qualidades absolutas. “A
honestidade é um princípio que não admite relatividade, ou seja, o indivíduo é ou
não é honesto; não existe o relativamente honesto nem o aproximadamente
honesto. A tolerância não entra nas cogitações nem na fixação de um limite de
honestidade. Não existe também menor ou maior desonestidade, mas

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simplesmente - desonestidade. Não há também desonestidade temporária ou


127
circunstancial, mas unicamente - desonestidade.”

Dubrin fornece o seguinte guia para a análise das decisões sob o ponto de
128
vista da ética:

1. Isto é certo?
2. Isto é justo?
3. Quem será prejudicado?
4. Você ficaria à vontade se os detalhes da sua decisão fossem divulgados na
primeira página do jornal ou pelo correio eletrônico da empresa?
5. Você diria a seus filhos para fazer isto?

Stoner e Freeman identificam o seguinte conjunto de regras morais que


governam os problemas éticos comuns:

1. Cumprimento de promessas.
2. Não prejudicar os outros.
3. Ajuda mútua.
4. Respeito pelas pessoas.
5. Respeito pelas propriedades. 129

3. A QUESTÃO ÉTICA NA ATUALIDADE

Vivemos um período em que o respeito à ética parece ter diminuído. No


entanto, seria ingênuo pensarmos que a ética já constituiu algum dia a base do
comportamento humano de grande parte da sociedade. Em 1919, o filósofo inglês
L. P. Jacks escreveu que “do ponto de vista moral, vivemos ainda na era neolítica,
quer dizer, não somos completamente rudes e, no entanto, ainda não deixamos
para trás o estágio maior da rusticidade de modo a justificar qualquer celebração.”
130

127
LOPES DE SÁ, Antonio - Ética Profissional - Editora Atlas; 2ª edição; Rio de Janeiro,1998; pg.
172.
128
DuBRIN, Andrew J. - Princípios de Administração - 4ª Edição - LTC - Livros Técnicos e
Científicos Editora S.A.; Rio de Janeiro, 1998; pg. 34.
129
STONER, James A.F. and FREEMAN, R. Edward - Administração - 5ª edição; Prentice-Hall do
Brasil; Rio de Janeiro, 1985; pg. 79.
130
JACKS, L. P. Apud GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo - Vícios Privados, Benefícios
Públicos?: A Ética na Riqueza das Nações - Companhia das Letras; São Paulo, 1993; pgs. 27 e 28.

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Conquanto a moral nas várias culturas possa variar, os princípios éticos


básicos deveriam continuar prevalecendo. O final do século XX se caracterizou por
profundas mudanças, não só tecnológicas, mas também ideológicas. As
referências tradicionais que orientavam o comportamento desapareceram e
criaram um vazio que caracterizou esta época. O século XX se notabilizou pela
implantação de sistemas políticos e econômicos baseados em ideologias nas quais
não é mais possível acreditar, pois fracassaram na prática, provocaram guerras,
campos de extermínio e trabalhos forçados e se revelaram utopias fora da
realidade. A morte das ideologias causou a perda de referências para ações e
decisões, bem como um ceticismo em relação a novas idéias no campo
humanístico. Ao mesmo tempo, as tecnologias deram à humanidade poderes
jamais imaginados, permitindo experiências inconcebíveis no século XIX e gerando
receios em relação ao uso inadequado desses poderes. Isto reforçou a aceitação
do neolítico moral. “A tese do neolítico moral baseia-se num conceito negativo. A
ênfase recai no suposto atraso moral dos homens em relação ao progresso
científico, tecnológico e econômico. Temos brinquedos sofisticados, reluzentes e
perigosos nas mãos, mas carecemos da maturidade ética – da capacidade
adequada de escolha e julgamento moral – para tirar deles o melhor proveito ou,
até mesmo, para impedir que terminem nos destruindo. Claramente, trata-se aqui
de uma concepção que olha o que falta. O diagnóstico entre o que é e o que deve
ser baseia-se na identificação de uma ausência, ou seja, daquilo que estaria
supostamente faltando para tornar o mundo um lugar mais digno e aprazível ou, no
131
mínimo, menos perigoso.”

“Vivemos um momento em que as referências tradicionais desapareceram,


em que não sabemos mais exatamente quais podem ser os fundamentos possíveis
de uma teoria ética... Neste momento, em que as ações humanas se revelam
cheias de perigos diversos, fomos mergulhados neste niilismo, esta relação em
relação ao “nada” do qual Nietzsche foi, no século XIX, o profeta e o clínico
inigualável. Que significa o niilismo? Precisamente que todas as referências ou
normas da obrigação se dissipam, que os valores superiores se depreciam. É nele
que se origina a crise atual da ética, nele que entram em gestação os novos

131
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo - Vícios Privados, Benefícios Públicos?: A Ética na
Riqueza das Nações - Companhia das Letras; São Paulo, 1993; pg. 57.

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valores da modernidade. No seio deste vazio se coloca então o problema dos


princípios e os fundamentos da nova forma de agir. Como julgar? Como falar de
erro, de normas éticas, de prescrições? A partir de onde? O essencial nos falta
atualmente. Niilista, o fim do século XX é igualmente marcado pela morte das
ideologias e de grandes discursos totalitários, morte na qual se enraíza a ética do
futuro. Com a incredulidade em relação aos grandes sistemas, nasce a dúvida
axiológica, prelúdio de toda nova formação. Quais são as grandes sínteses do pós-
moderno? As doutrinas do século XVII relativas à emancipação do cidadão, o
pensamento do iluminismo que via na história uma teleologia racional. Quando se
desfaz a concepção de uma história em evolução, quando estão presentes a
desilusão ou a dúvida a respeito de todo projeto global da sociedade, então é
preciso inventar novas normas éticas ou se alçar até o pensamento de
fundamentos inéditos... Quando se dissolvem as ideologias, nascem as formas
contemporâneas do individualismo, propícios à aparição de novas formas de
conduta. O individualismo privilegia o indivíduo em relação à coletividade. Quando
se desfazem os discursos globalisantes no seio de uma modernidade que reprime
o transcendente e as causas finais, é o indivíduo que se faz valor supremo. 132 ”

Lembrando Jacques Monod: “Nenhuma sociedade pode sobreviver sem


um código moral fundado sobre valores compreendidos, aceitos e
respeitados pela maioria dos seus membros. Não temos mais nada disto. As
sociedades modernas poderiam dominar indefinidamente os poderes fantásticos
que lhes deu a ciência sobre o critério de um vago humanismo tingido com um
certo hedonismo otimista e materialista? Poderiam elas, sobre estas bases,
133
resolver suas tensões intoleráveis? Aonde irão elas desmoronar?”

“Vivemos um período em que as referências para julgar e avaliar parecem


ter-se enfraquecido ou se dissolvido. A religião, que já serviu a este propósito, foi
deslocada pela ciência e pela razão e estas perderam, por sua vez uma posição
hegemônica...Diante das novas realidades, a espécie humana encontra a ética não
mais como uma realidade ideal, como uma exigência colocada pelas forças
transcendentes, que assumiam o papel de juízes da vida humana. Passa a vivê-la
132
RUSS, Jacqueline - La Pensée Éthique Contemporaine - Presses Universitaires de France; Paris,
1994; pgs. 8 e seg.
133
MONOD, Jacques - A Ciência e seus Valores - in Por uma Ética do Conhecimento; La
Découverte, pg. 146; Apud RUSS, Jacqueline - Op. Cit. - pg. 14.

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como uma nova realidade, como uma necessidade de um tempo que precisa de
autogoverno e principalmente de um quadro de referência não apenas para os
momentos extremos, mas para o cotidiano, que obriga a tantas decisões e que é
de muitos riscos e incertezas. Nesta hipótese, nos é entregue o desafio de agir
eticamente nas situações comuns, refletir a respeito com freqüência...por desejar
134
uma vida de melhor qualidade.”

Jacqueline Russ relaciona o renascimento contemporâneo dos princípios


clássicos:135

1. O princípio religioso;
2. O princípio da força afirmativa;
3. O princípio da realidade;
4. O princípio da responsabilidade;
5. O princípio da liberdade e da igualdade;
6. O princípio da diferença;
7. O princípio da autodeterminação;
8. O princípio do respeito pela vida.

Os textos acima, embora reconhecendo a necessidade de referências éticas


para as ações humanas, dizem que estas referências reaparecerão a partir da
própria necessidade da vida em comum numa sociedade, mas partem do princípio
de que os princípios éticos e morais desapareceram. Nem todos aceitam este fato.
Diz Paul Valadier: “A moral, dizem, faria um retorno. Alguns ironizam: Jamais os
comportamentos foram tão marcados pelo individualismo, a busca da felicidade
pessoal, a procura do equilíbrio, a recusa das militâncias, o gozo momentâneo. Ou
então, se existe moral, é a do indivíduo que coloca seu êxito em todos os níveis
136
acima de tudo.” Após tecer uma série de considerações sobre este ponto de
vista, o autor conclui: “Aos que pretendem que a moral desapareceu de nossa
sociedade, como aos que clamam que ela faz um retorno forçado, seria preciso
sem dúvida contestar que a moral jamais desapareceu. Quem age num campo
determinado, não faz o que bem entende, mas encontra solicitações de ações ou
de linhas que orientam suas decisões, ou limites inelutáveis. O diretor de uma
134
ZAJDSZNAJDER, Luciano - Ser Ético - Editora Gryphus; Rio de Janeiro, 1994; pgs. 12 a 14.
135
RUSS, Jacqueline - Op. cit. - pgs. 24 a 38.
136
VALADIER, Paul - Inévitable Morale - Éditions du Seuil; Paris, 1990; pg. 15.

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empresa não inventa as regras da competição internacional, nem as exigências


inerentes à produção de tal produto ou tal serviço: ele não recria o direito social,
mas deve se curvar a ele de bom ou mau grado. Quem quer que se decida a agir
numa sociedade encontra normas e tradições preexistentes à sua decisão: elas
trazem orientação de ação e estão cheias de uma sabedoria implícita; sabe-se
graças a elas o que tem chance de êxito ou de fracasso, o que está de acordo com
as maneiras de fazer habituais e o que se descarta. Em resumo: descobre-se o
que convém fazer. Estas conveniências envolvem cada um em toda educação: a
educação passa pela aprendizagem de um modo de agir elementar no que diz
respeito aos comportamentos de polidez, de higiene, das boas maneiras, mas esta
educação se reproduz, desde que as pessoas se tornam ativas, num setor
qualquer da vida social: o que se faz e o que não se faz raramente é formulado
explicitamente, mas o educando descobre um conjunto de regras, aprende com os
mais velhos os hábitos e costumes. Aprende também o que é reconhecido como
“bom”. Este nível é tão importante que Hegel não tinha medo de dizer que
“sabedoria e virtude consistem em viver de acordo com os costumes de seu povo.”
137
Pois estes comportamentos, por um lado, aprendem a evitar a violência
indistinta, garantem a ordem e a harmonia, asseguram que se pode contar com
alta probabilidade de tal comportamento por parte de outra pessoa e subordinam a
fantasia ou o capricho individuais a certas regras, portanto também a valores
necessários à vida do grupo. Considerando de perto a extensão das maneiras de
fazer, assim induzidas, e grandemente esquecidas, ou pretensamente radicais,
percebe-se que, sem sempre o saber, obedecemos assim quase continuamente a
modelos recebidos de comportamento. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que
ninguém vive sua humanidade como tal, ou no estado puro, mas que cada um
assuma os papéis socialmente fixados e mais ou menos bem assumidos. Estes
papéis variam evidentemente de sociedade para sociedade, ou de cultura para
cultura; da mesma forma que evoluem através do tempo...Esta possibilidade de
jogo indica por outro lado que não há jamais uma adequação total entre indivíduo e
sociedade, entre homem e ser socializado, portanto que a socialização supõe uma
138
retomada pela pessoa de seu papel e uma maneira própria de se sujeitar a ele.”
137
HEGEL - La Phénomenologie de l’Ésprit, ch.5: “Certitude et verité de la raison” tr. fr. Ed.
Aubier; Paris, 1939 - pg. 292. Apud VALADIER, Paul - Inévitable Morale - Éditions du Seuil;
Paris, 1990; pg. 175.
138
VALADIER, Paul - Op. cit. - pg. 176.

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O autor prossegue examinando os valores básicos, uma possível hierarquia de


valores, as ambigüidades e a tentação niilista.

4. A ÉTICA NAS EMPRESAS


Por que razão a empresa deveria ser ética? O que ganha com isto? Ações e
decisões éticas têm um custo. Qual o benefício?

Em primeiro lugar, há que se lembrar que os valores materiais não são os


únicos a serem considerados nem mesmo para as empresas. Existem outros
valores como prestígio; respeito do público, dos empregados, dos fornecedores e
dos consumidores; confiança nos produtos e nas decisões da empresa; etc. Todos
estes valores acabam a longo prazo contribuindo para os próprios resultados
financeiros da empresa.

Em segundo lugar, a empresa ética atrai e retém empregados, clientes e


fornecedores éticos e responsáveis. Não se pode esperar lealdade de
empregados, clientes e fornecedores antiéticos. Trata-se de uma “rua de duas
mãos”. Se uma empresa age de forma antiética, não retém empregados éticos, e
de antiéticos pode-se esperar tudo, até roubo, boicote e chantagem. O mesmo
pode ser dito dos clientes e fornecedores.

Em terceiro lugar, há que se considerar não o “sistema” empresa, mas o


“sistema” sociedade, pois uma empresa não terá como prosperar solidamente
numa sociedade antiética e rota, e a contribuição que a empresa dá para a
formação da sociedade na qual opera reflete-se, de alguma forma, a longo prazo,
na própria empresa. Vale a firmação de Keith Davis: “há uma férrea lei de
responsabilidade afirmando que, a longo prazo, quem não usa o poder de um
139
modo que a sociedade considere responsável tende a perdê-lo.”

O que seria uma empresa ética? “A empresa ética é definida, pelos nossos
padrões, como aquela que conquistou o respeito e a confiança de seus
empregados, clientes, fornecedores, investidores e outros, estabelecendo um

139
DAVIS, Keith - Corporate Responsibility - in “Contemporary Management”; Prentice-Hall;
Englewood Cliffs, N.J., 1974; Apud STONER, James A.F. and FREEMAN, R. Edward -
Administração - 5ª edição; Prentice-Hall do Brasil; Rio de Janeiro, 1985; pg. 73.

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equilíbrio aceitável entre seus interesses econômicos e os interesses de todas as


140
partes afetadas, quando toma decisões ou empreende ações.”

Até onde vão as obrigações éticas das empresas?

Num extremo situa-se a posição de Milton Friedman: “Há uma, e apenas


uma, responsabilidade social das empresas: usar seus recursos e sua energia em
atividades destinadas a aumentar seus lucros, contanto que obedeçam às regras
do jogo e participem de uma competição aberta e livre, sem enganos e fraudes . A
intervenção governamental é freqüentemente indesejável. As autoridades
burocráticas, responsáveis pela implementação de programas, têm, na verdade,
pouco incentivo para resolver os problemas para os quais suas organizações foram
criadas. Um sistema com muitos benefícios governamentais desencoraja o
trabalho. Deve-se dar mais liberdade a cada indivíduo para tomar suas próprias
decisões econômicas. Esta liberdade levará a menos desperdício e maior
produtividade.”141 Os que adotam esta forma de pensamento argumentam que a
melhor forma de ajudar o próximo é aumentar a produção e os lucros, para que
possa haver mais investimentos, mais empregos, mais trabalho e mais consumo
por parte de todos. Dizem ainda que as empresas são socialmente responsáveis
quando cumprem seus interesses econômicos dentro da lei e que a tentativa de
atingir metas sociais dilui o objetivo básico da empresa: a produtividade
econômica. Finalmente, argumentam que os executivos de empresas não
costumam ter o perfil mais adequado para tratar de assuntos sociais.

No outro extremo, estão os autores que argumentam que sobre toda


propriedade pesa uma hipoteca social, que não é suficiente cumprir todas as
“regras do jogo” impostas pela legislação e pelos princípios éticos universais e que
cabe aos mais afortunados ajudar os mais pobres, não apenas reinvestindo e
proporcionando mais empregos e trabalhos, mas também beneficiando os mais
pobres com alguma forma de assistência direta. Acrescentam que a colaboração
na solução dos problemas sociais ajuda a melhorar a imagem da empresa e
permite um relacionamento melhor com a comunidade. Argumentam que as
empresas possuem grande poder na sociedade e quando o poder é maior que a
140
AGUILAR, Francis - A Ética nas Empresas - Jorge Zahar Editor; Rio de Janeiro, 1996; pg. 26.
141
FRIEDMAN, Milton - Capitalism and Freedom - University of Chicago Press; Chicago, 1963;
pg. 133; Apud STONER, James A.F. and FREEMAN, R. Edward - Administração - 5ª edição;
Prentice-Hall do Brasil; Rio de Janeiro, 1985; pg. 73.

112
Administração – Princípios e Tendências – Francisco Lacombe – Editora Saraiva 113
SUPLEMENTOS – Cap. 03

responsabilidade, este desequilíbrio pode estimular o comportamento


irresponsável, contrário ao bem comum.

A conclusão de consenso a que podemos chegar é no sentido de que o


poder gera responsabilidade no seu uso. E responsabilidade gera obrigações em
relação a todos os que se relacionam com a organização detentora do poder.
Podemos, então, nos perguntar que obrigações tem a empresa em relação a seus
fornecedores, seus clientes, seus acionistas, seus empregados e suas famílias e a
todos os seus “stakeholders” externos.

Como passar dos princípios para a prática? Nenhuma empresa pode ser
ética se a alta administração da empresa não transmite uma cultura baseada em
premissas éticas. O ponto de partida é, portanto, a vontade da alta administração
de estabelecer objetivos, políticas, normas e padrões éticos a serem adotados pela
empresa. Algumas chegam a definir e divulgar um código de ética a ser seguido
por todos os que dirigem e trabalham na empresa, mas se há um código
explícito terá que ser obedecido.

Partindo destes princípios, será indispensável recrutar e selecionar


empregados que estejam de acordo com esta cultura ética espelhada na cultura da
empresa e treiná-los para que se comportem de acordo com os padrões da
empresa. Será necessário que as decisões sejam calcadas nestes princípios e
valores.

Se, a longo prazo, a postura ética tende a beneficiar a empresa, por que
esta postura nem sempre é seguida?

Primeiro, há que se considerar que as organizações têm muita semelhança


com os organismos vivos e, em conseqüência, colocam sua sobrevivência acima
de tudo. Se uma empresa perde a competitividade se se comportar de forma ética,
ela pode “apelar” para ações antiéticas para assegurar sua sobrevivência. Isto é
certamente perigoso, pois, cedo ou tarde, as conseqüências negativas aparecem.

Segundo, da mesma forma que as pessoas, existem organizações que


privilegiam o curto prazo, sem se importar com o futuro. Procuram maximizar os
ganhos imediatos. Estão hipotecando o futuro em benefício de uma situação mais
favorável no presente.

113
Administração – Princípios e Tendências – Francisco Lacombe – Editora Saraiva 114
SUPLEMENTOS – Cap. 03

Finalmente, temos que considerar que são os pequenos deslizes que levam
aos grandes, como demonstrou o Padre Antônio Vieira no século XVII na sua obra
A Arte de Furtar. Muitas pessoas ou empresas, aparentemente éticas, acham que,
num momento de pressão, será válido cometer um pequeno deslize, esquecendo-
se das conseqüências que isto pode acarretar no futuro. É possível, às vezes,
superar o problema, mas existem riscos.

Dois casos ilustram as vantagens a longo prazo de uma postura ética:

1- Um grupo empresarial brasileiro decidiu jamais subornar fiscais para não


lavrarem multas. Como o grupo empresarial tinha grande preocupação ética,
sempre havia alguma forma de se defender judicialmente das penalidades
aplicadas, o que era feito sistematicamente, com resultados positivos na maioria
dos casos. A longo prazo, o número de “fiscais” que visitavam as empresas do
grupo caiu drasticamente, resultando num benefício para todo o grupo empresarial.

2- Uma das empresas mais reconhecidas internacionalmente pela sua


postura ética é a Johnson & Johnson. Quando teve que enfrentar a crise
provocada por um psicopata que envenenou cápsulas de Tylenol, teve a atitude
que seria esperável por parte de uma empresa com o seu nome: recolheu todos os
comprimidos existentes no mercado, incinerou-os, passou a utilizar uma
embalagem de violação muito complicada e, meses depois, com intensa campanha
publicitária, relançou o produto que voltou a ser um dos mais lucrativos para a
empresa.

Se para uma empresa é importante um comportamento ético, com maior


razão isto se torna vital para o profissional. O profissional vive do seu nome.
“Ninguém, construindo um nome, deve abdicar do direito de defendê-lo, pois não é
só sua pessoa que está em jogo, mas também a imaterialidade de seu conceito. É
142
dever ético proteger um nome profissional.”

LOPES DE SÁ, Antonio - Ética Profissional - Editora Atlas; 2ª edição; Rio de Janeiro, 1998; pg.
142

125.

114
Administração – Princípios e Tendências – Francisco Lacombe – Editora Saraiva 115
SUPLEMENTOS – Cap. 03

De especial importância é a Sondagem Sobre Valores Éticos, conduzida


pelo professor Hermano Roberto Thiry-Cherques, da F.G.V., cujas conclusões a
143
seguir sumarizamos:

“A Sondagem Sobre Valores Éticos é parte integrante dos estudos, iniciados


em 1990, relativos à condição de possibilidade de sobrevivência das organizações.
Ao longo desses trabalhos, foram detectados dois comportamentos extremos,
atribuíveis à simples necessidade, ou vontade, das organizações continuarem
existindo:

1. Uma busca constante por aumento da produtividade, principalmente da


produtividade administrativa e,
2. A adoção de práticas não compatíveis com o código de conduta ética
prevalecente ou declarado.

“Nenhuma das condições de sobrevivência encontradas se situa em um


desses extremos. Os exemplos reais se localizam entre os casos limites. Também
não foram comprovadas evidências de que uma produtividade maior signifique
necessariamente um comportamento ético, intra ou interorganizacional, mais de
acordo com as normas de conduta vigentes, embora seja esta a tendência
revelada em investigações preliminares.

“As pesquisas referentes à produtividade administrativa evidenciaram outras


questões sobre a conduta ética, induzindo a pensar em estreita relação entre o
fenômeno moral e o administrativo... Em nosso meio, e, talvez, com intensidade
diversa em todas as sociedades, coexistem várias éticas, ou seja, diversos códigos
de conduta moral. No trato diário com a problemática da administração e dos
negócios, esta diversidade aparenta obedecer a seguinte ordem:

1. Um código moral para uso íntimo e outro para uso público.


2. Um código administrativo, i.e., interno à organização, e outro de negócios, que
rege a conduta externa à organização.
3. Um código moral do dirigente e outro do funcionário, com as exigências comuns
aos ritos de passagem no processo de ascensão funcional.

143
THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto - Sondagem Sobre Valores Éticos - Pesquisa
mimeografada da Fundação Getúlio Vargas; Rio de Janeiro, 1993.

115
Administração – Princípios e Tendências – Francisco Lacombe – Editora Saraiva 116
SUPLEMENTOS – Cap. 03

4. Variações de código segundo idade, sexo, formação e área de atuação da


empresa ou agência governamental.

“Em muitos pontos a sondagem atingiu seus objetivos. Principalmente ao


surpreender, ao desmistificar, ao traçar um perfil ético distinto daquele que, em
geral, se tem como estabelecido. As diferenças de convicção moral entre os níveis
de formação, entre os níveis de responsabilidade funcional, entre o tamanho e as
áreas de atuação das organizações são muito menores do que se supunha
originalmente. A tolerância, a compreensão para com as falhas morais, para com o
desrespeito à norma estabelecida, são muito maiores do que se previa. Ao
contrário do que se esperava, a demanda pela adesão às normas nas relações
internas das empresas é muito pequena. Simplesmente porque estas normas não
existem, ou, pelo menos, não são claras. Tanto que o maior índice obtido, quase o
consenso, foi o de que as organizações deveriam estabelecer códigos de conduta.

“As principais razões apontadas para quebra do código de ética pelas


empresas foram:

1. Excessos de controle do governo;


2. Necessidade de sobrevivência em uma economia em recessão;
3. Um “hábito” nacional de muitos anos;
4. Ser mais barato pagar propinas a funcionários públicos do que atuar dentro das
normas.

“De forma geral:

A sobrevivência da organização é colocada acima do princípio moral, o qual


costuma ser colocado como condição de sobrevivência da sociedade.

De modo que poderíamos dizer que:

A sobrevivência na sociedade é colocada acima da sobrevivência da


sociedade.
“Trata-se, de fato, de um entendimento de sobrevivência básica, não
derivada de uma suposta tendência para obter vantagens, tanto que somente 6,6%
atribuíram a corrupção a vantagens econômicas ou facilidades.

116
Administração – Princípios e Tendências – Francisco Lacombe – Editora Saraiva 117
SUPLEMENTOS – Cap. 03

“A justificativa da sobrevivência, que talvez nem seja uma justificativa, mas


uma constatação - basta considerar o emaranhado dos controles e tributos
governamentais, que podem ser muitos ou poucos, mas, que, sem dúvida, são
confusos - foi a majoritária durante a etapa de entrevistas. Provavelmente porque a
relação entre a transgressão e o hábito seja mais difícil de ser manifestada
publicamente. Para a maioria, o importante, parece, é que a organização
sobreviva, mesmo que seu produto/serviço, a sua razão de ser não a justifiquem,
isto é, que seja desnecessária, ou que não encontre mercado.

“Em relação à convivência na organização, foi detectado que o importante é,


pela ordem:

1. Dignidade no tratamento dos empregados;


2. Bem estar dos empregados;
3. Respeito às normas;
4. Lealdade com os empregados;
5. Remuneração de acordo com o mercado;
6. Igualdade entre empregados e patrões.”

O trabalho do Prof. Thiry-Cherques, conduzido de acordo com elevados


padrões técnicos e de seriedade, mostra a importância atribuída pelas
organizações à sua sobrevivência, da mesma forma que os organismos. O Prof.
Giannetti da Fonseca ressalta: “A sobrevivência, é verdade, é condição para tudo o
mais. Mas, sem ética, a própria sobrevivência fica comprometida. Sem ela, não há
144
ordem social, paz ou “comida” – há desagregação, guerra e fome.”

Por outro lado, se existem tantas organizações que dizem que gostariam de
ser éticas, mas não conseguem sê-lo sem por em risco a sua sobrevivência, temos
que admitir que é preciso fazer algo para lhes dar condições de operarem de forma
ética sem este risco. Provavelmente, eles não têm condições de cumprir a
legislação e por isto não se consideram éticos. O problema pode estar no custo da
legalidade. “Na América Latina, o custo da legalidade está muito acima da renda
da população, e aí reside o problema. O custo da lei deve ser proporcional à

144
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo – Vícios Privados, Benefícios Públicos?: A Ética na
Riqueza das Nações – Companhia das Letras; São Paulo, 1993; pg. 95.

117
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SUPLEMENTOS – Cap. 03

situação econômica de cada país”. 145 Neste sentido, um trabalho de três


professores da Flórida 146 sobre o comportamento ético nas empresas, concluiu
que: “os resultados indicam que as pessoas sempre agirão com menos ética
quando as conseqüências pessoais forem maiores. Essa resposta demonstra que
aqueles que antes não tomariam nem perdoariam uma atitude menos ética
efetivamente passam a agir em interesse próprio quando a situação o exige. Essa
descoberta pode ser de grande importância para explicar o comportamento ético,
já que tende a sustentar a teoria de que os indivíduos se deslocam para cima e
para baixo numa escala que vai do puro egoísmo ao puro altruísmo. A pesquisa
tende, portanto, a confirmar a noção de que, independente da força do
posicionamento ético, certas circunstâncias podem precipitar mudanças no
comportamento ético. Essa percepção torna-se particularmente importante na
medida em que as organizações tentam entender as razões e os motivos do
comportamento dos funcionários em situações de tomada de decisão e serve de
base para o desenvolvimento de outros estudos que aprofundem o tema.”

145
GHERSI, Enrique – A Corrupção como conseqüência – in Think Tank; Junho de 2000, pg. 22 e
seg.; Instituto Liberal.
146
HOFFMAN, James J.; COUCH, Grantham & LAMONT, Bruce T. – A Teoria da Relatividade
da Ética – in HSM Management; nov-dez, 1999; pgs. 142 e seg.

118
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SUPLEMENTOS – Cap. 03

5. A ÉTICA E O DESENVOLVIMENTO
Mesmo usando o termo desenvolvimento no seu contexto mais restrito, de
desenvolvimento econômico, a ética traz amplas vantagens para a sociedade.

Já dissemos que nenhuma sociedade pode sobreviver e progredir sem um


conjunto de princípios e normas que defina o tipo de comportamento socialmente
aceito como ético. Podemos nos perguntar até que ponto a ética influi no
desenvolvimento. Este assunto foi brilhantemente abordado por Eduardo Giannetti
no seu livro: Vícios Privados, Benefícios Públicos? As afirmações são dele: “O que
garante a coesão interna de um agrupamento humano e impede que ele se
desmanche ou degenere em caos e guerra? Uma resposta freqüente na história
das idéias é a noção de que a vida comunitária humana – e conseqüentemente
todas as fabulosas vantagens que ele proporciona – tem como pré-requisito
indispensável a obediência dos indivíduos a certas normas de comportamento
sustentadas por sanções de aplicação geral. Enquanto exigência da vida
comunitária, a conduta moral seria antes de mais nada algo de enorme interesse
prático para o homem... Mesmo que não possua quaisquer qualidades morais, o
civilizado precisa ao menos aparentar possuí-las. Deixar de fazê-lo seria loucura.
147
Significaria a proscrição da vida comunitária, o isolamento e a autodestruição.”

Sempre se soube o que John Stuart Mill registrou: “nem agora, nem em
épocas anteriores, as nações detentoras do melhor clima e do melhor solo têm
148
sido as mais ricas ou poderosas.” Toynbee comprovou que condições naturais
favoráveis não geram progresso, que as civilizações que prosperaram foram
aquelas que enfrentaram desafios para o seu desenvolvimento e que: “o sucesso
parece que torna as pessoas acomodadas ou convencidas. Coletei uma série de
149
exemplos notáveis para mostrar como isto realmente acontece.” “Os
147
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo – Vícios Privados, Benefícios Públicos?: A Ética na
Riqueza das Nações – Companhia das Letras; São Paulo, 1993; pgs. 60 e 64.
148
MILL, John Stuart – Principles – Apud: GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo – Op. cit. – pg.
172.
149
TOYNBEE, Arnold – A Study of History – Weathervane Books; New York, 1972; pg. 141.

119
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SUPLEMENTOS – Cap. 03

historiadores portugueses há muito tempo têm debatido se o descobrimento das


riquezas minerais no Brasil foi uma vantagem ou desvantagem. Em 1711, o
cronista jesuíta Antonil deu seu ponto de vista no sentido de que “nenhuma pessoa
prudente pode deixar de admitir que Deus permitiu a descoberta de tantas minas
de ouro de modo a punir o Brasil com isto”. A abundância de ouro e diamantes sem
dúvida ajudou a financiar um padrão de vida (inclusive a pródiga construção de
igrejas), que de outra forma Portugal não poderia usufruir no século XVIII.
Fortificado pelo ouro do Brasil, Portugal pôde ignorar com impunidade, ao menos
durante algum tempo, a transição econômica para o moderno mundo industrial que
estava ocorrendo na Europa ocidental.” 150

“A simples maximização do auto-interesse individual, sem inibições e


preocupações morais, é um princípio de conduta inadequado – e com freqüência
letal – tanto para o bom desempenho da economia como para a própria existência
do mercado enquanto mecanismo de coordenação econômica... Tanto nas
relações horizontais de mercado como na vida interna das organizações
hierárquicas da sociedade (famílias, escolas, empresas, associações profissionais,
sindicatos, universidades, partidos, igrejas e governo), a presença de valores e
normas que de algum modo filtrem o auto-interesse, separando o desejado pelos
151
indivíduos do desejável para o grupo, é fundamental. A ética conta.”

O inglês William Petty fez um estudo sobre o progresso da Holanda no


século XVII e, “entre as causas da prosperidade holandesa, Petty destacou a
presença de grande contingente de refugiados religiosos naquele país: “homens
que são na sua maioria previdentes e sóbrios, e tais que acreditam que o trabalho
152
e a diligência são os seus deveres em relação a Deus.”

“Weber vai direto ao ponto: o predomínio universal da absoluta


inescrupulosidade na busca de interesses egoístas pela via da obtenção de
dinheiro tem sido uma característica específica precisamente daqueles
países cujo desenvolvimento burguês-capitalista, medido de acordo com os
padrões ocidentais, permanece atrasado.” 153

150
SKIDMORE, Thomas – Brazil: Five Centuries of Change – Oxford University Press, 1999; pgs.
21 e 22.
151
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo – Op. cit. – pgs. 144 e 154.
152
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo – Op. cit. – pg. 155.
153
Idem – pg. 155.

120
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SUPLEMENTOS – Cap. 03

“O que aconteceria se um sistema econômico se visse às voltas com a


progressiva erosão da sua base ética, ou seja, dos recursos morais que sustentam
e lubrificam a atividade produtiva? Quais seriam as conseqüências para a
economia de um eventual “choque adverso” de oportunismo, egoísmo e
154
corrupção?” A resposta nos é dada pelo escocês John Macdonnel em 1871:
“Onde quer que haja uma grande provisão de riqueza existe um povo vivendo em
larga medida sob a influência da moral e possuindo um código de dever mais ou
menos acurado... Para começar com a educação moral, e para apreciar sua
influência sobre a riqueza pela magnitude das conseqüências da sua ausência,
considere o que ocorreria se os homens fossem bem menos confiáveis do que são
– se os trabalhadores cumprissem suas tarefas apenas sob estrita vigilância, se os
patrões fossem escorregadios em suas promessas e os clientes estivessem
sempre prontos a trapacear e atrasar suas dívidas – se aquilo que um moralista
chamou de “fé na vida comum” fosse menos prevalecente. Ou, para tornar a
importância da educação moral ainda mais patente, suponha que este estado de
coisas fosse geral, qual a conseqüência? O comércio abandonaria nosso litoral
com mais certeza do que se ele fosse devastado pela guerra. Se isso fosse levado
ao limite extremo, como supomos, esse carnaval de vício dissolveria a própria
155
sociedade.”

6. CONCLUSÃO: REALISMO DA
ADMINISTRAÇÃO

Idem – pg. 173.


154

155
MACDONNEL – A Survey of Political Economy; Apud GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo
– Op. cit. – pg. 174.

121
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SUPLEMENTOS – Cap. 03

Contribuição especial do prof. Tarcísio Meirelles Padilha Junior

A globalização da economia e da produção em curso no limiar do terceiro


milênio, ao que tudo indica, conduzirá a uma definição razoavelmente clara do que
são virtudes e vícios na administração dos negócios em geral.

Tudo sugere que o mundo cada vez mais caminhará balizado pelos
conceitos de individualismo (pluralismo de idéias e atitudes, oportunidades iguais
dadas a todos os jogadores), direitos civis (prerrogativas civis inalienáveis dos
cidadãos), competição (força fundamental que garante o equilíbrio econômico e a
satisfação das necessidades), estado pequeno (governo compacto, fiscalizador
eficiente e rigoroso, cuja interferência na vida cotidiana do país acontece como
exceção e não como regra), justiça ágil (solução rápida das disputas e utilização
de contrato entre as partes como forma de selar acordos) e especialização
científica (universalização do ensino, de um lado, e formação de especialistas nas
diversas áreas do conhecimento, de outro).

Isto é: a teoria universalista em administração de negócios, segundo a qual


as melhores técnicas de gerenciamento podem e devem ser aplicadas em
qualquer companhia de qualquer país está outra vez em voga.

Ao lado do individualismo, por exemplo, é bem possível que tenhamos o


conceito de comunitarismo: um senso maior de grupo, uma percepção mais clara
de que fazemos parte de um conjunto e de que não há como construir e manter
um nível desejável de satisfação individual em um ambiente coletivo roto. Ao
lado da consciência dos direitos civis, é provável que encaremos como maior
responsabilidade nossos deveres e percebamos que as prerrogativas de todos
serão tanto maiores quanto maior for a correção no cumprimento das
obrigações de cada um. Ao lado de competição, mecanismo fundamental para
que economias em desenvolvimento cresçam, reduzindo os custos de produção e
os preços e aumentando os salários e a qualidade dos produtos, é possível que se

122
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SUPLEMENTOS – Cap. 03

cultue também a idéia de cooperação. Tal idéia não apenas permite a formação
de equipes de trabalho eficazes, como também gera no médio prazo
sociedades mais solidárias e justas.

É possível também que a especialização científica deixe de implicar a


formação de imbecis competentes, que não têm a mínima idéia do todo e de como
o seu trabalho contribui para o progresso do ambiente em que se inserem. Talvez
a grande meta da educação no próximo século venha a ser a formação de
cientistas, técnicos e profissionais que, ao lado da profundidade de seus
conhecimentos específicos, tenham a largueza de uma visão generalista do
mundo. Com isto, aflora a importância dada aos resultados de longo prazo, em
detrimento do curto prazo, e um maior comprometimento das organizações e
empresas com o bem estar da comunidade que as acolhe.

123

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