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Dano Existencial Nas Relações Familiares Oriundo Da Inobservância Do Dever Parental de Cuidado
Dano Existencial Nas Relações Familiares Oriundo Da Inobservância Do Dever Parental de Cuidado
Resumo
1 INTRODUÇÃO
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Pós-graduanda Lato Sensu em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Arnaldo; Bacharel em Direito
pela Faculdade da Cidade de Santa Luzia – FACSAL.
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Surge daí a percepção do cuidado na ambiência familiar, como pano de fundo das
ações dos pais em prol dos filhos. O cuidado se consolida na medida em que assume
relevância e se traduz nos deveres de criação, assistência, educação e convivência.
O presente artigo tem por escopo a análise do dever parental de cuidado e os possíveis
reflexos da omissão desse dever, a fim de possibilitar um sopesamento quanto à aplicabilidade
dos institutos da reparação civil a tal situação.
Uma vez esclarecidos os possíveis efeitos da ausência de cuidado nas relações
familiares, será abordada a matéria concernente aos danos morais e sua extensão, a fim de
verificar se as prováveis consequências do descuidado se limitam a ofensa moral ou podem
estender-se para um tipo de dano extrapatrimonial que a doutrina italiana denominou Dano
Existencial.
Esse estudo justifica-se pela recorrência das situações de descumprimento dos deveres
parentais, sobretudo, o abandono afetivo que aqui é tratado como um dos elementos da
inobservância do cuidado, porquanto indissociáveis por natureza e etimologia.
E ainda, justifica-se pelo fato de haver resistências a aplicação da responsabilidade
civil às relações familiares, que leva uma vasta gama de pessoas a se depararem com uma
verdadeira negativa de acesso a jurisdição.
É cediço que, enquanto elemento estruturante da sociedade, a família passou por
gradativas alterações, que a trouxeram a um estágio atual de primazia da pessoa de seus
integrantes sobre o instituto, de modo que, ela desponta, agora, como ambiente propício ao
pleno desenvolvimento da pessoa humana, se revestindo de um caráter eudemonista.
Entretanto, quando inobservados certos deveres, as consequências daí decorrentes se mostram
extremamente gravosas, não havendo razão para não se cogitar a aplicação da
responsabilidade civil.
Assim, se revela objetivo deste artigo, através da análise das consequências da
inobservância do dever parental de cuidado, demonstrar a possibilidade de reparação civil sob
a rubrica do dano existencial, cuja construção doutrinária-jurisprudencial será abordada,
sobretudo, por meio do direito comparado.
Desse modo, a interdisciplinaridade e o estudo comparado se mostram presentes ao
longo de todo o texto, que se encontra estruturado em dois grandes tópicos que tratam da
proteção da criança e do adolescente, evidenciando a consolidação do cuidado como dever
parental; e da caracterização do dano existencial, sua amplitude e distinção em relação ao
dano moral.
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Isso sem dúvida significa que os homens dos séculos X-XI não se detinham
diante da imagem da infância, que esta não tinha para eles interesse, nem
mesmo realidade. Isso faz pensar também que no domínio da vida real, e não
mais apenas no de uma transposição estética, a infância era um período de
transição, logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida.
(ARIÈS, 2006, p. 40)
Entre os séculos XV e XVI, a criança era enviada a outras famílias assim que
completava sete anos de idade, para que aprendesse um ofício e fosse educada. Essa situação
de distanciamento entre pais e filhos persistiu até o século XVII quando a relação estreitou-se.
Ariés (2006, p. 189) retrata a transição da Idade Média para a Moderna na estruturação
da família e no modo de enxergar a criança:
casas, ela era o centro das relações sociais, a capital de uma pequena
sociedade complexa e hierarquizada, comandada pelo chefe de família.
A família moderna, ao contrário, separa-se do mundo e se opõe à sociedade
o grupo solitário de pais e filhos. Toda energia do grupo é consumida na
proporção das crianças, cada uma em particular, e sem nenhuma ambição
coletiva: as crianças mais do que a família.
Passada a fase inicial de colonização, o século XVIII surgiu marcado pela intervenção
estatal, no sentido de corroborar o poder do pai dentro da família, consequência do pátria
potestas que já se noticiou outrora, tornando a casa-grande o modelo tradicional de família no
Brasil Colônia até meados do século XIX.
A República trouxe consigo alterações significativas para a família, que em busca de
estudo para os filhos migrou para as grandes cidades abandonando o campo e os agregados
que viviam sob as ordens do pai na casa-grande.
Nesse momento de euforia, a criança foi vista como a esperança de um futuro
prodigioso para a incipiente nação.
O século XX, entretanto, foi marcado inegavelmente pelo fracasso das ideias do século
que o precedeu, toda a euforia desfizera-se, quando as cidades encontraram-se
assombrosamente abarrotadas de uma população vinda do campo à procura de trabalho nas
grandes fábricas. (KREUZ, 2012)
No fim do século XX, segundo Kreuz (2012), o país passou por um período de
redemocratização que culminou na promulgação da Constituição da Republica de 1988 e na
introdução do Estatuto de Proteção à Criança e ao Adolescente, que surgiu como corolário dos
movimentos internacionais de proteção ao menor.
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O Código Civil de 2002, por sua vez, assomou-se ao ordenamento jurídico como uma
quebra de paradigma em relação ao seu antecessor. A primazia da pessoa sobre a instituição
veio coadunar-se com os princípios, direitos e garantias insculpidos na Constituição Federal e
sua repercussão sobre o Direito de Família deu-se na medida em que o foco passou a ser o
sadio desenvolvimento e bem estar dos integrantes da família. (LOBO, 2011)
Esses diplomas legais foram promulgados com preceitos oriundos da Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, que consagrou o Princípio do Melhor
Interesse da Criança, defendendo que esta deveria ser posta no centro das relações familiares e
tratada com dignidade, respeito, tolerância e solidariedade.
Essa compreensão ilide o caráter patrimonialista até então existente no Código Civil
de 1916 e contribui para a repersonalização dos indivíduos, tornando-os alvos individuais de
promoção no Código Civil atual.
Assim, o sistema jurídico pátrio vem evoluindo no sentido de promover a pessoa
humana e de assegurar que ela desenvolva todo o seu potencial, sobretudo, os menores, cujos
interesses são tutelados com primazia. Surge daí, como elemento indispensável ao
desenvolvimento do infante, o cuidado, valor jurídico que fundamenta os deveres parentais e
as ações governamentais e sociais em prol dos menores. (MEIRELLES, 2013)
O cuidado, enquanto ―expressão humanizadora‖ (WALDOW, 2006, p. 27) encontra
respaldo na Constituição Federal que hasteou a bandeira da Paternidade Responsável, em seu
art. 226, § 7º, preconizando que, por um lado, aos pais é conferida a liberdade de
planejamento familiar, mas, por outro, lhes é exigida a paternidade responsável,
determinando-lhes o dever jurídico de sustento, guarda e de educação da prole.
Igualmente, o art. 229 da Constituição Federal evidencia o cuidado, na medida em que
determina ser dever dos pais a assistência, criação e educação dos filhos menores, aqui o valor
jurídico do cuidado transforma-se em verdadeiro dever jurídico.
Nesse mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça em acórdão paradigmático do
REsp n° 1.159.242/SP, lastreou-se na percepção atual do cuidado como dever jurídico e sua
reverberação para a esfera da responsabilidade civil, porquanto, o compreendeu como
elemento indispensável para a plena formação da personalidade do menor.
Observa-se, que o cuidado não é algo intuitivo e que refoge ao campo jurídico, ele é
fator essencial ao pleno desenvolvimento de uma pessoa e indispensável à construção de seu
patrimônio existencial, enquanto instrumento do afeto. Por esse motivo, encontrando-se
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Nesse sentido, há que se evidenciar que ―mais que fotos na parede ou quadros de
sentido, família é possibilidade de convivência‖, de respeito, de afeto e de cuidado.
(FACHIN, 1999, p. 14).
Sobre a relevância do cuidado cabe, ainda, citar uma pesquisa feita em 1945 pelo
psicanalista René Spitz com crianças institucionalizadas que recebiam, tão somente, o
tratamento padrão. Acerca de tal pesquisa Mônica Rodrigues Cuneo (2012, p. 418) afirma:
O contato inicial do ser humano com o afeto vem do núcleo familiar, é na ambiência
doméstica que são, ou, pelo menos deveriam ser construídos os laços de afetividade, os
valores morais e a consciência social, por meio do cuidado tão característico da família.
Giselle Groeninga (2006, p. 449), demonstra a importância do afeto na formação da
personalidade e a importância do cuidado, como elemento de humanização:
Por isso mesmo, a ausência de cuidado, pode se revelar tão destrutiva, pode provocar
danos como os relatados por Spitz, que impedem o pleno desenvolvimento de uma pessoa,
que levam o seu sistema psíquico a se comportar de forma anômala e sua personalidade a se
constituir de modo precário.
Nesse sentido, impende-se demonstrar estudo feito pelo psicanalista Winnicott (1982,
p. 161), para quem o cuidado se revela como elemento essencial no desenvolvimento de uma
criança:
Condicionar uma pessoa a viver de tal modo é ser permissivo diante de evidente
violação à sua dignidade, à sua moral e à sua integridade psicológica, o que se torna ainda
mais repudiável quando a imposição é feita a uma criança ou um adolescente.
Como leciona Rodrigo da Cunha Pereira (2006) ―os pais são responsáveis pela
educação de seus filhos, sim, e pressupõe-se aí, dar afeto, apoio moral e atenção. Abandonar e
rejeitar um filho é violar direitos. A toda regra jurídica deve corresponder uma sanção, sob
pena de tornar-se mera regra moral‖.
Quando se permite que um menor seja negligenciado, tenha seu desenvolvimento
tolhido e suporte o ônus de uma personalidade frustrada, há um retrocesso de décadas na
proteção da criança, violando princípios consagrados no Direito Brasileiro, como o Melhor
Interesse da Criança, a Prioridade Absoluta e a Primazia dos Interesses do Menor.
Já se demonstrou alhures espécies de danos que a inobservância de cuidado pode
provocar, tais como, o sentimento de abandono, o embotamento afetivo, a incapacidade de
desenvolver relacionamentos, a impotência, a angústia, a perda de identidade, a auto
desvalorização, entre outros.
Note-se que tais danos vão além da esfera puramente moral, visto que, uma vez
ocorridos são capazes de alterar os hábitos de vida da vítima, de mudar sua forma de se
relacionar, impedindo-a de viver todas as suas potencialidades. São danos, cujos efeitos se
projetam no tempo e acabam por ditar o comportamento da vítima.
A aceitação do dano moral no direito pátrio não se deu de modo pacífico, muitas
foram as teorias e os embates travados sobre a aplicabilidade e delimitação do mesmo.
Segundo Facchini Neto e Wesendonck (2012), houve três fases de compreensão do
dano moral, quais sejam: estágio da concepção tradicional ou negativo, estágio crítico e
estágio contemporâneo ou constitucionalizado.
O último estágio, contemporâneo ou constitucionalizado, representa o cenário jurídico
pátrio atual, no qual se compreende o dano moral como toda violação aos bens jurídicos da
personalidade, em seu aspecto objetivo, bem como, todo dano que provoca dor, humilhação,
sofrimento, angústia ou tristeza, que para Maria Celina Bodin (2003) representa o aspecto
subjetivo, para quem, ainda, os danos morais consistiriam em verdadeira violação a Cláusula
Geral de Tutela e Promoção da Pessoa Humana.
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―Art. 2.059. Danni non patrimoniali. Il danno non patrimoniale deve essere risarcito solo nei casi determinati
dalla legge‖ (Cod. Proc. Civ. 89; Cod. Pen. 185, 598)
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L‘idea dei giudici di legittimità di aprire le porte del danno non patrimoniale
ai valori e principi costituzionali è risultata vincente e non è più stata messa
in discussione. Invece la richiesta dell‘estensore di non moltiplicare i nomi
delle categorie del danno non patrimoniale, è stata palesemente ignorata. Già
la Corte Costituzionale con la sentenza n. 233/2003 sentiva l‘esigenza di
indicare il danno ai valori costituzionali come danno esistenziale.
Oggi con la rimessione alle Sezioni Unite civili (Cassazione, Sez. III, ord. 25
febbraio 2008, n. 4712) della questione inerente l‘essenza e la struttura del
danno esistenziale ritorna quell‘esigenza di chiarezza.3
3
―A idéia de que os juízes tem legitimidade para abrir as portas do dano moral aos valores e princípios
constitucionais tem sido bem sucedida e já não foi questionada. Em vez disso, o recorrente pedido para não
multiplicar os nomes das categorias de dano imaterial, foi ostensivamente ignorado. Até mesmo o Tribunal
Constitucional na sentença nº 233/2003 sentiu a necessidade de salientar o dano aos valores constitucionais
como dano existencial.
Hoje, com a referência à secção cível ( Cassação , Sec . III , ord . 25 de fevereiro de 2008 , n . 4712 ), relativo à
essência da questão e da estrutura dos danos existenciais reafirmam a necessidade de clareza.‖
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―Mas com razão, portanto, acho que o dano existencial é caracterizado pela violação de um princípio
constitucional, em que a lesão tem o caráter de gravidade e durabilidade ou continuação das conseqüências
adversas; caso contrário, o nomen iuris dos danos ‗existenciais‘ não teria sentido. Nós podemos pedir e obter
uma indenização por danos morais somente se a lesão é existencial ou piora a existência, em duração ou mesmo
permanente, dos feridos.‖
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Há teorias que, em sentido diverso, apontam a existência de 5 espécies de dano não patrimonial, Lucca
D´Apollo os denomina como: danno biologico, danno morale soggettivo o da reato, danno non patrimoniale
tassativamente descritto, danno esistenziale, danno ai valori costituzionali.
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Desse modo, pode-se compreender o dano moral como uma lesão aos bens jurídicos
da personalidade, que destituído de caráter econômico, atinge a pessoa no seu interior. O dano
moral fere a esfera subjetiva, alcançando os aspectos personalíssimos próprios da pessoa
humana, podendo provocar dor e sofrimento.
O dano existencial, igualmente, destitui-se de caráter econômico, entretanto, não se
limita à esfera íntima do ofendido, consiste em um dano que impede a realização pessoal da
vítima, provocando uma mudança em sua personalidade, obrigando-a a um relacionar-se, um
ser, de modo diferente no contexto social. (ALMEIDA NETO, 2005)
Por isso que, a auto desvalorização, o embotamento afetivo, o desinteresse por
relacionar-se, a dependência, a impotência e o sempre presente sentimento de abandono,
podem classificar-se como danos existenciais, pois não está se falando de um evento isolado
que atentou contra a dignidade de alguém ou contra seus direitos da personalidade, tão
somente, mas contra uma omissão continuada que acaba por tolher os potenciais da vitima,
que a impede de desfrutar plenamente de sua existência.
Mencionou-se anteriormente que os danos existenciais parecem se adequar melhor a
situação de descumprimento do dever parental de cuidado e isso porque a lesão provocada por
esta omissão tem caráter de demasiada gravidade e durabilidade, que modificam, ou mesmo,
pioram a existência da vítima de modo permanente.
Note-se que os danos morais puros não comportam tamanha extensão, vez que, se
limitam às ofensas aos bens jurídicos da personalidade, em última instância àquilo que viola a
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dignidade humana, entretanto, seu conceito acaba por não abarcar a significativa alteração na
forma de viver da pessoa, o que é elemento crucial do dano existencial, pois não havendo
violação que repercuta na existência da vítima, não se estará diante deste tipo de dano.
Quando se compreende a relevância que o cuidado assume na vida de uma criança,
sendo elemento essencial para a formação de sua personalidade e indispensável para seu pleno
desenvolvimento, se torna perceptível a situação de gravidade provocada pela ausência desse
elemento, bem como, dos significativos danos que podem daí decorrer.
Apenas a título de exemplificação foram apresentados como danos que podem
acometer menores vítimas da inobservância do cuidado: a limitação do desenvolvimento
psíquico; a alienação; a perda de identidade; as dificuldades no desenvolvimento físico
provocadas pela falta de apetite, insônia e perda de peso; o sentimento de abandono; o
embotamento afetivo; o desinteresse por se relacionar; a não humanização e as perturbações
no desenvolvimento emocional.
São, em sua grande maioria, danos aparentemente emocionais, mas objetivamente
constatáveis, pelas alterações que promove na vida da vítima. Aqui não tem lugar a expressão
―monetarizando lágrimas‖, pois não é a demonstração de sofrimento pela vítima, sem
qualquer parâmetro para o julgador, que a levará a uma reparação; o dano se mostra
claramente, se externaliza nas escolhas de vida da vítima, na limitação de seu
desenvolvimento, no modo de ser e se relacionar.
Mister se faz considerar, ainda, que no que tange a tutela do dano à pessoa pelo
Código Civil de 2002, o seu art. 186, abarca expressamente o dano moral, ao estabelecer:
―Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e
causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.‖
De modo que, segundo Almeida Neto (2005), sua interpretação deveria ser mais
extensiva do que a que vem sendo feita pelos intérpretes e aplicadores do Direito, posto que,
não há previsão de qualquer limitação quanto à espécie de dano injusto, passível de tutela pelo
art. 927, caput, também do Código Civil, que fundamenta o direito a reparação civil nos
seguintes termos: ―Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo‖.
Para referido autor, a inexistência de qualquer restrição quanto aos tipos de danos que
podem ser indenizados, transforma a reparação civil num ―verdadeiro tipo aberto, de proteção
integral à pessoa.‖ (ALMEIDA NETO, 2005, p. 3)
Portanto, é possível considerar a responsabilidade civil fundamentada nos arts. 186 e
927 do Código Civil como uma Cláusula Geral de Tutela da Pessoa Humana. (BODIN, 2003).
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De tal sorte, a inobservância do dever parental de cuidado se revela como o ato ilícito,
uma vez que, o status atual de proteção da criança e do adolescente os resguarda de toda
forma de negligência e como dito alhures, impõe, ainda que implicitamente, o cuidado como
dever, que se traduz através da imposição de criação e assistência dos filhos, garantindo-se o
seu desenvolvimento pleno.
Some-se a essa equação a profunda alteração de vida que a situação de não cuidado
pode provocar, cujas consequências têm o condão de se elastecerem ao longo da vida da
vítima, criando um non facere ou um facere diretamente oriundos da ausência de cuidado,
desvelo e afeto na relação familiar.
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Enfim, o que se está a dizer é que negar o direito à indenização àquele que foi vítima
de um dano injusto, provocado pela inobservância do cuidado na relação parental, contraria
radicalmente um dos fundamentos da responsabilidade civil, da boa-fé e da dignidade humana
– alterum non laedere ou neminem laedere, que advém do preceito de Ulpiano – Iuris
praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere – e traduz-se
como: ―Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada
um o que é seu‖.
Igualmente, afasta-se do ideal de justiça, conforme preceituado por Ulpiano (apud
HRYNIEWICZ, 2005, p. 98): ―Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique
tribuendi”, ou seja, a Justiça é a constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o seu
direito.
De tal sorte, restando presentes os requisitos necessários para a aplicação dos institutos
da responsabilidade civil, notadamente, a violação ao dever parental de cuidado e o dano à
existência da vítima, esboçado através da limitação de seu desenvolvimento, oriundo da
mencionada omissão.
4 CONCLUSÃO
Embora o bem violado pareça ser o mesmo, no dano moral a ofensa não tem o condão
de afetar a existência da vítima e releva a dor, o sofrimento e angústia que podem nem
acometer o ofendido, pois tais sentimentos são, tão somente, consequências do dano.
O dano existencial, por sua vez, fere um bem indispensável a existência da vítima,
afetando seu desenvolvimento, alterando seu comportamento, impedindo que ela se realize em
toda a sua potencialidade. E a inobservância do dever parental de cuidado pode trazer em si
todas essas sensações, associadas a tantas outras, que pela sua recorrência, acabam por
transtornar completamente a vítima.
Sem o cuidado o processo de humanização não se concretiza, porquanto ausente a
noção de solidariedade, de afeto, de desvelo, de respeito pelo outro e o ambiente propício para
o florescimento desses sentimentos e dessa conscientização é a família, onde os valores são
incutidos desde tenta idade e a assistência dos pais permite a estruturação da criança até que
ela, depois de bem orientada, se torna capaz de gerir sua própria vida.
Não se está buscando monetarizar as relações familiares, reduzindo-as a valores
pecuniários, está-se pretendendo demonstrar que o descumprimento do dever de cuidado
configura conduta gravosa ao direito dos filhos de serem assistidos física, afetiva, moral e
psiquicamente, donde verifica-se que tal violação pode gerar danos àqueles que são
negligenciados.
Ao buscar a compensação pela inobservância dos deveres parentais, não se está
invocando direitos meramente imaginários, está-se, a bem da verdade, defendo princípios,
direitos e garantias assegurados constitucionalmente e numa perspectiva mais ampla, direitos
inerentes à pessoa humana, por sua própria natureza, que não pode ser arbitrariamente lesada
sem qualquer reparação por isso.
Enfim, foram princípios que trouxeram o legislador até o estágio atual de proteção ao
menor, mas se é certo que as cláusulas gerais foram alocadas no sistema para conferir-lhe
maior eficiência diante das alterações sociais, é também cediço que a interpretação de tais
mecanismos deve ser a mais ampla possível, no sentido de tutelar a pessoa humana.
Abstract
The existential damage , as a method of non-pecuniary damage , was conceived in the foreign
law , especially the Italian law, whose debates on the subject has been raging for nearly two
decades . To analyze the impact of this kind of damage in family ambience, then, will discuss
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their conceptual and coverage aspects , as designed in Italy. Once assimilated the definition of
the existential damage , can , through the careful analysis as the duty of parents to their
children , realize that care when absent from the paternal - filial relationship is capable of
causing directly linked to the existence of child injury.
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