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Corpo e sexualidade: sobre a temática antropológica1

Marina D. Cardoso2

Tendo como temas principais os modos como o corpo e a sexualidade são pensados nas
sociedades tribais, este texto procura, a partir de alguns autores clássicos do pensamento antropológico,
fazer o mapeamento dessa problemática (pois, de fato, os “dois” temas “vêm juntos”), por meio tanto
da literatura antropológica mais geral quanto dos trabalhos realizados dentre algumas sociedades
indígenas brasileiras. Trata-se, assim, não de fornecer uma revisão extensiva da literatura sobre esse(s)
tema(s), mas de apontar princípios teóricos gerais que permitam pensá-lo(s) como fenômeno(s)
sociológico(s).
Parte-se do corpo, do modo como por meio das “técnicas corporais” está, de fato, a sociedade,
regulamentando o seu “uso” e a sua “formação”, para pensar a relação entre esta e o individuo,
mostrando, entretanto, que essa relação constitui-se não somente pela socialização padronizada dos
comportamentos, mas, prioritariamente, pelas correspondências estruturais entre os planos da
significação do corpo (e dos seus processos fisiológicos) e o plano sociológico propriamente dito, por
meio de categorias nativas de substancialização (referentes aos “fluidos corporais”, particularmente,
sangue e sêmen), e dos processos e rituais de filiação e nomeação da pessoa.
Por essa via, nos é possível apreender tanto as concepções nativas referentes a sexualidade e
reprodução (pensadas que estão por meio da lógica de “troca” das substâncias corporais relativas aos
gêneros), quanto compreender a sua importância para a operacionalização lógica dos sistemas de
parentesco, que constituem os modelos formais por meio dos quais as relações sociais são ordenadas
nessas sociedades. Sugere-se, ao final, que as noções correspondentes de corpo/sexualidade/pessoa
constituem também a base para a compreensão das concepções nativas referentes a doença e processos
terapêuticos, potencialmente úteis para a formulação de programas de atenção à saúde junto a essas
populações, que teriam que necessariamente relativizar suas próprias concepções e categorias
biomédicas para a eficácia pretendida dos projetos de intervenção/prevenção previstos.

***

1
Texto preparado para o Programa DST/AIDS do Ministério da Saúde, Brasília (DF).
2
Professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de São Carlos- SP.

1
Publicado originalmente em 1936 (a partir de uma Comunicação apresentada à Societé de
Psychologie em 1934), o texto “As técnicas corporais” de Marcel Mauss, é ainda um dos grandes textos
clássicos do pensamento antropológico contemporâneo, justamente porque, nas palavras de seu mais
expoente comentador, Lévi-Strauss, “a mesma preocupação, que domina a etnologia contemporânea,
da relação entre grupo e indivíduo, inspira ainda a comunicação sobre as técnicas corporais (…)”
[Lévi-Strauss, 1974 : 2 (1950)].
De uma concisão quase esquemática, nele encontram-se formulações cujos limites entre a
obviedade e a sutileza são tênues, principalmente para um leitor menos atento, e, talvez, exatamente,
porque a natureza desses limites é ser tênue, espaços dos “terrenos baldios”, como o próprio Mauss
refere-se ao tema, mas observando que são nesses espaços que se deve penetrar pois, de algum modo,
neles há “verdades a descobrir” [Mauss, 1974a : 211-212 (1936)]. De início, já há uma definição sobre
técnicas corporais: “Entendo por essa palavra as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e
de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos” (Id. Ibid. : 211). Técnicas de natação, marchas
militares, posições da mão ao caminhar, constituem hábitus, cuja natureza é social, “fatos da
educação”, série de movimentos compostos, ordenados, imitados, autorizados e apreendidos, “atos
tradicionais eficazes”, que traduzem uma tríplice consideração: física, psicológica e sociológica, o
“homem total” maussiano (Id. Ibid. : 215).
Sob esse aspecto, Mauss já introduzia nesse texto princípios sociológicos fundamentais: a
natureza coletiva e eminentemente simbólica dessas técnicas, que incidiam, não por acaso, sobre o
corpo: nas suas próprias palavras, “(…) o primeiro e o mais natural instrumento do homem” (Id. Ibid. :
217), objeto técnico, mas também meio técnico do homem, suporte de representações e práticas sociais
diversas para a sua adequação ou adaptação à um fim, sociologicamente dado3.
Mesmo apontando para a tríplice relação entre os fatores físicos, psicológicos e sociológicos
presentes na formação das técnicas corporais, é a subordinação dos dois primeiros fatores ao plano
sociológico que Mauss revela, ao apontar o modo como, por meio dessas técnicas e do seu
aprendizado, a sociedade, ou a “autoridade social”, segundo seus próprios termos, ordena e “monta”
seqüencialmente nos indivíduos os seus atos e movimentos de acordo com a sua própria lógica e os
seus fins.
Tal formulação não pretende desconsiderar os fatores biológicas ou psíquicos, mas aponta para
o fato de que, nos seres humanos, o desenvolvimento bio-psicológico está sujeito à sua ordenação (pela

3
O autor chega mesmo a esboçar um princípio de classificação das técnicas corporais, segundo gênero, idade, rendimento,
formas de transmissão, e enumerar as várias técnicas susceptíveis de investigação: técnicas do nascimento e obstetrícia,
infância, adolescência, idade adulta (sono, vigília, repouso, atividade, movimento, corrida, dança, salto, escalar, descer,
natação, segurar, etc.), cuidados corporais, consumo, comer, beber, e reprodução [Mauss, 1974a (1936)].

2
“montagem seqüencial” de movimentos e atos) no plano da cultura, que lhe oferece o modo para tal e a
sua significação. Leis biológicas ou de desenvolvimento psíquico “próprias” não estariam, sob esse
aspecto, isentas da forma cultural sob a qual elas se processam e são significadas. Lévi-Strauss, por
exemplo, em dois textos que tratam da cura xamânica, “O feiticeiro e sua magia” e a “A eficácia
simbólica” [Lévi-Strauss, 1975a (1949); 1975b (1949), respectivamente], demonstra como o ato
terapêutico atua sob dois pontos principais: o consenso coletivo e o processo de ordenação e
significação da experiência do doente, operado pelo xamã no contexto das crenças do grupo, que
integra com lógica e sentido essa experiência ao campo das experiências formuláveis e publicamente
reconhecidas, ao fornecer-lhes uma linguagem para sua expressão.
Também, o papel das instituições culturais sobre a formação dos indivíduos foi marcadamente
um campo de pesquisas desenvolvido pela escola norte-americana conhecida como “Cultura e
personalidade”. Dois de seus expoentes principais, Ruth Benedict e Margaret Mead dedicaram-se a
demonstrar o modo como a cultura “molda” o comportamento dos indivíduos, definindo “tipos ideais”
de comportamento (Benedict, s.d.), ou mostrando a relação entre as instituições sociais, as formas de
criação das crianças e os ritos de passagem que tenderiam a assegurar que homens e mulheres adultos
reproduzissem os valores e os modos de vida de suas respectivas culturas e das próprias organizações
sociais das quais eram membros. Termos como sociedades “apolíneas” (povos do Novo México, Zuni)
ou “dionisíacas” (povos da costa noroeste norte-americana, Kwakiult) tornaram-se tanto categorias
referentes, quanto criticadas, inclusive pelo seu pendor em definir noções problemáticas como “tipos
modais” ou “caráter nacional”.
Mead [1979 (1936)], no caso, estava particularmente preocupada em demonstrar que os papéis
e atributos de gênero não eram dados “naturais”, intrínsecos à natureza masculina ou feminina, mas, ao
contrário, eram construtos sociais, qualidades ou “temperamentos” selecionados pela cultura dentro de
um determinado campo de possibilidades, reforçados por práticas cotidianas de relações, criação e
educação, legitimamente reproduzidas dentro e para a manutenção de suas respectivas organizações
sociais: se os ternos Arapesh da Nova Guiné padronizavam a personalidade entre os gêneros,
promovendo a cooperação, para promoverem uma sociedade essencialmente “maternal, nutritiva e
orientada para fora do eu, em direção às necessidades da geração seguinte” (Id. Ibid. : 41), os seus
vizinhos habitantes do rio, os Mundugumor, mesmo concebendo um mesmo padrão de personalidade
tanto para homens quanto para mulheres, o faziam na direção oposta: ressaltavam a rivalidade, a
agressividade e a competitividade como qualidades primordiais para ambos os gêneros. Os Tchambuli,
em compensação, diferenciavam as personalidades de homens e mulheres, mas de forma oposta, por
exemplo, ao padrão norte-americano: aqui, os homens tinham os atributos da vaidade estética, certa
3
frivolidade e dependência emocional, enquanto que as mulheres detinham o controle e o domínio
administrativo da organização social.
Lévi-Strauss [1974 (1950)] comenta a esse respeito, que a contribuição dessa escola ao
problema da relação indivíduo-sociedade ou da integração cultural, por meio do foco sobre os
mecanismos institucionais pelos quais o grupo “molda” os seus membros à sua forma, limitou-se “a
definir um sistema de correlações entre a cultura do grupo e o psiquismo individual” (Id. Ibid. : 6), que
tende a encerrar-se em um círculo vicioso sobre a primazia de cada fator (modalidades das
personalidades particulares de seus membros versus organização institucional). Para o autor: “O debate
não tem saída, a menos que se perceba que as duas ordens não estão em relação de causa e efeito (seja
qual for, aliás, a posição respectiva que se atribua a cada uma), mas que a formulação psicológica é
apenas uma tradução, no plano do psiquismo individual, de uma estrutura propriamente sociológica”
(Id. Ibid. : 7). O que, antes de mais nada, não postula uma sobredeterminação de uma ordem de fatores
sobre a outra, mas a sua complementaridade, pela correlação intrínseca entre os fenômenos
psicológicos (que teriam uma natureza sociológica) e os fenômenos sociológicos (passíveis de serem
apreendidos no plano do psiquismo individual que não os reflete ou, menos ainda, os prefigura, como
alerta o autor, mas são susceptíveis de apresentarem uma identidade de natureza simbólica e estrutural).
Ou seja, são dados nos planos dos sistemas simbólicos que informam tanto as condutas pessoais quanto
a estrutura das relações sociais nas quais estas se inscrevem.
Talvez esse ponto possa ficar mais claro, exatamente retomando ao tema inicial, agora a partir
de Hertz (1977)4. O texto de Hertz, “A proeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade
religiosa”, constitui um marco de passagem, mesmo que a revelia, entre duas escolas de pensamento: a
primeira, representada por Mauss, sob a influência de Durkheim (apesar do reconhecimento, já referido
pelos comentadores da sua obra, sobre a “originalidade flagrante” do seu pensamento em relação ao
último), e, a segunda, pelo estruturalismo de Lévi-Strauss.
Hertz nos apresenta um problema: mesmo reconhecendo que a proeminência da mão direita
sobre a esquerda possa ser explicada bio-fisiologicamente, pelo desenvolvimento mais acentuado do
hemisfério esquerdo cerebral que comanda a enervação da mão direita, e o maior percentual genético
da população destra, comenta que essas razões não seriam suficientes para explicar os tabus e as
restrições que concernem a mão esquerda, dado que, a princípio, seríamos capazes de desenvolver
habilidades com ambas as mãos. As práticas, entretanto, de restrições e proibições que cercam a mão
esquerda, sugerem que estamos na presença de um fenômeno sociológico quase universal, representado

4
Presumivelmente datado de 1909. A tradução que estamos usando está baseada no texto publicado em Mélanges de
Sociologie Religieuse, de 1970.

4
pela polaridade entre direito/esquerdo, que perpassa desde a significação dessas palavras em várias
línguas até a sua constituição como parte de uma série de oposições binárias (direito/esquerdo,
masculino/feminino, alto/baixo, etc.), relativa à oposição fundamental entre o sagrado/profano, que
permeia tanto a organização social (aqui o autor refere-se especificamente às organizações tribais
dualistas, ou o sistema de metades), quanto as divisões de tarefas, os objetos, os rituais, e o próprio
cosmos, incidindo também sobre o corpo humano.
Para o autor, trata-se de uma dualidade inerente ao “pensamento primitivo” (de fato, diríamos,
inerente a função simbólica) que se “projeta” sobre o mundo físico, social, cosmológico e as relações
entre eles: se não houvesse uma distinção “naturalizada” (assimetria orgânica) entre direita/esquerda,
esta teria que ser inventada, observa o autor. O princípio subjacente a essa formulação, posteriormente
desenvolvido por Lévi-Strauss dentro da ótica estrutural, é o da lógica do pensamento simbólico que
classifica o mundo físico e social por meio de categorias binárias que formam sistemas de pares de
opostos que operam em séries relacionais para a sua ordenação cognitiva e sociológica.
Tais observações têm um propósito. Retomando Mauss [1974a (1936)], o corpo não é só o
primeiro e principal objeto e meio técnico do homem, mas suporte de representações (no sentido
durkheimiano do termo), e práticas fundadas em concepções culturais que o significam, integradas, por
sua vez, em sistemas simbólicos e dinâmicas societárias próprias. Douglas [1976 (1966)] por exemplo,
trabalhando com os conceitos de tabu e polução, observa que o corpo humano provê uma poderosa
metáfora para a estrutura social, sendo susceptível das mesmas operações simbólicas e classificatórias
encontradas no domínio da vida social. Do mesmo modo, Turner (1974) mostra, por meio dos
processos rituais que incidem sobre o corpo, como as categorias culturais estão intrinsecamente
relacionadas com as próprias premissas da ordem social (por exemplo, o ritual Ndembu da fertilidade).
Dentro do campo da etnologia brasileira, Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1979) são
particularmente enfáticos ao se referirem ao lugar que o corpo humano tem na formulação que as
sociedades tribais brasileiras e sul-americanas constróem sobre si mesmas e as diferem
substancialmente de outras sociedades, como as africanas, por exemplo; “corporalidade reflexiva”,
porque operante e central nos planos da organização social e cosmológica desses grupos, ao referir-se à
definição e construção da “pessoa humana” no interior dos mesmos 5. Segundo os autores, o corpo,
como “matriz de significados sociais” entre as populações indígenas do Brasil, torna-se central nesses
planos pelos processos de fabricação, decoração, transformação e destruição aos quais é submetido,
dotado que está de uma “fisiologia dos fluidos corporais” (sangue, sêmen), e dos meios de
5
Os autores referem-se aqui à “noção de pessoa” como categoria sociológica, no sentido que lhe foi dado originalmente por
Mauss [1974b (1938)]; ou seja, referente às concepções nativas sobre o ser humano no plano da sua construção normativa
como membro de uma determinada sociedade.

5
comunicação com o mundo (alimentação, sexualidade, fala e demais sentidos). Sob esse aspecto, o
corpo opera, tal como o exemplo citado no texto sobre os Jê do Brasil Central, uma dualidade entre
uma “lógica da substância física” (procriação, alimentação, “associação por laços de substância”) e
uma lógica, diríamos, social, referente aos processos de nominação ou classe de idade, associada esta
aos papeis públicos ou cerimoniais dados no plano sociológico (Id. Ibid. : 11).
Para os autores, a “sócio-lógica indígena se apoia em uma fisio-lógica” (Id. Ibid. : 13), segundo
a qual é no corpo que as regras sociais operam, por meio dos processos de substancialização e
nominação (física e metafísica, individual e coletiva, sangue e alma), respectivamente, em detrimento
dos sistemas de direitos e deveres dentre grupos constituídos: “As sociedades indígenas deste
continente estruturaram-se em termos de categorias lógicas que definem relações e posições sociais a
partir de um idioma de substância. Mais importante que o grupo, como entidade simbólica, aqui é a
pessoa; mais importante que o acesso à terra ou as pastagens, é aqui a relação com o corpo e os nomes.
Se o idioma Nuer era ‘bovino’, estes aqui são ‘corporais’” (Id. Ibid. : 14).
Referindo-se às concepções Yawalapiti (grupo xinguano) sobre o corpo, Viveiros de Castro
observa, em outro artigo, tratar-se de um “corpo imaginado, em vários sentidos, pela sociedade”, por
meio do qual “a natureza humana é literalmente fabricada, modelada pela cultura” (Viveiros de Castro,
1979: 41). O autor, nesse mesmo artigo, ainda considera que o “corpo de dentro” também é sujeito ao
mesmo processo de “fabricação”, representado principalmente pelos períodos de reclusão pubertária,
pós-parto (couvade) e mortuária6, nos quais a abstinência de determinados alimentos, a continência
sexual, o despojamento dos adornos, o corte de cabelo e a ingestão de eméticos purificadores das
substâncias corporais seriam os momentos dessa fabricação/transformação interna do corpo-pessoa, em
contraste com a sua exibição/decoração externa e, portanto, pública.
O processo lógico de “incorporação/excorporação” de substâncias (sangue, sêmen, alimentos,
eméticos vegetais, tabaco) não só é central à formação do corpo nas suas várias fases de transformação
[tal qual a análise feita por Viveiros de Castro (1979) sobre os Yawalapiti], como nos leva, a partir
desse exemplo, a um outro plano de considerações na literatura antropológica mais geral, no que
concerne à sexualidade, mais especificamente, a sua relação com os processos de filiação/descendência
e aliança, prescritos pelos sistemas de parentesco.

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6
Períodos que, ainda segundo o autor, o processo de “incorporação/excorporação de substâncias” é particularmente
manifestado, pela manipulação que o corpo é então submetido de acordo com essa lógica (Id. Ibid. : 47).

6
Malinowski publica, em 1929, “A vida sexual dos selvagens”, com base no seu material
coletado junto aos Trobriand da Nova Guiné, tornando-se um dos clássicos da literatura antropológica.
Já no prefácio o autor nos adverte: “O sexo não é para o habitante primitivo das ilhas do Pacífico, como
para nós tão pouco, uma simples questão fisiológica; ele implica o amor e o namoro; torna-se o núcleo
de instituições tão veneráveis como o casamento e a família; inspira a arte e constitui a fonte de suas
magias e sortilégios. Domina, na verdade, quase todos os aspectos da cultura. A sexualidade em seu
sentido mais amplo – aquele que ela assume no título deste livro -, é, mais do que a mera relação carnal
entre dois indivíduos, uma força sociológica e cultural” [Malinowski, 1983 : 21 (1929)]. Sob esse
aspecto, relações amorosas e sexuais, são compreendidas no contexto das tradições, costumes e leis
locais, que regulam as regras das relações entre homens e mulheres no plano da organização social.
Para além de um livro escrito com a rara clareza, desenvoltura, e minuciosas observações sobre
o cotidiano tribal e as práticas amorosas e sexuais dos Trobriand, que, de imediato, capta a atenção do
leitor, Malinowski também introduz uma polêmica no campo antropológico, ao sustentar a
“ignorância” dos Trobriand em relação à paternidade fisiológica. Os Trobriand constituem uma
sociedade matrilinear, ou seja, a descendência é dada pela linhagem materna, na qual a instituição do
avunculado (relação tio materno- filho da irmã) é central nas relações de parentesco, e o núcleo de
todas as demais relações sociais (transmissão da herança, cargos hereditários, fórmulas mágicas,
posições sociais e títulos de chefia).
Subjacente ao que Malinowski denominou a “instituição do direito materno”, subjaz também a
noção, sustentada no plano mitológico e animista, segundo a qual a procriação é realizada somente por
meio da mulher (fecundada pelas crianças-espíritos da sua linhagem que habitam Tuma, a ilha dos
mortos, que retornam, rejuvenescidos, sob a forma de bebês pré-encarnados, para alojararem-se nos
ventres das mulheres de suas próprias linhagens). Os filhos, sob esse aspecto, são feitos da mesma
substância que a de sua mãe, apesar de poderem “parecer” fisicamente com o marido desta, fato
reconhecido não em função de qualquer possibilidade da sua participação no ato da procriação, mas da
relação de contiguidade, proximidade física e coabitaria, entre este e os filhos da sua mulher.
Leach, observa, sob esse aspecto, que a suposta “ignorância” nativa sobre a “paternidade
fisiológica” (restrita não somente aos Trobriand), traduz muito mais a ignorância dos antropólogos que
trataram do tema do que a dos nativos, pois trata-se, de fato, de uma doutrina, tão próxima dos dogmas
teológicos (por exemplo, o referente a concepção cristã do nascimento virgem) que, sob sua aparente
diversidade, traduz um tema estrutural comum: o que o autor denomina “a topografia metafísica entre
deuses e homens” [Leach, 1983 : 117 (1966)].

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Por um lado, refere-se a relação entre a distância temporal, espacial e geracional e a distinção
entre mortos e vivos, necessárias para a simbolização do tempo ao postular relações de descendência,
filiação e/ou aliança matrimonial entre deuses e homens. Por outro lado, essas relações têm implicações
nos planos do poder e do status de classe, que, ao separarem “dois mundos” (o temporal, humano e
mortal e o espiritual, divino, e eterno), também pressupõem sua relação de continuidade e mediação,
dada pela possibilidade do intercurso sexual entre os deuses ou os mortos, reincarnados em crianças-
espíritos, com as mulheres dos homens. De um certo modo, o que é sugerido no texto é que a relação
de continuidade aproxima-se mais das sociedades matrilineares (continuidade da linhagem pela
reincarnação/re-procriação dos seus mortos tornados crianças-espíritos), e a de mediação das
sociedades patrilineares (onde as mulheres, elas próprias, têm o papel de mediadoras das relações entre
homens e entre classes de homens), ambas hierarquicamente organizadas.
Leach, entretanto, em outro texto [Leach, 1974 (1960)], coloca essa temática sob um outro
ângulo, que nos interessa aqui mais de perto: a relação entre descendência/filiação
matrilinear/patrilinear, e os mecanismos de aliança que tornam o marido da mãe ou a esposa do pai
como afins e não parentes consangüíneos em relação à criança; os primeiros, detentores potenciais das
“influências místicas” que sobre a criança podem recair, e, os segundos, da substância da qual esta é
formada.
Se os matrilineares Trobriand, ao não reconhecerem a paternidade fisiológica, reconhecem, por
contiguidade, a relação entre a aparência física entre o marido da mãe e os filhos desta (e até a
pressupõe), derivando a substância da criança do sangue materno, outras sociedades fazem o registro
oposto; ou seja, dentre os exemplos citados por Leach, os Tikopia (Cf. Firth, 1936), pressupõem que a
substância da criança origina-se do sêmen do pai, e que, apesar desta nada ter a ver com o corpo da
mãe, têm os seus membros moldados por uma divindade feminina, representativa não só da aparência
mística da mãe, mas a de toda a sua patrilinhagem (Id. Ibid. : 31). Outros exemplos dados por Leach,
derivados de materiais etnográficos provenientes dos Kachin da Birmânia (Cf. Guilhodes, 1922; Leach,
1954) ou dos Lakher (Cf. Parry, 1932), reafirmam a unidade substancial dos filhos com o corpo e a
casa de seu pai, sendo a relação com a “mãe” propriamente descrita não como de consangüinidade ou
filiação, mas como de afinidade, por meio do seu casamento com o pai desses filhos, fato, aliás,
reiterado pela série de obrigações econômicas, cerimoniais e rituais que definem as relações de
afinidade entre patrilinhagens ligadas pelo casamento.
Do mesmo modo, coerente com a oposição enunciada, mas invertida, sobre a relação substância
(materna)/aparência física (“paterna”) entre os Trobriand, para os patrilineares Kachin, a criança é o
“produto ósseo” do sêmen de seu pai, mas deve, entretanto, ser parecida com sua “mãe”, que lhe dá a
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sua carne e o seu sangue. Para Leach, os dois exemplos formam uma antítese estrutural, o que sugere
que, em ambas as sociedades, senão em todos os sistemas de parentesco e casamento, há um princípio
de filiação/incorporação à um determinado grupo (representado pelo dogma da substância comum) e
um princípio de afinidade/aliança em relação a outros grupos (representado, no caso, pela noção de
“influência mística”, dependente ou não de laços de sangue e osso)7. Desse modo, as substâncias
(sêmen, osso, sangue, carne, alimento, “influência mística”) operam, do ponto de vista do autor, a
distinção entre incorporação e aliança, constituindo variáveis significativas em todas as sociedades,
unilineares ou não (Id. Ibid. : 38-42). Ou seja, do ponto de vista que aqui nos interessa, constituem
categorias (referentes ao corpo, em sua essência) que estruturam logicamente as relações sociais,
particularmente aquelas derivadas da prática da sexualidade, da procriação e do casamento.
Se, do ponto de vista mais formal, são as relações de casamento, determinadas pelo sistema
de parentesco, que fixam, a princípio, o padrão das relações sexuais, o registro etnográfico mostra,
entretanto, que as relações conjugais, dadas pelo princípio da aliança e dentro das regras e leis que
regulamentam e prescrevem os casamentos preferencias e a filiação/descendência, são, pelo menos para
algumas sociedades, susceptíveis de extrema flexibilidade. O primeiro registro é, sem dúvida, o do
próprio Malinowski [1983 (1929)], que nos mostra o grau de liberdade que crianças e adolescentes dos
matrilineares Trobriand, antes do período pré-marital, gozam para a prática de relações sexuais e da
escolha dos seus parceiros amorosos. Mesmo após o casamento, parcerias amorosas e sexuais
extraconjugais, a despeito de sanções públicas ou daquelas derivadas do tabu do incesto, são comuns,
formando o palco para os dramas universais do divórcio, suicídio (eventualmente, morte) e expiação
coletiva do adultério cometido.
O registro etnográfico dentre as sociedades indígenas brasileiras não é muito diferente. Tendo
como base os povos da bacia do Xingu, que não têm uma organização clânica e hierárquica tal como
encontrada em outros lugares (o locus parental tende a ser a residência comum), essa mesma
permissividade ocorre, facilitada pela regras de descendência bilateral, que, apesar de prescreverem
preferencialmente o casamento entre primos cruzados classificatórios [idealmente, segundo Basso
(1973), dois pares de irmãos e irmãs], permitem que a distinção entre parentes consangüíneos e afins
seja o suficientemente flexível e extensiva, praticamente quantificável entre “muito” e “pouco”,
segundo Gregor [1982 (1977)], referindo-se aos Mehináku, para possibilitar a sua manipulação de

7
Os Tukano do Rio Negro parecem oferecer um sistema similar. Sendo considerada uma das poucas sociedades sul-
ameríndias a apresentarem um sistema de linhagens clânicas hierarquizadas, essas linhagens “são conceitualizadas em
termos de transmissão da substância física e da substância espiritual, numa dialética da exogamia e do sangue (feminino), e
da continuidade da linhagem e do sêmen (patrilinear)” (Cf. Hugh-Jones, 1977. In Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro,
1979 : 12).

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acordo com as motivações amorosas dos possíveis parceiros sexuais, mesmo após o casamento. O
fundamento dessa “quantificação”, que distingue os graus proibitivos (relativos aos primos paralelos) e
permitidos (relativos aos primos cruzados) para as relações maritais e sexuais, reside na sua relação
com a procriação.
Para os Mehináku, como entre os outros grupos do Xingu com algumas variações [Viveiros de
Castro (1979), sobre os Yawalapiti; Basso (1973), sobre os Kalapálo)], o feto forma-se por meio da
acumulação do sêmen na mulher, que o abriga, por meio de repetidas relações sexuais, para a qual
concorre também o sêmen dos outros parceiros sexuais que a mulher tenha8.
Para Gregor [1982 (1977)], tal concepção introduz gradações no parentesco que variam do
plano biológico propriamente dito (“verdadeiro”, “feitos” do mesmo pai e da mesma mãe) ao plano
sociológico (pelas trocas de alimentos, trabalhos e presentes que ocorrem entre os amantes), derivando
outras categorias de quantificação para a identificação do ego dentro do sistema classificatório de
parentesco: “distante/próximo”, “pouco/muito”, “grande/pequeno”. O princípio de uma “paternidade
múltipla”, aliado ao fato da filiação bilateral, torna, desse modo, o sistema de parentesco flexível, para
não dizer ambíguo, sujeito a manipulações e reavaliações derivadas das motivações pessoais e das
próprias redes de relações conjugais e extraconjugais estabelecidas pelos pais (particularmente a
mulher, que reconhece ou não publicamente um determinado homem como pai, “pouco” ou “muito”,
do seu filho), o que mantém, sob essa forma, algum controle do sistema e da posição do ego dentro do
mesmo (Id. Ibid. : 127-143; 249-289)9.
Padrões de aliança matrimonial (poligamia, poligamia restrita aos chefes, poliandria e
monogamia), de residência (virilocal ou uxorilocal), e regras de filiação e descendência [unilateral
(patrilinear/agnática ou matrilinear), bilateral (pelo sistema de dupla descendência) ou cognática,
referente à descendência comum a partir de um casal ancestral] são dados nos sistemas de parentesco.
Tais sistemas, por sua vez, são variáveis, assim como os modelos societários nos quais eles são
formados (sistemas de metades, clãs, linhagens, exogâmicos ou endogâmicos, hierarquizados ou não,
8
Langdon registra o mesmo fato entre alguns grupos da família lingüistica Pano (Langdon, 1999 : 10), além do caso já
anteriormente mencionado dos Tukano do Rio Negro para os quais o sêmen é responsável pela formação óssea do feto (Cf.
Hugh-Jones, 1977. In Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1979 : 12; Langdon, 1999 : 10)
9
Basso (1973), entretanto, observa que, entre os Kalapálo, a relação de filiação é definida pelas relações sexuais entre os
pais que se distinguem das relações sexuais mantidas entre amantes casuais. Sob esse aspecto, a autora menciona que a
procriação, para esse grupo, resulta da repetição do intercurso sexual por parte de um determinado homem que acumula o
seu fluido seminal em uma mulher particular. Mulheres que mantêm relações sexuais com muitos homens não podem,
segundo essa lógica, ficarem grávidas, da mesma forma que mulheres que não as têm regularmente com o seu parceiro
sexual também não. Tal concepção não implica necessariamente que a filiação refira-se à relação entre marido-mulher, mas
pode ser traçada também via os casais que são amantes, pela publicização do fato feita pela própria mulher, tal como
acontece entre os Mehináku. O fator principal é o reconhecimento público da filiação para a determinação da posição da
criança no sistema de relações de parentesco, o que irá, posteriormente, determinar também o spectrum das possíveis
relações sexuais e maritais dessa criança, de acordo com as regras desse mesmo sistema (Id. Ibid. : 75-77).

10
que tendem a prescrever formas preferenciais de casamento, principalmente entre primos cruzados
classificatórios, patrilineares, matrilineares, ou bilaterais, por meio das quais os filhos dos irmãos de
sexo oposto casam-se entre si), dando margem aos sistemas de aliança que, em termos antropológicos,
configuram-se como “sistemas de troca de mulheres”, baseados que estão na distinção entre relações de
consangüinidade (sobre as quais, em graus variados, recai o tabu do incesto) e de afinidade (que
definem os potenciais grupos doadores e receptores de mulheres no plano de cada organização social).
Desse modo, por um lado, os sistemas de parentesco têm uma função fundamentalmente política, de
inclusão/exclusão do ego no grupo local. Por outro lado, os sistema terminológicos e classificatórios
geracionais, por meio das categorias nativas, são o modo pelo qual o ego se reconhece dentro do
sistema de relações que formam o seu grupo local e determina sua conduta10.
Sob esse aspecto, se o parentesco fornece o “modelo” para a compreensão do sistema de
relações tribais mais gerais, são por meio das categorias nativas, que operam no plano corrente das
relações sociais, que os padrões de relações sexuais e maritais podem ser compreendidos
(particularmente dentre as sociedades tribais no Brasil, que, como foi mencionado anteriormente, não
apresentam marcadamente um sistema de clãs ou linhagens hierarquizado)11.
Por sua vez, as relações de gênero, os rituais da puberdade que marcam, a princípio, a iniciação
dos jovens, homens e mulheres, nas relações sexuais, jogos eróticos, e, posteriormente, as relações
maritais e extraconjugais, assim como as práticas sexuais, amorosas e procriatórias, constituem um
universo tão vasto quanto o é o conjunto das sociedades que os praticam e os formulam. Portanto,
10
Para um maior detalhamento desses aspectos que fogem do escopo deste texto e que serão tratados em outra parte, pode-
se, entretanto, consultar, para uma perspectiva mais geral, os livros de Sahlins [1983 (1968)], Melatti [1987 (1970)], Ramos
(1986).
11
O trabalho de Basso sobre os Kalapálo pode ilustrar melhor o problema. De acordo com trabalho prévio (Cardoso,
1999b), que já apresenta uma síntese da análise feita por Basso, a partir daqui reproduzida, sobre o sistema de parentesco
Kalapálo, tem-se que este está centrado predominantemente na filiação bilateral, que também prefigura um sistema
extensivo de relações traçadas via pais que confunde-se com a própria noção local de “parentela” ou otomo (Basso, 1973 :
75), dando lugar a um sistema de classificação do ego via linha geracional. Por exemplo, pode-se dizer que a mãe de X é
irmã de Y, e por isso tais e tais pessoas são primas ou parentes; mas, no caso, X e Y podem não ser irmãs consangüíneas,
mas pertencerem ao mesmo grupo geracional e, eventualmente, terem algum laço de filiação ancestral comum. Basso
identifica, de acordo com as próprias categorias Kalapálo, cinco planos geracionais que correspondem aos grupos de
parentes ordenados segundo laços de filiação comuns traçados de forma ascendente (02) e descendente (02) à geração do
ego. Dentro de cada um desses planos, há termos específicos de acordo com o gênero, sendo que para o termo
correspondente aos filhos dos filhos da geração do ego não há essa distinção: são todos igualmente ifijaw. Levando-se em
conta os três planos geracionais mais próximos do ego (ou seja, que corresponderiam aos pais e à geração parental dos pais
do ego, otomo; o próprio ego e seus parentes geracionais, ifisuandaw; e seus filhos, com a correspondente geração de
parentes, ijimo), a diferenciação por gênero (e, eventualmente, idade) opera no sentindo de definir possíveis relações de
afinidade entre doadores e recebedores de esposos: do ponto de vista do ego, as irmãs do pai e os irmãos da mãe são os
eventuais doadores de esposos. Do mesmo modo, os filhos dos irmãos de sexo oposto ao do ego são também classificados
como afins potenciais, já que podem casar-se com ele ou seus irmãos do mesmo sexo (Id. Ibid. : 80). O modelo ideal de
casamento é, segundo Basso, o “casamento entre dois pares de irmão-irmã” (“brother-sister exchange marriage”), que não
necessariamente ocorre na mesma geração ou implica a troca de pessoas do mesmo sexo (Id. Ibid. : 88). De acordo com
esses princípios, as relações de afinidade se dão pela “troca de parentes” ou pela formação de “parceiros matrimoniais”
entre dois grupos que fixam, sob essa forma, suas relações de aliança, continuamente renovadas.

11
preferimos centrar-nos não nos sistemas formalizados de parentesco, ou nas práticas e rituais a eles
afetos, mas nas categorias de substância que determinam o pertencimento ou não do ego à uma
determinada parentela, e, a exemplo das categorias nominativas, determinam o plano lógico por onde
se processam as relações sociais, sexuais (maritais ou não) e reprodutivas.
Tal como anteriormente observado, a partir dos trabalhos de Seeger, DaMatta e Viveiros de
Castro (1979), e, principalmente Leach [1974 (1960)], corpo, sexualidade e procriação determinam,
pelas suas relações mútuas, o pertencimento de determinada pessoa a uma “comunidade de substância”
à qual ela passa a se referir. Dessa noção, deriva, de fato, a importância e os cuidados com os fluidos
corporais, principalmente sangue e sêmen, sujeitos a tabus e formas de controle sobre seus
excessos/retenções, que poderiam, ao não serem observados, enfraquecer o corpo, tornando-o
susceptível a doenças. Por meio de práticas alimentares, ingestões de eméticos, escarificações e
reclusões, procura-se assim resguardar o corpo e fortalece-lo (Basso, 1973 : 63; Viveiros de Castro,
1979 : 46, sobre comunidades xinguanas).
Lopes da Silva registra o mesmo fenômeno entre os Xavante, chamando, entretanto, atenção
para um outro aspecto, igualmente relevante nesse processo de “fabricação do corpo-pessoa” como
parte de uma “comunidade de substância”, que é o princípio da nomeação, que marca a individualidade
da pessoa quer como elemento da sua identificação quer como elo da sua relação de continuidade com
as gerações e sua respectiva “metade” (Lopes da Silva, 1986 : 248).
O processo de nomeação é, e não poderia deixar de ser, paralelo com os rituais de iniciação, que
estão, principalmente entre os homens, permeados por práticas que visam o fortalecimento e a
maturação do corpo físico para a reprodução sexual e o casamento (entre outros fins, que incluem,
nesse grupo, também o desenvolvimento da agressividade e da competitividade, tendo o seu ápice no
ritual da “furação das orelhas”, símbolo da maturidade masculina e do pertencimento à sociedade
Xavante, fisicamente agora “marcada” no corpo do indivíduo). Define, pois, nos termos de Lopes da
Silva, os diferentes estados, etapas e fases da formação do ser pessoa (Id. Ibid. : 248)12.

12
Para os Kalapálo, as categorias que indicam o grau de formação, desenvolvimento e status da “pessoa” são 1) A “pessoa”
em estado de gestação uterina (kuterualu); 2) Recém-nascida (kanamugueanguialo); 3) Começando a andar e falar
(kanamugueturuluhokomo); 4) Em crescimento, já participando e cooperando com as atividades masculinas/femininas
(kanamuguemubetu); 5) Em reclusão pubertária, distinguidas a partir de então por gênero: mulheres (natalugu), homens
(kunakusugu); 6) Após a reclusão pubertária, mas ainda solteiros: mulheres (daonque), homens (kuná); 7) Casados; 8)
“Velhos”: mulheres (haidenehalu), homens(haidenê/haidehehu); 9) E mortos, em geral, (kukapunuhugu). Sob esse aspecto,
o processo de mudança de nome que a pessoa sofre ao longo da vida está também associado à essas categorias, marcado
predominantemente pela saída da reclusão pós-parto, quando a criança recebe preferencialmente o nome de um dos
avôs(ós), paternos ou maternos; pela saída da puberdade (e do período de reclusão a ela associado), quando recebe
propriamente o seu nome de adulta (mas que só se torna publicamente corrente, no caso das mulheres, após o nascimento do
primeiro filho); e pelo nascimento de algum neto, que irá “pegar” o nome do avô(ó) que, por sua vez, terá que escolher
outro dentre um conjunto possível de nomes que podem ser usados dentro de uma mesma parentela (Cardoso, 1999b).

12
Pelo exposto acima, são pelas categorias de substância e de nominação que o corpo, por meio
dos seus processos fisiológicos (nos quais estão inclusas as práticas sexuais e reprodutivas), torna-se
“pensado” dentre o conjunto dessas sociedades já que, ao aceitarmos a teoria de Leach [1974 (1960)],
nos permitimos também um grau de generalização maior, sendo o “meio” de transição entre natureza e
cultura e dos processos de ordenação social (parentesco) e simbólica (lógica classificatória) das
mesmas. Os fluidos corporais, particularmente o par sangue/sêmen, tornam-se centrais nessas
representações13, substâncias pontuais de cuidados rituais, sanções, e prescrições baseadas na
alimentação e na ingestão de eméticos purificadores ou fortalecedores, além, é claro, das práticas
xamânicas, que inserem o corpo e a pessoa também nos planos sobrenaturais e transcendentais da sua
existência “humana” e são, dentre as sociedades tribais, as práticas terapêuticas por excelência14.
Sob esse aspecto, doença e processo terapêutico- e não só entre sociedades tribais- raramente
restringem-se a uma determinação de natureza técnica: referem-se necessariamente às representações
sobre o corpo e a construção da “pessoa humana” que são formuladas dentro dos quadros lógicos e
sistêmicos de natureza simbólica que integram simultaneamente natureza e sociedade numa ordem
cosmológica e transcendental [os trabalhos de Langdon (1996b; 1999), são aqui ilustrativos]. O
“pluralismo médico”, que tem caracterizado, de acordo com a literatura antropológica sobre o tema, o
modo como a prática médica ocidental vem sendo incorporada às estratégias terapêuticas ameríndias,
pela sua adição “instrumental” e “profilática” às práticas nativas, não tem significado uma alteração
substancial dos fundamentos e princípios tradicionais que lhes estão subjacentes 15. O trabalho de
13
Mesmo este texto estando centrado na questão da corporalidade e da sexualidade dentre as sociedades indígenas, não
podemos deixar de observar que há notáveis paralelos entre essas representações, principalmente as que dizem respeito aos
fluidos corporais, e aquelas coletadas por pesquisadores dentre diversos grupos populacionais no Brasil, genericamente
identificados como pertencentes às camadas populares (termo tanto vago quanto ambíguo, mas disponível). Os textos de
Motta-Mauês e Leal (1994) chamam, particularmente, atenção para as representações concernentes às relações entre
sangue/feminino/fertilidade e sêmen/masculino/procriação presentes tanto numa comunidade de pescadores do Pará, quanto
no material coletado junto às populações rurais do Rio Grande do Sul e classes populares da região metropolitana de Porto
Alegre, respectivamente. O sangue menstrual aparece como fluido sujeito à prescrições e proibições, organizadas de acordo
com as lógicas do quente/frio e dos humores corporais, para as quais a alimentação e as regras de resguardo adequadas
procuram a sua regularização, tanto quanto os rituais e práticas mágico-religiosas, dada a sua ambigüidade como veículo
tanto de vida/nutrição quanto de polução/perigo, já que a própria relação sexual, representada como troca de fluidos
corporais, comporta também uma dimensão de troca de substâncias morais, para além das físicas. De fato, essas
representações referem-se às percepções sobre corpo, doença e processos terapêuticos, dadas nos quadros da “medicina
popular” no Brasil (Queiroz, 1978; Loyola, 1984; Cardoso, 1999a), que, quer como produto da reelaboração cultural dos
sistemas terapêuticos nativos, quer tendo como modelo a medicina humoral ou hipocrática trazida pelos portugueses, ou
ambos, disseminou-se amplamente na cultura popular brasileira. Sob esse aspecto, Duarte (1986) apresenta uma minuciosa
abordagem sobre o modelo humoral, a partir da categoria “doença dos nervos”, por meio da qual o autor procura demonstrar
que, na sua difusão para as classes trabalhadoras, esse modelo passou a ser referente à um modelo holista e hierárquico de
pessoa, que se contrapõe às representações modernas, fundamentadas dentro dos quadros dos saberes psicológicos
emergentes no século XX e da ideologia liberal individualista, constitutiva da cultura contemporânea dominante.
14
Para um apanhado sobre a questão no Brasil, ver a coletânea organizada por Langdon (1996a).
15
O trabalho de Morgado (1994) sobre esse processo entre os Wayana-Aparai é aqui ilustrativo; traz também uma revisão
sobre a bibliografia referente ao tema. Os textos que compõem a segunda parte da coletânea sobre saúde indígena
organizada por Santos e Coimbra (1994), também apresentam um registro importante sobre esse processo de interação entre

13
Verani (1994), sobre a “doença da reclusão” no Alto Xingu, é emblemático desse processo, ao apontar
para a necessidade de relativização das categorias bio-médicas nas situações de contato intercultural,
pela própria oposição entre a racionalidade fragmentária da prática médica ocidental e o princípio de
planos hierárquicos nos quais a categoria nativa (atamikârâ), por exemplo, é pensada: físico-moral
(referente ao cumprimento das regras restritivas próprias a reclusão pubertária), sócio-político
(rivalidades intertribais, dando margem às acusações de feitiçaria) e cosmológico (agressão
sobrenatural), e resignificada, pela introdução da prática médica no local, sem que se alterasse
substancialmente a lógica estrutural que lhe dá suporte16.
Finalmente, o que este texto vem apontar é que, se tomamos como base fundamentalmente as
concepções indígenas relativas ao corpo e a sexualidade, foi também no sentido de mostrar como estas
estão baseadas em categorias sociológicas, logicamente operadas tanto na ordem simbólica quanto
estrutural da sua expressão, da qual não está isenta a moderna sociedade ocidental. Os trabalhos de
Foucault, dentre outros autores, são exemplares, sob esse aspeto, ao mostrarem o modo como o corpo e
a sexualidade na sociedade ocidental são os pontos focais dos processos disciplinares que deram
margem à constituição dos saberes contemporâneos, particularmente a medicina e a psiquiatria 17. Desde
o século XVIII, esses saberes (dos quais as ciências humanas não estão excluídas) fundamentam-se
numa ordem de racionalidade, positividade e fragmentação que ignora, inclusive, suas próprias bases
históricas, sociológicas e ideológicas, formando o contraponto moderno às concepções totalizadoras e
hierárquicas que informam, predominantemente, os universos cognitivos das sociedades aqui
referenciadas.
Fato este que não lhes confere homogeneidade, haja visto que, no âmbito das próprias
sociedades ocidentais ou ocidentalizadas, outras contraposições, de classe ou grupo, ou mesmo étnica,
se formam18, mas aponta para os dilemas, conflitos e possíveis impasses resultantes do seu processo de
dominação e universalização, sob um ponto que lhes é fundamental: exatamente o da eficácia técnica
as práticas terapêuticas indígenas e aquelas provenientes da biomedicina.
16
Potencialmente, talvez esse seja o caminho para a abordagem bio-médica pretendida pelos agentes de saúde em relação às
doenças sexualmente transmissíveis e AIDS.
17
Dentre outros, os textos que fazem parte da coletânea Microfísica do poder (Foucault, 1979), oferecem um panorama
geral sobre esses pontos aqui meramente referenciados.
18
Os trabalhos citados na nota de pé de página número 12 deste trabalho referem-se a esse processo no âmbito da
sociedade brasileira, focando, prioritariamente, as “camadas populares”. Para não tornar este texto mais extenso ainda do
que ele supostamente deveria ser, cabe mencionar que os trabalhos que hoje fazem parte da linha de pesquisa denominada
“antropologia da saúde”, tanto na América do Norte quanto em países europeus, tratam predominantemente desse tema. De
fato, pode-se sugerir que a consolidação dessa linha de pesquisa advém precisamente dos problemas colocados à clínica
médica pelo contato com populações ou grupos populacionais que estavam à margem dos sistemas oficiais de saúde, dado
que o requisito e a característica básica do modelo médico-assistencial contemporâneo é a sua expansão, tanto em relação ao
provimento interno aos Estados nacionais da assistência básica, quanto a sua progressiva internacionalização, como modelo,
inclusive [sobre o tema e referências bibliográficas mais completas, ver Cardoso (1996)].

14
de suas práticas frente ao contato com outras formas terapêuticas, derivadas de outros sistemas
cognitivos, que lhes são alheios, por vezes opostos, mas que podem, eventualmente, impor-lhes o
exercício necessário da relativização.

Nota: Piero de Camargo Leiner leu, mesmo que “transversalmente”, este texto, pelo que, desde já, fica
registrada a sua contribuição. Sugestões não aceitas foram de inteira responsabilidade da autora.

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