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E-mail: giovandro.ferreira@gmail.com.
E-mail: cauoliveira@yahoo.com.br.
Resumo
Neste artigo, buscamos demonstrar como o círculo hermenêutico, proposto por Paul Ricoeur,
suplanta as fronteiras impostas pelo círculo semiológico, ao contemplar os elementos
intralinguísticos e extralinguísticos constituintes do discurso, ou seja, as suas condições
de produção e reconhecimento. Ricoeur, ao assumir o compromisso de desenvolver uma
hermenêutica aplicada, deixou pistas para os estudos discursivos, especialmente no que tange
aos discursos sociais como constitutivos de matérias significantes heterogêneas (Verón, 1987,
1998, 2004, 2013). O texto vincula o processo de semiotização global do mundo a conceitos da
Análise do Discurso (AD), a fim de construir apontamentos para análise dos discursos sociais.
Palavras-chave: Discurso; Social; Mímesis; Semiose; Sentido.
Abstract
This article aims to demonstrate how the hermeneutic circle, proposed by Paul Ricoeur,
overcomes the boundaries imposed by the semiological circle, by encompassing intralinguistic
and extralinguistic constituents of the speech, that is, its production and recognition
conditions. When Ricoeur assumed the commitment to develop applied hermeneutics, he left
clues for speech studies, especially concerning social speeches as part of heterogeneous and
meaningful features (VERÓN, 1987, 1998, 2004, 2013). The text links the process of global
semiotization of the world to concepts of Speech Analysis (AD), in order to construct notes
for the analysis of social speeches. 47
Keywords: Speech; Social; Mimesis; Semiosis; Meaning
Resumen
En este artículo, buscamos demostrar cómo el círculo hermenéutico, propuesto por
Paul Ricoeur, suplanta las fronteras impuestas por el círculo semiológico, al contemplar
los elementos intralinguísticos y extralinguísticos constituyentes del discurso, o sea, sus
condiciones de producción y reconocimiento. En cuanto a los discursos, especialmente
en lo que se refiere a los discursos sociales como constitutivos de materias significativas
heterogéneas (VERÓN, 1987, 1998, 1998, 2004, 2013), Ricoeur, al asumir el compromiso de
desarrollar una hermenéutica aplicada, dejó pistas para los estudios discursivos, especialmente
en lo que se refiere a los discursos sociales como constitutivos de materias significativas
heterogéneas. El texto vincula el proceso de semiotización global del mundo a conceptos del
Análisis del Discurso (AD), a fin de construir apuntes para el análisis de los discursos sociales.
Palabras clave: Discurso; social; mímesis; semiosis; Sentido.
1. A tríplice mímesis para além do círculo
semiológico A função mimética é exercida, de preferência,
“O tempo torna-se tempo humano na medi- no campo da ação e de seus valores temporais.
da em que está articulado de modo narrativo, Para o autor, a narrativa, entendida enquanto
e a narrativa alcança sua significação plenária estruturação e não estrutura, comporta três se-
quando se torna uma condição de existência melhanças miméticas: mímesis I (pré-configu-
temporal” (Ricoeur, 2010a, p.93). A principal ração) – é o tempo da ação ou vivido; mímesis
hipótese, elaborada pelo filósofo francês Paul II (configuração) – é o tempo da invenção, ou
Ricoeur, nos três volumes sobre o Tempo e a armação da intriga e mímesis III (re-configura-
Narrativa, surgiu da conexão entre as refle- ção) – o tempo de leitura, encontro do mundo
xões sobre o tempo, em Santo Agostinho, e a do texto com o mundo do leitor.
tessitura da intriga, em Aristóteles. Ricoeur Edificado nas três mímesis, o círculo her-
propôs reparar duas fissuras: conferir à nar- menêutico constitui um aporte metodológico
ratologia um aspecto temporal e oferecer ao para a Análise de Discurso, pois ultrapassa o
tempo uma extensão. Dessa forma, o círculo círculo semiológico, ao contemplar os aspectos
hermenêutico tenta dissolver a aporia do tem- extralinguísticos (Ferreira, 1999). Mediante as
po, tratando da problemática do tempo físico, noções de mundo a configurar, mundo confi-
cronológico, e das indagações em torno da gurado e mundo refigurado, Ricoeur aponta
existência de um ser no tempo. As narrativas, que, na relação entre os interlocutores do ato
enquanto viabilidade de presentificação, de comunicativo, três dimensões estão dispostas
permanente atualização, concedem ao tempo no discurso: a medição do signo, o reconheci-
a possibilidade do ser, independente das re- mento do outro implicado no ato da interlocu-
ferências ao passado, projeções para o futu- ção e, por fim, a relação com o mundo também
ro ou fluidez do presente. Entretanto, narrar solicitada na visão referencial do discurso.
48 não é só atualizar acontecimentos, é também Para Eliseo Verón (1987, 1998, 2004, 2013),
instaurar a tessitura da intriga, agenciar o que o discurso é um lugar de convergência dessas
parecia solto ou fragmentado. “Compor a in- três problemáticas.
triga já é fazer surgir o inteligível do aciden- Ao desenvolver a sociossemiótica ou a “teoria
tal, o universal do singular, o necessário ou dos discursos sociais”, Verón buscou transpor
o verossímil do episódico” (Ricoeur, 2010a, as limitações da pragmática, ultrapassando o
p.74). A intriga, para Aristóteles, é a míme- domínio dos enunciados linguísticos para abar-
sis da ação, cuja ideia é recuperada e refinada car os discursos sociais enquanto constitutivos
por Ricoeur na perspectiva de uma imitação de matérias significantes heterogêneas, como
criadora: imagens, cores, design gráfico etc. Além disso,
a pragmática aborda os enunciados fora de todo
Evoco em Aristóteles a célula melódica de e qualquer contexto discursivo e do contexto
uma dupla reflexão, cujo desenvolvimen-
situacional real, enquanto a sociossemiótica
to é tão importante quanto o impulso ini-
cial. Esse desenvolvimento afetará os dois pretende dar conta das condições de produção
conceitos inspirados em Aristóteles, o de e de reconhecimento do discurso – os dois po-
tessitura da intriga (mythos) e o de ativi- los do sistema produtivo de sentido. Se, para a
dade mimética (mímesis) (Ricoeur, 2010a, pragmática, vale o estudo de diversos enuncia-
p.57).
dos e de suas possíveis situações de enunciação,
Figura 1 – Círculo hermenêutico de Ricoeur e a produção de sentido de discurso
Fonte: Adaptação da autora, a partir de Ricoeur (2010ª), Verón (1987, 2004, 2013)
O círculo hermenêutico, ao evidenciar os pro- O semiólogo relembra que o caminho possível
cessos de transformação e transação, revela tan- para trabalhar os discursos é, em primeiro lugar,
to os sujeitos no interior do discurso quanto os reconhecê-los como objetos históricos e, portan-
sujeitos externos à tessitura da intriga, os sujei- to, conviver com a constatação de que a abor-
tos historicamente determinados, que estão em dagem será sempre incompleta. No discurso,
relação nas situações de comunicação. Ressalta, faz-se necessário identificar e “conceitualizar as
assim, o aspecto da reciprocidade e liberdade re- configurações dos vestígios deixados pelas ope-
lativa entre as instâncias de produção e reconhe- rações cognitivas, as quais teremos que postular
cimento. Os dois polos mantêm uma liberdade na forma de gramáticas discursivas, incompletas
relativa, mas não uma autonomia. Eis, então, a e fragmentárias”11 (Verón, 2013, p.118).
justificativa para a escolha deste aporte metodo- Nesse âmbito, a atenção não se atém ao
lógico: “As três mímesis, que edificam o círculo enunciado, mas à enunciação e suas implica-
hermenêutico de Ricoeur, nos ajudam a melhor ções. Trata-se “de estudar não somente os si-
apreender as tramas de uma semiotização global, nais, nem os discursos, mas os processos de
em que os sujeitos posicionados no interior e fora produção, circulação e consumo da comunica-
do discurso são plenos de sentido para entender- ção” (Alsina, 2009, p.22). Afinal de contas, o
mos as estratégias adotadas para produzir e reco- objeto sociodiscursivo é “historicamente atra-
nhecer discurso” (Ferreira, 1999, p.93). vessado por fatores espaciais, temporais, insti-
No livro La Semiosis Social 2 – Ideas, Momen- tucionais e políticos”. (Sodré, 2009, p.26), seu
tos, Interpretantes, publicado em 20139, Eliseo estudo sempre remete a aspectos extratextuais.
Verón, em diálogo com Culioli (2010), pondera Analisar discursos é, pois, não perder de vis-
que as relações do discurso com suas condições ta dois aspectos: o social, evitando a ilusão da
de produção, por um lado, e condições de reco- unidade da consciência subjetiva, e a comple-
nhecimento, por outro, “supõem processos cog- xidade dinâmica da semiose, que não cabe nas
nitivos que não são inacessíveis e que remetem, perspectivas calcadas em estruturas e sistemas 57
por definição, a regulações (linguísticas e não (Verón, 2013).
linguísticas) entre os atores, articulados a múlti-
plas redes institucionais”10 (Verón, 2013, p.118). regulaciones (lingüísticas y no lingüísticas) entre los actores, articu-
lados a múltiples redes institucionales”.
9 Verón, Eliseo. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretan- 11 Tradução nossa para: “Para trabajar con los objetos discursivos,
tes. Buenos Aires: Paidós; Planeta, 2013. no tenemos otro camino que el de conceptualizar e identificar las co-
10 Tradução nossa para: “Las relaciones de un tipo de discursividad figuraciones de huellas que, em el discurso, han dejado operaciones
con sus condiciones de producción, por un lado, y con sus condicio- cognitivas que tendremos que postular bajo la forma de gramáticas
nes de reconocimiento, por outro lado, suponen procesos cognitivos discursivas, incompletas y necesariamente fragmentarias, porque se
que nos son inaccesibles y que además reenvían, por definición, a trata de objetos históricos”.
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