Você está na página 1de 12

Psicologia: Ciência e Profissão Jan/Mar. 2017 v. 37 n°1, 224-235.

https://doi.org/10.1590/1982-3703000972014

“Salva o Velho!”: Relato de Atendimento em Psicologia


Hospitalar e Cuidados Paliativos

Fabíola Langaro
Faculdade Guilherme Guimbala, SC, Brasil.

Resumo: Este trabalho apresenta o relato de atendimento de um paciente encaminhado ao


serviço de atenção domiciliar de um hospital geral com diagnósticos de doenças crônicas e com
indicação para tratamento em cuidados paliativos. Ao longo de um ano, a psicóloga do hospital
realizou o acompanhamento do paciente junto às equipes de saúde, tanto no domicílio quanto
nas hospitalizações. Foraam atendidos paciente, filhos, esposa e cuidadoras, visando auxiliar
na elaboração das vivências relacionadas ao adoecimento e tratamento, bem como à busca de
qualidade de vida e enfrentamento da finitude. Neste período, o paciente foi inserido, retirado
e reinserido em protocolo de cuidados paliativos, devido às instabilidades no quadro clínico e
aos conflitos e dificuldades de comunicação entre paciente e familiares. Neste sentido, o foco
do atendimento psicológico esteve na mediação dos conflitos familiares e na comunicação
paciente-família-equipes, no estímulo à autonomia do paciente, na garantia do respeito e
consideração aos seus desejos e decisões, bem como ao apoio emocional para enfrentamento
do luto antecipatório. As reflexões e intervenções possibilitadas pelos cuidados paliativos e pela
Psicologia permitiram ao paciente não desistir da sua vida e, aos familiares, a segurança e o
apoio para o enfrentamento da perda e vivência do luto.
Palavras-chave: Psicologia, Cuidados Paliativos, Atenção Domiciliar, Hospital.

“Save the Elderly!”: Care Report in Health Psychology and Palliative Care

Abstract: This work presents an account of care of a patient referred to the home care service of
a general hospital with diagnoses of chronic diseases and indications for treatment in palliative
care. Over a year, a psychologist at the hospital performed patient follow-up with health teams,
both at home and during the hospital admissions. Patient, children, wife and caregiver, aiming
to help in the preparation of experiences related to illness and treatment; pursuing of quality
of life and coping with finiteness were met. In this period the patient was admitted, removed
and readmitted in the palliative care protocol, due to instabilities in the clinical picture and to
the conflicts and difficulties of communication between him and his relatives. In this sense, the
focus was on the psychological care mediation of family conflicts and on the communication
patient-family - staff, stimulating the patient’s autonomy, ensuring respect and consideration to
his wishes and decisions, as well as giving emotional support for coping with anticipatory grief.
The reflections and interventions made possible by palliative care and psychology enabled the
patient not to give up his life and the family to gain security and support for coping with the
experience of loss and grieving.
Keywords: Psychology, Palliative Care, Home Care, Hospital.

224
Langaro, F. (2016). Psicologia Hospitalar e Cuidados Paliativos.

“Salva al Adulto Mayor!”: Relato de atención psicológica


hospitalar y de cuidados paliativos

Resumen: Este trabajo presenta un relato de atención psicológica a un paciente remitido al


servicio de atención domiciliaria de un hospital general con diagnósticos de enfermedades
crónicas e indicación para tratamiento en cuidados paliativos. Durante un año, la psicóloga
del hospital realizó el seguimiento del paciente con los equipos de salud, tanto en el hogar
como en las hospitalizaciones. Fueron atendidos el paciente, sus hijos, esposa y cuidadoras,
con el objetivo de ayudar en la preparación de experiencias relacionadas con la enfermedad y el
tratamiento, así como en la búsqueda de calidad de vida y enfrentamiento de la finitud. En este
período el paciente fue insertó ingresado, retirado y reingresado al protocolo de cuidados
paliativos, debido a la inestabilidad de su cuadro clínico y a os conflictos y las dificultades
de comunicación con sus familiares. En este sentido, la atención psicológica se centró en la
mediación de los conflictos familiares y la comunicación paciente-familia-equipo de salud,
estimulando la autonomía del paciente, garantizando el respeto y consideración de sus deseos
y decisiones, así como apoyándolo emocionalmente para hacer frente al luto anticipado.
Las reflexiones y las intervenciones posibles gracias a los cuidados paliativos y la psicología
permitieron que al paciente, no renunciar a su vida, y a la familia, la seguridad y el apoyo para
hacer frente a la experiencia de pérdida y duelo.
Palabras clave: Psicología, Cuidados Paliativos, Cuidados en el Hogar, Hospital.

“As lições passadas por aqueles que estão morren- o psicólogo especialista em Psicologia Hospitalar par-
do servem para mostrar aos vivos o valor da vida” ticipa da prestação de serviços de nível secundário
(William S. Breitbart) ou terciário da atenção à saúde, realizando atividades
como atendimento psicoterapêutico, atendimentos
em ambulatório e unidade de terapia intensiva (UTI),
O contexto enfermarias em geral, avaliação diagnóstica, psico-
Relata-se neste texto o atendimento psicológico diagnóstico, consultoria e interconsultoria.
realizado a um paciente e seus familiares em um ser- Assim, bem conhecido neste contexto é o aten-
viço de atenção domiciliar e nos setores de interna- dimento a pacientes e familiares frente aos leitos
ção de um hospital geral privado, em conjunto com hospitalares. Porém, ainda pouco discutido é o aten-
as equipes de saúde daquela instituição, mais espe- dimento psicológico no domicílio enquanto parte
cificamente com a Equipe Multidisciplinar de Cui- das práticas do psicólogo hospitalar. Nestes casos,
dados Paliativos (EMCP). O paciente foi inicialmente o psicólogo atende pacientes assistidos por servi-
avaliado em sua casa e o acompanhamento se deu ços de atenção domiciliar e suas intervenções visam
tanto no domicílio como no ambiente hospitalar, por avaliar como pacientes e seus familiares vivenciam a
ocasião de internações, pelo período de aproximada- situação de doença, quais os recursos psíquicos dis-
mente um ano. poníveis para o enfrentamento do tratamento e do
O hospital geral, enquanto campo de atuação em prognóstico, objetivando o suporte e a ampliação de
Psicologia, compõe um cenário de diferentes deman- recursos emocionais. Busca compreender a dinâmica
das, que se estendem do início ao fim da vida. Inse- familiar e seu modo de organização para o tratamento,
rido em uma equipe multidisciplinar, o psicólogo para então elaborar um plano de apoio que contri-
hospitalar tem como elementos indissociáveis de suas bua para o enfrentamento da doença e do contexto
intervenções a interação com profissionais de outras de cuidados domiciliares. Ainda, o psicólogo auxilia
áreas e, ainda, com o hospital enquanto instituição. a equipe multiprofissional a compreender a psicodi-
De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2001), nâmica do paciente e dinâmica de relacionamento

225
Psicologia: Ciência e Profissão Jan/Mar. 2017 v. 37 n°1, 224-235.

familiar, facilitando o relacionamento e a comunica- Considerando a riqueza dos elementos envolvi-


ção paciente-família-equipe. dos no atendimento psicológico realizado ao paciente
Conforme descrevem Yamaguchi e Oliveira e familiares nos contextos intra e extra-hospitalar, este
(2011), a assistência ou atenção domiciliar (home artigo apresenta um estudo do caso do paciente aqui
care) se destina a pacientes com limitações para loco- denominado Pedro. Esta metodologia de pesquisa
moção até centros de tratamento, oferecendo grande consiste na busca de um conhecimento profundo e
parte dos cuidados crônicos no domicílio, numa ten- exaustivo que visa permitir uma ampla visão do fun-
tativa de preservar a intimidade e oferecer conforto a cionamento do fenômeno em questão, estabelecendo
pacientes e familiares. Caracteriza-se por ações inter- possíveis relações entre variáveis de um sistema com-
disciplinares em resposta a uma avaliação global e plexo (GIL, 2008). Quando ligada à prática psicotera-
tem entre seus principais objetivos a integralidade, pêutica, caracteriza-se pela reconstrução da história
o reforço da autonomia, a humanização dos serviços do indivíduo. Dessa forma, relatos clínicos são fre-
de saúde, a comunicação efetiva e a qualidade de vida. quentemente realizados com o objetivo de descrever,
Já os cuidados paliativos podem ser definidos como informar, compartilhar experiências e ilustrar teorias
uma abordagem que aprimora a qualidade de vida e técnicas, demonstrando a plausabilidade das mes-
dos pacientes e familiares que estão em um processo mas (Serralta, Nunes & Eizirik, 2011).
de adoecimento sem perspectivas de cura, a fim de Para tanto, as informações foram coletadas por
favorecer o acesso à informação e o suporte através meio da revisão do prontuário multidisciplinar do
da prevenção e identificação precoce e tratamento da paciente e do registro em prontuário psicológico.
dor e de outros sintomas de ordem psicossocial e espi- Após a descrição da trajetória do paciente nos servi-
ritual de modo a aliviar o sofrimento (ANCP, 2012). ços de saúde, as ações psicoterapêuticas realizadas
Dessa forma, considera-se que o domicílio, e os resultados obtidos foram analisados a partir da
por meio da atenção domiciliar em saúde, pode ser literatura relacionada ao contexto hospitalar, atendi-
ambiente propício ao exercício de práticas em cuida- mento psicológico e cuidados paliativos.
dos paliativos. É indispensável, porém, avaliar as con-
dições que cada paciente e família possuem para que
estes cuidados sejam exercidos e mantidos neste local O encontro com Pedro – no domicílio
até o fim da vida. Nesse sentido, as interações que Pedro tinha 64 anos, era profissional de educação
ocorrem entre o hospital e o serviço de atenção domi- física e estava aposentado. Morava com Joana, esposa
ciliar são fundamentais para que se cumpra um dos de segundo casamento, tinha dois filhos adultos,
principais objetivos dos cuidados paliativos: influen- Marcos e Gabriela, residentes em outras cidades. Con-
ciar o tipo de morte que o paciente terá (ANCP, 2012). tava com auxílio de cuidadoras formais que, ao longo
No referido hospital, a EMCP é formada por um do acompanhamento, demonstraram oferecer impor-
conjunto de profissionais que, além de realizarem tante apoio e suporte emocional, participando ativa-
suas atividades de trabalho nos setores do hospi- mente das rotinas e interagindo constantemente com
tal e/ou no serviço de atenção domiciliar, atendem as equipes de saúde. Joana era também profissional
pacientes a partir da perspectiva dos cuidados palia- de educação física, estava aposentada e tinha filhos
tivos. A equipe conta, portanto, com médicos, psicó- do primeiro casamento. Ana, a cuidadora que mais
logas, enfermeiras, técnicos de enfermagem, fisio- ativamente participou dos cuidados e por mais tempo
terapeutas, terapeuta ocupacional, farmacêutica e permaneceu com Pedro, era auxiliar de enfermagem e
pedagoga hospitalar, atuando de modo complemen- tinha aproximadamente 40 anos.
tar e em caráter de consultoria, em conjunto com as Quando inserido no serviço de atenção domi-
equipes assistenciais. A inserção em protocolo de ciliar, Pedro tinha como diagnósticos: demência por
cuidados paliativos pode ser realizada no hospital corpúsculos de Lewy, acidentes vasculares cerebrais
ou no domicílio e, sempre que há transferência do prévios, hipertensão arterial, doença pulmonar obs-
paciente de um destes locais para o outro, a EMCP trutiva crônica, dislipidemia, apneia do sono, dor
dá continuidade ao acompanhamento, porém mui- crônica por estenose medular, traqueostomia e, pos-
tas vezes realizando novas reuniões e replanejando teriormente, gastrostomia. Estava em uso de bipap
metas de tratamento. (respirador mecânico não invasivo) domiciliar no

226
Langaro, F. (2016). Psicologia Hospitalar e Cuidados Paliativos.

período noturno. Durante o período de acompanha- viviam em casas e cidades distintas, sendo a dele em
mento no domicílio, permanecia deambulando com uma praia). Dizia sentir saudades do seu cachorro,
auxílio. Necessitava, portanto, de cuidados para suas queria estar na sua casa, pois “sentia-se preso” no
condições crônicas de saúde. Também sua família e apartamento de aproximadamente 60 m² onde
cuidadoras, a partir do agravamento contínuo de suas estava morando. Mostrava dificuldades de aceitação
doenças, passaram a ser constantemente informadas e enfrentamento ao processo de adoecimento. Sua
e capacitadas para os cuidados. dinâmica psicológica apontava para passividade,
A equipe da atenção domiciliar era composta sentimento de autopiedade, irritabilidade, autori-
por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, tarismo e racionalidade como estratégia de defesa
terapeuta ocupacional, fisioterapeutas e psicóloga. frente ao sofrimento.
Embora realize ações de reabilitação, este serviço Observava-se que o adoecimento era vivido com
também conta com um protocolo sistematizado de extremo sofrimento por Pedro, pois, até então, não
cuidados paliativos, oferecendo suporte a pacientes havia se deparado com tamanha vulnerabilidade e
e familiares com diagnósticos de doenças que amea- com a inevitabilidade da finitude. Vivia sem dar-se
çam a continuidade da vida, como no caso de Pedro. conta de que um dia envelheceria e de que, como
Em consulta médica domiciliar inicial, o paciente qualquer outra pessoa, poderia adoecer. Além disso,
estava acamado, sem responder a estímulos verbais. vivenciava o luto por diversas perdas diárias: “da auto-
Observou-se que ele e a esposa não haviam recebido nomia, do corpo saudável, da imagem corporal [...] do
informações acerca da possibilidade do tratamento seu papel dentro da família, enfim, da possibilidade
paliativo, apesar de seus diagnósticos terem indicação de prosseguir em seus planos e sonhos” (Macieira &
para tal. Com as orientações fornecidas pelo médico, Palma, 2011, p. 327). Enfrentava, portanto, um luto
a esposa mostrou-se favorável a esta modalidade de antecipatório, visto que diversas perdas foram sendo
atendimento, porém o paciente rejeitava quaisquer experienciadas antes da morte. Este processo ocor-
sugestões que pudessem melhorar sua qualidade de reu tanto para Pedro quanto para seus familiares, em
vida. Diante deste panorama, o médico solicitou ava- particular pelos seus filhos. Neste sentido, o favore-
liação da psicóloga do serviço, com o objetivo de ofe- cimento da expressão dos sentimentos que acompa-
recer suporte emocional ao paciente e à esposa e dar nharam estas perdas tornou-se fundamental no cui-
continuidade à orientação quanto à busca de mais dado ao paciente e sua família (Kovacs, 2007).
qualidade de vida para ambos. Como consequência da dor psíquica frente ao
Em avaliação psicológica domiciliar inicial, adoecer, Pedro mostrava sentimentos de raiva e
o paciente apresentava sintomas depressivos, prin- revolta. Dando-se conta de sua debilidade e limita-
cipalmente desânimo e desesperança. Porém, mos- ções, claramente percebia as perspectivas de morte,
trava-se lúcido, orientado, comunicativo e receptivo vivendo um sentimento de grande perda. Neste sen-
ao atendimento. Segundo a esposa e cuidadoras, tido, a partir do diagnóstico de uma doença grave,
estava agitado, irritado e lábil emocionalmente. ameaçadora da vida, observam-se reações de nega-
Mostrava-se pessimista, resignado e passivo quanto ção, barganha, raiva/revolta, depressão e aceitação.
ao seu estado de saúde. Acreditava que nada poderia Aceitação compreendida não como resignação, mas
ser feito e não realizava esforços para alterar sua con- como relação com o adoecimento que envolve uma
dição existencial. Vivenciava conflitos no relaciona- compreensão real dos limites e das possibilidades
mento com a esposa e isto o deprimia mais. Ambos impostas pela doença, flexibilidade para lidar com
apresentavam dinâmica de competição/disputa e de as limitações, ansiedade em nível suportável para
pouco apoio emocional mútuo. A esposa referia que o paciente, família e equipe e participação ativa no
o neurologista havia informado sobre terminalidade tratamento (Kübler-Ross, 2011). Aceitação esta nem
do quadro e, desde as primeiras visitas da equipe, sempre possível, mas almejada pelo atendimento psi-
dizia que “o paciente tinha pouco tempo de vida e cológico hospitalar em cuidados paliativos.
que estava demenciado”. De acordo com Breitbart (2011), um dos objetivos
Nos primeiros atendimentos psicológicos, da psicoterapia com pacientes terminais é ajudá-los
o paciente, sempre lúcido e orientado, queixou-se a atingir um senso de aceitação da vida e, assim,
de estar morando na casa da esposa (anteriormente de aceitação da morte. Os esforços que envolvem o

227
Psicologia: Ciência e Profissão Jan/Mar. 2017 v. 37 n°1, 224-235.

fechamento da vida são atingíveis e essenciais nesse durante o adoecimento, mas também o luto que se
momento e reconhecer ou aceitar a morte podem instala após a perda do ente querido. Neste processo,
ser um impulso para a transformação. Além disso, o suporte às cuidadoras formais foi também realizado
o estímulo à expressão de sentimentos e desejos tem o pela equipe, uma vez que todas, mas principalmente
intuito de possibilitar a realização de metas no tempo Ana, construíram importante vínculo com o paciente,
de vida ainda restante (Menezes, 2011). tendo sido fonte fundamental de apoio não só para os
Este processo dependerá, porém, não somente cuidados, mas também emocional.
dos recursos emocionais construídos na relação psi-
coterapeuta-paciente, mas também das estratégias de
enfrentamento disponíveis pelo sujeito no momento Uma grande mudança
do adoecimento. Estas estratégias têm relação com Nos atendimentos psicológicos seguintes, em fre-
a habilidade de os sujeitos lidarem com circuns- quentes tentativas de diálogo do casal, mediadas pela
tâncias difíceis de vida e possibilitam a ele alterar o psicóloga, Joana mostrava-se resistente à mudança de
ambiente, adaptando-se a circunstâncias adversas Pedro para a casa na praia, seu maior desejo expresso
(Silva, Siqueira, Stroppa & Moreira-Almeida, 2011). em psicoterapia. Queixava-se longamente do com-
Portanto, relacionam-se à história de vida, a experiên- portamento do marido e mostrava preocupação com
cias anteriores de estresse e insegurança existencial e relação à assistência que poderia ser acessada em
estão atreladas ao sentido que o sujeito dá à vida e ao caso de agravamento do quadro, tendo em vista que
evento adverso – neste caso, o adoecimento. lá não havia hospital e que o município estava fora da
Espiritualidade, família e amigos podem servir área de abrangência do serviço de atenção domiciliar.
como importante apoio nestes momentos de crise Por diversas vezes foi realizado atendimento psi-
e ser acionados enquanto estratégias de enfrenta- cológico para mediar conflitos do casal e buscar de
mento. Contudo, “a experiência de adoecer e a imi- maneira conjunta formas de melhorar a qualidade
nência da morte são frequentemente causadoras de de vida de ambos. Também foram realizados aten-
grande estresse e sofrimento psicológico para o indi- dimentos separadamente: à esposa visando atenuar
víduo e seus entes queridos” (Silva et al., 2011, p. 176). esgotamento e estimular autopercepção quanto à
Joana não conseguia oferecer suporte emocional ao sua própria dinâmica psicológica; e ao paciente para
marido, em parte porque ela mesma apresentava sin- estimular a construção de recursos de enfrentamento
tomas de esgotamento emocional, pelo longo período ao adoecimento, bem como a manter-se autônomo
e difícil contexto de cuidados e, ao mesmo tempo, por e participativo em seu processo de tratamento, visto
suas características pessoais, que a levavam a bus- que estava “entregue” à situação e não enxergava
car estar no controle das situações relacionadas ao possibilidades de melhora em sua condição de vida.
marido. Assim, não dividia responsabilidades, deter- Ao médico, havia dito que “seria melhor morrer do
minava como seria a dinâmica da casa e dos cuida- que continuar vivendo desta forma”.
dos diretos a Pedro. Dava a ele pouca autonomia, Após três meses de frequentes mediações de
constantemente conversava sozinha com médicos e diálogos, Pedro apresentava melhora no humor,
tomava decisões sem consultá-lo. Sobrecarregava-se no enfrentamento ao adoecimento e também aos
e, ao mesmo tempo, o desestimulava a participar ati- conflitos com Joana. Estava menos irritado, mais
vamente de seu autocuidado. colaborativo com as cuidadoras e já tomava inicia-
Neste sentido, os objetivos principais do acom- tiva de conversar com a esposa e de aproximar-se
panhamento psicológico e também da equipe do ser- emocionalmente dela. Em um atendimento chegou a
viço de atenção domiciliar eram resgatar a autonomia dizer que “inicialmente ela conversava 10% de coisas
de Pedro, estimulá-lo a tornar-se ativo e participa- comigo e agora fala 30%”. Apesar deste avanço, não
tivo de seu tratamento e, finalmente, possibilitar que parecia haver perspectiva de que Joana concordaria
seus desejos fossem, tanto quanto possível, realiza- com a mudança de domicílio para a praia. Em meio a
dos. Contudo, isto requeria também o trabalho com este processo, o filho do paciente, Marcos, chegou a
sua família, em especial com Joana, visto que o cui- ser comunicado sobre estes acontecimentos, sobre o
dado com esta unidade paciente-família influencia desejo do pai e das dificuldades que a equipe enfren-
significativamente não somente a qualidade de vida tava para viabilizar sua vontade. O filho informou

228
Langaro, F. (2016). Psicologia Hospitalar e Cuidados Paliativos.

que tentaria acompanhar mais de perto a situação habilidade de mediar conflitos e manter vínculo com
e cogitou possibilidade de mudança de Pedro para ambos. Neste processo, a partir dos esclarecimentos
a casa de Gabriela. Apesar da evolução do quadro realizados e pela confiança conquistada pelos pro-
emocional de Pedro, observou-se que o retorno para fissionais, bem como pelo tempo e suporte oferecido
sua casa seria essencial para assegurar conforto e para que a esposa estivesse segura quanto à mudança
melhor qualidade de vida. de foco terapêutico e das decisões sobre priorizar a
Por este motivo, a equipe interdisciplinar dis- qualidade de vida do paciente, Joana passou a con-
cutiu o caso e, havendo concordância de que seria siderar a possibilidade de transferência de domicílio,
importante realizar intervenções visando a mudança, sentindo-se segura para tal e reorganizando sua forma
os profissionais passaram a tentar viabilizar a con- de cuidados a Pedro.
cretização do desejo do paciente: o médico tranqui- Neste momento, o paciente novamente mos-
lizou a esposa quanto à liberação para mudança de trou-se pessimista, dizendo “vamos ver se isso vai
cidade, orientou sobre como proceder em caso de dar certo, vou esperar, mas acho que não vai dar”.
urgência ou emergência, pois havia uma unidade de Neste momento, a psicóloga reforçou que a mudança
pronto atendimento 24 horas próxima à residência somente poderia ocorrer caso houvesse um esforço
no litoral; as enfermeiras auxiliaram nas providên- conjunto de todos os envolvidos no processo, inclu-
cias para transferência de aparelhos respiratórios sive do paciente. Considerando posição frequente
e demais instrumentos de cuidados; a psicóloga de autopiedade assumida pelo paciente, a psicóloga
reforçou a importante decisão de respeitar o desejo reforçou que a posição da equipe era de confiança
do paciente de voltar para sua casa, mantendo sua em suas potencialidades e de que todos precisavam
autonomia, possibilitando retorno ao seu espaço de atuar conjuntamente para que os resultados fossem
vínculos e história pessoal e sobre o impacto emo- alcançados. Considerando que o paciente havia sido
cional benéfico que isto teria. árbitro, utilizou-se da seguinte metáfora:
Dessa forma, Joana foi orientada quanto ao
princípio da ortotanásia, ou seja, de que as ações pela sua experiência, o senhor deve saber que,
terapêuticas poderiam ser aplicadas apenas na quando um time muito bom entra em campo para
medida de sua eficácia, evitando sofrimento extra jogar com um time não tão bom, se este segundo
ao paciente, aceitando a morte como uma condição achar que já está derrotado e entrar com este sen-
humana (ANCP, 2012). Neste sentido, mesmo que timento em jogo, a derrota será quase inevitável.
Pedro viesse a falecer na praia, isto não significaria Porém, há muitos casos em que, mesmo com ní-
negligência de cuidados, nem apressamento de sua vel inferior, se o time mais fraco entrar em cam-
morte, mas consequência do agravamento de suas po acreditando que a vitória é possível, ela de fato
doenças. Considerando que a morte seria inevitável será. Não coloque um time perdedor em campo.
diante do quadro clínico, pensar na qualidade dos
dias – e não na quantidade – era uma forma de pos- O paciente reagiu muito bem a esta metáfora e
sibilitar que o paciente vivesse até o dia de sua morte passou a colaborar mais para a transferência para a
conforme seu desejo e sua biografia. Assim, a equipe praia, que foi programada para o final daquele mês.
buscava aplicar os princípios dos cuidados paliativos Antes da mudança, uma nova visita foi reali-
de afirmar a vida e considerar a morte um processo zada, para encerramento do atendimento pelo ser-
natural; não apressar, nem retardar a morte; integrar viço de atenção domiciliar. Neste dia, o paciente
os aspectos psicossociais e espirituais ao cuidado do emocionou-se muito e agradeceu à equipe pela
paciente; oferecer sistema de apoio com o intuito de assistência e à psicóloga pelas intervenções, refe-
ajudar o paciente a viver ativamente tanto quanto rindo que “antes de te conhecer eu só queria morrer.
possível até a morte; e oferecer sistema de apoio para Mas agora não, agora eu quero viver!”. Verificava-se,
ajudar a família a lidar com a doença do paciente em suas falas, importante vínculo estabelecido
(ANCP, 2012). com a equipe, sendo este elemento, portanto, ins-
Apesar deste investimento na tentativa de garan- trumento fundamental para as intervenções reali-
tir a prevalência do desejo de Pedro, da resistência ini- zadas ao longo de todo o atendimento, tanto com
cial da esposa e dos conflitos do casal, a equipe teve Pedro como com Joana e as cuidadoras. Vínculo

229
Psicologia: Ciência e Profissão Jan/Mar. 2017 v. 37 n°1, 224-235.

aqui compreendido como ligação que envolve afeti- Sobre este pedido de Marcos, cabe lembrar que:
vidade, ajuda e respeito, capaz de estimular a auto-
nomia. Assim, criar vínculos implica ter relações para que uma equipe de cuidados paliativos
próximas e claras, que possibilitam ver pacientes e cumpra de fato seu papel, não pode agir dentro
familiares como sujeitos, ouvi-los e compreendê-los dos moldes paternalistas que a medicina tradi-
em suas necessidades e estabelecer uma relação de cionalmente vem adotando. Quem está morren-
cooperação e corresponsabilidade pelas ações em do se estiver consciente, tem o direito de ser con-
saúde (Schimidt & Lima, 2004). siderado como sujeito, aliás, como ator principal,
e o cuidador, que está ao seu lado, partilhando
a dor da partida, pelo menos como ator coadju-
Idas e vindas – no hospital vante [...] [o que significa] 1) fornecer o máximo
Poucos dias antes da transferência de domicí- de informações possíveis, tomando o cuidado
lio, o paciente teve infecção no trato urinário pelo de dosá-las com apoio psicológico, no momen-
uso frequente de sonda de alívio e precisou ser hos- to adequado, sensível à medida com que os in-
pitalizado na UTI. Devido à gravidade do quadro e divíduos desejam ser informados; 2) discutir as
às doenças de base, as equipes assistenciais opta- decisões terapêuticas e engajá-los a tomar parte
ram por reafirmar a inserção do paciente em proto- nessas decisões […] (Incontri, 2011, p. 147).
colo de cuidados paliativos, agora naquela unidade.
Ao ser consultada sobre as decisões terapêuticas, Assim, o paciente, que permanecia nos seto-
Joana concordou que fossem realizadas somente res de internação, foi abordado quanto à mudança
medidas de conforto e referiu que esta era também de foco terapêutico para cuidados paliativos, tendo
a decisão dos filhos de Pedro. Antes de registrar estas sido informado sobre reafirmação da inserção em
orientações em prontuário, a EMCP tentou contato protocolo na hospitalização anterior, quando estava
com os filhos, considerando a importância de sua na UTI. Após explicações sobre objetivos e metas de
participação nestas decisões, porém não conseguiu tratamento e implicações quanto a não realização de
localizá-los. Sob cuidados paliativos, apesar da gravi- procedimentos invasivos (reanimação, internação
dade do quadro, alguns dias após internação na UTI em UTI, intubação), o filho referiu que sabia desta
o paciente recuperou-se da infecção e em 20 dias mudança de foco, porém não estava ciente quanto à
teve condições de alta. Finalmente, então, mudou-se decisão de Joana sobre não realizar medidas invasivas
para a cidade litorânea. de tratamento.
Após ter permanecido um mês em sua nova casa, O paciente e seu filho foram, em alguns atendi-
o paciente foi novamente hospitalizado por infec- mentos com a psicóloga em separado e também em
ção urinária. Na chegada ao pronto atendimento, conjunto com enfermeira e o médico da equipe de
Ana, cuidadora que o acompanhava, informou ao cuidados paliativos, orientados sobre esta filosofia
médico plantonista a decisão da família sobre tra- de tratamento, bem como da importância de refle-
tamento paliativo. Porém, o profissional solicitou a tir sobre decisões quanto ao final de vida. A todo o
presença dos familiares para confirmar a informação momento, foi garantido que seu desejo seria respei-
e consultar Pedro acerca de suas escolhas quanto tado e que havia a intenção das equipes em conhe-
às terapêuticas. Depois deste episódio, Joana e Ana cer suas diretrizes antecipadas de vontade. Diante da
procuraram pela psicóloga e, em conjunto com ela, comunicação sincera com o filho e o paciente, ques-
optaram por realizar nova abordagem para discus- tionado quanto ao seu desejo, Pedro referia compre-
são sobre as metas de tratamento. Nestes dias, o filho ender a gravidade e progressão das doenças, sem pos-
do paciente veio visitá-lo, quando então a psicóloga sibilidade de cura, porém solicitou: “Salva o velho!”.
informou sobre a intenção de promover este diálogo. Desejava, assim, que todo investimento em tera-
Marcos mostrou-se receptivo e solicitou que todas as pêuticas curativas fosse realizado e que sua vida fosse
conversas fossem realizadas junto com Pedro, que se prolongada. Solicitava que as equipes realizassem
recuperava bem da infecção e, devido à presença do todo o possível para manter sua vida e salvá-lo da
filho e recente mudança para a praia, apresentava morte. Após anos de adoecimento e de longo período
melhora no humor e na interação com o meio. em que não encontrava sentido para sua existência,

230
Langaro, F. (2016). Psicologia Hospitalar e Cuidados Paliativos.

Pedro havia aprendido a valorizar seus dias, a compa- e prioridades, demarcando qual a sua vontade frente
nhia dos filhos, a presença amorosa das cuidadoras e o à realidade que vivencia. A possibilidade de escolha
cuidado atencioso das equipes de saúde. Havia cons- é o alicerce da autonomia e, para que se concretize,
truído novos sentidos para suas experiências e a tris- é preciso que existam alternativas de ação. Se existe
teza anterior de estar vivo transformara-se: agora sen- um único caminho a seguir não existe possibilidade de
tia-se triste por pensar em “abandonar” este mundo e, exercício de autonomia (Medeiros, 2002).
por isso, solicitava que nenhum esforço deixasse de Assim, após diversos diálogos com o Pedro, seus
ser realizado para que pudesse continuar usufruindo familiares e cuidadoras, o paciente foi retirado de pro-
de suas novas conquistas. tocolo de cuidados paliativos, a equipe assistencial foi
Diante deste pedido, o médico da equipe de cui- informada sobre esta decisão compartilhada, as infor-
dados paliativos realizou nova avaliação do paciente, mações foram registradas e salientadas em prontuário,
incluindo aplicação do mini exame do estado mental, respeitando-se a decisão de Pedro de investir em tera-
em que constatou que Pedro não apresentava sinais pêuticas mesmo que isto levasse a prolongar sua vida
indicativos de demência, estando lúcido e orien- artificialmente. Inclusive, na presença da equipe, a cui-
tado, bem como o questionário Confusion Assessment dadora questionou o paciente: “o senhor entende que,
Method (CAM), em que não detectou presença de caso precise ir para a máquina de ventilação mecânica,
delirium, o que o tornava apto a tomar decisões sobre pode não sair mais, ficando dependente dela?”. Ainda
sua doença e tratamento. Conversou com ele nova- assim, o paciente solicitou: “Salva o velho!”. Mais: refe-
mente sobre quadro clínico e prognóstico, quando riu que desejava ser informado sobre tudo o que fosse
mostrava-se ciente da gravidade. Porém, reforçou que relacionado ao seu quadro e tratamento, direito este
se necessário desejava que fossem realizadas todas garantido pelo Código de Ética Médica.
as medidas de tratamento, inclusive as invasivas.
O médico conversou com Pedro, Joana e as cuidado-
ras que seriam mantidas as vontades do paciente e O recomeço e o fim
que o acompanhamento da equipe de cuidados palia- Após a interrupção do acompanhamento pela
tivos, a partir de então, seria realizado somente caso EMCP, o acompanhamento psicológico teve conti-
houvesse alguma mudança no quadro e nova solicita- nuidade durante as quatro hospitalizações que se
ção do médico assistente para reavaliação. seguiram ao longo dos seis primeiros meses daquele
Assim, a comunicação é um dos pilares da Medi- ano, devido ao importante vínculo estabelecido e ao
cina Paliativa. O mais importante não é exatamente impacto que as intervenções demonstraram ter na
o que dizer e sim como fazê-lo. Pode-se começar qualidade de vida de Pedro. Em todas elas, o paciente,
ouvindo o que o paciente já sabe, para fornecer as as cuidadoras, a esposa e, progressivamente, os filhos,
informações que ele consegue integrar de acordo foram acompanhados pela psicóloga.
com seu grau de entendimento (Costa Filho, Costa, Tornaram-se frequentes os diálogos de incentivo
Gutierrez & Mesquita, 2008). Neste sentido, a comu- à convivência com familiares e amigos, realização de
nicação é a base para a confiança na equipe, visto que desejos, estímulo à qualidade de vida, com passeios ao
famílias revelam que uma comunicação inconsistente sol e caminhadas próximas ao mar. Mesmo não inse-
é uma das suas maiores preocupações. A falta de cla- rido formalmente em protocolo de cuidados paliati-
reza e profundidade faz com que familiares reportem vos, o objetivo continuava sendo buscar que o paciente
dissabores e ansiedade pela forma com que seus entes vivesse o mais intensamente possível até o dia de sua
estão sendo tratados (Costa Filho et al., 2008, p. 90). morte. Os encontros eram recheados por histórias e ane-
Finalmente, outro aspecto indispensável para que dotas bem-humoradas contadas por Pedro, que se emo-
se realizem cuidados paliativos de qualidade é o res- cionava nos momentos de alta hospitalar, agradecendo
peito e o incentivo à autonomia do paciente, sendo este pelas intervenções realizadas. Neste período, apesar das
um dos princípios da bioética. A autonomia refere-se dificuldades de relacionamento com a esposa, optou
à possibilidade de escolha individual, ao direito que por dar continuidade ao casamento. Havia aprendido a
a pessoa tem de tomar decisões que afetem sua vida. compreendê-la e aceitá-la em sua maneira de ser.
Ao decidir o que é bom, o que é o seu bem-estar, a pes- Os colaboradores do hospital, principalmente
soa age de acordo com seus valores, suas necessidades o fisioterapeuta que o acompanhava desde início do

231
Psicologia: Ciência e Profissão Jan/Mar. 2017 v. 37 n°1, 224-235.

adoecimento, comentavam sobre a mudança de com- consequências de uma possível reanimação. Assim
portamento do paciente: de alguém impaciente, não sendo, o filho conversou com a médica e, após seus
colaborativo, mal-humorado, não receptivo, passou a esclarecimentos, passou a considerar a possibilidade
ser grato pelo trabalho realizado pelos profissionais, de mudança de foco terapêutico.
tornou-se ativo em seu tratamento, realizando com Por diversos dias o paciente permaneceu coma-
vontade as terapêuticas indicadas. toso na unidade de internação, com resposta somente
Em todos os atendimentos, Pedro mostrava-se a estímulos dolorosos, e o filho compreendia a gravi-
lúcido, orientado, ciente de todas as intervenções dade do quadro. Porém, referia dificuldade da irmã
realizadas. Por este motivo, as diversas avaliações rea- em aceitar a possível perda do pai. Por morar em
lizadas pelos médicos que o acompanharam em cui- outra cidade e visitar o paciente somente aos finais
dados paliativos e no serviço de atenção domiciliar, de semana, o atendimento psicológico à Gabriela não
bem como avaliações dos demais profissionais, fize- pôde ser realizado neste período, dificultando a ava-
ram discordar do diagnóstico de demência. Porém, liação de sua relação com o adoecimento e o prognós-
a esposa do paciente continuava referindo que a tico das doenças de Pedro. Ainda assim, por diversas
doença progredia e que o paciente estava cada vez vezes, a psicóloga orientou Marcos sobre importân-
mais confuso e sem lucidez. Com a participação mais cia de manter Gabriela informada dos diálogos com
efetiva e constante dos filhos nos cuidados, os con- a equipe e das reflexões e esclarecimentos realizados.
flitos pré-existentes entre filhos e esposa se intensi- Após alguns dias nesta condição de piora clí-
ficaram, tendo Marcos e Gabriela inclusive solicitado nica, o paciente teve nova melhora e voltou a intera-
nova avaliação médica quanto ao quadro neurológico, gir, embora tivesse significativa dificuldade na fala.
quando então o médico assistente, durante uma das Ainda assim, tão logo quanto possível, foi novamente
internações, atestou lucidez, consciência e orientação questionado sobre seu desejo quanto às terapêuticas,
adequadas e incompatíveis com demência. quando reforçou: “Salva o velho!”. Embora as terapêu-
No início da quarta hospitalização após a ticas curativas tenham sido mantidas, diante deste
mudança para a praia, o paciente comentava o fato de, pedido veemente de Pedro, a psicóloga avaliava o medo
nos últimos meses, ter saído cinco vezes da UTI. Isto intenso de morrer do paciente. Em um dos atendimen-
reforçava seu desejo de que todo investimento em tra- tos posteriores, o questionou sobre como compreendia
tamentos curativos fosse realizado. Passados alguns sua doença naquele momento e ele disse “estar che-
dias desde a entrada no hospital, porém, esteve muito gando...”, referindo-se ao agravamento do quadro e à
próximo a ter uma parada cardíaca. Sua pressão arte- proximidade da morte. Foi então abordado sobre como
rial e frequência cardíaca haviam diminuído consi- se sentia, quando chorou intensamente, mas agrade-
deravelmente, bem como seu nível de consciência. ceu por tudo o que havia sido feito por ele.
Diante deste quadro, médica assistente conversou Sentia-se grato, porém não queria deixar a vida.
novamente com a esposa e os filhos sobre possibili- Preocupava-se com os filhos, não sabia como pensar
dade de retomada dos cuidados paliativos. Embora a sobre a morte, “nunca havia desenvolvido sua espiritua-
esposa concordasse, Marcos e Gabriela, impactados lidade”. A psicóloga reforçou o desenvolvimento pessoal
pelos conflitos com Joana, não concordaram com a ocorrido desde o início do acompanhamento psicoló-
mudança de foco. gico, bem como o crescimento e mudança ocorridas em
Neste momento, a equipe de enfermagem sua forma de viver e de se relacionar com o adoecimento
mostrou-se ansiosa e questionou a psicóloga “quanto e com as pessoas. Além disso, foi lembrado de que sim,
ao que fazer em caso de parada cardíaca”. Conside- as equipes realizariam todos os esforços necessários
rando a retirada do paciente do protocolo de cuida- para “salvar o velho”, mas que, em algum momento,
dos paliativos a seu pedido, a orientação era de rea- as possibilidades também se esgotariam... Assim, con-
lizar reanimação e isto foi reforçado. Porém, diante forme descreve Santos (2011, p. 457),
da progressiva aproximação e do vínculo com os
filhos, a psicóloga conversou com Marcos a respeito da perspectiva do desenvolvimento intelectual,
da possibilidade desta intercorrência, estimulando-o cultural e espiritual, os pensamentos, sentimen-
a falar novamente com a médica assistente, sem a tos, experiências e atividades durante os últimos
presença de Joana, para retirar dúvidas e considerar meses, dias e momentos da vida da pessoa que

232
Langaro, F. (2016). Psicologia Hospitalar e Cuidados Paliativos.

está morrendo podem ser mais importantes do Decorridos 20 dias após a alta desta internação,
que onde e como a pessoa morre ou as causas o paciente retornou ao hospital, com nova infecção
da morte. [...] A presença da finitude e o apareci- no trato urinário. Além do tratamento com antibió-
mento de oportunidades de crescimento, mesmo ticos, seria realizada troca de traqueostomia. Assim,
no fim da vida, talvez sejam os últimos grandes numa sexta-feira, poucos dias após hospitaliza-
desafios para o desenvolvimento da psique ou ção, a psicóloga visitou o paciente no leito. Depois
do espírito. [...] A fase do morrer de nossas vidas de alguns instantes de atendimento, em que Pedro
pode ser vivenciada como um dos eventos de falava sobre as dificuldades no relacionamento com
mais crescimento que poderíamos experimentar a esposa e de consequentes decisões tomadas, inclu-
na nossa jornada ao longo da vida. sive em termos legais, chegaram seus filhos. Decorreu
então um encontro em que Marcos e Gabriela mostra-
Nesse período, por meio do atendimento a Mar- ram à psicóloga as fotos de Pedro com seu cachorro
cos, a psicóloga verificou que Gabriela empenhava-se, em sua casa, na praia, bem como fotos antigas,
em sua vida pessoal, a desenvolver de maneira bas- do paciente ainda criança, sentado com seus irmãos e
tante intensa sua espiritualidade. Ponderou com ele empunhando chocolates de páscoa. O paciente con-
sobre a possibilidade dela compartilhar com o pai tava tudo: onde estava, com quem estava, como era
suas crenças, para construir com ele significado para sua vida, como havia sido a infância e a adolescên-
a vida e para a morte, visto que este processo pode cia... Mostrava-se feliz pelo momento, lembrando de
aumentar o bem-estar espiritual e diminuir a pos- boas experiências da vida. Muitos sorrisos e histórias
sibilidade de desespero ao final da vida (Breitbart, divertidas foram compartilhadas. Ter olhado para o
2011). Além disso, orientou sobre a possibilidade passado por meio do relembrar antigas memórias era
de o paciente receber acolhimento espiritual, por uma possibilidade de dar razão para sua existência
meio do agendamento de visita ao hospital, quando junto aos sues próximos, sendo parte de um processo
Marcos informou que um religioso amigo da família de aceitação da morte. Por meio de suas lembranças
já havia conversado com o paciente, oferecendo-lhe e memórias, na presença de seus familiares, Pedro
este suporte. encontrou paz e conforto (Corrêa, 2011).
Observava-se que filhos mostravam-se participa- Foi uma despedida. Naquela madrugada, Pedro
tivos, compreensivos, desejosos de entender os sen- teve uma parada cardíaca. Embora tenha sido reani-
timentos do pai e auxiliá-lo a enfrentar os momentos mado após apenas três minutos, retornou à vida em
finais de vida. Assim, foram informados sobre o medo estado vegetativo. Foi levado à UTI, permanecendo
de Pedro diante da morte e do seu apego pela vida, neste setor por cinco dias, quando os filhos continu-
para que, após a alta hospitalar, que já estava progra- aram sendo acompanhados pela psicóloga. Diante da
mada, pudessem continuar mediando suas reflexões irreversibilidade e agravamento do quadro, Marcos
e oferecer suporte emocional a ele. Assim, possibilitar e Gabriela intensificaram a elaboração de um luto
a Pedro o enfrentamento da morte poderia aprimorar antecipatório. De alta da UTI, o paciente foi encami-
o processo de busca por significado e encerramento nhado ao setor e, após dois dias, médica assistente
da vida, permitindo a ele a oportunidade de aprovei- solicitou nova avaliação da equipe de cuidados palia-
tar seu potencial ao máximo, de deixar para trás um tivos. Embora o médico paliativista estivesse receoso
legado autêntico e de conectar-se com o que está quanto a esta nova abordagem, pelo histórico anterior
além, de transcender (Breitbart, 2011). Nesta busca, de inserção e retirada em protocolo, psicóloga sabia
que, neste momento, os filhos estariam abertos a este
o objetivo é preservar a ideia de que ainda há novo diálogo e acompanhou médico neste encontro.
vida a ser vivida, de que ainda há tempo pela Em conversa com a psicóloga e com o médico da
frente, para que o indivíduo possa morrer com equipe de cuidados paliativos, os filhos foram enfáti-
um senso de paz, equanimidade e aceitação da cos sobre desejo de não realizar nova reanimação ou
vida que viveu. O paradoxo da dinâmica da fase outros procedimentos invasivos de tratamento, pois
terminal é que por meio da aceitação da vida que referiam que “o pai não desejava permanecer assim”,
foi vivida vem a aceitação da morte (Breitbart, ou seja, o paciente após as intervenções realizadas,
2011, p. 140). havia referido que, caso chegasse àquele estado, não

233
Psicologia: Ciência e Profissão Jan/Mar. 2017 v. 37 n°1, 224-235.

desejava que sua vida fosse prolongada. Até o último e sociais; o cultivo de um vínculo de amizade e con-
momento, portanto, Marcos e Gabriela optaram por fiança, possibilitando aos paciente, familiares e cui-
respeitar os desejos do paciente. dadoras sentirem-se acolhidos, seguros e aliviados
Durante os dias seguintes, Pedro permaneceu psíquica e espiritualmente com a presença da equipe
irresponsivo, porém mudou sua feição: inicialmente (Incontri, 2011).
tinha uma expressão, segundo Marcos, “de brabeza”. Em todo este processo, além do trabalho de suporte
Aos poucos, apresentava uma face serena. Após cinco ao paciente e à família para o enfrentamento do adoe-
dias da inserção em protocolo de cuidados paliativos, cimento e finitude, o acompanhamento psicológico foi
na presença de uma das cuidadoras, de madrugada, fonte de mediação e ligação entre os atendimentos rea-
o paciente teve nova parada cardíaca e não foi rea- lizados pelos demais profissionais. Realizou-se, assim,
nimado. O óbito foi num sábado, mas, ainda assim, o apoio também às equipes assistenciais para a tomada
os familiares informaram a psicóloga, que não pôde de decisões, visando principalmente garantir que a
participar do funeral tendo em vista que ele ocor- autonomia do paciente fosse preservada e suas escolhas
reu em uma cidade distante. Contudo, na semana fossem incluídas nas condutas adotadas.
seguinte, a profissional realizou contatos telefônicos E tudo parece ter, apesar das diversas reviravoltas,
com uma das cuidadoras e também um atendimento contribuído para que o paciente se desligasse da vida
ao filho, que se mostrava tranquilo e assim também e para que os filhos pudessem estar tranquilos com
referia estar sua irmã. relação às decisões tomadas. Além deles, também sua
esposa e cuidadoras, que algumas vezes voltaram ao
hospital para rever as equipes, mostravam um enfren-
Últimas palavras tamento sem complicações do luto pela perda. Neste
Findado o atendimento, o “vai-e-vem” do sentido, ter criado condições de promover o luto
paciente em protocolo de cuidados paliativos foi um antecipatório, possibilitando ao paciente fazer suas
intenso aprendizado para a equipe. Todos se modi- despedidas, deu a oportunidade de morte serena e a
ficaram. Neste processo, ficou demarcada a impor- promoção de um luto saudável à família (Macieira &
tância do respeito aos desejos, opiniões, crenças e Palma, 2011). O trabalho em cuidados paliativos e as
história de vida de Pedro e de sua família; a busca intervenções em Psicologia contribuíram, assim, para
pela resolução de pendências emocionais, espirituais que Pedro falecesse tranquilo e “a salvo”.

Referências

Academia Nacional de Cuidados Paliativos - ANCP. (2012). Manual de cuidados paliativos. Rio de Janeiro, RJ: o autor.
Breitbart, W. S. (2011). Retidão, integridade e cuidado: como viver diante da morte. In F. S. Santos, Cuidados palia-
tivos: diretrizes, humanização e alívio de sintomas. (pp. 131-140). São Paulo, SP: Atheneu.
Conselho Federal de Psicologia. (2001). Resolução CFP nº 02/01. Altera e regulamenta a Resolução CFP no 014/00
que institui o título profissional de especialista em psicologia e o respectivo registro nos Conselhos Regionais..
Brasília, DF: o autor.
Corrêa, S. R. (2011). O cuidar do moribundo nas últimas 48 horas. In F. S. Santos, Cuidados paliativos: diretrizes,
humanização e alívio de sintomas (pp. 625-635). São Paulo, SP: Atheneu.
Costa Filho, R. C., Costa, J. L. F., Gutierrez, F. L. B. R., & Mesquita, A. F. (2008). Como implementar cuidados
paliativos de qualidade na unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, 20(1), 88-92.
https://doi.org/10.1590/S0103-507X2008000100014
GIL, A. C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social (6a ed.). São Paulo, SP: Atlas.
Incontri, D. (2011). Equipes interdisciplinares em cuidados paliativos – religando o saber e o sentir. In F. S. Santos,
Cuidados paliativos: diretrizes, humanização e alívio de sintomas (pp. 141-148). São Paulo, SP: Atheneu.
Kóvacs, M. J. (2007). Perdas e o processo de luto. In D. Incontri, & F. S. Santos (Org.), A arte de morrer: visões plurais
(pp. 217-238). Bragança Paulista, SP: Comenius.

234
Langaro, F. (2016). Psicologia Hospitalar e Cuidados Paliativos.

Kübler-Ross, E. (2011). Sobre a morte e o morrer (9a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.
Macieira, R. C., & Palma, R. R. (2011). Psico-oncologia e cuidados paliativos. In F. S. Santos, Cuidados paliativos:
diretrizes, humanização e alívio de sintomas (pp. 323-330). São Paulo, SP: Atheneu.
Medeiros, G. A. (2002). Por uma ética na saúde: algumas reflexões sobre a ética e o ser ético na atuação do psicó-
logo. Psicologia: Ciência e Profissão, 22(1), 30-37. https://doi.org/10.1590/S1414-98932002000100005
Menezes, R. A. (2011). Tomadas de decisão, poder médico e sentimentos no último período de vida. In F. S. Santos,
Cuidados paliativos: diretrizes, humanização e alívio de sintomas (pp. 193-200). São Paulo, SP: Atheneu.
Santos, F. S. (2011). Cuidados paliativos em geriatria. In F. S. Santos, Cuidados paliativos: diretrizes, humanização e
alívio de sintomas (pp. 453-473). São Paulo, SP: Atheneu.
Schimidt, M. D., & Lima, M. A. D. S. (2004). Acolhimento e vínculo em uma equipe do Programa Saúde da Família.
Cadernos de Saúde Pública, 20(6), 1487-94. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2004000600005
Serralta, F. B., Nunes, M. L. T., & Eizirik, C. L. (2011). Considerações metodológicas sobre o estudo de caso na pesquisa em
psicoterapia. Estudos de Psicologia (Campinas), 28(4), 501-510. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2011000400010
Silva, C. S., Siqueira, J., Stroppa, A., & Moreira-Almeida, A. (2011). Coping espiritual e cuidados paliativos. In F. S.
Santos, Cuidados paliativos: diretrizes, humanização e alívio de sintomas (pp. 175-182). São Paulo, SP: Atheneu.
Yamaguchi, A. M. & Oliveira, I. V. (2011). Cuidados paliativos na assistência domiciliar. In F. S. Santos, Cuidados
paliativos: diretrizes, humanização e alívio de sintomas (pp. 31-38). São Paulo, SP: Atheneu.

Fabíola Langaro
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Especialista em Psicologia da Saúde
e Hospitalar pela FPP. Psicóloga Hospitalar do Centro Hospitalar Unimed. Docente da Faculdade Guilherme
Guimbala/Associação Catarinense de Ensino, Joinville, SC, Brasil.
E-mail: flangaro@hotmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Centro Hospitalar Unimed Joinville, Rua Orestes Guimarães, 905, América. Joinville – SC, Brasil.

Recebido 29/06/2014
Aprovado 16/11/2016

Received 06/29/2014
Approved 11/16/2016

Recibido 29/06/2014
Aceptado 16/11/2016

Como citar: Langaro, F. (2017). “Salva o Velho!”: relato de atendimento em psicologia hospitalar e cuidados
paliativos. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(1): 224-235. https://doi.org/10.1590/1982-3703000972014

How to cite: Langaro, F. (2017). “Save the Eldery!”: care report in health psychology and palliative care. Psicologia:
Ciência e Profissão, 37(1): 224-235. https://doi.org/10.1590/1982-3703000972014

Cómo citar: Langaro, F. (2017). “Salva al Adulto Mayor!”: informe de atención en psicología de la salud y cuidados
paliativos. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(1): 224-235. https://doi.org/10.1590/1982-3703000972014

235

Você também pode gostar