SISTEM

ADRIN
As histórias em quadrinhos consistem em um modo de
expressão sequencial caracterizado pela justaposição
de imagens solidárias. Nelas, a condução da narrativa
(a decupagem) e o gerenciamento do espaço (o layout)
são duas operações indissociáveis, que estão em
determinação mútua e constante. Esta obra propõe
uma nova análise dos fundamentos da linguagem das
HQs a partir da descrição minuciosa de suas unidades
constitutivas, explicando cada um de seus mecanismos
de produção de sentido. A partir de exemplos ecléticos
- analisados em ritmo progressivo e sempre com um
viés pedagógico -, O Sistema dos Quadrinhos cria a
base para uma reflexão sobre a própria natureza do
meio. É um sistema que se apoia tanto na estética
quanto na semiótica e, embora não deixe de lado as
funções do verbal, estabelece a primazia do visual no
discurso do quadrinho. Transpassando as SISTEMA
VAi RINH o
particularidades da nona arte, Sistema também
ilumina o tema mais geral que é a leitura da imagem,
pensada sucessivamente como um enunciável, um
descritivel e um interpretável.

THIERRY GROENSTEEN
IS R 176 65 29 -46-5

Q
10 MARSUPIAL
EDITORA
 Título da Obra
O SISTEMA DOS QUADRINHOS

P,-;• Autor
Thlerry Groensteen

Cl 1999 Presses Universitaires de France

Titulo original:
Système de Ia bande desinée

Edição brasileira: 2015 Marsupial Editora Ltda.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio
(escrito ou eletrônico) sem a prévia autorização por escrito da editora.

Projeto Gráfico e Diagramação

Design Company e Flavio Soares
(design-company@uol.com.br)
Design de Capa
Studio Mói
(fale.studiomoi@gmail.com )
Tradução
Ético Assis
Francisca Ysabelle Manriquez Reyes
Revisão
Leandra Trindade
Revisão técnica:
Nobu Chinen
Impressão
Gráfica Monalisa

MARSUPIAL EDITORA LTDA.

Caixa Postal 77100
Nova Iguaçu - RJ
CEP 26210-970
www.marsupialeditora.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Groensteen, Thierry
O sistema dos quadrinhos / Ihierry Groensteen ;
tradução Érico Assis. -- 1. ed. -- Nova Iguaçu,
RJ : Marsupial Editora, 2015.

Título original: Systeme de la banda dessinée.

ISBN 978-85-66293-44-9

1. Analise do discurso ■ •- Narrativa 2. Histórias

em quadrinhos - História .e critica I. Titulo.

15-06506 CD0-741.5

Índices para catálogo sistemático:

1. História em quadrinhos : Teoria : Critica e
interpretação 741.5
índlic'e
Introdução para edição brasileira 7 1.11.1. A tipologia de Benoit Peeters
1.11.2. Defesa e ilustração do layout regular
99
103
1.11.3. Novas proposições 105
Introdução 9
Por uma nova semiologia das histórias em quadrinhos 9 Capitulo segundo
A disputa improdutiva em torno das unidades significantes 11 Artrologia restrita: a sequência 110
Um espécime narrativo de dominante visual 15 2.1 — Sobre o limiar da narrativa 111
A definição inencontrável 21 2.2 — Uma narração plurivetorial 115
Da solidariedade icônica como princípio fundador 27 2.3 — Os planos de significado 117
Apresentando a artrologia e a espaçotopia 31 2.4 — Em busca do vazio 119
2.5 — A redundância 122
Capitulo primeiro 2.6 — Decupagem e composição de cena 125
O sistema espaçotópico 35 2.7 — Descrição e interpretação 129
1.1 — A pregnância do quadro 35 2.8 — As funções do verbal 135
1.2 — Primeiros parâmetros espaçotópicos 39 2.9 — Um-exercício de tradução 143
1.3 — O hiper-requadro e a página 41 2.10 — Decupagem e layout 149
1.4 — Sobre a importância da margem 42
1.5 —Aposição 45 Capitulo terceiro
1.6 — Compondo a página dupla 46 Artrologia geral: a rede 152
1.7 —As funções do requadro 49 3.1 —A fase da quadriculação 152
1.7.1. A função de fechamento 49 3.2 — Primeira abordagem do entrelaçamento 153
1.7.2. A função de separação 53 3.3 — Da posição ao lugar 154
1.7.3. A função de ritmo 55 3.4 —Algumas séries compactas 157
1.7.4. A função de estrutura 56 3.5 — Diálogos de página a página 159
1.7.5. A função de expressão 60 3.6 —A rede inervada 160
1,7.6. A função de indicador de leitura 62 3.7 — O imperialismo do entrelaçamento 162
1.8 — Um espaço intermediário: a tira 66
1.9 — Um espaço extra: o balão 75 Conclusão 165
1.9.1. O balão dentro do quadro 75 Bibliografia 171
1.9.2. Os balões na prancha 87 índice de nomes 176
1.10 — A incrustação 92 Índice de conceitos 182
1.11 — O layout 98 índice de ilustrações 184
1
7
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Nobu Chinen

rna for ma inovacora ce se estucar os c uac rinhos

Tenho acompanhado o trabalho de Thierry Groensteen há. quase 30 anos, quando
adquiri um de seus primeiros livros, La bande dessiné depuis 1975, de 1985. Embora
fosse uma obra aparentemente despretensiosa, praticamente um livro de bolso, o título
denotava uma ambição colossal: atualizar 10 anos de produção quadrinhística mundial,
em um período de grande efervescência nesse meio. E o conteúdo, ainda que sucinto, não
decepcionava, cumprindo adequadamente o seu propósito. Trazia informações atualizadas
sobre o universo dos quadrinhos de uma forma muito abrangente, em estilo enciclopédi-
co, por verbetes em ordem alfabética, além de recomendações de leitura sobre os tópicos
abordados. Durante anos, junto com L'Encyclopédie des bandes dessinées, de Marjorie
Alessandrini, ele constituiu uma de minhas principais fontes de referência até para me
informar sobre o que tinha sido produzido mesmo antes de 1975.
li Para mim, o nome do autor era pouco conhecido. Não era um dos pioneiros estrela-
dos como Umberto Eco, Pierre Couperie, Maurice Horn ou Claude Moliterni, intelectuais
europeus que viviam sendo citados em artigos de jornais e que ajudaram a consolidar os
quadrinhos como -linguagem legítima e digna de estudos. Mas, o que só vim a saber muito
depois, Groensteen já gozava de um bom prestígio como diretor da publicação especiali-
zada Les cahiers da la bande dessinée.
Desde então, ao longo dos anos, ele foi ampliando sua reputação e conquistou po-
II sição de destaque por sua dedicação e suas pesquisas dos quadrinhos a ponto de se tornar
diretor do conceituado Musée de la Bande Dessinée, em Angoulême, localidade histori-
camente associada aos quadrinhos por sediar até hoje o mais tradicional evento sobre o
assunto no mundo.
Groensteen pertence a uma rara estirpe de estudiosos que une o perfil de um pes-
IS quisador da história dos quadrinhos e a competência analítica de um dedicado investigador

I
desse fenômeno como linguagem.
Além de sua inegável contribuição para a história do meio, com estudos aprofunda-
dos que resgatam a importância do pioneirismo de Rodolphe Tõpffer, Groensteen também
tem outras obras que valorizam e exaltam os quadrinhos como arte e como técnica, mas
seus trabalhos teóricos mais densos refletem sua preocupação e interesse em analisar os
8 9
quadrinhos como fenômeno semiológico. Nessa linha de estudos destacam-se o já citado
Umberto Eco, mas principalmente o francês Pierre Fresnault-Deruelle que já no começo
dos anos 1970, elaborava um complettestudo dos quadrinhos baseado na linguística.
Neste Sistema dos quadrinhos ,1 Groensteen vai além e propõe que os quadrinhos
constituem não só uma linguagem, mas todo um complexo sistema, em que cada uma das
partes funciona em perfeita sincronia e sintonia com as demais. Ele evita a análise indivi-
dual dos componentes que usualmente costumamos encontrar nos quadrinhos, mas trata
da relação que eles mantêm entre si, resultando em um brilhante estudo de como funciona
todo o conjunto. Tudo muito bem fundamentado e alicerçado em um sólido referencial
teórico estabelecido por vários estudiosos que o precederam.
Com essa proposição, ele trata de elevar os quadrinhos a outro patamar como cam-
po de pesquisa e área de conhecimento, estabelecendo novas conceituações, novas deno-
minações e, para usar uma palavra que os estudiosos adoram usar, um novo paradigma no
estudo da arte sequencial.
Dessa forma, Groensteen oferece uma valiosa contribuição para a melhor com-
preensão das histórias em quadrinhos e, mais do que isso, um caminho para se estudá-las
como uma ciência autônoma munida de recursos e instrumental próprios.
Uma ousadia que somente um pesquisador com total domínio sobre o assunto po-
deria se permitir.
INTRODUÇÃO
Em fins dos anos 1820, ao inventar suas histoires en estampes [histórias em estam-
pas], o genebrês Rodolphe Tôpffer (1799-1846) imediatamente passou à teorização desta
nova maneira de contar histórias. Primeira "defesa e ilustração" a tratar das histórias em
quadrinhos, seu Essai de physiognornonie (1845) [Ensaio sobre a fisiognomonia] abre,
perante o leitor de fins do século XX 1 , perspectivas estimulantes para refletir sobre uma
arte que, nesse meio tempo, contribuiu de forma decisiva para moldar o imaginário con-
temporâneo e confirmou a intuição de seu gênio precursor.
Passado o estrondo inaugural, podemos dizer que a prática divorciou-se da teoria.
São poucas as obras que auxiliariam de fato na compreensão das histórias em quadrinhos e
a relativa legitimação da "nona arte" na França não conduziu à multiplicação daquelas. A
erudição míope, a nostalgia e a idolatria inspiraram a maior parte dos discursos em torno
das histórias em quadrinhos durante cerca de três décadas. Os levantamentos históricos do
meio muitas vezes ainda tomam a forma da historiografia igualitária, na qual tende-se a
encontrar equivalência entre obras-primas e páginas de menos glória, ao mesmo tempo em
que os desenhistas "que vendem" são objeto contínuo de exaltação fetichista e a análise
crítica tem participação mínima.
Por uma nova semiologia das histórias em quadrinhos
Mesmo que não sejam numerosos, os marcos do pensamento sobre as HQs refle-
tem uma evolução na abordagem do objeto. Pierre Fresnault-Deruelle — por muitos anos
o único interessado no assunto no meio acadêmico francês — distingue quatro estágios
sucessivos no discurso crítico, que seriam:
- A era arqueológica dos anos 1960, quando os autores nostálgicos desencavam as
leituras de infância (Lacassin, 1971);
- A era sócio-histórica e filológica dos anos 1970, quando a crítica estabelece os
textos conforme suas variantes, reconstitui filiações etc. (Le Gallo, 1967; Kunzle, 1973);
- A era estruturalista (Fresnault-Deruelle, 1972 e 1977; Gubern, 1972);
- A era semiótica e psicanalítica (Rey, 1978; Apostolidès, 1984; Tisseron, 1985 e
1987)2.
1 A primeira edição de O Sistema dos Quadrinhos foi publicada originalmente em 1999. (N.T.]
2 "Sem iotic approaches to Flgurative Narration", inT. A. Sebeok e J. Umiker-Sebeok (dir.), The Semiotic Web 1989, Berlim: Mouton de
Gruyter, 1990. Cito o manuscrito francês fornecido pelo autor. Note-se que Fresnautt-Deruelle não lembrou do discurso crítico sobre
a ideologia dos quadrinhos que inspirou diversas obras nos anos 1970 e 1980.
10 I O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Concordo grosso modo com essa periodização, mas ela carece de nuances. Das
quatro tendências apresentadas, nenhuma foi abandonada. Pelo contrário: elas coexistem
em caminhos divergentes ou paralelo t abertos à pesquisa, sem excluir as outras (em par-
ticular a crítica temática e o estudo hos gêneros: humor, fantasia, western etc.). O que
mais me interessa é quando Pierre Fresnault-Deruelle, logo a seguir, faz referência ao
recente surgimento de um "quinto estágio", que seria da "crítica neossemiótica, onde o
foco estaria na dimensão poética dos 'comias "a. A meu ver, resume com grande precisão
as pretensões deste livro.
As histórias em quadrinhos serão tratadas aqui como linguagem, ou seja, não como
o fenômeno histórico, sociológico e econômico que são, mas como um conjunto original
de mecanismos produtores de sentido. Esta linguagem não passará pelo filtro de uma gran-
de teoria já constituída, tal como a análise estruturalista ou a semiótica narrativa. Tendo
em conta o objeto dado, a perspectiva aqui proposta pode ser qualificada como semioló-
gica (ou semiótica), no sentido mais amplo do termo. Contudo, como pouco tratar-se-á
de signo nestas páginas — por motivos que aparecerão daqui a um instante — aos olhos
da semiologia, prefiro me situar às margens da ortodoxia disciplinar. Não vou me negar
a certos desvios pela semântica e pela estética, aproveitando tudo o que puder contribuir
para o entendimento do meio. É por esse motivo que o termo "neossemiótica" me parece
adequado para qualificar o ponto de vista que O Sistema dos Quadrinhos reivindica.
A leitura dos pesquisadores que me precedem, assim como do que difundem os
meios de comunicação e os manuais pedagógicos, convenceram-me de que uma teoria
das histórias em quadrinhos deve abandonar duas ideias correntes que, embora tenham
inspirado a maioria das abordagens semiológicas produzidas até aqui, me parecem criar
um obstáculo a qualquer compreensão real deste objeto. A primeira ideia que se difunde
é a seguinte: o estudo das histórias em quadrinhos, assim como de qualquer outro sistema
semiótico, deve passar por uma decomposição em unidades constitutivas elementares: em
"elementos mínimos intercambiáveis que possuem significado próprio", para falar como
Christian Metz4 . Acredito que este método tem; chatices de revelar o que é realmente espe-
cífico à linguagem das HQs.
Segunda ideia bastante difundida: que as histórias em quadrinhos seriam essencial-
mente um misto de texto e imagem, uma combinação específica de códigos linguísticos
e visuais, um ponto de reencontro entre duas "matérias da expressão" (na acepção do
3 Ibid. O autor em seguida propõe como exemplo desta nova abordagem os Anais do congresso Bando dessinée récit et modernité
(Paris : Futuropolis, 1988), que aconteceu sob minha direção em Cerisy, em agosto de 1987.
4 Langage et cinéma, Paris: Larousse, 1971, p. 155, nov. éd. Albatros, 1977.
THIERRY GROENSTEEN I 11
linguista Louis Hjelmslev). Contrariando esta concepção, meu intento é demonstrar a pri-
mazia da imagem e, assim, a necessidade de dar uma precedência teórica que designarei,
por enquanto, pelo nome genérico de "códigos visuais".
Iniciarei explicando-me quanto a estes dois pontos.
A disputa improdutiva em torno das unidades significantes
Para certos pesquisadores, todos os desenhos — particularmente o desenho a traço
das HQs tradicionais, propositalmente esquemático — pode ser decomposto em pequenas
unidades identificáveis e discretas: pontos, linhas, manchas... equivalentes (conforme um
regime impreciso de homologia ou de analogia) ao que representam os lexemas, os mor-
femas e os fonemas para as línguas naturais. Guy Gauthier, por exemplo, defendeu esta
posição em 1976: "Postulamos que, em todo quadro, é possível isolar as linhas ou grupos
de linhas, as manchas ou grupos de manchas e de localizar, para cada significante assim
delimitado, um significado preciso, este correspondente a uma parte do significado glo-
bal."' O mesmo autor especificou: "As unidades discretas identificadas no grafismo de
Peanuts são assim comparáveis às unidades de primeira articulação da língua, o quadro
pode ser comparado a um ou mais sintagtnas" (ibid, p. 126).
Segundo outros, as unidades pertinentes são um pouco mais elaboradas e corres-
pondem aos padrões do desenho ou às figuras humanizadas: objetos, personagens, partes
do corpo... No ensaio intitulado Comics lesen, Ulrich Krafft distingue quatro tipos de pa-
drões, sendo estes: personagem no primeiro plano, objeto no primeiro plano, personagem
no plano de fundo, objeto no plano de fundo. A seguir ele decompõe a unidade "persona-
gem" em signos (Anzeichen) cada vez menores até distinguir, no Pato Donald, a cabeça
dentro do corpo, a orelha dentro da cabeça e a pupila dentro do olho'.
Segundo a terminologia proposta pelo Grupo g no Traité du signe visuel (termino-
logia à qual me subscrevo no seu essencial), as unidades elementares que Krafft manipula
corresponderiam às "sub-entidades" do significante icônico, enquanto as que são discuti-
das por Gauthier seriam de um nível inferior, o das "marcas" 7.
Como sabemos, a existência de unidades similares dentro da imagem é controversa.
Se o Grupo g apoia a teoria a partir de uma descrição geral e sistemática, provavelmente
a mais convincente até o momento, outros pesquisadores eminentes têm argumentado a
favor do reconhecimento de uma semântica especifica da imagem, que formaria a econo-
5 ''Les Peariuts: un graphisme idiomatique", Communications n. 24, Le Seuil, 1976, g. 108-139. Citação da p. 113.
6 Cf. Comics lesen. Untetsuchungen zur Textual:1W von Comics, Stuttgart: Klett-Cotta, 1978, p. 15-35.
7 Cf. Groupe p, Traité du signo tétfel. Pour une rhétorique de l'image, Paris, Le Seuil, ta couleur des idées", 1992, p. 149-152.
12 \O SISTEMA DOS QUADRINHOS
mia das unidades estáveis análogas às da língua'. Este já era o ponto de vista de Émile
Benveniste:
As relações signikicantes da "linguagem" artística são descobertas no
interior de uma composição. A arte aqui não é nada senão uma obra de arte
particular, na qual o artista instaura livremente oposições e valores que ele
manipula soberanamente, não tendo nem "resposta" a dar, nem contradição
a eliminar, mas somente uma visão a exprimir... (...) A significância da arte,
então, não remete jamais a uma convenção identicamente recebida entre par-
ceiros. É necessário descobrir a cada vez os termos, que são ilimitados em
número, imprevisíveis por natureza, logo reinventados a cada obra e que, em
suma, não podem ser fixados em uma instituição.'
A imagem servirá de exemplo de sistema semiótico desprovido de signos, ou pelo
menos sem base num sistema finito de sinais. É neste sentido que Benveniste afirma que
"nenhuma das artes plásticas em consideração consegue reproduzir (o) modelo (da lín-
gua)", e a língua deverá resignar-se a ser "o único modelo de um sistema que seja semi&
tico simultaneamente na sua estrutura formal e no seu funcionamento". 1°
Apesar de não fazer reserva alguma quanto a esta afirmação de Benveniste, não
tentarei demonstrar o que já está bem fundamentado. Aliás, na análise das histórias em
quadrinhos, não considero central a questão da existência ou não de signos visuais. Gos-
taria sobretudo de deixar claro que os códigos mais importantes concernem às unidades
maiores, estas já bem elaboradas. Neste caso, os códigos regem a articulação, no tempo
e no espaço, das unidades que chamaremos de "quadros" ou "vinhetas"; eles obedecem a
critérios tanto visuais quanto narrativos — ou, mais precisamente, discursivos — e esses dois
níveis de interesse às vezes sobrepõem-se ao ponto de tornarem-se indistintos.
Chegar ao interior do requadro, dissecar o quadro para contar os elementos icônicos
ou plásticos dos quais a imagem ,é composta e em seguida estudar os modos de articulação
desses elementos: tudo isso requer grande profirsão de conceitos, mas não resulta em avan-
ço teórico significativo. Por esse viés, apenas tangenciatnos mecanismos bastante gerais,
8 Cf. principalmente Christian Metz, Essais sur la signification au cinéma, t. 1, Paris, Klincksieck, "Esthétiqu&, 1968, p. 67-72 et
87-92. Henri Van Lier chega às mesmas conclusões a partir de outra abordagem da noção de signo, que privilegia os "efeitos de
campo". Cf. L'Animal signé, Rhode-Saint-Genèse, Albert De Visscher, 1980, p. 37-75.
9 "Sémiologie de la langue", Semiolica 1/2, La Haye, Mouton & Co, 1969, p. 129. [Edição brasileira: "Semiologia da Língua". Trad.
Marco Antônio Escobar. Problemas de linguística geral 11. Campinas: Pontes, 1989, p. 60.1
10 Id., Sernioticall, p. 12, et I/2, p. 132. [Edição brasileira do segundo trecho: "Semiologia da Lingua". Trad. Marco Antônio Escobar.
Problemas de linguistica geral Il. Campinas: Pontes, 1989, p. 63.]
THIERFIY GROENSTEEN 13
sendo que nenhum deles é especificamente adequado aos quadrinhos. Da minha parte, es-
tou convencido que não é abordando as HQs ao nível do detalhe que poderemos, ao preço
de uma ampliação progressiva, chegar numa descrição coerente e fundamentada da sua
linguagem. Proponho o contrário: que os abordemos do alto, ao nível de suas articulações
maiores. (Não utilizo o termo articulação conforme o sentido particular que tem dentro da
linguística, mas no sentido em que designa qualquer operação que "organiza conjuntos de
unidades operacionais no mesmo nível".)"
Nas páginas de conclusão do seu ensaio Les dessous de Ia peinture, Hubert Damisch
escreve: "Quando o semiólogo esgota-se, em vão, tentando descobrir as 'unidades mínimas',
o que lhe permitiria tratar a pintura como 'sistema de signos', a pintura mostra na própria
textura que a questão precisa ser abordada da forma inversa, ao nível das relações entre
os termos, não das linhas, mas dos nós."' Uma posição aparentemente muito próxima da
minha, mas que se sujeita a alguma ambiguidade: quando queremos descrever as "relações
entre os termos", o importante é saber precisamente quais são os termos interligados. É certo
que a economia da abordagem microsseraiótica é menos aplicável à teoria da pintura do que
à teoria dos quadrinhos. O motivo dessa desigualdade metodológica é simples. Na pintura,
a imagem é singular e global; ela não pode, portanto, suscitar apreciação precisa senão ao
preço de uma decomposição (embora"Alain Jaubed não deixe de demonstrar isso em Palet-
tes, sua notável série televisiva sobre pintura 13). Pelo inverso, na HQ, a imagem (o quadro)
é fragmentária e encontra-se em sistema de proliferação; ela jamais constituirá o enunciado
como um todo, mas pode e deve ser vista como componente de um dispositivo maior.
Pode-se contestar que, para o quadro constituir unidade de base, não se dispensa uma
revisão dos elementos subordinados que o constituem. É fato que essas duas abordagens não
são excludentes e que podem complementar-se. O Grupo p fala de "uma oscilação constante
da teoria entre a micro e a macrossemiótica, a primeira esgotando-se à procura de unidades
mínimas estáveis, a segunda recusando a existência das mesmas em nome da originalidade
a cada vez renovando enunciados complexos" 14. Para mim, o ponto decisivo, assim como
pensa Benveniste, não é recusar a existência dessas unidades. Trata-se apenas de saber se é a
micro ou a macrosseraiótica a visão mais apta para a elaboração de um modelo completo da
linguagem dos quadrinhos. Repito: para esse objeto em particular que são os quadrinhos, a
operacionalidade da microssemiótica, na prática, revela-se extremamente frágil.
11 Roger Odin, Cinema et production de sens, Paris, Armand Colin, 1990, p. 89.
12 Fenêtre fauno cadmium, ou Les dessous de la peinture, Paris, Le Seuil, "Fiction & Cie", 1984, p. 302.
13 Cujos textos foram reunidos no volume Palettes, Gallimard, "Lintel", 1998.
14 Traité de signo visuel, op. cit., p, 56.
14 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Guy Gauthier é obrigado a dar o braço a torcer. Por um lado, quando ele escreve
que, apesar da sua "aparente complexidade", a imagem "sempre pode ser reduzida, mesmo
que, por vezes, evidentemente, isso 4ija um trabalho desproporcional aos resultados que
se obtém"; por outro lado, quando explica que seu método permite alcançar, no máximo "a
descrição de um código, ou melhor, de um subcódigo, desde que ele caracterize um único
desenhista acessível a milhões de leitores"". Apesar da sua pretensão à cientificidade,
este método, uma vez que distingue tantos códigos quanto há desenhistas, cai na análise
estilística e não em uma semiologia dos quadrinhos propriamente dita.
O quadro é a unidade básica da linguagem dos quadrinhos. Temos a confirmação
disso no fato de que os cinco "tipos de determinação" que caracterizam os "signos visuais"
segundo o Grupo p, (que seriam as propriedades globais, a super ordenação, a coordenação,
a subordinação e a preordenação)' 6 aplicam-se perfeitamente a esta unidade e de forma
muito mais clara que às unidades de categoria inferior, tais como a personagem.
Não me soa útil fetichizar a priori certos códigos que seriam mais específicos aos
quadrinhos do que outros. Este ponto também merece breve esclarecimento. Christian
Metz insistiu em muitos escritos no fato de que a linguagem cinematográfica é resultado
da combinação de códigos específicos e códigos não específicos'''. Em se tratando de qua-
drinhos, os códigos que são realmente específicos talvez sejam menos comprováveis do
que no cinema (se é que eles ainda existem). Assim, o código espaçotópico, que organiza a
co-presença dos quadros no espaço (e a partir do qual definirei outras bases teóricas mais à
frente), rege igualmente a ordem dos quadros nas fotonovelas, sendo que este meio primo
adotou nada menos que o balão como modo de inserção de escrita no interior da imagem.
É isto que, em última instância, faz dos quadrinhos um idioma inconfundível: por um lado,
a mobilização simultânea do conjunto de códigos (visuais e discursivos) que o constituem
e, ao mesmo tempo, o fato de que esses códigos, que provavelmente não lhe pertencem,
se diferenciam daqueles que se aplicam a uma "matéria da expressão" especifica, que é o
desenho. Sua "eficácia" é uma escolha notável.
Os quadrinhos, portanto, são uma combinação original de uma (ou duas, junto com
a escrita) matéria(s) da expressão e de um conjunto de códigos. É a razão pela qual podem
ser descritos apenas em termos de sistema. O problema que se põe em análise, portanto,
15 Art. cit., p. 113-114. Grifos da minha autoria.
16 Traité du signe visuel, op. cit., p. 107-109.
17 Cf. Langage et cinema, op. cit., principalmente o capitulo VI. 3,
18 Acompanhando Metz (Essais sura signification au cinéma, I, 1, op. cit., p. 40 [Edição brasileira: A significação no cinema. 2a ed.
Trad. Jean-Claude Bernardet. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 46]), tomo este termo de empréstimo de Gilbert Cohen-Séat, para
quem eficácia "não se trata da eficácia particular de uma atitude particular ou de um ato preciso, mas sim do poder especifico de
um meio de expressão."
THIERRY GROENSTEEN 15
não é favorecer um código; é encontrar uma via de acesso ao interior do sistema que per-
mita explorá-lo na sua totalidade e mostrar sua coerência. Em outras palavras, o objetivo
deve ser definir as categorias suficientemente inclusivas para que a maioria, se não a tota-
lidade dos processos de linguagem e os tropos observáveis no campo considerado, possam
ser explicados por esses conceitos. Ao desenvolver as noções de espaçotopia, artrologia
e entrelaçamento, que se apoiam na macrossemiótica, empreendi esforços para cumprir
este propósito.
Se em certos momentos da análise vamos ao interior do quadro para focar em al-
guns dos seus componentes, sempre faz-se referência aos códigos que, em um nível de
integração mais elevado, determinam estes componentes. Em um exemplo simples, vere-
mos que o close-up não tem valor por si só, mas contrasta com um esquema geral ou inte-
gra-se a uma progressão observável unicamente se levarmos em consideração o sintagma
formado por vários quadros consecutivos. Além disso, esta grande estrutura também pode
"rimar" com outro plano maior, e as duas imagens assim vinculadas podem ocupar lugares
opostos ou simétricos na página. As cores e, de forma geral, qualquer unidade de natureza
icônica ou plástica, estão bem formadas pelas imagens vizinhas e às vezes, por imagens
mais distantes. Em resumo, nos quadrinhos, os códigos são construídos no interior de uma
imagem de forma específica, que mantem a associação da imagem a uma cadeia narrativa
onde as ligações se espalham pelo espaço, em co-presença. O quebequense Yves Lacroix
resumiu de forma- excelente a especificidade do meio ao dizer que "a presença dos qua-
drinhos, sua imobilidade fundamental, a simultaneidade e o panopticismo obrigatório das
suas unidades, ou seja, seu estado de serialidade".
Seja ao tratar de sua produção ou de sua leitura, a imagem dos quadrinhos não é
a mesma que a da pintura. O verdadeiro sentido desse trabalho será de separar e analisar
aquilo que, entre a imagem fixa e única (quadro ou ilustração) e a imagem animada, per-
tence propriamente ao grupo de imagens sequencialmente fixas.
Um espécime narrativo de dominante visual
"A tradição milenar logocêntrica levou-nos a conceber a ideia de soberania do ver-
bo em relação à imagem", recorda Michel Thévoz". Essa tradição provocou duas conse-
quências importantes que nem sempre podem ser distinguidas de forma suficiente, já que
uma afeta a semiologia geral e a outra, a narratologia:
19 "Les lieux de Ia bande dessinée. Ireis planches exemplaires d'Andreas Martens", Protée vol. 19, n. 1: Narratologie : état des lieux,
Université du Québec, Chicoutirni, inverno de 1991, p. 89.
20 Détournement d'écriture, Paris, Minuit, 'Critique", 1989, p. 72.
16 I O SISTEMA DOS QUADRINHOS
a I A língua foi tomada como modelo de toda linguagem;
b I A literatura em livro é considerada quase em todo lugar e em quase todo o mun-
do como modelo de todas as formas iirrativas (esta segunda consequência é, em parte e
apenas em parte, decorrência lógica dia primeira).
Apesar do fundamento histórico, essa última concepção está prestes a tornar-se
teoricamente insustentável. O fato de que a literatura escrita (ela mesma precedida e acom-
panhada pela literatura oral) superou em vários milênios o advento quase simultâneo do
cinema e dos quadrinhos modernos não lhe confere direito de monopólio ou privilégio
apenas por ser prévia. Em outras palavras, não podemos confundir gênero narrativo e
literatura, expostos como estamos a uma variedade de mídias que utilizam estruturas nar-
rativas em maior ou menor grau.
O gênero narrativo, com seu conjunto de categorias (conflito, diegese, situações,
temas, conflitos dramáticos, personagens, etc.), existe em si e pode ser analisado como
tal enquanto sistema de pensamento, forma de se apropriar o mundo, exercício de idade
imemorável do ser humano. Ela é transversal aos diferentes sistemas semióticos e pode
incorporar-se a qualquer um deles (ou ainda: de forma distinta, mas sem negar sua técnica
própria, que não é nada mais que a arte de contar histórias). Concordamos portanto com
Paul Ricoeur2' na ideia de que existe um gênero narrativo e diversas espécies narrativas:
romance, filme, peça teatral, e também as histórias em quadrinhos, as fotonovelas e, por
que não, o balé e a ópera, sem preconceito com os gêneros que nasceram após o avanço
tecnológico (já que os quadrinhos e o cinema tiveram nascimento tardio — em comparação
à literatura — devido à evolução das técnica, sendo, no caso dos quadrinhos, a invenção
da litografia)22 ... Naturalmente, cada espécie narrativa propõe ao público outro modo de
exposição de histórias e dispõe de competências próprias. Como escreve Ricoeur: "Nenhu-
ma arte mimética foi tão longe na representação dos pensamentos, dos sentimentos e do
discurso quanto o romance." 23 O cinema, da sua parte, tem alguns atrativos e as histórias
em quadrinhos possuem os seus, suficientes para demonstrar o fato de que sua popula-
ridade está intacta depois de uni século e meio de existência mesmo com a concorrência
21 Prefácio a André Gaudreault, Do littéraire au filmNue. Systeme du récit, Paris, Klincksieck, "Méridiens", 1988, p. IX-XIII. Para
Ricoeur, a "virtude principal" do livro em questão "é posicionar o filme em pé de igualdade com o palco, ao mesmo tempo que dá ao
palco a mesma equivalência da escrita, eliminando, assim, o crítico de cinema da tutela — embora involuntarid — da crítica literária
por um suposto direito de primogenitura."
22 Para mais detalhes, cf. Thierry Groensteen e Benott Peeters, Tõpffer l'invention de/a batido dessinée, Paris, Hermann, "Savoir:
sur l'art", 1994, p. 88-93.
23 Temps et récit, t. 2, Paris, Seul', 1984, p. 132. (Edição brasileira: Tempo e narrativa, tomo II. Trad. Marina Appenzeller. Campinas:
Papirus, 1995, p. 148J
THIERRY GROENSTEEN 17
do cinema e de todas as novas imagens nascidas desde então, às quais Régis Debray dá o
nome coletivo de "videosfera".
Tõpffer viu no texto e na imagem dois componentes equivalentes dos quadrinhos,
que ele define a partir do seu caráter misto. Esse ponto de vista ainda era sustentável na sua
época, mas hoje não mais. De fato, aqueles que atribuíram ao verbal um status igualitário
ao status da imagem na economia dos quadrinhos partem do principio de que a escrita é o
veiculo privilegiado da narração em geral. No entanto, a multiplicidade de espécies narra-
tivas tomou esta suposição obsoleta.
Considerar que os quadrinhos são essencialmente lugar de um confronto entre o
verbal e o icônico é, creio eu, uma contraverdade teórica que conduz a um impasse. Será
necessário ser mais específico? Se eu suplico que a imagem seja reconhecida em posição
de destaque, não é pelo fato de que, salvo raras exceções, ela ocupar nos quadrinhos um
espaço mais importante que aquele reservado à escrita. O predomínio da imagem no cerne
do sistema deve-se ao fato de que a maior parte da produção de sentido ocorre através dela.
Alguns certamente acolherão esta afirmação com ceticismo. Desde Lessing e por
longo período, o pensamento ocidental manteve estas duas categorias, "a história" e "a ima-
gem", como opostas, a partir da distinção entre espaço e tempo. A imagem cinematográfica,
sendo uma imagem-tempo, não suscita o mesmo embaraço teórico que a imagem das histó-
rias em quadrinhos. Entre as duas grandes formas do conto em imagens, incontestavelmente
são as HQs que suscitam a maioria dos questionamentos, simultaneamente aos literatos e aos
artistas visuais. No entanto, a aparente intratabilidade da imagem e da narrativa é resolvida
dialeticamente através do jogo da sucessão de imagens e da sua coexistência, de sua sequên-
cia diegética e do seu espalhamento panóptico, no qual reconhecemos o mesmo fundamen-
to no meio. Veremos que é através dessa colaboração entre artrologia e espaçotopia que a
imagem sequencial é plenamente narrativa, sem necessariamente precisar de suporte verbal.
Os anos 1960 e 1970, sobretudo, viram acontecer "uma transferência massiva de
conceitos linguisticos para o campo de análise das artes visuais: por isso que falamos co-
mumente de enunciados pictóricos, sintagmas filmicos etc." Essa aplicação incrementa os
conceitos linguísticos com base na ideia de que "toda representação (pode ser) codificada
e que toda contemplação de uma representação figurativa (é) uma leitura'''. Continuam
24 Além disso, esta abordagem nunca parou de fornecer munição para os detratores das histórias em quadrinhos. Por causa de sua
característica de "misto" ou "híbrido", logo concluiu-se sua bastardia e sua impureza. Como se a colaboração de imagem e texto
tivesse como consequência irrefutável uma degradar ou comprometer a outra.
25 Cf. Jean-Marie Schaeffer, "Narration visuelle et interprétation'', apresentação no Simpósio Narration et image fixe (Londres, 17-18
de março de 1995), publicação inédita até a presente data. Esse manuscrito de doze folhas foi-me entregue por Mireille Ribière,
organizadora do simpósio.
18 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
a opor-se a essa ideia, entretanto, alguns teóricos que defendem uma abordagem mais restri-
tiva (integralista?) da noção de narração, e que se recusam a expandí-la para as artes visuais.
Jean-Marie Schaeffer é um dos maiofês defensores deste rompimento com a linguística or-
todoxa. Tentamos primeiro opor a esta recusa o fato de que é claramente contra-intuitiva,
pois vai contra a experiência usual: para o receptor de um filme ou de uma HQ, não restam
dúvidas de que está sendo contada uma história! Lembramos em seguida que o processo de
elaboração dessas obras costuma começar pela fase de roteiro. Contudo, Schaeffer defende
precisamente que "a narração não é feita nas ou pelas imagens (mesmo que no caso de uma
estrutura verbal seja feita nas e pela sequência de frases): ela é ao mesmo tempo montante
na obra (como programa narrativo) e jusante (como reconstrução da parte do espectador)" 26.
Há uma boa dose de sofisma neste posicionamento que admite a narração montante
e a jusante, mas se recusa a reconhecê-la ativa na obra em si! E então nos perguntamos
qual é a alquimia cognitiva miraculosa que faz o leitor ou espectador reconstruir uma nar-
rativa se ela não está contida na obra a qual ele está exposto, relatada por ela. A resposta de
Shaeffer é que o espectador extrapola uma narrativa "começando pelo que ela (a imagem)
representa graças ao que ela mostra"". Segundo ele, "contar uma história, no primeiro
sentido da palavra, não implica automaticamente que se tenha uma narrativa no sentido
técnico do termo, ou seja, um ato enunciativo assumido pelo narrador". Assim, ele define
os dois traços principais que caracterizam a narrativa como ato enunciativo: "A especifi-
cidade das conexões lógicas que levam a integração recíproca de proposições elementares
através de conexões de consecução (a seguido de b seguido de c...) e de causalidade (... c
por causa de b por causa de a)" e o fato de que "as afirmações narrativas devem ser relata-
das a um locutor; consequentemente, toda narração implica um narrador" 28.
Essa demonstração é mais uma vez sintomática da hegemonia linguística na semió-
tica gera1 29 e, portanto, da aplicação muitas vezes mecânica dos dogmas da narratologia
literária a qualquer outra forma de narrativa. A linguística sempre reduz a categoria da
"narrativa" à autoridade da "narração" e não reconhece a presença de um narrador senão a
alguns marcadores próprios da linguagem verbal. Consequentemente, só pode tirar o cré-
dito de formas narrativas às histórias baseadas em imagens; chega-se a um veredito antes
do início do julgamento.
26 Ibid.
27 Ibid. Para esclarecer esta citação, talvez valha a pena lembrar que, nas palavras de Schaeffer, "a mostração trata de aquilo que
uma imagem tem para mostrar, enquanto que a representação é aquilo a que ela se refere e do que ela trata."
28 Ibid.
29 Régis Debray entra de contrapé quando escreve: "o logocentrismo esqueceu-se do corpo. Acreditamos espontaneamente que
simbolizar é verbalizar. E se for imitar? Não só se juntar a ação à palavra, mas significar através de gestos", cf. "Pourquoi le spectacle
?" , Les Cahiers de médiologie n. 1: La Quere//e du spectacle, Paris, Gallimard, primeiro semestre de 1996, p. 11.
THIERRY GROENSTEEN 19
Ao invés de concluir que "é adequado restringir a aplicação da noção técnica de
'narrativa' ao domínio verbal"", da minha parte penso que: I/ faz-se urgente rever o con-
ceito técnico, que deixou de ser operacional por estar em contradição flagrante com as ex-
periências do leitor-espectador moderno; 2/ que é igualmente necessário forjar conceitos
específicos para refletir com precisão "ligações lógicas" extralinguísticas, que "percebam
a integração recíproca de proposições elementares" nas narrativas com imagens.
Na argumentação de Schaeffer há, no entanto, um ponto que pode ser mantido e
que se aplica por excelência aos quadrinhos: a insistência na cooperação ativa e esperada
do leitor. Os quadrinhos são, de fato, um gênero baseado na relutância. Não só suas ima-
gens imóveis e silenciosas não possuem o mesmo poder de ilusão que as imagens cine-
matográficas, mas também sua sequência, longe de produzir uma continuidade que imita
o real, oferece ao leitor uma narrativa cheia de intervalos que aparecem como lacunas
de sentido. Mas se essa dupla relutância chama a uma "reconstrução por parte do espec-
tador", a história "a ser reconstruída" não está menos disposta nas imagens, conduzida
pelo complexo jogo da sequencialidade. Se acreditarmos em François Dagognet, é
também o papel da arte em geral fabricar "o surreal com o elíptico"". Todo leitor de
quadrinhos sabe que, a partir do momento em que se projeta na ficção (o universo diegé-
tico), ele esquece, até certo ponto, o caráter fragmentado e descontínuo da enunciação.
Permito-me repetir aqui o que escrevi em outra ocasião sobre esse ilusionismo próprio
à arte narrativa dos quadrinhos:
Os quadros remetem apenas a fragmentos de um mundo suposto no
qual a história se desenrola, mas, se esse mundo deveria ser supostamente
contínuo e homogêneo, tudo acontece como se o leitor, uma vez dentro desse
mundo, não saia nunca mais da imagem que lhe abriu o acesso. Atravessar
os quadros torna-se um processo mecânico e em grande parte inconsciente,
mascarado pelo investimento (absorção) no mundo virtual postulado pela
narrativa. A diegese, esta imagem virtual fantástica que inclui todos os qua-
dros, transcende-os e é este espaço que o leitor pode habitar. Se, de acor-
do com o termo de Pierre Sterckx, posso transformar um quadro em ninho,
é porque, em troca, cada imagem passa a representar metonimicamente a
30 Jean-Marie Schaeffer, op. cit. Esta também foi a opinião defendida à época por Tzvetan Todorov. Cf. principalmente Les Genros
du discours, Paris, Le Seuil, 1978. [Edição brasileira: Os gêneros do discurso. Trad. Elisa Angotti Kossovich. São Paulo: Martins
Fontes, 1980.]
31 Cf. François Dagognet, Écriture et iconographie, Paris, Vrin, 1973, p. 56.
20 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
totalidade deste mundo. (...) ... a multiplicidade e o espalhamento das suas
imagens, a ubiquidade de suas personagens, fazem com que as histórias
em quadrinhos abram um mundo de fato consistente, o qual estou convencido
que poderia habitar, quê (...) não deixei, ao lê-lo, de nele entrar e dele sair."
Em suma, a história pode ter vários furos, mas me projeta em um mundo que é
retratado como consistente. É essa continuidade dada ao mundo ficcional que me permite
preencher com facilidade as lacunas da narração.
Numerosos amantes dos quadrinhos declaram aspectos similares. Como diz Pierre
Fresnault-Deruelle: "...o fascínio que os quadrinhos podem provocar no leitor é baseado,
entre outros elementos, na sua capacidade de nos fazer imaginar além de tudo o que nos
é realmente mostrado: tem-se um sussurrar de sinais inaudíveis (assim como há um mo-
vimento intenso de coisas imóveis) por trás dessas caixas alinhadas com perfeição"" ou
Federico Fellini: "Os quadrinhos, mais do que o cinema, beneficiam-se da colaboração dos
leitores: é contada uma história que eles contam para eles mesmos; com ritmo e imaginário
próprios, que vai e volta.""
Nas histórias em quadrinhos, como afirmei anteriormente, a narração se passa em
primeiro lugar e acima de tudo (salvo algumas exceções) pelas imagens. André Gaudreault
observa que "para Platão, a mírnese não é, ao contrário do que muitas vezes parece, uma
categoria oposta à diegese, mas sim, uma modalidade desta"". Na verdade, em uma histó-
ria baseada em imagens, seja cinema ou quadrinhos, cada elemento, seja visual, linguístico
ou auditivo, participa plenamente da narração. Christian Metz leva vantagem e não pode-
ria ter sido mais claro: "... em um filme narrativo, tudo se torna narrativa, inclusive o grão
da película ou o timbre da voz."" As propostas a seguir aplicam-se tanto aos quadrinhos
quanto ao cinema:
...a terminologia foi estabelecida principalmente com referência às
narrativas linguisticas, especialmente romances. Nestes, as codificações
narrativas sobrepõem-se a uma primeira camada de definições fortes, as da
língua; é através dessas definições que falamos de enunciação, uma vez que
32 Thierry Groensteen, "Plaisir de la banda dessinée", 9e Art, no 2, Angoulême, CNBOI, janvier 1997, p. 14-21. Cit. p. 20.
33 "Le fantasme de Ia parole", Europe, n. 720: La bande dessinée, Paris, abril de 1989, p. 54-65. Cit. p. 54.
34 "Federico Fellini sage comme la lune", entrevista em Le Soir, Bruxelas, 1 de agosto de 1990, p. 3 do suplemento MAD,
35 Ou littéraire au filmique, op. cit., p. 13.
36 Michel Marie et Marc Vernet, "Entretien avec Christian Meti", íris, n. 10: Christian Metz et la théorie du cinema, Colóquio de Cerisy,
Paris, Klincksieck, "Méridiens", abril de 1990, p. 290.
THIERRY GROENSTEEN 21
o termo é linguístico. Em consequência disso, se for necessário pode-se re-
servar "narração" para o nível mais baixo. Mas a narrativa cinematográfica
não se baseia em nada, não se acumula em algum equivalente da língua; ela
própria é, ou melhor, fabrica tudo o que nela será da ordem da "l inguagem".
Ao mesmo tempo em que a enunciação se faz narrativa, a narração compõe
toda a enunciação."
Nestas páginas, pretendo contribuir para o esclarecimento da própria noção de nar-
rativa em imagens, a partir do caso particular das histórias em quadrinhos, que postulo a
partir de já como uma forma narrativa de dominante visual. De qualquer forma, a meu
ver, Paul Ricoeur definiu a perspectiva correta quando separou a autoridade da narrativa
das suas diversas manifestações concretas e as situou num plano de igualdade teórica. Esta
definição de princípios abre o campo para estudos comparativos e para o aprofundamento
dos sistemas semióticos em suas respectivas singularidades.
A DEFINIÇÃO IINENCONTRAVELls
De modo geral, as definições de histórias em quadrinhos que se encontram em di-
cionários e nas enciclopédias, assim como nas obras especializadas, são insatisfatórias. É
fácil entender o porquê.
São definições que caem em duas categorias. As primeiras, muitas vezes lacóni-
cas, optam pela abordagem essencialista e procuram englobar qual seria a "essência" dos
quadrinhos por meio de uma fórmula sintética. Esse empenho está fadado ao fracasso se
considerarmos que, longe de verificar a pouca expressão e o infantilismo intrínseco que
há muito tempo atribui-se a elas, as histórias em quadrinhos baseiam-se num conjunto
articulado de mecanismos que se envolvem na representação e na linguagem e esses meca-
nismos, por sua vez, governam parâmetros diversos nos quais a interação dinâmica assume
formas muito variadas de uma HQ para outra. Seja qual for seu êxito em termos artísticos,
precisamos reconhecer que uma história em quadrinhos:
a I é necessariamente (por sua própria constituição) uma elaboração sofisticada;
b I realiza apenas certas potencialidades do meio, às custas de outras que são mino-
ritárias ou deixadas de fora.
37 Ibid.
38 Esta rubrica remonta propositalmente a um artigo que publiquei na Cahiers de Ia bande dessinée sob o título Tintrouvable
specificité" [A especificidade inaudita] (n. 70, julho-agosto de 1986, p. 43-47). O texto abordou pela primeira vez as questões que
são novamente discutidas aqui, considerando que elas tiveram evolução considerável neste período.
22 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Portanto, buscar a essência dos quadrinhos é ter a certeza de encontrar não escassez,
mas uma profusão de respostas. No brilhante ensaio de Alain Rey intitulado Les Spectres de
la Bande" [Os Espectros dos Quadrinhos], lemos à página 102 que "o essencial" dos quadri-
nhos está no "espaço organizado que e dá entre as dimensões duplas de base no mundo real
e de sugestão perceptiva deste mundo"; na página 104, que "o intercâmbio entre os valores
textuais e figurativos constitui a própria essência dos quadrinhos"; e na página 200 que, por
conseguinte, o meio caracteriza-se antes de tudo por "um embate criativo entre figuração e
narração, não entre imagem e texto, sendo que este último assume apenas o aspecto mais su-
perficial da narrativa". Há muitas sugestões, variadas e fecundas, e não há dúvida que só nes-
te livro encontram-se outra meia dúzia de fórmulas análogas que carregam grande validade.
Mas também encontramos definições de quadrinhos mais longas e articuladas, de
acordo com aquilo que é a definição de uma definição: "Enunciação de atributos que
distinguem alguma coisa, que lhe são próprias de forma a excluir todas as outras coisas"
(Littré). As definições diferem pelo nome e pela identidade de atributos que são mantidos
como pertinentes. Os pesquisadores não deixaram de se opor a esse ponto, como veremos
através de exemplos esclarecedores.
A obra de David Kunzle The Early Comic Strip [Os Princípios das Histórias em Qua-
drinhos], inaugurou uma série de livros que se destina a cobrir toda a história das HQs. O
primeiro tomo engloba o período pre-tõpfferiano, de 1450 a 1825, reunindo não somente as
imagens popularescas, muitas vezes anônimas, mas também os ciclos de pintura e gravura
de artistas tais como Callot, Rubens, Greuze e Hogarth, para ficar em poucos nomes. Kunzle
estabelece "quatro condições" para que estas formas de narrativa em imagem pudessem ser
consideradas quadrinhos fora de época ou, se preferirmos, assimiladas a posteriori:
Segundo minha definição, uma "história em quadrinhos", seja de qual-
quer período ou país, precisa cumprir as seguintes condições para ser tratada
como tal: 1. Que exista uma sequência de imagens separadas; 2. Que exista
preponderância de imagens em relação a texto; 3. A história em quadrinhos
precisa ser concebida para reprodução e aparecer em suporte impresso, ou
seja, um suporte que predisponha à sua difusão massiva; 4. A sequência deve
contar uma história que tanto tenha sentido moral quanto seja atual. 4°
39 Paris, Minuit, "Critique", 1978.
40 '1 would propose a definition in which a 'comic strip' of any period, in any country, fulfills the following conditions : 1 / There
must be a sequence of separate images; 2 / There must be a preponderance of image over text; 3 / The medium in which the strip
appears and for which it is originally intended must be reproductive, that is, in printed form, a mass medium; 4 / The sequence must
teu l a story which is both moral and topical." Tradução do autor (cf. lhe Earl}, Comic Strip : Narrative Strips and Picture Stories in the
European 8roadsheet from c. 1450 to 1825, Berkeley, University of California Press, 1973, p. 2). O segundo volume, intitulado The
THIERRY GROENSTEEN 23
Outro mas não menos eminente pesquisador norte-americano, Bill Blackbeard,
opôs-se veementemente ao ponto de vista de Kunzle. Com certa dose de má-fé, Blackbe-
ard rejeitou cada uma das condições propostas pelo outro autor e formulou da sua parte a
seguinte definição:
Uma narrativa dramática ou uma série de anedotas correlacionadas
sobre personagens recorrentes e identificáveis, publicada regularmente, em
episódios e sem final determinado, narrada na forma de desenhos sucessivos,
contendo frequentemente diálogos dispostos em balões ou equivalentes, com
texto geralmente nnínimo. 4'
Estas duas definições, a meu ver, são inaceitáveis se vistas em sua totalidade. São
igualmente normativas e interesseiras, concebidas para apoiar um recorte histórico ar-
bitrário. A terceira condição de Kunzle, por exemplo, serve apenas para justificar o fato
de que ele escolheu a invenção da imprensa como ponto de partida da sua História dos
Quadrinhos. A definição de Blackbeard, por sua vez, que defende a tese da origem norte-a-
mericana, aplica-se tão somente às tiras de jornal e é destinada a escorraçar do campo dos
quadrinhos tudo que for anterior ao aparecimento do Yellow Kid em 1896.
Na França, lembramos apenas que Antoine Roux propôs uma definição de seis pontos
em La Bande dessinée peut être educative ("A história em quadrinhos pode ser pedagógica",
Éd. de l'École, 1970), definição esta atacada (cá entre nós, atacada injustamente, em parte) por
Yves Frémion em L 'Abc de Ia BD [O ABC da HQ], no qual lemos: "Em dez anos, nenhum
desses critérios, considerados a priori como sérios, resistiu ao avançar da história.'
A dificuldade de produzir uma definição válida do objeto que são as histórias em
quadrinhos, entendendo aqui uma definição que permita diferenciá-las daquilo que não
são, mas que não exclua nenhuma de suas manifestações históricas — incluindo aí seus
visionários marginais ou experimentais (pensemos nas obras de Jean Teulé e de Martin
Vaughn-James, por exemplo, casos em que a inclusão tende a ser problemática) — está bem
colocada por Pierre Couperie desde 1972:
Nineteenth Century [O Século Dezenove] foi publicado pela mesma editora em 1990. A primeira das quatro condições colocadas
("uma sequência cie imagens separadas") corresponde bastante, a meu ver, ao critério da solidariedade cônica que apresentarei à
frente. As três outras condições (preponderância de imagens em relação a texto, difusão por um suporte de massa, conteúdo simul-
taneamente moral e atual) são: de precisão insuficiente, em relação à primeira, e facilmente refutáveis, em relação às outras duas.
41 "A serially published, episodic, open-ended dramatic narrative or series of linked anecdotes about recurrent identified characters,
told in successive drawings regularly enclosing ballooned dialogue or its equivalent and generally minimal narrative text" (tradução
do autor) (cf. "Mislabeled books", Funny World n. 16, Michigan, 1974, p. 41).
42 Casterman, "E3", Tournai, 1983, p. 46. O terceiro e o quarto critérios propostos por Antoine Roux seriam "a HO é um encadea-
L
mento de imagens" e "a BD é uma narrativa ritmada" e a meus olhos não perderam sua pertinência.
24 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
As histórias em quadrinhos seriam uma narrativa (mas não obrigatoria-
mente uma narrativa...) constituída pelas imagens criadas pela mão de um ou
de mais artistas (a fim dt eliminar o cinema e a fotonovela), imagens fixas (di-
ferente dos desenhos ahimados), múltiplas (ao contrário dos cartuns) e justa-
postas (diferente da ilustração e dos romances em gravura). Mas essa definição
ainda se aplica muito bem à Coluna de Trajano e à Tapeçaria de Bayeux..."
Couperie ainda acrescenta que nem o enquadramento das imagens, nem o uso dos
balões e nem o modo de difusão seriam critérios determinantes.
Tão imensa é a diversidade daquilo que já se reivindicou chamar ou que hoje rei-
vindica-se chamar, em diversas latitudes, de histórias em quadrinhos que fica praticamente
impossível manter algum critério definidor universalmente aceitável. Farei uma demons-
tração com duas caraterísticas relevantes frequentemente levantadas como elementos dou-
trinários, a saber:
a I a inserção, na imagem, de enunciados verbais;
b I a permanência, ao longo dos quadros, de ao menos uma personagem identifica-
vel (critério defendido particularmente por Blackbeard).
Embora de uso estatisticamente majoritário, esses recursos deveriam ser entendidos
como caraterísticas contingentes, pois há várias exceções. Eles só conseguem fundamentar
apenas definições redutoras.
Seguem abaixo alguns autores que produziram quadrinhos "mudos", ou seja, des-
providos de enunciados verbais, sejam diálogos ou textos narrativos (chamados de recor-
datórios). Vinda da Alemanha, esta forma particular de narrativa difundiu-se a partir de
fins do século XIX com as pantomimas de Caran d'Ache, K-Hito ou A. B. Frost, para citar
ao menos um francês, um espanhol e um norte-americano. Encontramos a seguir, obras
"sem palavras" em todas as categorias das histórias em quadrinhos: tiras e/ou pranchas
independentes de jornal (Adamson, de Oscar Jacobsson, 1920; O Reizinho, de Otto So-
glow, 1931; Pai e Filho, de e.o. plauen, 1934; Pinduca, de Carl Anderson, 1934; Globi,
de J. K. Schiefe e R. Lips, 1934; Professor Nimbus, de André Daix, 1934; M Subito, de
Robert Velter, 1935; Max, o Explorador, de Guy Bara, 1955; etc.); narrativas completas
43 "Antécédents et définition de la bande dessinée", in Walter Herdeg e David Pascal (ed.), Comics: Pad de Ia bande dessinée,
Zurique: The Graphis Press, 1972, p. 9-13; o trecho citado vem da p. 11.
THIERRY GROENSTEEN 25
publicadas na imprensa ilustrada (aqui os exemplos abundam; ficaremos apenas com os
sucessos: Alló il est vivant, de Raymond Poïvet, 1964; Sanguine, de Philippe Caza, 1976;
muitos episódios do Ken Parker de Milazzo e Berardi em meados dos anos 1980; Magic
Glasses, de Keko, 1986; ou ainda os sketches do alemão Sperzel, que pudemos ler nos
últimos anos na U-Comix e em seguida na Kowalski); por fim, os álbuns desde Milt Gross
(He done her wrong, 1930) até Thierry Robin (La Teigne, 1998), passando por Moebius
(Arzach, 1975), Crepax (La Lanterne magique, 1979), Ana Juan (Regulem, com Gordillo,
1985), Avril e Petit-Roulet (Soir de Paris, 1989), Hendrik Dorgathen (Space Dog, 1993),
Alberto Breccia (Dracula, Dracul, Vlad ?, bah..., 1993), Fabio (L'OEil du Chat, 1995),
Lewis Trondheim (La Mouche, 1995), Anna Sommer (Remue-ménage, 1996) e Peter Ku-
per (O Sistema, 1997). Esta lista não tem pretensão alguma de esgotar os exemplos."
A permanência — e a vitalidade atual —dessa tradição não impede que um pesquisa-
dor afirme que "o que distingue uma história em quadrinhos de um conjunto de afrescos
é o fato de as palavras escritas serem essenciais à condução da história'''. Um detalhe in-
teressante — e revelador da sua cegueira — está em o autor trazer logo a seguir, para apoiar
esta observação, uma prancha de Krazy Kat onde os textos foram encobertos. Ele parece
não perceber que, para infelicidade do que diz, a narração se desenvolve em onze imagens
e permaneceu perfeitamente inteligível apesar da amputação!
Quanto à presença de uma personagem fixa, há diversas formas de contorná-la.
Mencionarei seis:
1.A primeira é radical: é suficiente que nenhum ser humano seja descrito na histó-
ria; neste caso, estas obras têm como motor a metamorfose de um lugar ou de um conjunto
de objetos. Por exemplo: The Cage, de Martin Vaughn-James (Toronto, 1975); Intérieurs,
de Régis Franc (1979); Uma Breve História da América, de Robert Crumb (1979) 48 .
2. O segundo caso pode ser pensado como atenuação do primeiro., Mesmo que a
personagem não seja mostrada, sua presença é sugerida "in absentia" pela utilização de uma
narração verbal na primeira pessoa, e/ou como indício de percepção assumida das imagens
(o procedimento conhecido no cinema como "câmera subjetiva"). A contribuição de André
Juillard no volume coletivo Le Violon et l'archer (1990) ilustra este segundo caso. Lembra-
mos também da famosa prancha de McCay no seu Sonhos de um Comilão onde o protagonis-
44 Edição brasileira: Belo Horizonte: Nemo, 2011. [N.T.]
45 Edição brasileira: São Paulo: Abril, 1998. [N.T.]
48 Posso me referir a meu "Histoire de la bande dessinée muette", ge Ad, CNBDI, Angoulême, n. 2, janeiro de 1997, p. 60-75, e n.
3, janeiro de 1998, p. 92-105.
47 Cf. David Carrier, "Comics and the art of moving pictures: Piero della Francesca, Hergé and George Herriman", Word & Image,
Londres-Washington DC, Taylor & Francis, vol. 13, n. 4, outubro-dezembro 1997, p. 317. Tradução minha.
48 Edição brasileira: no álbum América. Trad. Daniel Galera. São Paulo: Conrad, 2004. [N.T.]
26 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
ta assiste ao próprio enterro do fundo do seu caixão (a série foi publicada de 1904 até 1911, e
depois relançada em 1913; a data precisa da prancha que cito, até onde sei, não é mencionada
em nenhuma edição). Um caso sitnilié aquele na qual a personagem, sem chamar a atenção
nem conduzir a narrativa, fica fora dé cena em caráter permanente (podemos ouvá-la falar
sem vê-la), como em Calma chicha (1985), curta HQ do espanhol Marti.
3. Pode acontecer também que, mesmo estando presente na imagem, a personagem
não seja fisicamente identificável porque os traços que determinam sua identidade (o ros-
to, em primeiro lugar) são sistematicamente evitados. O livro Carpets ' bazaar, de Françoi-
se Mutterer e Martine Van (1983) cumpre esse desafio. Exemplo um pouco diferente seria
Un flip coca, de Edmond Baudoin (1984), no qual os traços da heroína só são revelados
ao leitor nas três últimas páginas do livro (até lá ela está representada de costas ou com o
rosto encoberto pelos cabelos).
4. A "estabilidade" da personagem também pode ser prejudicada por incessantes mu-
tações cio seu desenvolvimento corporal ou do tratamento gráfico que lhe é reservado. Um
livro experimental como John et Betty, de Didier Eberoni (1985), propôs algo que se aproxi-
ma deste procedimento. René Pétillon utilizou este mesmo método bem-humorado para des-
crever o "chefe dos serviços de inteligência da Terra (...) um daqueles mutantes classe B14,
tipinho instável, que está sempre trocando de cabeça" (Bienvenuee aux terriens, 1982, p. 25).
5. A personagem como individualidade reconhecível se dissolve quando todas as
personagens se assemelham entre si, destruindo a própria ideia de identidade. Em meio a
um povo como os Smurfs, as marcas físicas de individualidade são raras (inicialmente re-
servadas a Papai Smurf, Gênio e seus óculos, além, claro, de Smurfette). Aqui a nomeação
(sob a espécie de epíteto qualificativo: Smurf Ranzinza, Smurf Poeta, Smurf Vaidoso etc.)
permite que a narrativa se acomode nesse estado que Bruno Lecigne batizou propriamente
de hipergeminaçáo. Algumas histórias de Francis Masse e de Florence Cestac também
chegaram bastante próximo da indiferenciação absoluta dos corpos.
6. Continua a haver o caso dos quadrinhos onde os "atores" se renovam de quadro a
quadro, cada um tendo seu papel limitado a uma única aparição. Muitos trabalhos do grupo
Bazooka ilustram este recurso, assim como as' cinco pranchas de Crumb intituladas Cidade
do futuro (City of the future, 1967). O primeiro capítulo de Era a Guerra de Trincheirasde
Jaques Tardi" (publicado originalmente na (à suivre) n. 50 em março de 1982), que nem é
tão distante, possui uma estrutura polifônica para atestar a natureza coletiva da questão (o
absurdo da guerra) que não convém personalizar, sob o risco de reducionismo."
49 Edição brasileira: Belo Horizonte: Nemo, 2011 (trad. Ana Ban), [N.T.]
50 Para uma análise deste importante trabalho, faço referência ao belo artigo de Jaques Samson, "Le champ tardien", Mieux vaut
THIERRY GROENSTEEN 27
Portanto, dois critérios dogmáticos presentes na maior parte das definições corren-
tes das histórias em quadrinhos devem ser postos de lado. A dificuldade encontrada aqui
não é exclusiva dos quadrinhos. Ela se coloca em termos quase idênticos para a maioria,
se não para a totalidade das formas artísticas modernas, corno o cinema, e para as formas
cuja evolução ao longo do século arrasou sua definição tradicional (romance, pintura, mú-
sica...). Por exemplo: Roger Odin mostrou que é quase impossível enunciar uma definição
do cinema que valha também para os desenhos animados e para todas as formas de cinema
experimental ou "ampliado". A aporia à qual o semiólogo se vê obrigado a recorrer é a
seguinte:
Com que direito excluímos do cinema as produções que seus autores
apresentam explicitamente como "filmes"? o fato de que essas produções
não se encaixam na nossa definição do objeto "cinema" seria justificativa
suficiente para esta exclusão? se não, devemos rever nossa definição de
cinema num sentido ainda mais generalizante, de forma em que possamos
integrar estes contra-exemplos? Mas, nesse caso, aonde chegaremos com
essa generalização: à ausência da película? à ausência da tela? á ausência do
projetor? não chegamos então a uma definição que não nos dirá nada sobre
seu objeto`r
Roger Odin sugere que é necessário superar essa abordagem imanente para levar
em consideração sua utilização social. Não considerando o "objeto cinema" mas o "campo
cinematográfico", ele conclui (p. 57) que "objetos cinematográficos são objetos defini-
veis, embora variáveis no espaço e no tempo".
DA SOLIDARIEDADE ICÔNICA COMO PRINCÍPIO FUNDADOR
Se quisermos propor a base para uma definição razoável para a totalidade das ma-
nifestações históricas do meio, e mesmo para todas as outras produções não realizadas
até agora, mas concebíveis teoricamente, faz-se necessário reconhecer como único funda-
mento ontológico dos quadrinhos a conexão de uma pluralidade de imagens solidárias. A
relação estabelecida entre essas imagens admite diversas operações, as quais distinguirei
mais tarde. Mas o seu denominador comum e, portanto, elemento central dos quadrinhos,
seu primeiro critério de ordem funcional, é este: a solidariedade icônica. Definiremos
rardi, Montréal, Analogon, 1989, p. 25-41.
51 Cinema et production de sens, op. cit., p. 49-50,
28 0 SISTEMA DOS QUADRINHOS
como solidárias as imagens que participam de uma sequência, apresentando a dupla cara-
terística de estarem apartadas (faz-se essa precisão para descartar quadros individuais que
encerram em si uma riqueza de padrões ou anedotas) e serem plástica e semanticamente
sobredeterminadas pelo simples fato' da sua coexistência in praesentia.
Não há dúvida de que dar um significado tão amplo ao termo "história em quadri-
nhos" tem suas desvantagens. É o perigo sinalizado por Pierre Couperie. Desde as estelas,
dos afrescos e dos livros dos mortos do antigo Egito até as predelas da pintura medieval,
da Tapeçaria de Bayeux até aos polípticos de todas as épocas, passando pelos códices
pré-colombianos, as vias-cri:leis, os E Makimono (pergaminhos pintados) japoneses, os
- campo literário entre "dois grandes tipos: de um lado a ficção (dramática ou narrativa),
storyboards de filmes e as fotonovelas modernas, é grande o número de realizações artís-
ticas que parece pedir asilo nessa casa da mãe joana."
As histórias em quadrinhos conhecem assim um problema muito similar àquele do qual há
muito tempo se ocupa o mundo fins letras. Todos hão de concordar que não basta alinhar palavras
para criar uma obra literária, pelo simples motivo de que "de todos os recursos que a humanida-
de pode utilizar para os fins da arte, a linguagem é possivelmente o menos específico, o menos
estreitamente reservado a essa finalidade". Representando um debate em aberto desde os tem-
pos de Aristóteles, Gérard Genette esforça-se para definir os critérios do que é literário, ou seja,
as condições nas quais um texto pode ser reconhecido como literatura. Reconhecemos da mesma
forma que para os "essencialistas" talvez não baste alinhar imagens, mesmo que solidárias, para
se ter uma história em quadrinhos. Cabem muitas outras condições, tendo prioridade, imagina-
-se, a "natureza" dessas imagens (sua materialidade, sua forma de produção, suas caraterísticas
formais), seguidas pelo(s) seu(s) modo(s) de articulação, possivelmente até o suporte que as aco-
lhe, sua distribuição e suas condições de recepção, em suma, tudo que faz parte desse processo
de comunicação em específico." Mas é pouco provável que se alcance a unanimidade em
qualquer destas condições.
Na verdade, a busca por uma essência dos quadrinhos não é exatamente a mes-
ma coisa que a definição de literariedade. Trata-se, no segundo caso, de distinguir o
52 Não menciono propositalmente as expressões nas quais a narração é a inclinação natural ou aplicação possível. Existem outras
séries de imagens fixas solidárias que obedecem a princípios de correlação particulares. Temos aí os desenhos arquitetõnicos que
representam uma mesma edificação, nos quais é importante que planta baixa, cortes e fachada coincidam. As imagens de uma
história em quadrinhos estão sujeitas apenas à solidariedade referencial da ordem que o autor decidir, para questões de verossi-
milhança.
1._._se não a única, para que possamos falar sobre quadrinhos é que as imagens são diversas e
• correlacionadas de alguma forma.
53 Gérard Genette, Raio et diction, Paris, Le Seul!, "Poétique", 1991, p. 11-12.
54 É importante ver que nos situamos no cruzamento de duas lógicas distintas. Por um lado, manter como critério de definição o
fato que uma história de quadrinhos precisa estar confinada à impressão conduzirá a recusarmos o desenho original ou projeção em
teia. É evidente, a meu ver (mas, como já vimos, não para David Kunzle) que uma história em quadrinhos não deixa de ser história
em quadrinhos se não estiver impressa. O sistema que proponho pretende dar conta da linguagem da história em quadrinhos, e
não de sua instituição.
THIERRY GROENSTEEN 1 29
discurso literário de todos os outros tipos de discurso, a começar pela linguagem cotidiana.
A literatura se caracteriza por "uma ruptura com o regime usual da língua". A questão cla-
ramente colocada consiste em definir "aquilo que faz de uma mensagem verbal uma obra
de arte", segundo a formulação de Roman Jakobson lembrada por Genette. Para este últi-
mo, a ruptura pode ser analisada seja em termos de ficçâo (na medida em que uma obra de
ficção pede do seu leitor urna "atitude estética" e um "discernimento" relativo ao respeito
do mundo real), seja em termos de dicção, ou seja, a partir da observância de caraterísti-
cas formais que são "fatos estilísticos". Esta oposição tende a coincidir com a divisão do
do outro a poesia lírica, mais frequentemente tratada como poesia propriamente dita"."
As histórias em quadrinhos, por sua vez, baseiam-se em um dispositivo que desco-
nhece o uso coloquial. Não há evidências de que alguém se expresse desse modo — embora
a prática de quadrinhos seja, técnica e financeiramente falando, acessível a todos, como
confirma a disposição das crianças em produzi-las. Não se pode deixar de compará-las com
outras formas de criação (em especial aquelas que nomeamos acima) que participam de
pleno direito dos domínios da arte e da ficção. Uma vez que as histórias em quadrinhos não
se baseiam numa utilização particular da linguagem, não há lugar para defini-las em termos
de dicção. Mas eles igualmente não se confundem com uma modalidade de ficção, dado que
existem quadrinhos publicitários ou de propaganda, quadrinhos pedagógicos ou políticos e,
ocasionalmente, quadrinhos-reportagem onde predomina o objetivo de informar, de reportar.
Acrescentamos que a proliferação das histórias em quadrinhos autobiográficas é uni fenôme-
no notável desses últimos anos, tendo vindo dos EUA onde as obras de Robert Crumb, Art
Spiegelman e Harvey Pekar, em especial, abriram as portas. Essa plasticidade da história em
quadrinhos, que lhes permite veicular mensagens de todo tipo e narrações outras que não a
ficção, demonstra que, antes de ser uma arte, os quadrinhos são perfeitamente, linguagem.
Porém, não é necessário, neste ponto da reflexão, forçar ainda mais a preocupação
quanto a delimitar o meio. Basta a nós saber que não é possível conceituar os quadrinhos
sem verificar a regra geral já enunciada, a da solidariedade icônica. A condição necessária,
Esta informação pode ser conferida por qualquer pessoa que folheia um álbum
ou uma revista em quadrinhos. O que se oferece ao olhar é um espaço fragmentado,
55 Este parágrafo traduz esquematicamente as primeiras páginas (p. 7-21) de Fiction et diction, op. cit., de onde provêm estas
citações.
30 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
compartimentado, uma coleção de quadros justapostos, ou, para citar a bela formulação
de Henri Van Lier, uma "aeronave de multirrequadros" navegando, suspensa, "no branco
nulo da página impressa"" Uma pena de HQ oferece uma primeira visão global, sinté-
tica, mas que não pode ser satisfatória. Ela precisa ser examinada, percorrida, decifrada
analiticamente. Essa leitura de momento a momento não leva em menor conta a totalidade
do campo panóptico que constitui a página (ou a dupla de páginas), uma vez que a visão
focal nunca deixa de ser enriquecida pela visão periférica.
Observamos que o próprio termo francês bande dessinée (tira desenhada) induz a
uma percepção restritiva do campo que supostamente deveria cobrir. O epíteto, ao especi-
ficar que a imagem será produto de um desenho, parece eliminar a priori qualquer recurso
fotográfico, tipográfico, que dirá da pintura. Pior ainda, a ideia de tira privilegia injusta-
mente um dos componentes do meio, isto é, a tira de jornal, uma seção horizontal" que às
vezes constitui uma micronarrativa, por vezes é apenas um episódio de uma continuidade
folhetinesca ou apenas um pedaço da prancha. Se acreditarmos em Jean-Claude Glasser, o
domínio deste termo tem justificativa histórica:
É provavelmente nas instalações da Agência Opera Mundi que se
constitui a expressão "bande dessinée" [a partir dos anos trinta] e que gra-
dualmente se impõe. (...) Ela é utilizada para designar as tirinhas diárias (...)
e é por isso que não é encontrada nas revistas ilustradas da época, onde pre-
dominam as pranchas dominicais, projetadas conforme a página ou a meia
página. (...) Só a partir dos anos cinquenta essa terminologia deixou de ser
aplicada apenas às séries diárias..."
Mas o que não passava de uma generalização lexical tornou-se uma verdadeira impro-
priedade, dado que atualmente, na Europa, é o livro o meio preponderante das bande dessinée
e, por conseguinte, a página é sua unidade de referência técnica, mercadológica e estética.
A solidariedade icônica é a condição, necessária para que uma mensagem visual
possa, à primeira aproximação, ser assimilada a uma história em quadrinhos. Como objeto
56 "La bande dessinée, une cosmogonie dure", inThierry Groensteen (dir.), Bando dessinée, récit et rnodernité, Colóquio de Cerisy,
Paris, Futuropolis-CNBDI, 1988, p. 5.
57 Nos anos 1950 e 1960, entretanto, surgem em grande numero na imprensa diária francesa as "tiras" verticais, destinadas, sobre-
tudo, ao público feminino, Elas tratam dos "romances célebres", dos "grandes erros jurídicos", das "personalidades fora de série" ou
também da vida das "rainhas trágicas". Os desenhos acompanhavam blocos de texto. O gênero cai pouco a pouco na obsolescência,
até sumir por completo no início dos anos 1980. A respeito deste tema, ler principalmente Guy Lehideux, "Un dessinateur de bandes
verticales, Charles Popineau", Les Cahiers Pressibus, n. 4, Tours, abril de 1994, p. B2-87.
58 Carta publicada em Les cahiers de la bando dessinée, Grenoble-Bruxelas, Glénat, n. 80, março de 1988, p. 8.
THIERRY GROENSTEEN 31
físico, todas as histórias em quadrinhos podem ser descritas como uma coleção de ícones
apartados e solidários. Se considerarmos produções individuais, rapidamente percebere-
mos que os quadrinhos tendem a atender a essa condição mínima, mas nem todos seguem
os mesmos fins tampouco mobilizam os mesmos mecanismos. Toda generalização teórica
cai nas armadilhas do dogmatismo. Longe de querer defender uma escola, urna época ou
colocar uma corrente contra a outra, ou ainda de prescrever uma receita, empenhar-me-ei
em reconhecer a diversidade das histórias em quadrinhos e poupar minha reflexão de todo
caráter normativo.
É por isso que escolhi como emblema desta reflexão a ideia de sistema, que define
um ideal. Esse sistema dos quadrinhos será um quadro conceituai onde todas as reali-
zações da "nona arte" podem encontrar seu lugar e serem pensadas em comparação, ao
mesmo tempo nas suas diferenças e nas semelhanças comuns ao mesmo meio. Nesse sen-
tido, a noção de sistema, "conjunto de coisas que se inter-relacionam" (Littré), promove o
conceito fundamental de solidariedade.
APRESENTANDO A ARTROLOGIA E A ESPAÇOTOPIA
Faz-se importante agora definir a natureza exata dessa solidariedade icônica. As
histórias em quadrinhos apresentam as imagens que as compõem em diferentes tipos de
relação. Para qualificar o conjunto dessas relações, utilizarei um termo genérico com sig-
nificado amplo: Artrologia (do grego arthron: articulação) 59.
Qualquer imagem desenhada encarna-se, existe, implanta-se em um espaço. Con-
trariamente à imagem em movimento do cinema, que Gilles Deleuze demonstrou ser ao
mesmo tempo "imagem-movimento" e "imagem-tempo"", a imagem fixa conhece apenas
a primeira dimensão. Vincular os quadros dos quadrinhos consiste necessariamente em
vincular os espaços, operar em um espaço compartilhado. São estes os princípios funda-
mentais da distribuição espacial que serão examinados pela primeira vez sob a rubrica de
espaçotopia, termo criado por reunir, mesmo mantendo separados, os conceitos de espaço
e de localização. 6' Os espaços específicos às histórias em quadrinhos, tais como o balão de
59 Embora a palavra me tenha sido sugerida pelo Textique de Jean Ricardou, não a empregarei aqui no sentido preciso e restrito
que ele a atribuiu. (Para Ricardou, a artrologia, que opera à modalidade dupla de aglomeração e concreção, opõe-se à isologia, na
qual as modalidades são replicação e representação.) Cf. "Elements de Textique I, II, III et IV", Conséquences n. 10 à 13-14, Paris,
Les Impressions nouvelles, 1987-1990.
60 Cf. Cinéma 1 et 2, Paris, Minuit, 1983 e 1985.
61 Os parâmetros espaçotópicos que serei convocado a distinguir remetem à geometria, que é a ciência das figuras no espaço. As-
sim será possível economizar o neologismo espaçotopia e simplificar a explicação com termos geométricos. Contudo, a terminologia
proposta tem por intenção distinguir, sem separação estanque, duas ordens de curiosidade : a descrição das figuras (as vinhetas)
em si, e a observação de suas coordenadas no contexto.
32 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
fala, o quadro e o requadro, a tira (faixa horizontal que é o primeiro nível de agrupamento
dos quadros) e a prancha, serão convocados sucessivamente para análise de suas interações.
A precedência que se atribui tordem das relações espaciais e topológicas vai de en-
contro à opinião generalizada que sdstenta que, nas histórias em quadrinhos, a organização
espacial é totalmente subserviente à estratégia narrativa e controlada por ela; a narrativa
criaria ou ditaria, dependendo do seu desenvolvimento, o número, a dimensão e a disposi-
ção dos quadros. Ao invés disso, acredito que assim que um autor confia aos quadrinhos a
história que ele pretende contar, ele pensa essa história e sua obra em formação dentro de
uma determinada forma mental com a qual ele terá de negociar. O dispositivo espaçotópi-
co é exatamente essa forma e uma das chaves do sistema dos quadrinhos, um complexo de
unidades, de parâmetros e de funções que cabe a nós descrever. Levar em conta o suporte
e preconceber a forma da organização espacial que será adotada são, assim espero demons-
trar, pré-requisitos para o início da efetivação, assim como são limitações que continuarão
a informar cada fase de criação. No momento em que esboça o primeiro quadro de uma
história em quadrinhos, em relação a como será seu envolvimento com o meio, o autor
já fez grandes opções de estratégia (que evidentemente podem mudar) no que concerne à
distribuição dos espaços e ocupação dos lugares'. Faz parte do layout especificar essas
opções e dar a cada prancha a configuração definitiva.
Mas as histórias em quadrinhos não são somente arte fragmentária, de disper-
são e distribuição; são também a arte da conjunção, da repetição, da concatenação.
Dentro do dispositivo espaçotópico — ou seja, o espaço do qual a HQ se apropria e no
qual se desenvolve — podemos distinguir dois graus nas relações que se pode estabele-
cer entre as imagens. As relações elementares, de tipo linear, fazem parte do que no-
mearemos artrologia restrita. Regidas pela operação de decupagem, elas implemen-
tam sintagmas sequenciais, normalmente subordinados aos fins narrativos. É nesse
nível que a escrita tem prioridade como operador complementar da narração. As ou-
tras relações, translineares ou distanciadas, pertencem à artrologia geral e compõem
as modalidades do entrelaçamento. Elas representam um nível mais elaborado de in-
tegração entre o fluxo narrativo (que podemos chamar também de energia narrativa,
ou, recorrendo à expressão de Hubert Darnisch, de "lançadeira narrativa") e o dispo-
sitivo espaçotópico, cuja essência, nomeada por Henri Van Lier, é o "multirrequadro".
Por um lado, não se quer a comparação de espaços que dependem da espaçotopia e, por
62 Cf. meu artigo "La planche, un espace narratif", em Gilles Ciment e Odette Mitterrand (dir.), L'Histoire...par la bande, Paris, Syros,
1993, p. 41-46.
THIERRY GROENSTEEN 33
outro, também não se quer a comparação dos conteúdos que se apoiarão na artrologia. As
articulações do discurso dos quadrinhos são indistinguíveis dos conteúdos-encarnados-
em-espaço ou, se preferir, dos espaços-investidos-de-conteúdo. A espaçotopia é, portanto,
uma parte da artrologia, um subconjunto dividido arbitrariamente, sem qualquer autonomia
afora aquela que lhe atribuirá, em dado momento, a pesquisa, para fins heurísticos. Ela na
verdade serve para entender certos níveis de funcionamento da linguagem dos quadrinhos,
para operar intelectualmente esta redução da prancha a uma montagem de quadros e balões
vazios. Na verdade, essa montagem não é nem observável como tal e nem sequer preexis-
tia em formato elaborado em relação à versão final, completa, da prancha como objeto.
Entretanto, a meu ver, o estudo do sistema dos quadrinhos deve começar pela espa-
çotopia. Esta priorização não se justifica, como acabei de dizer, pela cronologia das ope-
rações realizadas sucessivamente ao longo do processo de elaboração de um quadrinho.
Ela agarra-se à preexistência daquilo que eu chamei anteriormente de "forma mental".
Um roteiro de HQ (embora o que se segue também se aplique a HQs sem roteiro, feitas de
improviso — como foi o caso, por exemplo, da Garagem hermética de Jerry Cornelius°,
de Moebius) não se constrói de forma puramente abstrata e especulativa. A HQ só pode
desenvolver-se em diálogo com uma ideia prévia do meio, da sua natureza, das suas com-
petências e prescrições. Consiste erri inventar um roteiro que possa ganhar corpo nesse
meio (ou adaptar-se uma narrativa pre-existente a suas funções), se possível para melhor
aproveitá-lo". A representação geral e difusa dos quadrinhos, sobre a qual repousa a cria-
ção, retém os componentes espaçotópicos do sistema, dado que estes constituem, simulta-
neamente, sua estrutura e sua base. A espaçotopia é o ponto de vista que podemos ter sobre
as histórias em quadrinhos em geral antes de pensar em uma HQ específica, e a partir do
qual é possível pensar novas capacidades de desempenho do meio.
Logo, quando se elaboram os conteúdos, quando um discurso investe no multirre-
quadro, a questão das concatenações e articulações torna-se preponderante. Articular os
materiais icônicos e linguísticos é função da decupagem. Articular os quadros é função do
layout. Decupagem e layout são os dois processos fundamentais da artrologia, que o entre-
laçamento eventualmente complementa. Os dois, no entanto, utilizam-se de elementos que
pertencem sobretudo ao campo da espaçotopia. Isto fica evidente no layout, ao qual cabe
definir a divisão do espaço. É igualmente válido para a decupagem, que se baseia em duas
63 Edição brasileira: A Garagem Hermética. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Nemo, 2012. [N.T.]
64 A respeito da adequação entre a história e midia, e as possibilidades de tradução da mesma história de uma Mia para outra,
permito-me remeter a meu texto "Fictions sans frontière", em André Gaudreault e Thierry Groensteen (org.), La Transécriture. Pour
une théorie de l'adaptation, anais do Colloque de Cerisy, Montréal-Angoulême, Nota Bene-CNBDI, 1998, o. 9-29.
34 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
funções essenciais e complementares do requadro (as quais descreverei mais à frente), a
função de separação e a função de indicador de leitura.
Assim, podemos definir o mgdo de interação entre as instâncias da espaçotopia e da
artrologia como "dialógico" e "reciírsivo". Edgar Morin, de quem tomei estes conceitos de
empréstimo, define-os da seguinte forma: é dialógica toda "associação complexa de ins-
tâncias necessárias em conjunto à existência de um fenômeno". Podem qualificar-se como
recursivos os fenômenos de "inter-retroações recíprocas" em instâncias que "se regulam
umas às outras", de modo que "os efeito ou produtos são, ao mesmo tempo, causadores e
produtores"". Espero poder demonstrar que é este o grau de complexidade da interação
que sustenta o sistema dos quadrinhos.
Conforme essa perspectiva, o privilégio que críticos e teóricos atribuem com fre-
quência a certos processos supostamente específicos das histórias em quadrinhos indubi-
tavelmente carece de reavaliação. Aponto, por exemplo, em Bande dessinée et figuration
narrative [História em quadrinhos e figuração narrativa] (livro que foi, de vários pontos de
vista, basilar), a passagem que afirma que 80% dos desenhistas de quadrinhos "renegam as
técnicas de layout e decupagem que lhe são específicas" 66 ("lhe" refere-se à linguagem da
nona arte). As histórias em quadrinhos de fato não mobilizam procedimentos ou técnicas
realmente particulares. Por outro lado, todas as HQs, mesmo as de aparência mais simples,
são avatares específicos de um sistema no qual componentes e suas interações desenham
uma totalidade que é inédita e complexa. É esse sistema que passamos a dissecar a partir
de agora.
Para fechar esta introdução, gostaria de expressar minha dívida a Benoit Peeters e
Thierry Smolderen, que contribuíram de forma decisiva para o amadurecimento de certas
ideias aqui formuladas. Também preciso agradecer, pelos preciosos comentários formula-
dos a respeito de uma ou outra página, a Gilles Ciment, Pascal Lefèvre e Bernard Magné.
65 CE La Méthode, t. 3: La connaissance de la connaissance, Paris, Le Seull, 1986, p. 98-101. [Edição brasileira: O método o
conhecimento do conhecimento. 4a edição. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 110-113.]
66 Claude Moliterni, em Banda dessinée et figuration narrativa, Musée das Arts Décoratifs/Palais do Louvre, março 1967, p. 187.
35
COLLO PRIMEIRO
O SISTEMA ESPAÇOTC5PICO
É preciso que a ideia e o formato inicial de uma obra seja um espaço,
um lugar onde depositar-se-á e dispor-se-á a matéria, e não uma
matéria a ser depositada ou disposta.
JOSEPH JOUBERT, CARNETS.
Não vemos, pois, que pintor ou poeta jamais principiam quadro ou
poema sem antes estarem minimamente a par de seu espírito, da
simultaneidade de seus principais elementos...?
RODOLPHE RIPFFER, REFLEXIONS ET MENUS PROPOS D'UN PEINTRE GENEVO,S, CAP. XXII.
1.0. Nossa tentativa de descrição sistemática do corpo físico da história em qua-
drinhos partirá da noção de rnultirrequadro proposta por Henri Van Lier. Por mais que
uma prancha concluída não deixe de ser um multirrequadro, esse termo sugere, além da
ideia de multiplicidade, a redução das imagens a seu requadro, isto é, a seu contorno
e, especialmente, ao traço que o delimita. Permite-nos, assim, imaginar uma HQ vazia,
"purificada" de seus conteúdos icônico e verbal, constituída por uma sequência tinita de
quadros solidários. Em suma, uma história em quadrinhos temporariamente reduzida a
seus parâmetros espaçotópicos.
1.1 -A PREGNÂNC1A DO QUADRO
Já tratei do motivo pelo qual não vejo vantagem em abordar o estudo das histórias
em quadrinhos a partir de unidades inferiores ao quadro. Cito mais uma vez Umberto Eco
para enfatizar como é dificil, no discurso das HQs, identificar unidades elementares que
sejam estáveis e formalizáveis:
Em um sintagma icônico intervêm relações contextuais to complexas
que parece difícil distinguir entre elas as unidades pertinentes das variantes
facultativas. (...) Os aspectos pertinentes variam: ora são grandes configura-
36 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
ções reconhecíveis por convenção, ora até mesmo pequenos segmentos de li-
nha, pontos, espaços brancos, como acontece num desenho de perfil humano,
onde um ponto represgta o olho e um semicírculo, a pálpebra. Sabemos que,
em outro contexto, o rl-iesmo tipo de ponto e o mesmo semicírculo represen-
tam, pelo contrário, uma banana e um bago de uva. 67
A escolha do quadro como unidade de referência, porém, faz-se necessária no mo-
mento em que nosso interesse recai sobre a forma de ocupação do espaço específica às
HQs. Em sua configuração normal, o quadro é apresentado como uma porção de espaço
isolada por vazios e delimitado por uma requadro que assegura sua integridade. Assim,
independente de seu conteúdo (icônico, plástico, verbal) e da complexidade que possa
manifestar, o quadro é uma entidade aberta à manipulação geral. Podemos extraí-1o, por
exempo, para ampliar e fazer uma camiseta; da mesma forma, podemos tirá-lo do lugar.
A prova se dá quando uma HQ, por conta da mudança de suporte (de jornal para
álbum, de álbum para edição de bolso), é submetida à "remontagem": a primeira coisa
que se muda é a ordem dos quadros. O exercício consiste em redefinir a posição de cada
um. Em relação às imagens, elas não são diretamente atingidas ou, quando o são, isto
acontece tendo-se em vista a preservação do alinhamento dos quadros para conceder à
página recriada um formato externo regular". Trata-se, portanto, de uma intervenção nos
requadros. Qualquer alteração imposta à imagem em si, por conta desta intervenção, é da
ordem da consequência e pode ser tratada, na pior das hipóteses, com indiferença ou, na
melhor (?), como mal necessário. Quando uma imagem é reenquadrada, seja por amputa-
ção ou extensão, tem-se a aparência de que os editores tiveram menos consideração por
sua composição interna (equilíbrio, tensão, dinamismo) e mais pelo preenchimento da
prancha, sendo o objetivo manter algum tipo de solidariedade geométrica entre o suporte
e os quadros que compartilham a página. Em resumo, constatamos que o requadro é quem
manda na imagem. Este fato empírico reforça o privilégio que a teoria pode dar ao quadro
como unidade mínima.
Embora os parâmetros de tempo me interessem menos que os parâmetros de espaço,
já observo aqui que o quadro das histórias em quadrinhos não equivale ao plano como unida-
de da linguagem do cinema. Dado o tempo que o quadro "representa" e condensa, seu status
67 La Structure absente, Paris, Mercure de France, 1972, p. 187-188. [Edição brasileira: A estrutura ausente. 7' ed. Trad. Perola de
Carvalho, São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 114.]
68 Sobre este assunto, ler "Cofie et ciseaux", em Stan Barets e Thierry Groensteen (org.), L'Année de Ia bande dessáée 87/88,
Grenoble, Glénat, 1988, p. 94-95 Gilles Ciment entrevistou os diagramadores que fazem "adaptações" como estas para a Editions
J'al Lu e a Livre de Poche.
THIERRY GROENSTEEN 37
fica entre o plano e o fotograma, aproximando-se mais de um ou de outro conforme o caso.
Feito este comentário sobre precisão, um pequeno desvio pela teoria cinematográfica (como
outros que faremos) pode esclarecer. Pode-se efetivamente transpor ao tema do quadro esta
observação de Christian Metz: "Se o plano não for elemento mínimo da significação fílmica
(pois um só plano nos fornece várias informações), é pelo menos o elemento mínimo da
cadeia filmica."" E ainda: "Pode-se decompor um plano, não se pode reduzi-lo.""
Como já dissemos: emoldurado, isolado por vazios (que reforçam o requadro), ge-
ralmente de pequena dimensão, o quadro permite sua fácil identificação e destaca-se no
continuurn sequencial. Isto quer dizer que, aos níveis perceptivos e cognitivos, o quadro
tem maior existência para o leitor de HQ do que um plano para o espectador do filme. Ao
assistir a um filme, "o espectador do cinema não tem (...) a sensação de estar colocado
diante de uma multidão de enunciados narrativos de primeiro nível que se acumulam aos
poucos para dar à luz o enunciado narrativo de segundo nível, a narrativa cinematográfica
geral". A experiência do leitor de quadrinhos, por outro lado, é exatamente essa.
Essas particularidades do quadro explicam porque ele se oferece, em alguns casos,
ao investimento emocional do leitor e transforma-se em uma espécie de fetiche — a pro-
va está na moda, nos últimos quinze anos, das estampas feitas a partir de ampliações de
quadros das HQs. Poço de ficção, "janela aberta para a história" (segundo a fórmula que
tem sido usada extensivamente desde Alberti, mas que não é menos pertinente no caso das
imagens dos quadrinhos), miniatura frequentemente pródiga em detalhes e tonalidades de
cor, o quadro tem o poder de prender o leitor, contrariando por um instante essa "fúria de
leitura" que o leva a galopar pelas imagens, sempre em frente.
Em algumas ocasiões, pelo menos algumas, esse poder encontra explicação naquilo
que Roland Barthes propôs batizar de "sentido obtuso". Em acréscimo ao informativo, de
comunicar, e ao simbólico, de significar, esse "terceiro sentido" desdobra-se em termos de
significância. É o sentido que nasce de uma "leitura interrogativa" ou de uma "apreensão
'poética", e que se prende por excelência aos "acidentes significantes". Barthes explica
que "o sentido obtuso é a própria contranarrativa; disseminado, reversível, preso à sua pró-
pria duração, pode apenas inaugurar outro corte, diferente daquele dos planos, sequências
e sintagmas (técnicos ou narrativos)"". Desenvolvida a partir de um corpus emprestado do
99 Essais sura signification au cinéma, I, op. cit., p. 109. [Edição brasileira: A significação no cinema. Trad. Jean-Claude Bernardet,
p. 127-1281
70 Ibid., p.119. [Edição brasileira: p. 1381
71 André Gaudreault, Ou littéraire au filmigue, op. cit., p. 49.
72 L'Obvie et l'obtus, Paris, Le seull, "Tel Quer, 1982, p. 56 e, de forma mais geral, p. 43-56, [Edição brasileira: O óbvio e o obtuso.
Trad. Loa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 56 (citação) e p. 43-56]
38 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
cinema (fotogramas de S. M. Eisenstein), a concepção de sentido obtuso — que precisa, a
meu ver, aproximar-se da questão da descrição da imagem, que nós abordaremos no tópico
2.7 — não é indevidamente aplicadf'aos quadrinhos, como o próprio Barthes assinala:
-lá outras "artes" que combinam o fotograma (ou pelo menos o dese-
nho) e a história, e a diegese: seriam a fotonovela e as histórias em quadri-
nhos. Estou persuadido que estas "artes", nascidas no submundo da grande
cultura, possuem uma qualificação teórica e põem em cena um novo signifi-
cante (aparentado com o sentido obtuso) ..."
Os estudos mais sistemáticos dos quadrinhos já publicados costumam seguir quase
sempre o mesmo plano: examinam sucessivamente o emaranhado de relações internas ao
quadro (aqueles em particular que dizem respeito a seus três componentes majoritários,
ou seja, a imagem, a escrita e o requadro; mas obviamente existem outros, dado que a
própria imagem admite muitos parâmetros: referência, composição, iluminação, cor, qua-
lidades do traço... assim como é o caso da escrita), e as relações que se desenvolvem entre
os quadros, o(s) modo(s) de articulação dessas unidades complexas. Essa abordagem em
duas etapas pode ser vista especialmente em Pierre-Fresnault Deruelle: a primeira parte
do seu livro La bande dessinée, essai d 'analyse sémiotique (Hachette, 1972) está dividida
em quatro capítulos: "A imagem em si (sem o texto)", "Os balões", "As relações palavra/
desenho" e finalmente "As relações entre imagens"; também vemos em Pierre Mason,
que divide seu livro Lire la bande dessinée (Presses Universitaires de Lyon, 1985) em
duas seções intituladas respectivamente "Morfologia" (sobre os "materiais da imagem" e a
"leitura de um quadro") e "Sintaxe" (sobre a prancha, a continuidade e o roteiro); por fim,
encontramos Case, planche, récit [Quadro, prancha, narrativa] de Benoit Peeters que, con-
forme a promessa do título, propõe como primeiros capítulos "De quadro em quadro" e em
seguida "As aventuras da página", reservando para o final as questões da ordem do roteiro.
Embora eu também parta do quadro, proponho seguir um caminho um pouco dife-
rente. Não examinarei sucessivamente enunciados progressivamente maiores: o quadro,
depois a prancha e finalmente a totalidade da narração. Ao invés disso, tentarei sempre
73 Id., nota à p. 59. [Edição brasileira: p. 57.] A rubrica de titulo "Cases mémorables" (casos memoráveis), a qual, a partir de suges-
tão de Pierre Sterckx, teve seu apogeu nos Cahiers de Ia bando dessinée entre fevereiro de 1984 (n. 56) e maio de 1986 (n. 69),
atribuiu-se a missão de reconhecer a pregnância de certos quadros no imaginário dos leitores. Afora o texto inaugural de Sterckx no
n. 56, pode-se ter um balancete teórico dessa experiência no debate retranscrito no n. 70 ("Comment lit-on une bande dessinée ?",
p. 60-61), assim como as p. 12-13, 20-21 e 30 do livro de Benoit Peeters, Case, planche, récit Cornment lire une bando dessinée,
Toumai-Paris, Casterman, 1991.
THIERRY GROENSTEEN I 39
que possível não separar essas unidades que são interdependentes, mas sim analisar sepa-
radamente seus diferentes níveis de interação, estando em primeiro lugar o nível espacial
e, em seguida, o nível de expressão do discurso ou narrativa (que por sua vez, admite dois
graus de relações: lineares e translineares).
1.2- PRIMEIROS PARÂMETROS ESPAÇOTOPICOS
Em concordância com a breve digressão sobre a remontagem a que algumas HQs são
submetidas, percebe-se que, em grande medida, é o requadro que faz o quadro (as diversas
funções do requadro serão elaboradas em 1.7). A prancha, sendo aglomerado de quadros jus-
tapostos, da mesma forma é reduzida a sua estrutura, o que batizamos de multirrequadro. A
representação esquemática tradicional de uma página de quadrinhos nada mais é do que uma
grade onde os compartimentos são deixados em branco, o "esqueleto" sendo apenas o corpo
do objeto suscitado. Pode-se ver inúmeros exemplos em séries com caráter autorrefiexivo,
que mostram o artista em sua mesa de desenho, exibindo as pranchas em produção; lembro
em especial de O Sonhador, de Will Eisner, e duas séries publicadas na Spirou nos anos
1980, La plus mauvaise BD du monde [A pior HQ do mundo] e Le Gang Mazda" [A Gangue
Mazda], nas quais se vê essas pranchas sem conteúdo ideie() definido.
Essa redução da prancha a conjunto de quadros vazios não atende somente às exi-
gências da esquematização (a prancha que, vista à distância, mantém apenas os mínimos
traços distintivos ; dada a impossibilidade de representar os detalhes em escala tão redu-
zida). Conveniência do desenho, é também a mais fiel representação de um modelo teó-
rico geral. Desenhar um multirrequadro qualquer não é remeter a uma página de HQ em
particular, mas à história em quadrinhos em si, ao dispositivo sobre o qual se baseia sua
linguagem. Essas representações miniaturizadas de pranchas de HQ são como pictogramas
simbólicos; possuem valor de signo, expressam um conceito, encerram uma definição im-
plícita. Por trás da sua pobreza aparente, esses pictogramas nos remetem à essência do que
é a história em quadrinhos. Confirmam de forma plena as duas intuições fundamentais que
me guiam: que os quadrinhos são compostos por imagens solidárias; que essas imagens,
antes de conhecer qualquer outro tipo de relação, têm como primeira característica com-
partilharem um espaço. E, curiosamente, elas dizem nada mais do que isso.
Veremos mais à frente que essa "grade" encarna os quadrinhos como "forma men-
tal" e o artista pode referir-se a ela como estado bem inicial da criação, o que chamaremos
74 Para uma análise desta categoria de "meta-HO" e de alguns de seus autores, cf. Thierry Groensteen, "Bandos designées. De
la reflexivité dans les bandos dessinées", Conséquences, n. 13/14 : Contrebandes, Paris, Les Impressions nouvelles, 2o trimestre,
1990, p. 132-165.
40 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
1 THIERRY GROENSTEEN
de quadriculação. Essa etapa do processo de geração pode ser brevemente descrita como
primeira apropriação do espaço que será investido de conteúdo. Por ora, contudo, faz-se
importante esclarecer a forma de dOtribuição e ocupação dos espaços sobre os quais se dá
a história em quadrinhos, para em seguida descrever o dispositivo espaçotópico.
É importante desde já mobilizar três parâmetros para descrever precisamente qual-
quer quadro sem prejulgar seu conteúdo. Esses parâmetros espaçotópicos são sempre ob-
serváveis, mesmo se o quadro é virgem de qualqueiinscrição e consiste apenas num requa-
dro vazio. Os dois primeiros parâmetros são geométricos: a forma do quadro (retangular,
quadrado, redondo, trapezoidal etc.) e sua área, medida em centímetros quadrados. São
esses parâmetros que definem o quadro como espaço. Essa dimensão espacial é resumida
e incorporada ao requadro. O requadro é ao mesmo tempo traço e medida do espaço habi-
tado pela imagem.
O terceiro parâmetro, que é a posição do quadro, diz respeito à sua localização na
página e, além disso, dentro de toda a obra. Voltarei a esse assunto no ponto 1.5. Quem
atraiu minha atenção à importância da "posição" foi Sean-Claude Raillon (em artigo cujo
objetivo inicial era outro) 75. O termo surge — mesmo sem ter ainda o significado preciso
que lhe atribuo agora — para realizar uma comparação entre duas sequências do álbum
O Cetro de Ottokar, de Hergé (localizadas nas páginas 15-16 e na 45 da edição atual do
álbum, as quais convido o leitor a consultar), duas sequências que obedecem ao "mesmo
esquema narrativo (...): uma corrida, a travessia de uma porta e uma descoberta inespera-
da". Jean-Claude Raillon faz o seguinte comentário:
A observação, conforme o ângulo do parâmetro tópico, dos quadros
em questão demonstra (...) que sua localização na página não é comparável
de uma sequência para outra. A primeira série é distribuída em duas páginas,
mais precisamente à frente e ao verso da mesma folha, enquanto o segunda
mostra seu desenlace dentro do requadro da prancha onde se inscreve.
É claro que tudo muda no que concerne ao suspense narrativo que
organiza a estrutura de representação. Mas devemos ficar ainda mais atentos
aos componentes paramétricos que ela mobiliza. É inclusive notável a relação
que evidencia o movimento do personagem no instante em que, chegando ao
final da prancha 15, ele cruza o limiar do edifício, e o gesto do leitor que,
para acompanhá-lo, precisa virar a página. Assim se estabelece, entre o su-
75 "L'homme qui lit", Conséquences, no 13/14: Contrebandes, op. cit., p. 64-104.
41
porte físico dos desenhos e a sequência apresentada, semelhança dupla: a
primeira envolve a rotação, em torno do seu eixo respectivo, os planos que
são uma porta e uma folha de papel; a segunda manifesta o deslocamento
comum da personagem e do leitor em direção a outra posição."
Este exemplo será suficiente (embora levantemos outros adiante) para atestar a im-
portância, pelo menos para alguns quadros, de sua "localização na página". No exemplo
de O Cetro de Ottokar, o quadro que encerra a página 15 é sobredeterminado por uma
coincidência orquestrada entre o representado e sua localização. É comum nas histórias em
quadrinhos que os quadros se encontrem "automaticamente" reforçados pelo simples fato de
que ocupam um dos lugares da página que gozem de privilégio natural, seja o canto superior
esquerdo, o centro geométrico ou o canto inferior direito — também, em menor grau, nos can-
tos superior direito e inferior esquerdo. Muitos artistas assimilaram esse recurso e, de forma
mais ou menos sistemática, fazem coincidir os momentos chave da narrativa com as posi-
ções inicial, central e final, ou fazem "rimar" o primeiro e o último quadro da prancha, es-
tabelecendo um circuito no qual reconheceremos, mais à frente, o efeito de entrelaçamento.
1.3 - O HIPER-REQUADRO E A PÁGINA
No entanto, o conceito de "posição na página" ainda é muito impreciso. Antes mes-
mo de definir o que se entende por posição, convém esclarecer um pouco o espaço de
referência dentro do qual ocorre a leitura tópica (neste quesito, o conceito de "página"
revela-se insuficiente).
Embora muitas vezes separados por finos espaços em branco, os quadros podem
ser considerados como fragmentos solidários de uma forma global, algo que se torna ain-
da mais claro e consistente quando as bordas externas dos quadros estão alinhadas. Essa
forma costuma assumir o aspecto de um retângulo, cujas dimensões são quase geometri-
camente homotéticas às da página. O traço exterior dessa forma, seu perímetro, pode ser
nomeada hiper-requadro, tomando de empréstimo termo proposto por Benoit Peeters".
Continuaremos, é claro, falando da prancha para designar o conjunto de quadros "cheios"
agrupados numa página.
76 Ibid., p. 68 et 72.
77 Case, planche, récit, op. cit., p. 38, n. 6. Segundo Peeters, em cada álbum o hiper-requadro define "um formato constante de
página". O autor assinala, contudo, que "é evidentemente possível conceber uma história em quadrinhos que a todo instante redefine
o formato de suas páginas. Para fugir ao esteticismo, seria necessário dispor de um sistema de regras que desse conta dessas
variações incessantes." A mim parece que o "romance visual" experimental de Martin Vaughn-James lhe Cage (Les Impressions
Nouvelles, 1986), manifesta, entre outras virtudes notáveis, algo que satisfaz a este procedimento.
42 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
O hiper-requadro está para a prancha assim como esse requadro está para o quadro.
Porém, diferente da relação entre requadro e quadro, o hiper-requadro envolve nada mais
que uma homogeneidade dada e sg'contorno, com algumas exceções, é intermitente. Al-
guns autores gostam de reforçar o tiper-requadro contornando a prancha dentro de uma
linha contínua, por vezes mais espessa que a linha dos requadros. Outros, como Philippe
Druillet ou Cosey nos primeiros Jonathan, chegam ao ponto de dar à prancha uma moldura
decorativa, que eleva a página à "dignidade" de uma pintura.
As noções de hiper-requadro e de multirrequadro não devem ser confundidas.
A definição de hiper-requadro se aplica a uma única unidade, que é a da prancha. Os
multirrequadros, por sua vez, são múltiplos. As tiras, a prancha, a página dupla e o livro
são multirrequadros aninhados, sistemas de proliferação de quadros cada vez mais in-
clusivos. Podemos, se for necessário, falar do multirrequadro simples ao tratar da página
ou de toda a unidade subordinada que une vários quadros (a meia página ou a tira). Ao
se emplihar páginas impressas frente e verso, em livro — o álbum — tem-se um multir-
requadro paginado. Ele não pode ser visto na totalidade de sua superfície impressa;
independente do ponto onde for aberto, ele só poderá ser contemplado uma página dupla
por vez (cf. infra, 1.6).
Diferente do hiper-requadro, o multirrequadro não possui fronteiras estáveis, atri-
buídas a priori. Suas fronteiras são aquelas da obra como um todo, sendo esta uma tirinha
isolada ou uma história de 200 páginas. O multirrequadro corresponde à soma dos requa-
dros que compõem uma história em quadrinhos finalizada; é, portanto, também a soma
dos hiper-requadros.
1.4 - SOBRE A IMPORTÂNCIA DA MARGEM
Como já defimos, o hiper-requadro separa a superfície utilizável da página da sua
zona periférica, ou margem (esta definição é consistente com a utilização usual da palavra
enquadrar, sendo a função essencial do enquadramento destacar uma forma do fundo). Na
medida em que ele induz à coesão entre os vários quadros que o compõem, por consequên-
cia tem-se a assimilação da margem como único entorno da página. Alguns argumentarão
que essa é uma visão simplista da margem, que também tem importância na parte interna
da prancha. É fato que os interstícios vazios que separam os quadros podem eventualmen-
te ser vistos como extensões reticulares da margem. De quadrilátero evidente que é, ela
transforma-se assim em labirinto. Essa interpretação é sublinhada de maneira notável por
THIERRY GROENSTEEN 43
Antonio Altarriba". A margem, na definição de Altarriba, nada mais é que o fundo sobre o
qual o multirrequadro destaca-se como um arquipélago. Nesta acepção, o termo "margem"
torna-se sinônimo de "parte não coberta do suporte".
Mas essa definição é problemática porque a margem, como veremos, não está desti-
nada a permanecer livre, não está proibida por regra de qualquer representação. É por isso
que me limitarei à definição mais restritiva da margem, como "unidade de apoio externo
ao hiper-requadro". Mesmo que reduzida ao entorno da página, a margem está longe de
ser indiferente no plano estético, ou mesmo no plano semântico. Mesmo vazio, o espaço
da margem não pode ser totalmente neutro. Em primeiro lugar, este espaço também é de-
finido pela sua área ou, para ser mais preciso, por sua largura (ajustável nos quatro lados
da página).
É fato que a página terá apreciação diferenciada conforme a largura da margem
pela qual é circundada. Pode-se ver isso na comparação de diferentes edições da mesma
1-1Q (por exemplo, na Glénat, a primeira edição de Os Passageiros do Vento e sua reedição
na coleção "Caractère"; ou, na Casterman, a edição normal e a edição de luxo de Corto
Maltese; ou ainda, na Dargaud, nas sucessivas edições, acompanhadas de mudança de
formato de La Quête de l'oiseau du temps [Em Busca do Pássaro do Tempo]). Assim como
o interquadro branco reforça a moldura de cada quadro, a margem atua como requadro
suplementar em relação ao contorno externo do hiper-requadro (contorno parcialmente
virtual, no sentido de que ele costumar ter interrupções, como já observamos). O requadro
de uma obra plástica participa plenamente do seu dispositivo enunciativo e condiciona
sua recepção visual. Autonomizando o trabalho e isolando-o da realidade externa, realiza
o encerramento e o constitui como objeto de contemplação; no caso dos quadrinhos, em
objeto de leitura".
Como dissemos, a margem não é necessariamente virgem. Ela costuma abrigar tí-
tulo, assinatura, numeração, todos os registros cujo efeito estruturante não é desconsi-
derável. A maior parte das Idées noires [Ideias negras] de Franquin são emolduradas, na
margem superior, por um jogo de palavras de Yvan Delporte e, na margem inferior, pela
assinatura do artista, onde se encontra plasticidade e propensão para reproduzir o tema
principal da página (cf. Idées noires, Audie, « Les albums Fluide glacial », 1981).
Pode-se imaginar muitas formas de preencher a margem, inclusive por meio de
78 "A margem enquadra os desenhos na prancha e infiltra-se, invadindo o vazio entre os quadros." Comunicação no Colloque de
Montpellier sobre La marge dans la bando dessinee, junho de 1986. O manuscrito me foi. entregue pelo autor; não creio que já tenha
sido publicado,
79 Para mais digressões sobre esse tema, cf. Louis Marin, 'te cadre de Ia représentation el quelques-unes de ses figures", Les
Catvers du musée national d'Art modeme, n. 24, Centre Georges-Pompidou, Paris, verão de 1988, p. 62-81.
44 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 45
desenhos, como se via antigamente
nas famosas Hauts de page de Yann
TP- Ou seja, a margem, ao jogar com vários parâmetros, pode informar o conteúdo da
página e alterar sua percepção. Esses parâmetros são: largura, desenhos e inscrições que
e Conrad, publicado na Spirou setnã- hospeda, cor e, por fim, seu grau de autonomia, o qual depende de dois fatores binários: de
nal a partir de 1981, e nas igualmeh- um lado, o fechamento ou abertura do hiper-requadro (linha contínua/linha intermitente),
te famosas gags de Sergio Aragonés e, do outro, como já vimos, a identidade ou a diferença cromática entre a margem e os
nas páginas da revista Mad. A quem interstícios entre os quadros.
lembrar, estes poucos exemplos são
suficientes para mostrar a diversida- 1.5 -A POSIÇÃO
de de relações que a movimentação Após essas considerações sobre a página, é hora de voltarmos ao quadro, unidade ba-
marginal pode ter com a prancha em silar do sistema dos quadrinhos. Vimos anteriormente (1.2) que a página, do ponto de vista
si: uma relação de indiferença em espaçotópico, é definida primeiramente pela sua forma e área. Agora, sob esse aspecto duplo, o
Aragonés (as piadas não têm conexão quadro entra numa relação particular com o hiper-requadro. No que diz respeito à forma, essa
com a página que acompanham), de relação é de homomorfismo ou heteromorfismo. Ou seja, se supusermos que o hiper-requadro
provocação em Franquin, de paródia é um retângulo cuja base é mais estreita que a altura (caso da página tradicional), há uma al-
ou violência em Yann e Conrad. ternativa evidente: ou o quadro é também um retângulo verticalizado ou é de qualquer outro
Por fim, mesmo livre de de- formato e, assim, opõe-se ao hiper-requadro (a segunda alternativa abrange, é claro, um grande
senho, a margem não é condenada à leque de possibilidades). No que concerne à área, fica estabelecida uma relação proporcional,
brancura. Beb Deum e Gabrion (para Fig. 1 - Pierre-Yves Gabrion, nomme de Java, 1: uma relação que o olho do leitor pode apreciar dada certa aproximação, mas que o pesquisador,
Rebelle, pagina 26, 1990. C) Ed. Vents d'Ouest
me limitar a dois autores de expressão se lhe aprouver, pode estabelecer com precisão. Um quadro de 8x13 cm, por exemplo, ocupará
francesa, embora também deva-se citar o artista britânico Dave McKean e vários outros), no- aproximadamente mn quinto da área de um hiper-requadro de 20x26,5 cm.
tabilizaram-se em suas HQs na opção por margens coloridas. Um álbum como Rebelle [Re- Do ponto de vista tópico, a relação que se estabelece entre as duas unidades é de
belde], de Pierre-Yves Gabrion interessa-me sobretudo por combinar dois princípios pouco regionalização. O quadro é uma porção da página e, no hiper-requadro, ocupa uma posição
frequentes. (Trata-se do primeiro tomo da série L'Homme de Java [O Homem de irava]. exata. Conforme essa posição (central, lateral, no canto) e a configuração geral do layout,
Reproduzo acima a prancha 26; cf. fig. 1.) Por um lado, os quadros são separados por vãos o quadro estabelece diversas relações de vizinhança com os outros quadros.
pretos", e a prancha inteira é disposta num hiper-requadro da mesma cor e praticamente da As coordenadas espaciais do quadro dentro da página definem sua posição. A po-
mesma espessura; por outro lado, as margens estão impressas em tonalidade sépia. Com este sição de um quadro determina seu lugar no protocolo de leitura. É, aliás, a partir da loca-
dispositivo, vemos que o preto reforça a coesão da página, e que o sépia, por seu contraste, lização respectiva das diferentes parcelas do multirrequadro que o leitor poderá deduzir
confirma à margem seu status de requadro; mas o principal ganho do preto está em ele adi- o caminho a seguir para passar de um quadro a outro. A cada "passo" a pergunta se toma
cionar o branco à paleta do colorista como c'or de estatuto próprio. O branco, de fato, deixa cada vez mais visível: para onde dirijo meu olhar agora? Qual é o quadro seguinte, na
de aparecer apenas como a cor natural do suporte (o papel no qual o livro foi impresso), ordem atribuída pelo programa narrativo? Essa pergunta geralmente não é feita na prática,
tornando-se cor como as outras, podendo combinar-se a elas dentro dos quadros. já que a resposta se faz evidente de imediato. Mas nós sabemos (e por vezes recorre-se às
;

t
infelizes flechinhas), que nem sempre ela é tão simples.
80 Esses "vão pretos", por sua vez, substituem as linhas que compõem normalmente o requadro dos quadros e os brancos intersti-
ciais que separam os mesmos quadros. Eles sugerem que existe uni fundo homogêneo — digamos: um retângulo negro na dimensão
As coordenadas de posicionamento do quadro não dependem somente da fragmen-
do hiper-requadro — sobre os qual os quadros estariam sobrepostos. Pode-se encontrar fundos análogos, às vezes de outras cores, tação do espaço; elas também são determinadas por uma divisão do tempo. À colocação do
em outros exemplos, como no álbum La Mémoire de Pierre, de VInk (Dargaud, 1985).
46 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 47
quadro na página corresponde um momento particular no desenrolar da narrativa e, con-
sequentemente, no processo de leitura. Se o layout define os parâmetros espaçotópicos do
quadro (seja sua forma, sua área e Ee'tt lugar), cabe, como veremos, à decupagem - agente
de artrologia restrita - atribuir-lhe uas coordenadas temporais.

1.6- COMPONDO A PÁGINA DUPLA

A parcela do suporte (revista ou álbum) e, portanto, o trecho da obra que se oferece
ao olhar do leitor corresponde geralmente a uma página dupla. Do ponto de vista percep-
tivo, a página dupla constitui uma unidade pertinente e por isso merece nossa atenção".
Nota-se primeiramente que as páginas da esquerda e da direita não são equivalen-
tes no que diz respeito à utilização das posições. O quadro no qual Tintim atravessa uma
porta correndo, destacado por Jean-Claude Raillon, terá sua potência metarrepresentativa 82
visivelmente diminuída se, ao invés de pontuar uma página da direita e coincidir com o Utg, P,A5 Cavr. aub
7.40.6 Ca2MeNRIA,S.1man•

instante onde o leitor é convidado a virar a página, ocupar o canto inferior direito de uma
página esquerda.
No entanto, as páginas situadas frente a frente estão ligadas por uma solidariedade
natural e predispostas a dialogar. Se permitir-se ao artista ignorar esta predisposição, há
várias maneiras de aproveitá-la. Uma vez que no mercado francófono o álbum suplantou
o jornal como meio de publicação, os autores também estão cada vez mais propensos a
considerar esse vínculo natural entre páginas adjacentes e projetar suas páginas aos pares.
O layout, a cor e os efeitos de entrelaçamento são os principais parâmetros envolvidos
nessa ideia de "duplicação". A respeito disto, vejamos o depoimento de François Schuiten:
"trabalho sempre em função da página dupla (...); presto atenção no equilíbrio geral das
páginas que estarão frente a frente no álbum. Há páginas duplas mais claras ou mais escu-
ras que outras, e sempre que posso eu alinho as tiras." 83
Essa solidariedade entre a página da esquerda e a página da direita nunca supera o caso
de uma narrativa composta por duas pranchas, quando a situação do face a face permite aos
olhos realizar uma captura sintética da história çm sua totalidade. O francês Edmond Baudoin e
Fig. 2 — Edmond Baudoin, adaptação dos Diários de Kafka, 2 pranchas, 1989. C) E. Baudoin
o espanhol Federico Del Barrio atingiram efeitos notáveis a partir desse dispositivo. Efeitos de
simetria e de inversão, respectivamente, mas dispostos e motivados de forma variada. Pode-se
julgar esses efeitos examinando as figuras 2 e 3, as quais me ponho a comentar.
As duas páginas de Baudoin (fig. 2) são adaptação de um trecho dos Diários de
Kafka". A segunda faz a estrutura da primeira de ponta-cabeça: à série vertical da primeira
página [texto + tira estreita + texto + tira maior], sucede a página 2, de resultado inverso
[tira maior + texto + tira estreita + texto]. A repetição da imagem criada pela mão aberta
assegura a transição entre as duas páginas, mas a identidade da pessoa que está refletida no
espelho e, correlativamente, a posição da segunda pessoa, estão invertidas. E a introdução
deste tema do espelho e o reflexo (ausente do texto original) que não apenas autoriza, mas
também gera diversas figuras.
As duas páginas de Del Barrio intituladas La Orilla (A margem; fig. 3) 85 , resumem

81 Como já atentou Yves Frémion: "... a todo momento, o leitor apreende não um quadrado, mas um complexo de imagens, de ícones
relacionados entre si, que constituem um momento da narração. (...) De página dupla em página dupla, o leitor avança na história.
(...) De placas narrativas em placas narrativas..." (cf. "Case, icône et vignette: la case n'existe pas", em Dites Ciment e Odette Mit-
terrand, L'Histoire... par ia bando, op. cit., p. 39).
82 Retomando um termo que Raillon utiliza na acepção ricardoniana. Conforme Jean Ricardou: "Por metarrepresentação, entende-
mos toda manobra que exalta de forma orgânica certos parâmetros da escrita que a representação oblitera" (apud Raillon, op. cit.,
p. 72).
83 Cf. Th ierry Groensteen, "Conversations avec François Schuiten", Les cahiers de la banda dessinée, n. 69, Glénat, Grenoble-Bruxe-
Ias, maio-junho de 1986, p. 11. Schuiten dá em seguida outro exemplo que atesta a importância da localização: "Era determinante,
em La Tour, que a cor aparecesse discretamente no canto inferior de uma página da direita" (itálico meu).
a vida de uma mulher em seis imagens mudas. A passagem da primeira à segunda página
corresponde grosso modo ao meio dessa existência. São as diagonais que designam as p0-
84 O trecho data de 27 de maio de 1914. Cf. a edição em livro de bolso "Biblio" n. 3001, p. 347-348. Essas duas páginas foram
produzidas em janeiro de 1989 a pedido do Centre national de la banda dessinée et de l'image. Existem duas outras adaptações
do mesmo texto, por André Juillard e Jean-Louis Tripp, As três versões foram publicadas conjuntamente na 9e Art n. 1, Angoulême,
CNBDI, janeiro de 1996, p. 50-55.
85 Publicado originalmente na Madriz n. 13, essa breve narrativa dá titulo ao primeiro álbum do autor, La Orilla, Madrid, Sombras,
1985.
48 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 49
Não há dúvida que esses exemplos estão longe de esgotar as conexões ou oposições
016 de todos os tipos que, em uma história em quadrinhos, podem se formar entre a "belle page"

fl (da direita) e a “fausse page" (da esquerda). Assim, em alguns livros, como Le Bandard fau
(1974) 86 , de Moebius, ou Le Rail [O Trilho] (1982), de Claude Renard e François Schui-
ten, as pranchas de HQ propriamente dita ocupam apenas as páginas da direita, sendo as
da esquerda investidas em páginas inteiramente "ilustradas" cuja sUcessão tece um tipo de
contraponto sequencial. Mas essa organização particular do material livresco privilegia as
relações distantes, in absentia (os encadeamentos são feitos sempre entre páginas que não
se oferecem para o olhar conjunto), das quais eu tratarei sob a rubrica de artrologia geral.
Contudo, antes de prosseguir à análise das diversas formas nas quais um quadro
pode se articular, é necessário refinar nossa percepção dos espaços constitutivos do siste-
ma espaçotópico e detalhar as múltiplas funções que possui o requadro.

1.7—AS FUNÇÕES DO REQUADRO

Fig. 3- Federico Dei Barrio, La Orilla, 2 pranchas, 1985. © F. Dei Barrio, o. 47. As principais funções do requadro são seis, que nomearei da seguinte forma: função
de fechamento, função de separação, função de ritmo, função de estrutura, função de ex-
sições sucessivas da personagem na página que, no exemplo, se localizam simetricamente:
pressão e função de indicador de leitura. Todas essas funções exercem algum efeito sobre
a diagonal descendente da página esquerda é "refletida" na diagonal ascendente da página
o conteúdo do quadro (expressão propositalmente vaga, pela qual me refiro à totalidade de
da direita, fazendo o conjunto traças uma figura em V. Pode-se notar o ressurgimento (de
elementos que se encontram no interior do requadro), e, em especial, sobre os processos
forma miniaturizada) dessas duas diagonais cruzadas nas pegadas que a protagonista e sua
perceptivos e cognitivos do leitor. Essas funções tornam o requadro um apoio à leitura.
filha deixam na areia.
Grande parte dos requadros também abre um amplo leque de possibilidades formais, de
As direções das duas diagonais podem parecer paradoxais, no sentido em que, des-
maneira que a forma como eles são utilizados faz parte da retórica particular a cada autor.
cendo antes de ascender, movem-se para trás a partir das fases de evolução corporal ao
longo da vida (de início o corpo cresce e, com a chegada da idade, encolhe), e as da própria
1.7.1 — A função de fechamento
existência, ou seja, a ascensão à maturidade, seguida do declínio. Esse aparente parado-
O requadro tem como primeira função rodear o quadro e, por correlação, conferir-
xo provavelmente não tem outro fim a não ser parecer uma forma em V, letra inicial da
-lhe uma forma determinada.
palavra vida, que reforça e resume o tema da obra. Mas também é anulada pela mudança
No exercício dessa função, o requadro do quadrinho opõe-se ao requadro cine-
de eixos do quadro, que pode correr o risco de cair em uma leitura simbólica. Os três qua-
matográfico. Essa oposição é acima de tudo técnica. A flexibilidade que as histórias em
dros da primeira página são horizontais. É phssível ler que, inicialmente, a vida, se vivida
quadrinhos oferecem em relação à forma dos seus requadros, a "elasticidade" do quadro
em modo de contemplação (quadro 2) ou de consumo (quadro 3), parece inesgotável. A
desenhado, reforça a rigidez do dispositivo cinematográfico, praticamente condenado a
horizontalidade seria o infinito, a imprudência. No entanto, o eixo é invertido na segunda
dotar a imagem projetada de uma forma fixa e constante (mesmo que outros sistemas te-
página, constituída por três quadros verticais. Portanto, o olhar tropeça naquilo que, quan-
nham existido na história da mídia ou sejam possíveis teoricamente).
do jovens, queremos ignorar. Seguindo em frente, agora ela encaminha-se para seu fim.
86 Há pelos duas versões desta HO de Moebius no Brasil, com traduções distintas: "O Imbecil Lascivo' em Os mundos fantásticos
(Está deixando pegadas, que serão seus vestígios.) Se o fim da vida tem forma, não é mais
de Moebius (tradutor não-creditado; São Paulo: Globo, 1991); e 'O Pau-Doido" em Absoluten Calfeutrail & outras histórias (Trad.
aquela de um território aberto, mas um caminho que oferece trajeto único. Fernando Fonseca; Belo Horizonte: Nemo, 2011), [N,T]
50 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
A diferença, dessa forma, pode ser qualificada como ontológica e, de momento,
gostaria de concentrar-me mais neste último aspecto. Se admitirmos, junto a Guy Gau-
thier, que "a escolha de uma imagem figurativa não é apenas decidir o que será visível,
mas também o que ficará oculton é preciso acrescentar imediatamente que a questão da
escolha surge de forma diferente para o cineasta (ou para o diretor de fotografia, para o
cinegrafista) e para o desenhista. No cinema, o requadro é, no momento da gravação'', o
instrumento de uma extração, uma imposição. Dentro de um continuum profílmico que
transborda para todos os lados, recorta-se uma zona pertinente chamada de "campo", de-
senhando uma máscara em torno do material que, não sendo impresso no filme, estará
ausente da tela; ou seja, o "fora de quadro". O requadro atribui limites à profusão do que
é representado e seleciona um fragmento privilegiado.
O requadro das histórias em quadrinhos não remove nada; apenas circunscreve. O
requadro delimita uma área que se oferece ao registro do desenho e, se necessário, dos
enunciados verbais.
Fechar o quadro não é parar o desenho. A materialidade gráfica não pode fugir ou
fluir para fora do requadro; não há necessidade, portanto, de contê-la por meios coerciti-
vos. Fechar o quadro é fechar um fragmento de espaço-tempo que pertence à diegese, para
significar sua coerência. (Mudar de requadro muitas vezes equivale, para o leitor, a pro-
vocar um deslocamento, às vezes no espaço, às vezes no tempo — ou nas duas dimensões
ao mesmo tempo).
Em termos concretos, o requadro pode ser traçado antes da elaboração do desenho
ou depois (deve-se a seguir delimitar a imagem já desenhada, frisá-la); mas desenhar antes
ou depois, nesse caso, tem pouco impacto, pois a imagem mental que inspirou o desenho
já está, grosso modo, enquadrada. Em comparação ao primeiro requadro implícito, espon-
taneamente vislumbrado e sem estudo prévio, o requadro efetivo que é inscrito na prancha
não costuma apresentar grande diferença: é mais ajustado ao "corpo da imagem", como
um alfaiate ajustando um traje. Usando o decalque (que pode ser tinta sobre papel vegetal,
como se nota em Alex Varenne, ou uma transferência do esboço para o original, como em
Hergé e Jacobs), alguns artistas têm a facilidade para ajustar o requadro milimetricamente.
Dado que transfere uma imagem mental, o quadro é inicialmente uma imagem sem
corpo. Em sua elaboração sobre a folha de papel, o artista começa quase necessariamente
colocando o requadro, mesmo que seja de forma aproximada ou provisória. Tudo se passa
87 Vingt leçons sur 1/mago et le sons, Paris, Edilig, "Mediatheque", 1982, p. 11.
88 Aqui estou me referindo ao cinema que faz captação de imagens reais, sem ignorar que a situação é outra no cinema de ani-
mação.
THIERRY GROENSTEEN I 51
como se o requadro, tendo estruturado o espaço, favoreça a seguir o surgimento do ícone.
Mais à frente darei o nome de quadriculação a essa apropriação preliminar do espaço.
Ao desenhista interessa essencialmente o que ele deseja colocar na imagem (ou
seja, no seu requadro), não com o que ele deverá excluir. Quando muito, para efeito de des-
centramento ou de corte arbitrário sobre um desenho, ou ainda para inclusão de uma voz
em off, o desenhista o faz de forma que o leitor seja conduzido a pressupor a existência de
um elemento dado como invisível, fora do requadro, e esse não-representado jamais dei-
xará de fazer parte da existência física nesse instante da narrativa (como o que fica fora de
tela ou off-screen cinematográfico ou profílmico no momento da captação)": continuará
sendo uma construção pura do espírito, uma virtualidade.
No cinema, as etapas de construção ou localização de um cenário, a iluminação, a
escolha dos atores, o figurino, dirigir seus movimentos e sua atuação, em suma, todas as
dimensões da composição de cena participam plenamente da preparação de uma imagem
e esta preparação começa muito antes da gravação propriamente dita. O enquadramento
(escolha da objetiva, localização — e eventual movimento — da câmera) pode ser concebido
de última hora, nos instantes que precedem imediatamente à filmagem. Vale lembrar que
os diretores pouco inclinados ao improviso nesse tipo de decisão tendem a elaborar um
storyboard, isto é, a desenhar (ou solicitar desenhos conforme suas indicações) cada um
dos planos a serem filmados. Na economia da sétima arte, é a mediação do desenho que
permite, melhor do que qualquer outro método preconceber o enquadramento".
Essa diferença entre o requadro cinematográfico, que seleciona ao mesmo tempo
que rejeita, e o requadro da HQ, que se limita a hospedar, ou melhor, a acompanhar (já
que desde o instante inicial de concepção o requadro e o ícone são solidários e consubs-
tanciais), não é, como se vê, muito precisa. Às vezes, o quadro não é uma tradução pura
da imagem mental, uma produção do imaginário; ele retoma ou integra, com ou sem
modificação, um documento anterior, geralmente fotográfico. Esse documento, selecio-
nado entre os documentos de pesquisa do autor ou feito ao passo de marcações sobre o
próprio local da diegese, constitui o que poderíamos chamar de material "prográfico".
O desenhista tem a liberdade para tomar, por uma operação de reenquadramento, apenas
a área pertinente que será desenhada. O quadro inicial do documento não possui caráter
89 O fora de tela sugerido para o cinema (off-screen cinematográfico) talvez não possua realidade alguma — assim se vê a cons-
trução apenas do fragmento de cenário que ocupará o requadro —, ele não existe menos no off-screen físico (profílmico), que se
confunde com o espaço como um todo do estúdio do local de gravação.
90 A respeito dos conceitos de "composição de cena" e de "composição do quadro", assim como do decorrente "composição do
encadeamento", cf. André Gaudreault, op. cit., cap. IX: "Système du récit filmique", p. 117-131. A respeito das relações entre a
história em quadrinhos e a técnica do storyboard, remeto a meu texto "Ou cinema dessiné à la bande dessinée", em Benoit Peeters,
Jacques Faton, Philippe de Pierpont, Storyboard: le cinema dessiné, Crisnée, Yellow Now, 1992, p. 172-183.
52 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
definitivo algum; sua situação é de mera proposta. Não há dúvida de que sua existência
lhe confere automaticamente certo coeficiente de relevância, uma vantagem real acima
de todos os outros eventuais quatÊos. Mas essa vantagem não é nada mais que o bene-
ficio da anterioridade.
A imagem preexistente na qual se inspira o quadro pode ser também outro quadro
resultado da mesma mão, pertencente à mesma obra, na mesma prancha; nesse caso, a
variante que o reenquadratnento traz produz um efeito análogo àquele que produz, num
filme, um zoom ou um movimento das câmeras (travelling, panorâmica)... É só quando
o autor reen quadra que ele atribui ao requadro a mesma função de extração própria do
requadro cinematográfico. No entanto, não é a mesma coisa enquadrar um elemento profi-
lmico e reenquadrar um fragmento fotográfico (o profilmico opõe-se ao fotográfico como
um monumento opõe-se a um documento — utilizando a terminologia cara a Michel Fou-
cault)91 . A diferença está em que o fotográfico está sempre enquadrado. Não existe ícone
que não esteja dentro de fronteiras, as quais são sempre mais ou menos arbitrárias. Intervir
nesse requadro primeiro é voltar a um primeiro gesto enunciativo, é, portanto, necessaria-
mente produzir um enunciado de segundo grau, a imagem de uma imagem, uma citação.
É importante dizer que essa intervenção não se dá necessariamente no sentido de
reduzir o ícone citado. Reenquadrar não é como recortar um cupom de desconto do jornal.
Também existe a possibilidade de alargar o requadro, com o intuito de adicionar uma por-
ção (ou porções) — desde que essa expansão ocorra em um ou mais lados — que pertença
ao fora de quadro virtual das imagens anteriores. O desenho manifesta plenamente, nesse
caso, o seu poder demiúrgico: onde não havia nada (onde o documento é mantido), ele tem
o poder de gerar uma representação que, apesar de não ter sido formada por um referente,
manifestará, se o desenhista assim quiser, as mesmas qualidades de precisão e veracidade
que as partes documentais adjacentes.
Essa discussão requer um breve aparte. Uma parcela importante dos quadrinhos
contemporâneos insiste em misturar o desenho da imaginação ao desenho documental,
e faz a mistura dessas duas categorias chegar ao ponto da indistinção. A dicotomia só é
relevante para a gênese (razão pela qual convoco essa digressão em meio a um refletir
sobre o enquadramento como gesto constitutivo da imagem. O hábito tende a exigir que
a HQ apague todos os traços de sua origem dupla, que a esconda atrás de uma execução
homogênea: tanto de produção do imaginário e reciclagem de ícones de fontes diversas —
em proporções muito variáveis. O traço de Hergé, unificador por excelência, é típico dessa
91 Cf. notavelmente L'Archéologie du savoir, Gallimard, "Bibliotheque das sciences humaines", 1969, p. 14-15.
THIERRY GROENSTEEN 53
inclinação natural. Fortemente dominante (pela simples razão de que reforça a credibili-
dade da ficção), essa tendência atende apenas a certas exceções, sobre as quais não creio
que deva me estender aquin.
Mais uma vez, a imagem mental vem da imaginação junto a seu requadro, igual-
mente um produto mental, enquanto o documento fotográfico encontra-se forçosamente
no interior de um requadro real. Mas a materialidade deste requadro não garante que ele
será conservado; pelo contrário, o requadro real tem mais chances de ser alterado do que
o requadro mental que acompanha uma imagem concebida ex nihilo e de uma peça só.
Convém, no entanto, esclarecer: quando uma imagem mental surge ao desenhista,
os parâmetros preconcebidos do seu requadro são principalmente suas proporções e sua
forma (precisamente aquilo que o cinema, por sua vez, já tem sempre decidido). As dimen-
sões do requadro podem variar; há quadrinistas que fazem esboços minúsculos e que não
colocam a imagem em tamanho real até o momento em que eles realizam a transferência
para a prancha de desenho final. Mas são exceções: as variações do requadro, entre a con-
cepção mental e seu surgimento, entre o(s) rascunho(s) e a execução final, geralmente são
de baixa amplitude.
Se, na imagem mental, requadro e conteúdo são imediatamente independentes e
consubstanciais, isso não quer dizer que, embora tenham sido pensados primeiro, venham
a permanecer assim na imagem completa. Pode acontecer uma alteração em conjunto para
atender maiores exigências do layout — que será discutida no momento oportuno. Na ver-
dade, o requadro de um quadro não pode ser finalizado sem levar em consideração os qua-
dros circundantes. Solidário ao conteúdo que ele engloba, o requadro não está desligado
dos quadros do seu entorno.
1.7.2. A função de separação
Se o quadro é dotado de um fora de quadro diegético virtual, ele também possui um
fora de quadro físico composto pelos quadros limítrofes". Também é condição da leitura
que os quadros estejam fisicamente isolados um dos outros ou que sejam cognitivamente
isoláveis, de forma que possam ser lidos em separado. O requadro, nesse sentido, desem-
penha um papel análogo aos signos de pontuação da língua (incluindo o símbolo elementar
que é o branco que separa duas palavras), signos esses que recortam, dentro de um conti-
nuum, as unidades pertinentes e permitem — ou facilitam — a compreensão do texto.
92 Ressalto apenas que o dogma da homogeneidade gráfica não existe nos quadrinhos japoneses, reiterando "a regra do estilo
facetado", cf. Thieny Groensteen, L'Univers das mangas, Tournai, Casterman, 1991, p. 47-48.
93 Benolt Peeters propõe batizar este espaço circundante de "pericampo", cf. Case, planche, récit, op. cit, p. 15.
54 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
A utilização dominante é baseada numa separação que fica no limite da tautolo-
gia. O que separa os dois quadros é nada menos que a tripla fronteira constituída pelo
requadro do primeiro quadro, o branco inter-icônico e, por fim, o requadro do segundo
quadro. Não há dúvida de que o rehuadro é percebido como parte integral do quadro para
sua distinção do outro quadro; inicialmente é no espaço intersticial (chamado, conforme
o autor, de "espaço intericônico", "entrequadros", "entrimagens", "calha" — ou ainda de
"sarjeta", tradução literal do inglês gutter") que o leitor reconhece uma virtude separativa.
Mas esse vazio não se manifestará como tal se não estiver contornado, na sua totalidade,
pelos traços dos requadros dos outros quadros. O vazio não é enquadrado em si, mas ainda
assim é calibrado com precisão e, pode-se dizer, "protegido" contra uma eventual pressão
hegemônica da imagem.
No entanto, a característica comum de compartirnentalização em "multirrequadro"
reconhece versões simplificadas e pode ser contornada. Podemos distinguir três tipos de
desvios do uso dominante:
1/ Às vezes a separação é realizada por um único traço, que pertence simultanea-
mente e indistintamente aos requadros dos quadros adjacentes. Foi o caso de Tôpffer no
passado, e posteriormente em muitas tiras diárias nos EUA (de Mutt & Jeff a Krazy Kat),
e ainda é o caso em muitas das pranchas de Claire Bretécher.
2 / Às vezes não há nada de tangível que separa os diferentes termos da sequência
narrativa afora o branco do papel, o espaço que o desenho não ocupa. Em Reiser, Copi ou
Wolinski, a narração concentra-se geralmente nas personagens, figuras solitárias que se
movimentam em meio a cenário nu ou minimamente sugerido por traços. A repetição da
figura é suficiente para mostrar a passagem de um "quadro" a outro (se ainda for possível
usar esse termo).
3 / Nas obras recentes de Will Eisner é frequente que as imagens não estejam enqua-
dradas nem separadas por um espaço em branco, mas sim que se interpenetrem de maneira
bastante livre. Uma consulta rápida, no entanto, mostra que a maioria dessas pranchas está
organizada em torno de um quadro com requadro, cuja forma regular estrutura o espaço da
página circundante; os elementos de ornamentação como portas e janelas também são forte-
mente utilizados devido a seu efeito estruturante e frequentemente desempenham a função
de requadro; por fim, os contrastes entre o fundo preto, branco e cinza (sombreado) reforçam
a diferenciação das imagens. O respeito às convenções que regem o sentido da leitura (de
cima para baixo e da esquerda para a direita) basta para assegurar a eficácia do recurso.
94 Cf. Jan Baetens, "Pour une poetique de Ia gouttiere", Word & Image vol. 7, n. 4, outubro-dezembro 1991, p. 365-376
THIERRY GROENSTEEN 55
Tanto em Wolinski quando em Eisner, pode-se dizer que, a partir da distinção pro-
posta pelo grupo g, de que o que falta é a "borda" artificial que designa o quadro como
"unidade orgânica"; no entanto, resta um "esboço" que "pertence perceptivelmente ao
desenho"".
Assim, o princípio de separação das imagens nunca é negado de fato. A espaçoto-
pia, não esqueçamos, é tanto parte quanto condição da artrologia: não podemos criar uma
ligação entre enunciados visuais que não são distintos. A função separativa está sempre
presente na obra, mesmo se o requadro, que é normalmente seu instrumento privilegiado,
encontra-se propositalmente dispensado.
A função de fechamento e a função de separação são efetivamente a mesma função
consideradas sucessivamente, uma vez que ambas exercem sua função perante o interior
do requadro e perante o campo externo.
1.7.3 A função de ritmo
—
Decupar um texto é pontuá-lo. O "texto" dos quadrinhos obedece a um ritmo que
lhe é imposto pela sucessão de requadros. É a pulsação básica, que se observa também na
música e pode ser desenvolvida, qualificada, coberta por efeitos rítmicos mais sofisticados
com base em outros "instrumentos" (parâmetros) como a distribuição dos balões de fala, a
oposição entre as cores ou ainda com um jogo de formas gráficas.
Há uma formulação esplêndida de Jean-Luc Godard que define o cinema como "a
arte de fazer música com a pintura". Esta definição se aplica com propriedade ainda maior
às histórias em quadrinhos; primeiro porque suas imagens mantêm maior afinidade com
a pintura do que com as imagens em movimento do cinema; em segundo, porque os qua-
drinhos, ao exibirem intervalos (enquanto a persistência retiniana não permite distinguir a
película cinematográfica), distribui ritmicamente a narrativa que lhe foi confiada. Ignorar
a velocidade (as imagens são imóveis e sem impressões de voz que permita a fluência dos
diálogos) não sugere nada menos que uma leitura cadenciada, uma operação ritmada pelo
cruzamento de quadros. Seu discurso tem a particularidade de ser descontínuo, elíptico,
agitado. Cada novo quadro precipita a narrativa e, simultaneamente, a contém. O requadro
é o agente dessa dupla manobra de progressão/retenção.
Nesse sentido, quero evitar cair em uma tentação à qual muitos especialistas já cede-
ram: a de estabelecer correspondência automática entre a forma ou a dimensão do requadro
e a suposta duração da ação que ele contém. Encontramos principalmente na obra de Pierre
95 Traité du signa visuel, op. cit., cap. XI: "Semiotique et rhetorique du cadre", p. 378.
56 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Masson diversas indicações nesse sentido, como: "um requadro esticado verticalmente (...)
sugere uma suspensão do ritmo, a chegada de um momento chave", enquanto a "justaposição
de vários quadros de mesmo formatSresulta em "uma rápida sucessão de ações ou réplicas"".
O mesmo autor também escreve qué "quanto maior o número de quadros, maior a impressão
de rapidez". Todas são proposições normativas, que não fazem jus à diversidade de técni-
cas expressivas e estéticas dos autores, e a estas poderíamos facilmente opor bom número de
contraexemplos (a começar pelas pranchas de Gabrion, Baudoin e Dei Barri° reproduzidas
anteriormente). Em relação ao dogmatismo que marcou muitas construções teóricas, o sistema
dos quadrinhos aqui enunciado tem a intenção de opor-se a uma abordagem pragmática que
pode ser resumida nestes termos: a função de um parâmetro, de uma unidade ou de uma figura
não é pré-julgada pelo seu uso e significado em cada contexto (narrativo, artístico, editorial).
1.7.4. A função de estrutura
Pintores, fotógrafos e teóricos da imagem já fizeram vastos comentários sobre este
assunto. O requadro, tanto quanto estrutura o espaço, é elemento determinante da compo-
sição da imagem: ele informa, durante toda a fase de execução, o desenho que se desen-
volve dentro de si, assim como terá influência sobre sua leitura. Gilles Deleuze resumiu
uma dimensão essencial dessa influência: "O [re]quadro é inseparável de duas tendências:
a saturação ou a rarefação.""
Apesar da variedade de opções à disposição, o requadro das histórias em quadrinhos
retoma o formato mais comum que a pintura de cavalete e a fotografia lhe têm garantido
historicamente: o retângulo. Guy Gauthier enxerga nessa forma canônica "um produto que
é puramente proveniente da civilização técnica ocidental, indubitavelmente em associação
com o uso generalizado da perspectiva, da racionalidade geométrica e dos requisitos de
manuseio"". Deve-se, no entanto, acrescentar mais dois fatores específicos aos quadri-
nhos que determinam essa forma como sendo a mais natural.
Primo: sendo o próprio suporte impresso (álbum ou revista) retangular e, por con-
seguinte, o hiper-requadro de cada prancha, os quadros tenderão a entrar numa relação
mimética (de homologia ou, nos termos de Ricardou, de "autorrepresentação") 99 com essa
forma imposta. Ao reproduzir a forma do suporte, a imagem coopera com ele ao invés de
negá-lo ou afrontá-lo.
96 Lire la bande dessinée, op, cit., p. 21.
97 Cinema 1. L'image-mouvement, op. cit, p. 23.
98 Vingt leçons sur l'image et le sens, op. cit., p. 14.
99 Cf. les Éléments de textique de Jean Ricardou, op. cit.
THIERRY GROENSTEEN I 57
Secundo: melhor que um círculo, um losango, uma forma de estrela, um triângulo
ou um trapézio, o retângulo (ou seu avatar regular, o quadrado) permite facilmente sua
disposição em série, ordenada em tiras. Assim como as paredes com tijolos retangulares,
constrói-se um multirrequadro mais facilmente a partir de elementos com bordas retas que
se cruzam em ângulos retos. Os desenhistas sabem muito bem: quando se recorre a um
formato que não o quadrilátero, mesmo que faça o quadro sobressair-se devido à excepcio-
nalidade, o quadro escolhido terá o inconveniente de obrigar os quadros adjacentes a um
contorcionismo para se adaptar e dar espaço ao intruso.
O quadro, por isso, costuma ser retangular ou quadrado. Assim como qualquer ou-
tro, esse formato e suas dimensões induzirão a ou pelo menos influenciarão algumas de-
cisões quanto à composição da imagem e influenciarão sua percepção por parte do leitor.
O espaço dentro de um quadro está sempre estruturado previamente, mesmo que pela
razão de que um espaço fechado fornece um centro geométrico e esse centro oferece a
representação de uma área naturalmente privilegiada. Geralmente, o fato de a imagem
estar estática ou dinâmica, sua centralização ou seu "desenquadraraento", a distribuição
dos espaços cheios e vazios, a presença de um texto e sua localização, o escalonamento
de planos, o ângulo escolhido e o possível aprofundamento do espaço através do uso da
perspectiva, em suma, o conjunto de parâmetros formais que organizam a representação
são indexados pela forma e pela dimensão do requadro, assim como pela sua localização
na página, sua posição.
Afora sua inscrição no multirrequadro, o requadro de um quadro de HQ apresenta
uma segunda grande diferença em relação à "tela onde os pintores antigos coletavam e
concentravam seu entorno" 00. Trata-se, de fato, de um requadro orientado.
Um quadro não se apresenta isoladamente. Ele participa de uma série (geralmente
sequencial, isto é, narrativa) que é oferecida ao leitor. No ocidente, porém, a leitura res-
peita uma direção imutável, que vai da esquerda para a direita. Quando a prancha de HQ
respeita a divisão clássica em faixas horizontais, geralmente apertadas (as tiras), ela impõe
aos quadros um alinhamento que facilita a varredura do olhar.
Todo leitor de quadrinhos sabe por experiência própria que, na prática, mesmo
quando o olhar funciona como um "feixe inabalável" 0', os movimentos do olhar sobre
a superfície da prancha são relativamente erráticos e não respeitam protocolo definido
algum. A observação empírica dos mecanismos de leitura infelizmente nos aproxima desta
100 Henri Van Lier, Les Cahiers dela photographie, edição especial: Philosophie de la photographie, Laplume, ACCP, 1983, p. 17,
101 Cf. Bruno Lecigne, "Une esthetique de la jouissance", Les Cahiers de la banda dessinée n. 52, especial Guido Crepax, Grenoble,
Glénat, 10 trim. 1982, p. 21.
58 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
questão, e as investigações realizadas em Grenoble por Christian Alberelli usando um
"eye-tracker"'" ainda não apresentaram suas conclusões. É certo que, de qualquer forma,
o olho não captura o quadro frontarinente, como supostamente é regra geral para olhar-se
uma pintura. Ele vaga pelo hiper-rêquadro, pela superfície do plano que é a própria pági-
na; chega sempre, e por um trajeto estimulado, a outro ponto situado dentro desse plano.
É nesse sentido que todo requadro é orientado: indica sempre uma saída, aponta para o
seguinte (o próximo quadro), que pede a atenção.
Os artistas também levam em conta essa orientação natural. Lembremo-nos das
palavras de Hergé, mesmo que já tenham sido bastante citadas:
"O leitor precisa poder acompanhar a narração com facilidade. É evi-
dente que há uma regra absoluta: nos nossos países, lemos da esquerda para a
direita. (...) Quando mostro uma personagem correndo, geralmente ela vai da
esquerda para a direita em virtude dessa regra básica; além disso, correspon-
de a um hábito do olho, que segue o movimento e que o acentua: da esquerda
para a direita, a rapidez parece maior do que da direita para a esquerda.
Utilizo o outro sentido quando a personagem está retraçando passos. Se eu a
fizer correr sempre da direita para a esquerda, pareceria que a cada desenho
ela iria para trás, perseguindo a si mesma...' ,103
A regra dominante — que às vezes encontra aplicações mais sofisticadas que o
exemplo propositalmente simples escolhido por Hergé — é que a dinâmica de ação obedece
à mudança pressuposta no olhar.
A organização e a orientação do espaço são vistas em termos um pouco diferentes
quando a prancha, ao romper de maneira radical com a organização tradicional, apre-
senta-se como um mosaico de quadros em que nenhum possui formato retangular. Com
exceção, talvez, de um Druillet, que a usa como formula padrão, essa diferença em relação
ao modelo dominante geralmente é motivada pelo desejo de se superar na expressão de
um momento forte da narrativa; ela visa, por exemplo, fazer o leitor sentir algo da mesma
ordem que o desequilíbrio, temor ou júbilo atribuídos às personagens.
É assim que, em algumas dos layouts difratados de Guido Crepax, nos quais os
102 O eye-tracker é um dispositivo de alta tecnologia que permite, graças a câmeras infravermelhas conectadas a um computador,
registrar e posteriormente reproduzir junto a uma impressora o movimento do olhar sobre dado objeto — no caso, uma prancha de
histórias em quadrinhos. As pesquisas empreendidas nesse âmbito por Christian Alberelli ao final dos anos 1980 ainda não renderam
publicações.
103 In Numa Sadoul, Tintin et moi. Entretiens avec Hergé, Tournai, Casterman, 1975, p. 56.
THIERRY GROENSTEEN 59
requadros não possuem bordas paralelas nem são quadrados, a página está sujeita ao domí-
nio de pontos oblíquos e cortes aparentemente arbitrários. Bruno Lecigne analisou perfei-
tamente o porquê dessas "grades de desestabilização", que coincidem com cenas eróticas
ou de violência: "A prancha procura delinear os limites do prazer através da formalização.
Deve englobar (significar) o inexprimível, e assim, dar-lhe realidade. (...) essa dilaceração
do espaço leva o leitor, voyeur, a ficar igualmente restrito a internalizar os processos do
próprio sadismo." 24 Com seus layouts instáveis, requadros barrocos são comuns nas obras
do artista Andreas (por exemplo, no álbum Cromwell Stone, publicado por Michel Deligne
em 1984 e reeditado por Guy Delcourt em 1993). Se nem sempre eles escapam a certa gra-
tuidade (falei em outra oportunidade de uma certa "histeria da mídia") 105 , na maioria das
vezes eles casam com os ápices e quebras de uma HQ no gênero da fantasia.
Observamos também, que quando o requadro afasta-se da norma, sua função estru-
tural tende a confundir-se com a função de expressão (cf. infra 1.7.5). A imagem deve se
acomodar ao contorno ao qual as irregularidades conduzem quase que inevitavelmente,
seja uma inclinação do horizonte, uma amputação pelo motivo que for, uma composição
que seja de alguma forma "aberrante" no que diz respeito à ortodoxia representacional.
Mas essa aberração é recuperada semanticamente como parte de uma estratégia global a
serviço da expressão. E o que ela procura expressar é uma situação também extraordinária
ou uma emoção excepcional. Nesse sentido, os avatares do requadro em Philippe Druillet
apresentam essa mesma lógica, que consiste em pensar a adequação entre fundo e forma
em termos de mimetismo ou de superioridade: a grandiloquência das composições que
explodem o requadro tradicional corresponde à proposta (hiperbólica) "cósmica". Como
sugerir o silêncio eterno de espaços infinitos em um requadro de dimensões mesquinhas?
À luz desses casos extremos, chegando ao limiar da sua exemplaridade, pode-
mos nos perguntar se a mesma lei será verificada sempre e em qualquer situação. Será que
qualquer organização do espaço representativo, tal como a que o requadro cria e define si-
multaneamente, possui um valor expressivo? Seguindo nessa perspectiva, deve-se pos-
tular que as pranchas que admitem apenas os quadrados e retângulos canônicos para todo
tipo de requadro não correspondem a um "grau zero" da expressão espaçotópica; expres-
sam, pelo contrário, uma visão de mundo que tem base na noção de ordem, na lógica car-
tesiana da racionalidade. Para opor-se a esta hipótese, basta se lembrar de Watchmen,
104 "Une esthetique de la jouissance", op. cit., p. 23. Faz-se necessário, ainda dentro dessa questão, dar destino especial aos
mangas.
105 Cf. minha critica dos álbuns Cromwell Stone e Cyrrus no Cahiers dela bando dessinée n. 61, Grenoble-Bruxelas, Glénat, janei-
ro-fevereiro de 1985, p. 55.
60 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
narrativa apocalíptica de Alan Moore e Dave Gibbons que tem um layout extremamente re
gular. Demonstrarei, no entanto, principalmente
...e a partir desse exemplo, que nas HQs contem-
porâneas, dado que todas as configthções de prancha são permitidas, a fidelidade ao layout
"clássico" geralmente é significativa(o que evidentemente não é o caso de certas revistas dos
anos 1950, por exemplo, onde o classicismo era imposto pelo editor a todos os colaboradores).
1.7.5 A função de expressão
—
Acabamos de ver que o requadro dos quadrinhos pode conotar ou indexar a imagem
que encerra. Pode até instruir o leitor sobre o que deve ser lido, fornecer um protocolo de
leitura ou uma interpretação do quadro. Se requadro e imagem estão muitas vezes ligados
por uma relação de transparência ou de redundância, o requadro também pode conotar uma
forma de ironia ou negação.
Michel Rio já havia oferecido algumas pistas de reflexão sobre o requadro das his-
tórias em quadrinhos, tendo o cuidado de observar: "Vamos abordar este problema através
do estudo (sem nos preocupar com os significados dos quadrinhos) de algumas tendências
gerais nas escolhas de organização dos requadros e dos layouts."'" Ideia esta já proposta
por Benoit Peeters, que a englobou da seguinte forma:
Minha perspectiva nesse ponto será inteiramente distinta, a antítese
desse parêntese aparentemente inócuo. A única maneira de fugir do forma-
lismo que, muitas vezes e com razão, foi criticado por semióticos, é levar em
consideração essas "opções de organização" dentro de sua relação com o que
Michel Rio chama de "significado dos quadrinhos", ou seja, não destruir essa
coerência quase orgânica que dá a cada elemento sua razão de ser.'"
Evidente que o meu posicionamento é o mesmo de Peeters. Mas permito-me acres-
centar que apenas uma descrição fundamentada do dispositivo espaçotópico pode compre-
ender o sistema no interior do qual se organi7am as diferentes escolhas possíveis, e assim,
dar uma visão da totalidade dos critérios que permitem a apreciação da pertinência das
escolhas tomadas.
A respeito da relação entre a organização formal e o significado, o exemplo a seguir
nos dará a melhor das demonstrações. Trata-se de uma HQ de duas páginas criada em 1980
pelo autor americano Bill Griffith. Intitulada The Plot Thickens (literalmente "A trama se
106 "Cadre, plan, lecture", Communication n. 24: La bando dessinée et son discours, Paris, Le Seuil. 1976, p. 97.
107 Case, Manche, récit, op. cit., p. 8.
THIERRY GROENSTEEN 61
PLOTtÃickiNi
XV4MNANNWIN
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-P" N-gz-
NP Min
Fig. 4- Bill Griffith, The Rot thiekens, 2 pranchas, 1980. Ci B. Griffith, p. 63.
complica"; cf. fig. 4) 108 constitui um dos casos mais evidentes da aplicação, nos quadri-
nhos, dos métodos do Oulipo (l'Ouvroir de littérature potentielle, ou Oficina da Literatura
Potencial)". Tem- se uma regra formal evidente e arbitrária que determina o número,
tamanho e disposição dos requadros. A regra é simples: cada nova tira horizontal terá um
quadro a mais que a tira anterior. Assim se sucedem onze tiras: a primeira é composta por
um único quadro, a última por onze. A largura da página é constante, de forma que os qua-
dros são obrigados a ficar cada vez menores e a altura das tiras diminui proporcionalmente
à medida que os quadros ficam mais estreitos.
Em termos desta descrição estritamente formal, o exercício proposto por Bill Griffi-
th parece deveras inútil. Mas nós o julgamos de outra forma ao tratar dos "significados".
Revela-se então que ironias e paradoxos dominam essa curta HQ. A ideia de complicação
sugerida no titulo não se opõe à redução progressiva das superfícies em que se investe a
representação? Essa oposição é redescoberta também em termos de imagem, no sentido de
que há a tendência de que o espaço à disposição seja inversamente proporcional ao espaço
exigido pela imagem. O primeiro quadro, o maior, mostra uma sala grande, com diversas
108 História publicada na Raw n.2, Nova York, 1980 e republicada na antologia Read Yourself Raw, Nova York, Pantheon Books,
1987, p. 36-37.
109 Desde fins de 1992 existe uma Ouvroir de bando dessinée potentielle (Oficina da história em quadrinhos potencial), a Oubapo.
Não é por acaso que a HO de Bill Griffith encontra-se em meu texto "Un premier bouquet de contraintes", in Oubapo, Oupus 1, Paris,
L'Association, 1996, p. 13-59.
62 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
mesas, sendo que apenas uma é ocupada, por uma personagem solitária. Tudo é feito para
remeter ao vazio e à morosidade. Até o texto que a acompanha acrescenta: não contente
em assinalar que "o refeitório esta4' vazio", ainda especifica "não havia nada no jornal".
O jornal aberto sobre a mesa está, de fato, desprovido de qualquer informação.
Nas últimas quatro tiras de imagens da segunda página, no entanto, no momento onde os
quadros atingem um formato igual e depois menor que de um selo postal, os fatos são numerosos
e conturbados: o protagonista usa drogas, converte-se a uma religião, tem uma breve passagem
pela cadeia, finalmente encontra o gosto pela vida. Em suma, tudo o que poderia ser chamado de
desenvolvimentos anedóticos e uma "composição de cena" mais ou menos espetacular é sacrifi-
cado em prol da enunciação seca, do tratamento gráfico minimalista, já que o tamanho reduzido
dos requadros não permite mais que isto. Mesmo que a história tenha começado por um quadro
de proporções inúteis para o pouco de informação que contém.
(Compreendo bem que, considerado isoladamente, isto é, independente da dinâ-
mica particular desta narrativa, esse quadro poderia ser coerente; é necessário aumentar
o plano a fim de visualizar outros clientes e ilustrar o isolamento e a imobilidade do pro-
tagonista. No plano pedagógico, seria mais producente demonstrar, no que diz respeito a
esse quadrinho, que o significado último de um quadro de HQ não reside em si mesmo,
mas sim na totalidade das relações em rede que ele mantém com os quadros solidários; em
resumo, que ele se apoia na artrologia geral.)
É frequente que o texto estabeleça um contraponto irônico à imagem, tanto nos
quadrinhos quanto no cinema. The plot thickens demonstra — o que talvez seja o mais
inesperado — que se pode formar relações de mesma ordem também entre a imagem e seu
requadro.
Outro parâmetro constitutivo do requadro, mencionado anteriormente, está relacio-
nado principalmente à função de expressão: trata-se do traçado, ou, se assim preferirmos,
das modalidades da linha de contorno. Dado que essas modalidades mudam entre dois
quadros consecutivos, essa modificação serve, a princípio, para chamar a atenção para
uma ruptura no nível de enunciação ou no status da imagem, indicando, por exemplo, um
flashback ou o início de uma sequência onírica. Podemos dizer que, em tais casos, cabe
ao requadro fornecer as "instruções" do quadro, prescrever o sistema de leitura adequado.
1.7.6 A função de indicador de leitura
- prancha como essa, quando um simples olhar é suficiente para revelar a ausência de qual-
Por mais evidente que pareça, a última das seis funções do requadro não é a menos
importante. Digo que o requadro sempre será indicativo de algo a se ler. Assim que ele
THIERRY GROENSTEEN 63
"encontra" um requadro, o leitor é levado a supor que, dentro do perímetro traçado, existe
um conteúdo a ser decifrado. O requadro é sempre um convite para parar e examinar.
O grupo g sublinha essa questão: uma borda que delimita um espaço "assume um
papel semiótico importante frente a esse espaço: ela o designa como homogêneo. Assim
a imagem por vir, antes mesmo de ser emitida, terá o status de unidade: um signo isolado
ou enunciado'''. É a mesma observação que Louis Marin expressa de forma um pouco
diferente. O requadro, segundo ele, "reserva a imagem para a contemplação" e "define o
lugar de uma operação simbólica" 111 .
Esta função é trivial e, poder-se-ia dizer, supérflua na maioria dos casos. A princí-
pio, o quadro é suficiente em manifestar seu caráter de enunciado, seu status de vínculo na
cadeia discursiva; ele atrai os olhos para aquilo em que, mesmo não enquadrado, o leitor
se detém pelo menos um instante. Mas essa função que eu batizei como "indicador de
leitura" adquire todo seu significado nos casos em que uma parte do que está representado
na prancha pode parecer trivial, deixando de dar ênfase à ação ou ao drama, aderindo-se
ao seu ambiente imediato, até o ponto onde não pode mais ser vista ou, se sua existência é
percebida, ser deliberadamente "pulada" pelo leitor, que é sempre impulsionado pela ânsia
de saber o resto da história.
Um exemplo ajudará a compreender essa função do requadro. Referindo-se à
figura 5, que reproduz uma prancha do espanhol Aleix Barba, a primeira de uma história
intitulada A Winter Stoiy ("Uma História de Inverno", desenhada em 1985) 112. Trata-se de
uma cena interna na qual percebemos — primeiramente escondido pelo jornal que lê — uma
única personagem em meio a seu ambiente familiar. Nenhuma ação, nenhum protagonista
identificável, nenhuma fala (e, no entanto, muitos enunciados linguísticos: letras de mú-
sica, títulos de livros e discos, o texto do jornal...). É difícil imaginar um adentrar mais
suave à narrativa, mais contemplativo que esta prancha construída como "panorâmica",
onde cada tira liga-se com precisão à precedente e prolonga-a.
No entanto, é precisamente numa introdução como esta que tudo acontece; é aqui
que, para criar no leitor a vontade de prosseguir, despertar o interesse ou aumentar sua
curiosidade, como se aqui apresentássemos implicitamente o contrato de leitura — sendo
título e primeiros quadros promessas de um clima — uma certa recompensa pela atenção.
É de se imaginar a facilidade e consciência com que o típico leitor de HQ passa por uma
110 Traité do signo visual, op. cit., p. 96.
111 De la représentation, Paris, Le Seuil/Gallimard, "Hautes Études", 1994, p. 317.
112 História publicada em Madriz n. 29, Madrid, julho-agosto de 1986.
64 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 65
quer acontecimento. Entrar nesta 1ramaturgia. Mas a existência de um requadro faz com que esse cabide apareça como
história intirnista de forma apres- e lemento privilegiado com essa posição na cena, convidando o leitor, primeiro, a perceber
sada é condenar-se a perder o esff"- sua presença (um texto dentro desse mesmo requadro obviamente ajuda a definir tempo de
sencial, a não degustar aquilo que) atenção sobre este quadro), e segundo, descobrir se existe algum motivo para sua presen-
lhe confere uma qualidade origi- ça. O cabide não pode ser indiferente; ele é pertinente — anedótica ou simbolicamente — ou
-11T
nal. Além disso, consciente da ne- possui algo de insólito.
cessidade de reter o leitor, conter Toda porção da imagem isolada por um requadro atinge, por esse mesmo motivo, o
seu olhar, Barba foi inteligente status de enunciado completo. Dedicar um requadro a um elemento é o mesmo que dar tes-
no uso dos requadros, ou seja, temunho de que esse elemento constitui uma contribuição especifica, não importa o quão
multiplicá-los arbitrariamen- rasa seja a narrativa de que ele participa. Essa contribuição é a que pede para ser lida. Às
te, produzindo mais do que vezes avaliá-la pode ser problemático. Mas a dúvida que toma conta do leitor prova, a seu
o necessário, considerando a modo, essa função de leitura da borda. O mesmo se aplica a um requadro sem conteúdo,
imagem a função única de se- um quadro em que a brancura seria, com certeza, significativa.
paração. Podemos nos perguntar, talvez, em que medida as funções atribuídas ao requadro
Na verdade têm-se apenas são específicas ao dispositivo dos quadrinhos ou representam ou caracterizam as ope-
três imagens, sendo que cada uma rações do requadro de qualquer tipo de ícone. A resposta parece bastante simples. As
ocupa um terço da página. Três re- funções de separação e de ritmo não podem existir sem que se cumpram duas condições:
quadros seriam suficientes, MAS elas supõem uma pluralidade de requadros em situação de copresença dentro do mesmo
vemos nove. Consequentemente, Fig. 5 - Aleix Barba, A Winter Story prancha 1, 1965 suporte; demandam, além disso, que a sucessão desses requadros componha, se não uma
@ A. Barba, p. 66.
o leitor é duplamente mobilizado. narrativa, ao menos um discurso articulado. A função de indicador de leitura, por sua vez,
No nível regional, do hiper-requadro, dividir cada tira em três partes de área idêntica tende vai além da função semiótica inerente do enquadramento, pois, dado que o quadro par-
a criar a ilusão de uma sequência temporal e, assim, de um processo narrativo. No nível ticipa de um discurso sequencial, seu requadro não convida apenas à contemplação, mas
local de cada um dos quadros, o olhar retido pelo requadro é convidado a parar e levar propriamente a urna leitura.
em conta as informações, tanto icônicas quanto verbais, que lhe são propostas. Por força Como se vê, essas três funções surgem diretamente do princípio estabelecido como
dessa segmentação, começamos a enxergar, onde parecia não haver nada, uma profusão fundador da linguagem dos quadrinhos, o da solidariedade icônica, e já o tomam especí-
de elementos e referências que, se prestarmos atenção, "comunicam" certas coisas. (É evi- fico. Quanto às outras três, as funções de fechamento, a função estrutural e a função de
dente que este dispositivo funciona como convite e não possui poder coercitivo. Da mesma expressão, outros requadros que não o do quadro de HQ também exercem essas funções:
forma que nada pode obrigar alguém a ler qualquer coisa que seja.) pode-se ver categorias gerais da representação icônica. No entanto, quando essas funções
Em algumas pranchas do álbum Blues (Kesselring, 1979), Chantal Montellier di- se exercem dentro de um multirrequadro, os efeitos que produzem em esta ou aquela
vide composições de páginas inteiras em vários requadros, alguns dos quais não contendo posição têm de ser considerados relativamente aos requadros vizinhos; se um requadro é
nada além de um detalhe aparentemente trivial, como, por exemplo, um cabide num prego dotado de poder estniturante ou expressivo, essa competência se dá de maneira diferente
(página intitulada Clooney, não numerada). Caso a página não tivesse sido dividida, o dependendo se o requadro é rigorosamente semelhante, relativamente próximo ou muito
cabide teria contribuído, entre outros detalhes da decoração, para aquilo que chamamos diferente dos requadros circundantes e, de forma mais ampla, segundo o coeficiente de
de "efeito de real", que é oriundo, na ficção, de elementos que não são motivados pela regularidade que caracteriza o conjunto do layout. Por fim deve-se lembrar que há outra

66 o SISTEMA DOS QUADRINHOS
variável, independente do iso ou do heteromorfismo dos requadros, que é a determinação
adicional a que cada requadro é submetido pela posição em que se encontra.
1.8— UM ESPAÇO INTERMEDIÁRIO: A TIRA
O modelo tradicional da prancha de quadrinhos (estatisticamente prevalecente, ape-
sar das muitas diferenças observáveis no último quarto de século) dispõe os quadros em
fileiras horizontais separadas por intervalos. Essas fileiras — as quais deram origem à
expressão francesa "bande dessinée", ou banda desenhada — costumam ser designadas no
jargão profissional como tira, faixa ou conforme seu equivalente norte-americano, strip.
A força do vocábulo importado possui justificativa histórica. Se, na virada do sé-
culo, os quadrinhos começaram a evoluir nos suplementos coloridos dominicais (grandes
criações como Os Sobrinhos do Capitão, Buster Brown ou Little Nemo in Slumberland,
para ficar apenas nos que apareciam em página inteira — as Sunday pages — cujo formato
era similar ao de um cartaz), desde antes de 1910 as páginas internas da imprensa norte-a-
mericana incluíam diversas strips horizontais em preto e branco, as daily strips, nos dias
de semana (segunda a sábado) m.
A Europa também conhece essas duas fórmulas: a linear, das tiras, e a tabular, da
prancha. No entanto, como o principal suporte dos quadrinhos no Velho Continente não
foram os jornais, mas sim as revistas especializadas (antigamente chamadas de "illustrés",
ou "ilustradas"), é natural que a página imponha-se desde saída como unidade de referência.
O dispositivo que nos é mais familiar apresenta assim uma dupla nidificação. As
tiras unem os quadros; a prancha, por sua vez, engloba as tiras. Em meio à página, a tira,
desprovida de autonomia, aparentemente não possui outro status que não o de unidade
intermediária. Enquanto o quadro e a prancha são dois espaços fechados e estruturados,
que o olho tem prazer em seguir e em que o conteúdo facilita a totalização, a tira aparece
como um espaço de transição, cuja homogeneidade ou isolamento são insuficientes para
reivindicar identidade própria. Tanto no plano gráfico quanto nos termos de narrativa, ela
luta para emergir como unidade pertinente. A tira é ainda um espaço onde a espaçotopia
pode e deve evidenciar as funções e usos' específicos.
Para descrever seu lugar na economia geral da página, recorre-se praticamente
de forma espontânea às metáforas arquitetônicas. A prancha lembra de fato uma casa com
muitos andares (no mínimo dois, geralmente três, às vezes quatro e excepcionalmente
113 A respeito do desenvolvimento da tira de jornal, cf. Robert C. Harvey, "Bud Fisher et l'invention do strip quotidien", 9e Art n. 1,
Angoulême, CNBDI, janeiro de 1996, p. 86-95.
THIERRY GROENSTEEN I 67
mais — até oito, como já vimos em Bill Griffith). A página de abertura do maravilhoso álbum
Carpets' bazar é um exemplo: uma fachada onde os três níveis ornamentais apresentam par-
ticularidades ornamentais distintas — sugere uma ilustração literal dessa analogia'''.
Na fase de decupagem, mesmo que se trate somente de recortar uma ação a ser
representada, um discurso a se elaborar, a sucessão dos quadros apresenta-se teoricamente
como uma espécie de ponta-a-ponta, uma sequência estritamente linear. A forma mental
em que poderíamos pensar o corpo, mesmo que ainda ausente na obra em desenvolvimen-
to, seria a de uma fita — ou de um rolo de filme. Enquanto não confrontar o meio na sua
materialidade, a obra em projeto é sinônimo de uma fila horizontal de maior ou menor ex-
tensão com um amontoado de quadros, que desenrola o fio de uma narração com imagens.
Os quadrinhos chegaram a ter essa forma imaginária quando, bem antes da invenção de
Tôpffer, o livro ainda não havia substituído os pergaminhos em rolo, nem o códex havia
substituído o volumen. A Tapeçaria de Bayeux e os E-Makimonos japoneses, seus contem-
porâneos, ou ainda (embora com formato em espiral), o friso de duzentos metros que orna
a coluna de Trajano, são evidências que bastamm.
Mas é preciso, em seguida, trazer essa fita imaginaria para o molde do meio de
ligação, a página. No melhor sentido da palavra, este /ayout, literalmente dispor sobre,
tem toda a aparência de uma intervenção cirúrgica de certa violência, agressiva: trata de
segmentar a "fita", cortá-la, pois, ao menos que ela seja dobrada sobre si mesma como uma
sanfona (e assim tome-se ilegível), a "fita" pode caber no modo imposto pela publicação.
Dentro de uma página, os trechos que assim se obtém serão dispostos um sobre o outro — e
nós os reconheceremos como tiras.
Parece assim que a tira não constitui naturalmente uma entidade plástico-narrativa
integrada, concebida como tal. Muitas vezes ela é apenas o produto relativamente alea-
tório de uma fragmentação imposta pelo suporte. Quando o artista "esbarra" na lateral
direita da página (mais especificamente em sua superfície útil, descontando-se a margem)
ele "entra na linha". Se ela não recebe algum investimento extra, se o artista não faz
dela espaço de determinação adicional, seja narrativa ou estética, a tira tem pouco mais
relevância que uma linha de texto sujeita às aleatoriedades da fotocomposição e não aos
ditames do autor, que decide por qual palavra ela começa ou termina. Sua única função
114 Álbum escrito por Martina Van e ilustrado por Francois Mutterer, publicado pela Futuropolis en 1983. Para mais detalhes dessa
n. 72, Grenoble-Bruxelas,
obra, cf. Thierry Groensteen, "'Carpets bazaar e rouleau sans visage", Les Cahiers de la bando dessinée
Glénat, novembro-dezembro de 1986, p. 87-90.
115 Louis Mano descreve a coluna de Trajano corno "o volumen de imagens que o imperador e seu arquiteto Apollodore estenderam
(De Ia représentation, op.
verticalmente desde sua base até a estátua funerária do príncipe, para ele poder contemplar a cidade"
crt, p. 220).
68 I O SISTEMA DOS QUADRINHOS
é da ordem do indicador de leitura: a tira mostra, dentro do espaço compartimentado do
multirrequadro, um percurso para o leitor, um trajeto vetorizado. É a partir disso que Pierre
Fresnault-Deruelle diz, com razão„‘e a tira é, de certa forma, "desvinculada da massa
proliferante de imagens" 16.
Para o desenhista, a impossibilidade de conservar nas sequências de imagens a for-
ma "ideal" da fita aparece em toda sua nitidez quando a decupagem imita um deslocamento
(movimento de câmera) cinematográfico, seja a panorâmica ou o ttrivelling lateral. Vimos um
exemplo na página de Aleix Barba (cf. supra, fig. 5), que seria interessante comparar com a
história de Régis Franc intitulada Intérieurs, reproduzida e analisada em Les Cahiers de la
bande dessinée n. 57. A varredura horizontal contrapõe-se às trocas de tira, o desenhista fica
obrigado a fornecer ligações explícitas para que o leitor possa cicatrizar os rompimentos.
A comparação entre a tira de imagens e a linha de texto é, naturalmente, apenas
aproximada. A superfície de uma tira (a qual, dentro de um hiper-requadro invariável,
será determinada por sua altura) e, correlativamente, o reduzido número de tiras que uma
prancha admite, permitem que cada um possa separar-se o suficiente para oferecer-se indi-
vidualmente à avaliação do olhar (ao passo que, na página escrita, a linha de texto, muito
mais indistinta, extrai-se com dificuldade da mancha tipográfica). A tira entra no jogo esté-
tico exatamente por ter um corpo: que contorno, que presença lhe dar? A alternativa põe-se
em termos simples. Ou a página contenta-se em aglutinar os fragmentos cortados ao acaso
e é o suporte que impõe sua lei ao autor, possivelmente jogando contra ele; ou as tiras são
cortadas e articuladas conforme uma visão arquitetônica, caso em que as restrições físicas
podem contribuir para gerar uma realização artística. Benoit Peeters mostrou como, em
Winsor McCay, a tira cumpre seu papel dentro do dispositivo de enunciação escalonado
da página. Mas é preciso acrescentar que o pai de Little Nemo, pouco analisado por esse
aspecto, continua sendo "um dos poucos autores que obtiveram uma parte estética e narra-
tiva dessa unidade intermediária" 117 .
Estética e narrativa: é em função desses dois critérios distintos, um temporal e o
outro espacial, que se deve avaliar as modalidades de integração dos quadros na tira e da
tira na prancha. Em se tratando da dimensãolemporal, pensar a tira como unidade interme-
diária pertinente ajuda a deixar mais preciso o que se começou a dizer no capítulo anterior,
sobre o ritmo de leitura conduzido pelos requadros.
116 "La bande dessinée ou le tableau déconstruit", Conséquences n. 13/14: Contrebandes, Paris, Les Impressions nouvelles,
segundo trimestre de 1990, p. 41.
117 "Un inventeur du dimanche", inThierry Groensteen (org.), Little Nemo au pays de Winsor McCay, Toulouse, CNBDI-Milan, 1990,
p. 33.
THIERRY GROENSTEEN 69
Abstrair-se de um requadro para "mergulhar" no seguinte é uma operação que se
dá em uma fração de segundo e que se apoia no automatismo inconsciente. Cabe lembrar
que esse deslocamento de atenção implica atravessar um vazio (o entre-imagens) e, em
termos rítmicos, os vazios nunca têm o mesmo valor. Deslizamos suavemente ao longo dos
quadros que, por serem parte da mesma tira, seguem um ao outro na horizontal; por outro
lado, para deslocar-se à tira seguinte é preciso fazer um salto. O *curso linear de leitura,
brevemente interrompido, é dessincronizado. Essa dessincronia é muito mais perceptível
que no salto equivalente entre linhas de texto. De um lado, porque somos mais empurrados
para trás, já que o formato das páginas do álbum é maior que o de um livro comum; de
outro, mais importante, há a questão da altura da tira: verticalmente, o salto representa um
quarto, um terço ou até mesmo a metade da página.
Podemos também supor que o "vazio" entre o último quadro de uma tira e o pri-
meiro da tira inferior (convencionemos manter o termo vazio para referir-se ao que é mais
exatamente um trajeto, com eventuais "sobrevoos" de partes desenhadas) é um intervalo
superior a um simples branco que separa dois quadros contíguos. Na cadência do desdo-
bramento da narrativa, é inscrita uma varredura mais enxuta. No entanto, há um vazio
mais importante que representa a passagem de uma prancha à prancha seguinte (o "valor"
desse vazio difere, conforme as pranchas estejam impressas cara a cara ou frente e verso).
No vocabulário musical, os diferentes valores do silêncio — contado em compassos
— têm cada um seus nomes; podemos arriscar uma analogia entre os vazios dos quadrinhos
e, respectivamente, o suspiro (para nós, o entrequadros), a semi-pausa (o entretiras), a
pausa (o entrepáginas).
Assim, quando o layout segue a divisão canônica entre tiras devidamente apartadas,
a leitura da história em quadrinhos segue um ritmo natural, uma respiração suscitada por
seu dispositivo discreto de enunciação, escalonado e tabular. Seguindo na comparação
com o âmbito musical, pode-se dizer que a tira é uma medida — mas uma medida irregular,
já que a duração dos quadros não é constante.
Quando o layout é irregular, essa respiração é prejudicada, torna-se anárquica ou,
quem sabe, desaparece por completo como fenômeno de condução da leitura. Se a página
pode, com isto, ganhar em expressividade, imagina-se que, de forma correspondente, algo
se perde no poder de fascínio hipnótico exercido pela ficção desenhada. Aliás, produzem-
-se simultaneamente dois efeitos que têm o mesmo sentido. A transformação do layout em
performance ostensiva (em vez de um dispositivo aparentemente neutro, que assim tenda à
transparência) que desvia, a favor dos parâmetros formais, uma parcela de atenção que, de
70 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
outra forma, voltar-se-ia inteiramente para o conteúdo narrativo; e ao mesmo tempo desfaz
essa captura do leitor pelo ritmo, sobre a qual apoia-se, mesmo que ingenuamente, a maior
parte das HQs fidas como clássicas.
Dado que o layout favorece a3. leitura ritmada com sua regularidade, o autor pode não
explorar esse recurso e deixar que o efeito aconteça por si só; da mesma forma, ele pode usá-
-lo para organizar os incidentes de sua história. Diversos autores atêm-se ao nível da página,
a qual utilizam como unidade narrativa, e fazem coincidir mudança de página com mudança
de lugar, de tempo ou de ação. Um número possivelmente menor de autores compõe minis-
sequências ajustadas à função da unidade natural que é a tira. Um McCay, como assinala
Benolt Peeters, "de forma ao mesmo tempo simples e maravilhosamente eficaz, utiliza a mu-
dança de tira para trabalhar as elipses." 118. A eficácia é, neste caso, a adequação estável entre
as acelerações da narrativa e a pontuação rítmica imposta pelo meio. A narração e seu supor-
te compartilham da mesma periodização. Atira, por exemplo, surge como unidade adequada
para que a introdução, o desenvolvimento e a resolução de uma gag sucedam-se imediata-
mente e formem uma sequência ternária homogênea. Os grandes comediantes — Hergé em
primeiro lugar — também muitas vezes fizeram suas gags coincidir com as dimensões da tira.
Um layout diferente caracteriza a obra magnífica de Tardi, Era a guerra de trin-
cheiras. Cada página é dividida em três tiras da mesma altura e compostos, cada um, por
uma faixa (uma imagem que recobre toda a largura do hiper-requadro). Gostaria de citar
algumas linhas do comentário dado por Jacques Samson, que estudou este exemplo e con-
firma os princípios gerais que tentei identificar:
O rigor, a sistematicidade e a natureza inusitada da construção destas
pranchas evidenciam uma restrição formal dupla aplicada à representação:
a invariância do requadro e as tiras no fragmentadas (...). O uso, comum
nas HQs, do requadro variável tende às vezes a comprimir, às vezes a dilatar
o ritmo da leitura, enquanto que a restrição de invariância do requadro tem
efeito inverso; pondera a progressão da leitura ao impor uma métrica rigo-
rosa e imperturbável — neste áso, o terceto — onde a repetição produz uma
espécie de feitiço...n 9
A outra dimensão relativa ao modo de aproveitamento da tira é a do espaço. A
compartimentação da página pode levar à errância e à dispersão do olhar. Dentro do mui-
118 Ibid.
119 "Le champ tardien", op, cit., p31.
THIERRY GROENSTEEN 71
tirrequadro, a tira não apenas sugere uma direção de leitura, mas, de acordo com o grau de
coesão visual que ela mostra, aparece ou não como uma área visualmente pregnante, um
recorte esteticamente proveitoso.
Podemos ver como a gestão do tempo determina a gestão do espaço: uma elipse leva
quase inevitavelmente a uma modificação do que é representado (mudança de lugar, entra-
da em cena de personagem nova, passagem da iluminação diurna para noturna etc.) e essa
modificação permite que oponhamos duas tiras consecutivas em termos do seu conteúdo
gráfico, garantindo a cada uma a mínima identidade. Mas é igualmente concebível que a uni-
dade visual da tira (a coalescência dos quadros que a constituem) pode ser obtida por outros
meios, e não necessariamente supor que ela será precedida e seguida por elipses narrativas.
É uma sorte, já que é difícil imaginar (exceto para fins experimentais) como poder-se-ia
estabelecer como princípio de decupagem a redução de cada cena às dimensões de uma tira.
Se as intervenções do desenvolvimento temporal da narrativa têm a ver como enun-
ciado, a identidade visual da tira é garantida com mais frequência pelos processos que
dizem respeito à enunciação. Nesse nível, são relevantes dois tipos de parâmetros: os que
dependem da arquitetura geral da página, mais os que participam do tratamento gráfico e
da "composição de cena" do enunciado.
Vou mencionar primeiro (ignorando os efeitos induzidos pelo face a face de páginas
à esquerda e à direita) quatro parâmetros do primeiro grupo.
1 / Calculado sobre a altura total da página, a proporção ocupada pela tira, em ter-
mos absolutos e relativos às proporções de outras tiras que aparecem na mesma prancha.
Uma tira se destaca mais quando seu tamanho é maior ou quando sua altura difere das tiras
vizinhas.
2 / A espessura dos vazios horizontais que separam as tiras, tanto em termos abso-
lutos quanto em relação aos vazios verticais que separam os quadros. Em Bourgeon, por
exemplo, a autonomia da tira é reforçada pelo fato de que as "entretiras" são maiores do
que os "entrequadros".
3 IA disposição dos balões. Sistematicamente colocados na parte superior dos qua-
dros, eles reforçam a fronteira já estabelecida pelo intervalo em branco e ajudam a separar
as tiras de imagens. Uma disposição diferente, se for anárquica, desorganizará o disposi-
tivo do layout, ou, se for orquestrada, substituirá outra lógica. Essa questão será tratada
com maior profundidade em 1.9.
4 / O número de quadros que compõe a tira, tanto em termos absolutos quanto em
relação à quantidade de quadros das tiras vizinhas. Se não forem particularmente altos nem
 72 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
excessivamente achatados, as tiras que compõem dois quadros de dimensões mais ou me-
nos iguais destacam-se mais do que as outras. Do instante em que o formato dos quadros se
aproxima do quadrado, o efeito da!fira é atenuado simultaneamente à dinâmica narrativa.
Os dois quadros, que se equilibram, precisam ser observados em separado; eles tendem
a uma estética do grande quadro. (O caráter de ilustração tão característico do Príncipe
Valente, de Harold Foster, é notavelmente reforçado no início dos anos 1950, quando o
desenhista adotou como regra colocar sistematicamente ao centro de cada prancha dois
grandes quadros com o formato vizinho do quadrado.) Por outro lado, a autonomia de uma
tira é reforçada quando, como em Era a guerra de trincheiras,ela é composta de apenas
um quadro-tira que vai de ponta a ponta na largura da página, ou quando, por outro lado,
ela tem quatro quadros ou mais. Neste último caso, o caráter fragmentário dos quadros
está em destaque. Condenados a sua estreiteza, a uma incompletude relativa, eles podem
apenas com figurar. Seu significado geralmente está na sequência (sintagma); é aí que a
- dinâmica de cada um dos atores fica oposta e contraditória à trajetória do olhar. Os per-
tira se coloca como instância de interpretação.
Os outros parâmetros suscetíveis para reforçar a unidade visual da tira, numero-
sos demais para serem listados, concernem muito mais diretamente à retórica narrativa.
Eles têm em comum a capacidade de reforçar a redundância ou complementariedade dos
conteúdos icônicos. De fato, todos os processos que, implementados dentro de uma tira,
têm como efeito destacar, seja a permanência de um padrão nos quadros agrupados, seja
a complementariedade das cenas apresentadas lado a lado (tira ornamentada com várias
imagens, o movimento lateral de uma personagem, a decomposição de um movimento
ou uma piada visual etc.), contribuem para a coesão sintagmâtica da tira e, portanto, sua
afirmação como unidade plástica e narrativa pertinente.
Alguns desenhistas têm conseguido utilizar com virtuose esse conluio natural entre
os quadros de uma mesma tira. "Assim, em Segar, é o espaço que é abolido, pois as perso-
nagens passam de um quadro ao outro instantaneamente, mesmo que os lugares represen-
tados em cada um quadro não sejam em nada contíguos. Basta que os quadros o sejam." 120
É o que mostra precisamente o exemplo descrito por Jean-Claude Glasser: a possibilidade
da superfície de registro substituir o espaço diegético; o curto-circuito entre dois espaços
(um, contínuo e em duas dimensões; o outro, disperso por fragmentos tridimensionais su-
postamente não contíguos) é o princípio de diversas sequências reflexivas, quando a HQ
diverte-se em denunciar seus próprios códigos.
120 Jean-Claude Glasser, "Entre rire et delire: movias et funnief, in Gilles Ciment (org.), CinémAction especial: Cinéma et banda
clessinée, Courbevoie, Coriet-Télérama, verão de 1990, p. 208.
THERRY GROENSTEEN 73
A alusão a Elzie C. Segar, criador de Popeye, permite-me levantar aqui uma dificul-
dade própria do multirrequadro, que concerne à composição de cena de uma perseguição.
Talvez lembremos da memorável perseguição no convés de um barco que é um dos des-
taques da Histoire de M. Cryptogame de Rodolphe Tõpffer. Benoit Peeters confrontou as
duas versões que se conhece desta sequência: a original, desenhada pelo artista genebrês, e
a apresentada por Cham na gravura da mesma historia na L'Illustration, em 1845. Peeters
ressalta que Cham, não tendo prestado atenção ao espelhamento da gravura e o que ele
provocaria nas imagens, estragou "alguns dos achados mais eficazes de sua referência" 21 ,
como a famosa perseguição. Neste caso, o achado seria que "as três personagens (Sr.
Cryptograme, Elvira e o clérigo) seguem perfeitamente o movimento da leitura, da esquer-
da para a direita, provocando um belo efeito global que lhes permite, de alguma forma,
pisar em cima das fronteiras entre caixas". Enquanto que, na infeliz releitura de Cham, "a
seguidores tornam-se perseguidos, e precisamos, em cada quadro, refazer nossos passos".
Essa leitura, no entanto, pode ser revertida em prol de Cham. A versão tõpfferiana
da perseguição baseia-se em um paradoxo que Peeters, ao que parece, não percebeu: Elvira
ocupa na tira (que em Tõpffer confunde-se sempre com a prancha) uma posição à frente
de Cryptograme, de forma que ela supostamente corre atrás dele. Assim como o clérigo,
• que deveria ser o terceiro, parece estar à frente do trio. Tõpffer tinha um controle intuitivo
do dispositivo espaçotópico e, especialmente, da dinâmica lateral própria à tira vetorizada
pelo movimento do olhar; mas aqui essa lógica, a do apoio em seu aspecto físico, contradiz
a lógica da ação e da topografia diegética.
Segar apoiou-se no espaço físico para instaurar um espaço diegético aberrante a
partir do ponto de vista lógico, mas aceitável do ponto de vista perceptivo; Tõpffer viu-se
diante de um dilema que não admite boa solução (em Cham, as personagens se perseguem
na ordem certa, mas não no sentido correto) — exceto optar por um quadro-tira único onde
apareçam simultaneamente as três personagens, e o espaço físico coincida com o espaço
diegético (nesta hipótese, porém, o ritmo dado pelas legendas é que foi sacrificado).
Tendo notado esse paradoxo, que talvez constitua uma aporia do multirrequadro,
voltamos a outro belo exemplo da utilização combinada da tira na página 52 (prancha
46, cf. fig. 6) do álbum Bloody Mary (Ed. Glénat, 1983), de Teulé e Vautin. A prancha
tem três tiras compostas cada uma por três imagens isomórficas. Cada tira manifesta uma
coesão notável: a primeira pelo fato de ser aberta e fechada pela mesma diagonal, as
121 Case, planche, récit, op. cit., p. 57.As duas citações seguintes provêm da mesma página.
74 1 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 75
duas seguintes pela repetição, nas como os vazios dos interquadros estão dispostos um sobre a extensão vertical do outro, de-
três imagens consecutivas, de um vido ao isoformismo dos quadros, há outros trajetos abertos à superfície da prancha além
mesmo padrão (o close-up no ros- desta horizontalidade da tira: o vertical ou, inclusive, como em um tabuleiro de xadrez, o
to de N'Doula e o "puxão" vertical trajeto oblíquo.
do bloco de edifícios — que, nes- Não é minha intenção defender um reforço sistemático da tira. Busquei apenas
te caso, evocam metaforicamente destacar seu potencial, os diversos usos a que ela se presta. Cabe a cada autor decidir, em
outro tipo de ereção). Ao mesmo função de uma estratégia narrativa e de uma estética global, se e em que momento a tira,
tempo em que realiza a divisão da esse espaço intermediário muitas vezes ignorado na sua especificidade funcional, merece
página em três zonas contrastantes, ser reforçada.
provendo cada uma de coerência
própria, Jean Teulé, comprometi- 1.9- UM ESPAÇO EXTRA: O BALÃO
do com a fluidez narrativa, organi- A descrição do dipositivo espaçotópico ainda encontra-se incompleta. O formato, o
zou conexões explícitas entre tiras número e o posicionamento dos balões'n, em suma, a rede que eles tecem internamente ao
consecutivas. Assim, o rosto de hiper-requadro, também depende da gestão do espaço e contribui de maneira determinante
N'Doula aparece em primeiro pla- para conduzir o olhar do leitor. O balão, embora não tenhamos o hábito de pensá-lo desta
no no último quadro da primeira maneira, faz parte do espaço constitutivo da história em quadrinhos — tanto quanto as mol-
tira (a conexão também se faz pela duras que englobam um texto narrativo e que chamei, assim como outros, de recordató-
retomada da cor de pele, que em riow. Daqui em diante farei meu foco por esse ângulo, em grande parte sem consideração
seguida vai misturar-se gradual- por status individual ou pela natureza dos enunciados que o balão encerra.
mente à cor do céu), enquanto os Fig. 6 - Jean Teule e Jean Vautrin, Bloady Mary,
prancha 46, 1983. C) Ed. Glénat, p. 78.
conjuntos habitacionais começam 1.9.1 O balão dentro do quadro
a aparecer no último quadro da segunda tira, já iniciando o fragmento de três vinhetas Assim como o quadro, de modo geral o balão é um espaço fechado, compacto.
seguinte, que mantém, reciprocamente, a lembrança da tira anterior através do rosto de Dificilmente daríamos a seu traçado o nome genérico de requadro (e sua proximidade
N'Doula cortado pelo novo desenho e que vai se apagando. etimológica de quadro, o quadrado), na medida em que, como sugere o próprio nome, o
(Aproveito a oportunidade para salientar, também neste exemplo, o uso inteligente balão tende à forma elíptica. (Embora conheçam-se os balões retangulares — aos quais vol-
que se faz da posição, em dois lugares da prancha, sendo estes o primeiro quadro e o qua- tarei — e é sob essa forma que apresentam-se habitualmente os recordatórios.) Mantém-se
dro central. No ângulo superior esquerdo, a entrada de N'Doula no apartamento de Mary o fato de que, como veremos a seguir, o entorno desse "saco de palavras" exerce, perante
coincide com sua entrada — e a do leitor — na página, a qual no álbum fica à esquerda). o repositório de seu espaço interno e em relação a seu ambiente externo, a maior parte das
Quanto ao quadro central, sua situação o predispõe a realizar a síntese entre termos que funções identificadas acima como características do requadro.
a princípio seriam contraditórios: o sofrimento e o amor, como sugere o recordatório, Assim como acontece com o quadro, há vezes em que o texto não é cercado. Re-
mas também a raça negra e a raça branca, já que nesse quadro N'Doula ostenta uma pele cebem-se as palavras dentro do espaço representativo sem que os domínios da escrita e
mestiça.) 122 No original, o autor propõe a utilização do termo phylactère para agrupar balões e recordatórios. Os filactérios são faixas com
A menos que seja realçada por processos tais como os que Teulé utiliza, deve-se legendas ou falas, geralmente texto bíblico, que acompanhavam pinturas medievais e possuíam extremidades enroladas como um
pergaminho. NT.]
salientar que a tira é de certa forma relativizada pela escolha de um layout regular. Aliás, 123 Entre os teóricos anglo-saxões, recordatório e barão são chamados respectivamente de caption e speech balloon ou, resumida-
mente, balloon. [Entre os teóricos franceses, os termos preferenciais são respectivamente récitatif e bule. — N.T.]
76 J O SISTEMA DOS QUADRINHOS
do icônico fiquem demarcados explicitamente. Claire Bretécher, Jules Feiffer ou o Fred
de Petit Cirque [O Pequeno Circo], entre outros, utilizaram-nos dessa forma. Jan Baetens
comentou devidamente que, nessÊcaso, a escrita localiza-se "sobre uma zona dessemanti-
zada da imagem: na falta de bali:ie.§ ou recordatórios devidamente enquadrados, a informa-
ção verbal emerge em uma posição onde a imagem parece vazia. Não há, assim, conflito
quanto à precedência. (...) Não há contestação da cisão típica do gênero entre escrita e
imagem." 24
Existe uma hierarquia natural entre o quadro e o balão, a qual parte do princípio
que, se a existência do segundo condiciona a do primeiro, a recíproca não é verdadeira.
Grande número de quadros (proporção varíavel, conforme o autor) não traz balão algum.
Por outro lado, jamais acontece de o balão apresentar-se sozinho, dado que ele é uma
emissão supostamente sonora e que toda emissão pressupõe uma fonte, ou seja, um lugar
de origem. Esse lugar é o quadro, o espaço que contém tal emissão. Essa regra vale inde-
pendente da natureza exata da fonte: seja o emissor representado ou invisível, ele é sempre
situável em relação à diegese da qual se representa ou já se representou um fragmento.
Não se pode postular o balão sem postular correlativamente o quadro. Esta afirma-
ção significa que: um balão que, dentro do hiper-requadro, ocupe uma posição que ficou
vazia e não requadrada, ou seja, um balão que apareça isolado dentro de uma zona em
branco, seria o bastante para provar que ali existe perfeitamente um quadro, e que apesar
das aparências o discurso da prancha não ficou "furado" nesse espaço. Por quê? Porque o
balão em si é simultaneamente informação (como contorno investido de uma função sim-
bólica) e portador de informações (as palavras e elementos gráficos que ele contém); neste
sentido, ele se identifica com o próprio quadro.
O caso que acabo de descrever é relativamente raro. Por outro lado, é frequente
que um recordatório ocupe sozinho um requadro. Essa prática, recorrente entre autores
tão distantes quanto Gotlib e Murioz, demonstra que o quadro não é necessariamente de
natureza mista, já que se alguns deles comportam desenho e nenhum texto, outros trazem
apenas texto.
Na hierarquia dos espaços, o balão 'está subordinado ao quadro pelo motivo de que
o quadro pode fazer o papel de balão e porque o balão implica necessariamente um quadro.
Mas esta subordinação leva a um segundo aspecto: no quadro, o balão, conta como uma
parcela, não se constitui como um todo; é apenas um subconjunto fechado, sendo o espaço
restante dedicado, a princípio, ao desenho.
124 "Quand la bando dessinée l'écrit" ["Quando a HQ se escreve], MI/IS (Mots/lmages/Sons), Colóquio internacional de Rouen, 14
a 17 de março de 1989, Collège intemational de philosophie / Centre international de recherches en esthétique musicale, p. 173.
THIERRY GROENSTEEN 77
Nesse grau de generalidade — ou seja, não considerando nem o que o desenho
representa nem o que diz o balão — já podemos distinguir quatro níveis na relação que
se estabelece entre o balão e o quadro que o recebe, entre a parte e o todo. De início,
pode-se pensar em termos de profundidade. Trata-se também de uma relação que opõe
duas formas,. a seguir, é uma relação entre duas superfícies, que também podemos tratar
como relação de proporções; por último, considera-se o posicionamento do balão dentro
do quadrou'.
Vamos tratar desses quatro níveis sucessivamente. Ao longo dessa investigação,
progressivamente será necessário mudar de coordenadas e considerar o balão não apenas
na relação com o requadro de seu quadro, mas também dentro do hiper-requadro da pran-
cha. Não nos interessará mais o balão isolado, mas sim a totalidade de balões interna à
prancha; descobriremos que, ao ocuparem posições relativas, eles compõem uma rede na
qual a configuração geral é fator determinante do protocolo de leitura.
A noção de "relação de profundidade" entre balão e quadro tem duplo sentido. Ela
designa de início uma oposição entre a "zona de texto" e a "zona de imagem". A imagem,
de fato, na medida em que se apoia no código perspectivo e prático na sobreposição de
planos, cria a ilusão de tridimensionalidade. O texto, por outro lado, livre de sua transcen-
dência mimética, respeita e confirma a materialidade bidimensional de sua superfície de
inscrição. Vê-se que o quadro fica dividido em duas zonas, uma que reivindica a represen-
tação planificada e outra que a trai ao produzir a ilusão de profundidade. Neste sentido, é
legítimo afirmar que a coabitação do desenho e do balão gera uma tensão, já que o espaço
tridimensional construído pelo desenhista é contradito pela presença, no próprio desenho,
dessa peça conectada e estranha à ilusão representativa.
O quadrinho de humor, como sabemos, brinca constantemente com esses procedi-
mentos dentro de uma função reflexiva que se baseia no intercâmbio entre a superfície de
inscrição e o espaço diegético, a dimensão plástica (material) e a dimensão icônica (ideal)
do desenho estando manifestas juntas ou uma à frente da outra, mas sempre de forma con-
traditória. Ao fazer essa brincadiera, o humor explora, amplia e explicita uma tensão que
já existe na obra a partir do momento em que ela utiliza balões.
Quando a história em quadrinhos é colorida, os balões destacam-se ainda mais por
aparecerem em branco (se bem que, de Jacobs a Sienkiewicz, alguns autores os façam co-
125 Já na Idade Média a forma e posição dos filactérios dentro da imagem indicava sua significação, sobretudo quando os filactérios
ficavam em branco (sem qualquer descrição verbal), Se apresentados por um personagem imponente, eles conotavam a posse da
verdade e da sabedoria; se apareciam em forma de coluna, representavam a doutrina; se em mãos, seu sentido variava conforme
fossem ascendentes ou descendentes etc. Cf. François Garnier, Le Langage de l'image au Moyen Age, IL. Grammaire dos gostes,
Paris, Le Léopard dor, 1989.
78 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
loridos). A brancura do balão, que é a mesma do suporte, marca sua indiferença em relação
às convenções ilusórias que regem a imagem.
Essa relação de profunditrade é, simultaneamente, de ordem um pouco distinta.
O balão, como observou sobretudo Pierre Fresnault-Deruelle, "é a presença branca que
neutraliza a ambientação" 26. De fato, o balão, caso se queira que ele seja discreto (princi-
palmente quando se estabelece o que Jan Baetens chama de "zona dessemantizada"), sub-
trai da nossa visão uma parcela da imagem - meSmo que seja uma parcela supostamente
vazia (tal como um céu sem nuvens numa HQ em preto e branco).
Não importa se o desenhista preencheu ou não essa parcela da prancha no momento
de composição da imagem. Quando o balão é adicionado (ou introduzido) a uma imagem
já construída, o desenhista suprime efetivamente - apagando ou fazendo uma colagem -
urna parcela do representado. Se, por outro lado, o balão é traçado desde o início e levado
em conta desde a concepção inicial do quadro, pode acontecer de o lápis "transbordar"
provisoriamente sobre esse posicionamento reservado ao texto, seja porque o desenhista
precisa esboçar todas as parcelas de um desenho para testar sua composição, seja porque
simplesmente seu gesto o leva a tanto. Mas quando a "zona de texto" não abriga, em mo-
mento algum, nem o mínimo início de desenho, ela não é menos que o balão, dado que é
cercada pela imagem e sempre produzirá um efeito de dissimulação. E é esse efeito que
nos importa, independente de como tenha sido a gênese do quadro' 27 .
Na verdade, o efeito de dissimulação é consequência direta da tensão entre bi e tri-
dimensionalidade mencionada acima. Erwin Panofsky, desde as primeiras páginas de seu
famoso ensaio sobre A Perspectiva como forma simbólica, dá os meios para compreender
a articulação entre os dois fenômenos que nos interessam, ou melhor, a compreender que
se trata de dois aspectos de um mesmo fenômeno, quando escreve:
A nosso ver, a perspectiva, no sentido pregnante do termo, corresponde
à capacidade de representar diversos objetos dentro da parcela de espaço na
qual eles se encontram, de tal maneira que a noção de suporte material da
pintura encontre-se completamente dirigida pela noção de plano transparente,
126 'te fantasme de Ia parole", op. cit., p, 55,
127 Há ocasiões em que os balões ficam levemente sobrepostos, seja para indicar uma ordem nas falas, materializar um intercâmbio
verbal veloz ou para sugerir um tumulto que deixa as mensagens ilegíveis. Nestes casos, parece que a "zona de texto" perde parte de
seu achatamento, Mas essas pequenas infrações à regra acontecem dentro de códigos semióticos próprios à história em quadrinhos,
não às regras gerais de representação que, como veremos, estão envolvidas nesta discussão. A ocorrência mais frequente á a do
personagem colocar-se em frente ao balão e encobri-lo em parte, como se seu discurso servisse de fundo à figura desenhada. Essa
usurpação não produz efeito algum de dissimulação, dado que o leitor sabe, por convenção, que o texto contornará ou enquadrará
o personagem sem nada ceder a este em termos de conteúdo.
THIERRY GROENSTEEN 79
de forma que acreditemos que nosso olhar passe e mergulhe em um espaço
externo imaginário que conterá todos esses objetos em aparente fila e que estes
não são limitados, mas simplesmente recortados pelas bordas do quadro.128
Se o requadro, ao recortar este "espaço exterior imaginário" ao qual o desenho nos
dá acesso, permite ao leitor postular mentalmente um fora de tela, ou seja, um prolonga-
mento desse espaço além dos limites determinados pelo requadro, o leitor está, a fortiori,
convidado a postular o que me permitirei chamar de "fora de vista" atrás da zona enco-
berta pelo balão. Virtualmente ilimitado, o espaço exterior imaginário não poderá conter
o vazio. O balão não designa uma cavidade natural do espaço representado; ele inscreve
uma zona de opacidade interna ao "plano transparente" no qual identificamos o quadro.
(Por falar em pintura, Hubert Damisch suscita com eloquência "a relação unívoca que faz
a figura, em seu contorno, querer destacar-se do fundo ou, melhor dizendo, que o fundo
literalmente se apague sob as figuras".) 129
Este modo de apreensão do quadro constrói-se sobre a fé na perspectiva e outros có-
digos analógicos que, ao fazer a imagem à semelhança do real, convidam-nos a percorrer
o que Panofsky chama de espaço imaginário - e que não é outra coisa, em se tratando de
um gênero narrativo, que o que se convencionou chamar de universo diegético. Porque se
a imagem for entendida não em relação a sua referência, mas dentro de sua estrita materia-
lidade como conjunto de traços ou de signos inscritos sobre um plano de suporte, a solução
de continuidade entre o desenho e o balão refletir-se-ia em nada mais que a natureza dos
signos (analógicos aqui, digitais lá) e não haveria lugar para sugerir que esses signos dis-
simulam ou encobrem os outros.
Da maneira como se dá nossa percepção da imagem figurativa - uma ilusão con-
sensual - o balão produz, como dissemos, um efeito de dissimulação. Temos tendência
espontânea a formular esse efeito em termos de recuperação, como se o balão se sobre-
pusesse efetivamente, como uma cobertura (ou aquelas bolinhas que às vezes cobrem as
zonas mais explicitas de imagens pornográficas), em uma imagem anteriormente completa
e homogênea. O vocabulário utilizado há pouco, quando propus o fora de vista como o
"atrás da zona encoberta pelo balão", reflete esta propensão.
(Notemos que, de uma perspectiva absolutista, o balão também poderia ser visto
como um buraco, um recesso onde encontraríamos o plano de apoio, situado "sob" o plano
128 La Perspective comme forme symbolique, Paris, Minuit, "Le Sens commun", 1975, g. 39. Traduzido do alemão sob orientação
de Guy Ballangé. [Edição portuguesa: A perspectiva como forma simbólica. Porto: Edições 70, 1999.]
129 Fenêtre Mune cadmium, op. cit., p. 296.
80 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
da imagem. Como se o quadro estivesse colado sobre a página e o balão fosse um recorte
sobre o quadro. Esta versão é tão coerente quanto a primeira, mas não se conforma à nossa
percepção da imagem como algo $"ne se abre a um espaço tridimensional. Podemos perfu-
rar um plano ou escavar um sólideS; como esvaziar, dentro de um dado perímetro, um espa-
ço dotado de profundidade, ainda mais de uma profundidade a priori ilimitada— quaisquer
que sejam os elementos que limitam a visão que esse espaço oferece?)
Apesar de ser conveniente utilizar metáforas emprestadas do léxico da terraplena-
gem, não há por que representar o balão e o desenho em dois planos distintos. São áreas que
mantêm relações espaciais de contiguidade ou inclusão em ambos os lados de uma divisória
traça& (o contorno do balão) que compartilham de uma mesma superfície, a do quadro. A
zona de imagem e a zona de texto são como duas peças complementares de um quebra-cabe-
ça. O espaço dedicado ao texto é um espaço retirado do desenho, mas situado sobre o mesmo
plano. Pode-se igualmente considerar este enclave que é o balão (especialmente quando ele
não toca nenhuma das bordas externas do quadro) como o "requadro interno" da imagem, ou
seja, a forma que, em seu próprio seio, designa-lhe uma fronteira e delimita a extensão de sua
visiblidade. A imagem HQ tem a particularidade de estar condicionada por duas frentes: por
seu requadro externo, que a separa do fora de quadro, e por seu requadro interno, que blo-
queia seu fora de vista. Essa ideia de requadro interno justifica ainda mais, como mostrarei a
seguir, as seis funções do requadro que identifiquei e que são exercidas quase identicamente
pelo balão — considerado como traçado de um espaço específico.
Como já mencionei, balão e quadro mantêm entre si relações de forma e de dimen-
são. Reduzido somente a seu traçado, de início o balão é uma forma que se destaca dentro
de uma outra forma, a que impõe ao quadro seu requadro. Entre essas duas formas pode
existir uma relação de homo ou heteromorfismo; sejam elas parecidas, seja que elas pro-
duzam um efeito de contraste, de dissonância. Pensemos, dado que é a norma, um quadro
retangular ou quadrado. Em relação a essa norma, já podemos distinguir duas grandes
famílias de balões: aquelas em que o traçado é igualmente quadrangular, e a de todos os
outros, de traço elíptico ou extravagante. Critérios mais precisos poderiam afinar essa
dicotomia e levar a uma tipologia complexa. Poderíamos abrir exceção para os balões "en-
talhados" de Hergé, à forma das flechas ou apêndices que apontam para o interlocutor etc.
Isso acabaria por entrar na análise da escrita própria a diferentes artistas e a linha divisória
continuaria imprecisa.
O balão de ângulos retos manifesta suas diferenças ao menos em duas qualidades
próprias: economiza espaço e é mais discreto que os balões de corpo variado. O ganho de
THIERRY GROENSTEEN I 81
espaço se dá principalmente devido ao fato de que o contorno pode encerrar mais de perto
o corpo do texto. (Um balão oval, por outro lado, geralmente apresenta espaços brancos,
protuberâncias de um lado ou outro do texto; ele provê-se uma "margem" interna).
A economia de espaço que há no balão de ângulos retos também se deve ao fato
de que ele calibra-se, quase automaticamente, conforme a própria largura do quadro. Essa
conformação é observada, por exemplo, em Hergé e François Bourgeon. Quando o quadro
se amplia, o balão (salvo, é claro, quando ele abriga poucas palavras ou uma simples inter-
jeição) dilata-se nas mesmas proporções e continua a ocupar toda a largura disponível. Os
balões elípticos, por sua vez, tendem a conservar proporções quase constantes, o que leva
muitos quadrinistas a descentralizá-los em relação ao requadro ou a agrupá-los de alguma
forma. Assim, o balão de ângulos retos tem seu valor porque frequentemente ocupa os
dois cantos superiores do quadro, que são zonas de menor rendimento para a composição
da imagem. (Em Bourgeon, quando o texto é abundante, chega a acontecer de os balões
saírem do quadro para reunir-se, lado a lado, no espaço intericônico. Para esse autor, cujas
pranchas de até quinze quadros não são raras, o espaço deve ser utilizado da maneira mais
econômica e racional; é a condição para uma decupagem densa).
Pelo mesmo motivo, os balões quadrangulares que ocupam a parte superior do qua-
dro são relativamente discretos: eles dão um ar homogêneo e regular ao desenho. O texto
projeta-se sobre a imagem, mas não a invade; o ícone não parece ser furado por esse corpo
estranho.
Edgar P. Jacobs, autor que tinha tendência a ser "tagarela", não poderia usar balões
elípticos. Uma história em quadrinhos de aventura não pode acomodar tal quantidade de
texto se não sob a condição de optar por um sistema de balões mais discreto e de menor
superfície, ou seja, o mais sóbrio possível. Em se tratando particularmente de Jacobs, essa
sobriedade ainda encontra-se adequada ao rigor e ao espírito de seriedade que impregna
suas narrativas de pretexto científico. O problema leva a soluções radicalmente distintas
para um desenhista de humor como Edika. A prolixidade verbal traduz-se aqui em uma
proliferação de balões de traçado irregular. Essas cadeias de balões que cercam a perso-
nagem, que por vezes até obrigam-na a se contorcer, participam nesse caso de um estilo
exuberante e da comicidade exagerada.
Vemos, portanto, que, embora o balão de ângulos retos realmente possua certas
virtudes, ele não é intrinsecamente "melhor" que os outros. Para avaliar a relevância da
opção que se escolhe, é necessário fazer referência à estratégia estética global do autor,
que supõe congruência entre elementos de natureza diversa. Atendo-me apenas aos para-
82 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
metros formais (embora tenhamos visto que o tema e o tom têm igual importância): qual
concepção rege o layout? O texto é raro ou abundante? É uma prancha colorida ou em
preto e branco? No primeiro caso s o balão será branco ou colorido? Que aspecto terá o
traço que o contorna? (Em Bauddin, por exemplo, o contorno do balão e o requadro do
quadro aproveitam o mesmo traço irregular, rugoso e sensual que o desenho em si, o que
acaba tendo o efeito de iconicizar estes elementos do código.) Por fim, que forma tem a
caligrafia? Em que alfabeto será feito o letreiramento? 1" São diversos os elementos que só
se podem avaliar dentro de suas determinações e condicionamento recíprocos.
Nada impede a utilização conjunta de vários tipos de balões de forma a jogar com
suas diferenças. As oposições de forma traduzirão as oposições de estatuto; remeterão a
instâncias enunciativas ou "vozes" distintas. Entre muitos desenhistas (por exemplo: Tar-
di, Mufloz e Giraud), conformes ao uso majoritário, o retângulo é reservado aos cartuchos
de recordatórios e denota a intervenção do narrador. Para os diálogos, por outro lado, o
balão é ou oval (em Mufioz e Giraud), ou de traçado extravagante (em Tardi).
Essas discriminações formais são postas à prova em alguns desenhistas anglo-sa-
xões, estando em destaque Bill Sienkiewicz em seu Stray Toasters (Epic Comics, 1988),
por exemplo, na qual as vozes são identificadas não apenas pelo formato dos balões, mas
também por um código de cores. Assim, quatro ou cinco vozes podem entrecruzar-se e
ainda assim serem identificáveis, sendo cada uma caracterizada por uma cor. Em produ-
ção anterior do mesmo Sienkiewicz, O Sombra (DC, 1987), os balões pronunciados pelo
herói valem-se de um traço distinto, sendo o contorno negro reforçado por uma espécie
de sombra rubra à esquerda. Por outro lado, em Big Numbers (Mad Love, 1990), não só
todos os balões são brancos e traçados de maneira idêntica, mas sua forma é totalmente
uniformizada: todos inscrevem-se dentro de um círculo perfeito (por vezes amputado pelo
requadro). Cria-se um jogo formal entre a série de quadros — retângulos idênticos, doze por
página — e a série de círculos que só varia em número e diâmetro. Mas o mesmo roteirista
de Big Numbers, Alan Moore, optara em Watchmen (DC, 1986) por uma codificação que
singularizava os balões proferidos pela personagem Dr. Manhattan, assim como nos recor-
datórios atribuídos a Rorschach ou a Max Shea.
130 A respeito das qualidades do letreiramento na história em quadrinhos, ler Bruno Lecigne, "L'esprit de la lettre" [O espirito da
letra], Les Cahiers de/a bande dessinée n. 64, Grenoble-Bruxelas, Glénat, julho-agosto de 1986, p. 87-89. O autor constata: "Não
pensamos em ver ou avaliar o letreiramento conforme criterios plásticos, dado que seus componentes estéticos e até mesmo orna-
mentais devem ser mínimos para não prejudicar a função de legibilidade. Seria necessário, portanto, fundar uma iconologia da letra
nos quadrinhos. Quem sabe também uma grafologia." E ele esclarece: "Apesar do código (grosso modo: a simulação tipográfica), a
maior parte das letras é 'assinada' e de certo é bela."
THIERRY GROENSTEEN 83
Partem da mesma lógica de discriminação os contornos serrilhados tradicionalmente
reservados a vozes saídas de um dispositivo (rádio, televisão, telefone...) e apêndices espe-
ciais (uma sequência de bolinhas) igualmente denotam, segundo a tradição, a "voz interna"
do pensamento. Todos esses recursos têm como único fim garantir a inteligibilidade da si-
tuação de enunciação, ou seja, deixar que o leitor saiba o que se exprime e por qual canal.
Nesse discorrer sobre o formato do balão já fiz algumas alusões a suas dimensões
em relação às do quadro. Não creio que tenha muito mais a dizer, em termos gerais, quanto
à relação quantitativa que se estabelece entre a parte do texto e a da imagem. Essa relação
varia, é claro, em proporções consideráveis, quando se trata de "apenas imagens" (nas
HQs mudas) a uma combinação na qual o texto ocupará a maior parte da superfície. A
hipótese de uma história em quadrinhos que seja composta apenas por texto, embora fira o
senso comum, já foi experimentada mais de uma vez. Vê-se em Bosc, Olivier Ka (na Flui-
de glacial), Topor (na Strip), Jim e Gaston (em um álbum da Vents d'Ouest intitulado On
éteint la lumière... on se dit tout [Ao apagar das luzes... diz-se tudo]) ou ainda por Lewis
Trondheim no contexto do Oubapo.
Se há utilidade na medida precisa da massa de texto, seria acima de tudo para
realizar a análise de conteúdo. Não se trata de comparar a superfície total da "zona de
texto" com a "zona de imagem", mas sim de fazer uma comparação entre vários trechos
de textos para estabelecer a importância respectiva das vozes. Basta-me aqui relatar o
estudo empreendido por Alain Chante a partir do álbum de Jacques Martin La grande
menace (A grande ameaça, Lombard/Dargaud, 1954). Ele propôs-se a determinar através
de que meios a HQ representava a noção de poder. O autor propunha-se a "determinar as
características do que é superior, tanto dentro de hierarquias profissionais quanto dentro
do conjunto da sociedade que é apresentada" 31 . Entre os atributos que distinguem o que
é superior figuram, segundo ele, os trajes, o direito de se dirigir informalmente a outros,
a utilização do imperativo, o direito à raiva e o direito à iniciativa. Porém, Alain Chante
chegou à conclusão de que "a fala parece ser o elemento mais pertinente a se estudar de
maneira quantitativa". Assim, ele contou o número de balões que emite cada personagem
no álbum e suas superfícies totais. Essa superfície a seguir é comparada ao número de
quadro nos quais aparece a personagem. O coeficiente que advém daí definiu o que Alain
Chante batiza de "potencial de fala de que dispõe cada personagem, sua propensão a tomar
a fala". Esse gênero de pesquisa pode interessar a sociólogos, a historiadores e, sob outro
131 "L'expression du pouvoir dans 'La grande menace': essai d'étude quantitativa" [A expressão do poder em 'A grande ameaça':
um estudo quantitativo], A Ia rencontre de Jacques Martin (coletivo), Marseille, Bédésup, 1985, p. 53-71.
84 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
ângulo, a narratologistas. Embora seja de objetivos estranhos às observações que faço
aqui, o trabalho não traz poucos recursos às observações de ordem espaçotópicas, confir-
mando a importância fiindamentalla distribuição dos espaços na história em quadrinhos.
O último parâmetro do qual'resta falar de forma alguma seria menos relevante, pois
refere-se ao posicionamento do balão. Longe de ser indiferente, a posição que o balão
ocupa é sempre relativa a três elementos: a personagem que fala (o locutor), o requadro
do quadro e, por fim, os balões vizinhos (estejam eles situados no mesmo quadro ou nos
quadros contíguos) 132 .
Não existe balão que não se refira, e que não se possa atribuir, a um falante co-
nhecido ou pressuposto. A relação entre locutor e enunciado proferido é tão forte que
se pode falar até de um binômio funcional. Essa estrutura bipolar é um dos esquemas
fecundos que organizam a leitura da história em quadrinhos. Isto se dá porque nossa
percepção da cena representada e, em particular, nosso conhecimento do diálogo, não
mudam conforme o lugar que ocupa o balão, seja ele abaixo, à esquerda, à direita ou
acima do locutor. (A escolha dessa posição efetua-se mais precisamente a partir do rosto
do locutor, que é o próprio local da enunciação, e a expressão fisionômica constitui a
instância principal de interpretação — nos dois sentidos do termo, teatral e hermenêu-
tico.) No binômio balão-personagem, efetivamente é a personagem que se percebe em
primeiro lugar. Como elemento desenhado e como elemento geralmente privilegiado na
composição da página, sua percepção é quase instantânea; a presença da personagem é
a informação saliente que o leitor registra no instante em que sua atenção recai sobre o
quadro. Mesmo que ela não se saiba vista, a personagem é vista de primeira. (Este, como
veremos mais à frente, é um dos principais objetivos do desenho narrativo). O texto, que
exige a decifração linear, portanto progressiva, só é lido em segundo lugar. Essa ordem
lembra um automatismo perceptivo e é em grande parte independente de posições res-
pectivas do balão e do locutor.
Entenda-se que isto não exclui a ideia de que o texto pode suscitar, após a leitura
inicial, um segundo olhar da personagem. Trata-se aí de um olhar informado, que não se faz
mais à procura de uma presença, mas sim pOr uma percepção mais detalhada das suas partes
constituintes e dos atributos da personagem. Em muitos casos, aliás, o texto ajuda a reduzir
a polissemia intrínseca a um gesto, uma atitude, uma expressão. Em outros termos, se a per-
sonagem interpreta o texto, é igualmente válido dizer que o texto, por sua vez, interpreta a
132 Precisamos verificar, a respeito do balão, uma lei mais geral: que o parâmetro tópico não se aplica somente ao quadro, mas
igualmente às unidades de nivel inferior; da mesma forma, que este possa acrescentar-se a qualquer outro parâmetro e torná-lo
especifico.
THIERRY GROENSTEEN 85
personagem. Entre os dois termos do binômio realiza-se um ajuste recíproco, uma filtragem
de diversas leituras possíveis. Esse vai e vem é essencial à produção de sentido.
Se a direção que o balão indica em relação à personagem é pouco significativa, o fato
de ela estar perto dele ou relativamente prolongada é mais importante. Em regra geral, os
desenhistas esforçam-se para situar o balão à proximidade imediata do locutor, dando assim
preferência à determinação mútua que descrevi. Quando um balão é colocado à distância
do locutor (o que supõe um quadro provido de devidas altura e largura) e dado que essa
distância vai contra a tendência natural, pode-se supor que isso acontece no contexto de
uma intenção particular, na busca de um determinado efeito. Além do efeito específico que
é produzido (que será, por exemplo, da ordem do entrelaçamento), observa-se comumente
em tais casos que a distância notável entre o balão e o locutor dá a impressão de que se inter-
pôs um silêncio. Como se o balão não trouxesse mais que o eco de uma fala já dita, e que a
personagem já retomou o silêncio. A partir dessa impressão (estou baseando-me aqui apenas
na minha experiência pessoal como leitor), pode-se inferir que a imagem ordinariamente
converte a simultaneidade de tempo em proximidade de espaço. Quando essa proximidade
é respeitada, aliás, há um tempo particular que é dado ao binômio balão-personagem, dado
que, se diversos locutores coabitam o mesmo quadro e respondem um a outro, as tomadas de
fala não podem ser sincrônicas, e cada um vive "a hora de seu balão".
Por vezes, a personagem é invisível, está fora de cena ou, ocultada por um elemento
que faz as vezes de tela (um muro, vegetação, a bruma etc.), fora da vista. Por vezes ela é
visível, mas distante demais para se reconhecer seus traços — "afogado" numa multidão,
por exemplo. O balão é assim índice de sua presença, e seu apêndice, que aponta para ela
tal como uma flecha, exerce uma forte função sinalizadora. O balão pode ter como única
razão de ser aproximar o olhar e manifestar, por ricochete, a presença da personagem den-
tro do requadro. Introduzido no quadro apenas com esse fim, ele existe ainda como espaço
simbólico — signo codificado — do que como receptáculo de um conteúdo verbal que, nesse
caso, é meramente acessório; o balão é seu próprio significado.
O texto escrito nos diálogos de HQ não é carregado, colorido nem encarnado por
voz identificável. Para descobrir a identidade do falante, faz-se necessário que — confor-
me os exemplos citados acima — o balão distingua-se por uma cor ou traçado particular,
reservado somente a determinada personagem, ou que esta faça tal uso da língua que seu
"idioleto" garanta a identificação apenas com ela. Ao menos, é claro, que o contexto seja
suficiente: uma réplica em situação de um diálogo já iniciado não representa, em princípio,
problema de atribuição, mesmo que o locutor esteja provisoriamente invisível.
86 I O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Em segundo lugar, a posição do balão deve ser avaliada em relação ao requadro que
o hospeda. Sejamos mais precisos: em relação ao espaço que esse requadro desenha, mas
também em relação ao requadro el si, a sua materialidade gráfica. É esse segundo aspecto
que me restringe aqui, pois, inicialmente, não se pode falar de um caso a caso, consideran-
do o balão como elemento que entra na composição global deste ícone particular.
Em relação ao requadro propriamente dito, ele admite um total de quatro disposi-
ções distintas do balão:
1 I O balão é descolado do requadro e seus respectivos traços não se encontram em
momento algum. É o sistema que adotou Hergé durante a Segunda Guerra Mundial, e que
estendeu a seus primeiros livros como O Tesouro de Rackharn, o Terrível, por resultado
das revisões que se impuseram a eles para a publicação em coresi". É apenas, repito, nessa
disposição em que o balão está encravado no ícone, que ele realmente tem o lugar de "re-
quadro interno". O efeito de dissimulação que se conecta ao balão aqui cumpre todo seu
jogo, sendo que as três outras disposições produzem apenas versão mais fraca desse efeito.
2 / O balão é colado no requadro, encostado em uma parede do quadro. Na maioria
desses casos, ele fica pendurado no "teto" do quadro (mesmo que por vezes nós o encon-
tremos colado também a um dos outros lados). O resultado disso, como sinalizei acima, é
que se acentua a separação entre quadros que se situam um acima do outro. A massa branca
do balão amplia o vazio do espaço intericônico. Esse efeito evidentemente se reforça quan-
do todos os quadros de uma mesma tira situam os balões no topo e em sua largura total.
3 / O balão encosta-se no requadro, mas fica aberto: o contorno do requadro é inter-
rompido em sua largura pela zona de contato. Tudo se passa como se o vazio intericônico
houvesse crescido, formando protuberâncias dentro do quadro, onde o texto virá a tomar
seu lugar. Este disposição é habitual entre desenhistas como Andreas ou Rosinski. Estando
o texto alinhado sobre o próprio requadro, não há dúvida de que as letras que o compõem
tendem a alongar-se para formar, em linha tracejada, a parte faltante do contorno. Em certo
grau, o olho do leitor imaginará um requadro completo, pois duas das funções do requadro,
a de fechamento e a de separação, lhe serão de auxílio precioso para leitura da prancha.
Resta que, se o uso dessa disposição talvez possa contribuir para "animar" a prancha, ela
133 Apenas A Estrela misteriosa e O Segredo do Licome, em todas as edições até o momento, preservaram os balões colados ao
requadro. Publicados originalmente em cores (em 1942 e 1944), esses álbuns só foram submetidos a retoques pontuais nas reedições.
Ressalto essa questão histórica, por menor que seja, porque parece que ela foge aos exegetas mais capciosos da saga tintiniana. Benott
Peeters, nas páginas de Monde d'Hergé (Casterman, 1983) que reserva às "metamorfoses dos álbuns", não faz alusão alguma ao fato
de os balões terem sido redesenhados. E Frédéric Soumois se mantém igualmente silencioso em relação a esse assunto em Dossier
Tintin (Jacques Antoine, 1987), ao dizer, por exemplo, que, na modernização de O Lótus Azul em 1946, "os requadros originais foram
essencialmente apenas copiados por cima, decorados com ornamentos suplementares (...) e coloridos" (p. 91).
THIERRY GROENSTEEN 87
náo favorece a captura do leitor; esse imergir no espaço imaginário de que Panofsky fala
não se realiza de forma melhor do que num requadro de formas regulares que "inspira" e
faz-se esquecer como requadro. Ao perfurar a circunferência do quadro, um balão aberto
indica uma saída, e a forma irregular que ele empresta ao requadro pode atrair para si uma
atenção que vai ser tirada do objeto principal.
4 / O balão pode por fim transbordar do requadro, seja usurpando a margem, seja
sobrepondo-se parcialmente a um ou mais quadros. Encontra-se esse arranjo nas aventuras
de Blueberry desenhadas por Jean Giraud e no trabalho do argentino Horacio Altuna -
sendo este numa versão que falarei mais à frente. O balão, assim, muitas vezes é centrado
sobre o entrequadros (do qual ele constitui uma espécie de dilatação), por vezes situado
na intersecção de duas travas brancas perpendiculares, reduzindo os cantos de três ou
quatro balões ao mesmo tempo. Apenas a direção que indica o apêndice do balão permite
atribuí-lo a tal quadro e não a outro. Ao adotar essa disposição, o desenhista procura ma-
nifestamente desatravancar suas imagens, a tirar o máximo proveito de todas as "zonas
dessemantizadas" que a prancha oferece, deixar o maior espaço disponível ao desenho. A
composição desse tipo de página às vezes pode parecer desorganizada, sujeitando o olho
à errância. Mas a sensação de densidade na condução da narrativa e a constante tensão
dramática que ela dá, duas das qualidades principais da série Blueberry, talvez tenham re-
lação com essa proliferação levemente anárquica de balões que mantém o leitor em alerta
constante.
1.9.2. Os balões na prancha
Reproduzi na página seguinte (fig. 7) a prancha 14 do episódio Le Bout de la piste
[O fim da pista] (Novedi, 1986) de Blueberry. Nela, podem-se ver as quatro disposições
que descrevi. Observemos particularmente que, nos 29 balões que se contam na prancha
(em 12 quadros), dois ultrapassaram a margem externa, dois perpassam dois quadros e um
- o antepenúltimo - cobre simultaneamente três quadros.
Similares ao emblemático Giraud, certos autores, cuja estética poderia ser qualifi-
cada como pragmática, combinam as quatro disposições dos balões em relação ao requa-
dro, optando em cada quadro por aquela que lhes parece mais apropriada; às vezes chegam
a conciliar duas, talvez três soluções distintas no mesmo requadro. Em outros, nos quais
a arte pode-se dizer mais sistemática, não usarão, seja em um álbum ou nem mesmo em
toda a carreira, mais que um modo de inserção do balão no requadro. Essa oposição, que
se pode observar também na gestão de outros parâmetros, define precisamente, ao que me
88 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 89
parece, duas "famílias" de auto- pelo traço entram assim em jogo, entre outros parâmetros, quando o objetivo é atrair ou
res, duas abordagens fundamen- gerenciar o olhar. As conexões de direção, de olhar e de posição, que pertencem à sintaxe
talmente distintas da linguagem cinematográfica, têm alguns equivalentes na história em quadrinhos, cujo estudo recai por
dos quadrinhos. excelência à artrologia. Conclui-se que a distribuição espacial dos balões, que é operação
Começamos aqui a am- específica aos quadrinhos, é um fator que tem peso preponderante no processo de leitura.
pliar nosso campo de investi- O desenhista Altuna desenvolveu um dispositivo reticular original que, de obra em
gação, já que a figura da usur- obra, admite algumas variações. Suas características fixas são duas, que se observam aqui
pação recobre vários quadros e na prancha 29 do álbum Imaginaire [Imaginário] (Dargaud, 1988, cf. fig. 8). A primeira
o que nos leva a pensá-los em delas diz respeito à forma dos balões que, como em Big Numbers, invariavelmente são
conjuntos. Essa ampliação é in- circulares. A segunda tem a ver com seu posicionamento, quase sempre na periferia do
dispensável quando se pretende quadro e o mais próximo possível do eixo vertical da prancha (balão algum é empurrado
analisar a posição de um balão para a borda lateral do hiper-requadro; são, isto sim, puxados para o centro). A maioria
em relação aos que o antecedem dos balões (no exemplo abaixo, 19 de um total de 29) respeita, em relação ao requadro, o
e sucedem. A questão é crucial, quarto tipo de disposição que descrevi acima. É isso que, por vezes, leva Altuna a ampliar
pelo motivo de que o balão tal- essa zona de recepção, como acontece entre os dois últimos quadros da prancha.
vez seja o único elemento do À primeira vista parece
dispositivo página sobre o qual que os balões estruturam o espa-
se pode ter certeza que o olhar ço da página. Sendo conectados
vai parar (menos quando se fo- Ag. 7 — Jean Giraud e Jean-Michel Charlier, Blueberry: ou aproximados o bastante para
Le bout de Ia piste, prancha 14, 1986. @ Ed. Dargaud.
lheia a TIQ sem ler). Ele é uma ân- ter-se a impressão de uma cadeia
cora, uma passagem obrigatória. Assim, a leitura pode ser direcionada em certo sentido, quase ininterrupta, eles vetorizam
conduzida pela rede que conecta as posições ocupadas pelos sucessivos balões. a leitura. A posição do balão não
Já fizemos este comentário: inserir um enunciado verbal num quadro (sobretudo se deve em primeira instância à
um balão — mas o mesmo vale para representações de cartazes, livros, grafite etc.) serve posição do locutor, mas sim à sua
para reter um instante de atenção do leitor dentro do requadro que, sem esse enunciado, possibilidade de inserção dentro
eventualmente ficaria exposto ao risco de ser ignorado ou perder-se de vista. da estrutura agregativa (molecu-
Dois balões contíguos, um de cada lado de um vazio intericônico, criam uma espé- lar) que representa a totalidade
cie de ponte natural entre os dois quadros contíguos. Se os balões são apartados, podemos de balões. Veja particularmente o
prever que o olhar pelo menos passará porcima da zona de imagem entre eles. É evidente balão situado bem abaixo do eixo
que se pode fazer milhares de desvios entre um balão e outro; as posições dos balões in- central da prancha ("Willie doit te
dicam menos um caminho a seguir e mais etapas a se respeitar, entre as, quais todo leitor faire une bonne blague, n'est-ce
tem a liberdade de vagar a seu bel-prazer, seguindo o que lhe solicitam outros estímulos. pas, dis?..."), no qual foi neces-
As tensões que dinamizam a imagem, a organização das partes que a constituem, as sário prolongar o apêndice exa-
relações de cor e valor que se estabelecem entre os elementos, os movimentos sugeridos Fig. 8 — Horacio Altuna, Imaginaire, prancha 29, geradamente para que se pudesse
1988. @ H. Muna
90 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
identificar o enunciador. Transpor esse balão para a esquerda ocasionaria redirecionar o
olhar do leitor, enquanto que o encadeamento de balões, por outro lado, o conduziria a
"sair" da prancha.
Cabe aqui retomar, uma a uma, as seis funções do requadro definidas acima, para
anlisar em que medida elas caracterizam a função do balão. Não se faz necessário dizer
que a função de fechamento e a função de separação aqui são muito pertinentes. O con-
torno do balão delimita uma zona homógena, uma forma destacada do fundo e, quando se
justapõem ou mesmo se sobrepõem balões, eles garantem a discriminação perceptiva entre
dois enunciados fisicamente próximos.
A função de ritmo envolve dois aspectos. Inicialmente, o posicionamento dos ba-
lões no espaço da página cria um ritmo que se sobrepõe à pulsação de base produzida pelo
entrecruzamento de requadros. Cada fragmento de texto que se apresenta à leitura prende
alguns instantes de atenção, introduzindo breve pausa no movimento que conduz a leitura,
e os ligeiros saltos que o olho efetua para passar de um balão a outro pontuam a marcha
do leitor.
O balão pode assim, ao multiplicar-se, dotar o texto de ritmo próprio, de respiração
própria. Duas frases que se sucedam da boca do mesmo emissor formam um enunciado
único caso ocupem o mesmo balão; mas elas se autonomizam e tornam-se enunciados
distintos se o autor assim decidir, sem mesmo mudar de requadro, situá-las em dois balões
distintos (geralmente com uma conexão entre os dois). Sem poder confiar a interpretação
de seus diálogos às vozes, a história em quadrinhos recorre pelo menos ao procedimento
elementar da réplica dividida, prática que lhe permite inscrever uma pausa no processo de
fala. Segundo o contexto de enunciação e a natureza da proposta, atribui-se uma nuance
específica ao conteúdo do segundo balão: ele corrige, completa ou reforça o que foi dito
no primeiro. Um encadeamento de balões conectados (fisicamente ou implicitamente) dá
o efeito de discurso improvisado, completado à medida que a personagem encontra as
ideias, argumentos complementares ou simplesmente as palavras que lhe convêm.
Alguns dos "novos comics " norte-americanos (tendo em destaque os escritos por
Frani( Miller) transformaram a fragmentação do diálogo em sistema. Têm-se, sobretudo,
longos monólogos, que se sucedem ou se cruzam sem realmente se responderem, carac-
terizados por uma escrita sincopada, sôfrega, decupada em fragmentos hrevissimos (um
pedaço de frase ao invés de uma frase completa) aos quais dedica-se um balão cada. O
balão, nesses casos, tende a atingir o valor de pontuação. Ele acrescenta algo à frase; ao
invés de fechar o enunciado, ele a encerra por completo.
THIERRY GROENSTEEN 91
As conotações que se associam a um texto decupado dessa maneira podem variar
de uma sequência para outra. Em comentário de seu Traité de ponctuation française [Tra-
tado de pontuação francesa] sobre o estilo caracterizado pela profusão de frases curtas e
vários pontos finais, Jacques Drillon enumera os principais efeitos que dizem respeito ao
procedimento. Cada fragmento pode ter "um caráter afirmativo, para não dizer peremp-
tório"; pode adquirir até mesmo "um poder exclamativo"; mas ém outros momentos a
sensação que se produz pode ser de indiferença, impassibilidade ou de cansaço; em outros
momentos ainda, "as frases 'afiadas' possuem efeito cômico ou sugerem agitação". Ele
também propõe o seguinte comentário, sugestivo: "Não sabemos o que veio primeiro, se
foi a brevidade das frases ou a recorrência do ponto final, pois frequentemente ignora-se o
que precede o outro, a falta de ar ou a aceleração do ritmo cardíaco." 134 Em se tratando de
comics, podemos nos perguntar se por acaso não é a escolha de um modo de ocupação do
espaço, passando pela proliferação de balões, que precede e determina a escritura.
Em relação a Altana, não há dúvida. Na prancha 29 de Imaginaire (cf. supra), certas
frases parecem ter sido cindidas apenas para que os balões se mantivessem com um diâme-
tro pré-estabelecido, ou para ocupar os balões traçados a priori. Veja por exemplo os cinco
balões, um pendurado no outro, que se atribuem à personagem Anselme no segundo quadro.
Tudo que se disse anteriormente sobre o requadro aplica-se ao balão: ele é sempre
"indicativo de algo a se ler". Mas não há muito sentido em reconhecer no balão a verdadei-
ra função de leitura, na medida em que, ao contrário da imagem que, por sua vez, parece
inócua e vazia, um enunciado verbal é identificado de primeira vista como um segmento
de informação pertinente à inteligibilidade da história, sem o qual o balão não teria motivo
para existir.
Como comentamos acima, é geralmente em relação ao ícone que o balão pode, pon-
tualmente, vir em auxílio da leitura, incitar seu decifrar. Sua virtude de leitura confunde-se
com seu poder sinalético, o poder de atrair o olho a um locutor que pouco se vê ao designar
explicitamente sua localização.
A função de estrutura também tem mais a ver com a parte externa do balão (as ima-
gens nas quais ele se inscreve) do que com seu conteúdo. Aliás, a segmentação de texto
que a altura do balão impõe não tem consequência notável. O texto ser decupado em duas,
três ou quatro linhas não afetará a compreensão da parte do leitor, tampouco a apreciação
de suas qualidades estilísticas. O balão não exerce real influência sobre a escritura do
texto, pela simples razão de ser calibrada precisamente em função do número de palavras
134 Traité dela ponctuation française, Paris, Gallimard, "Tal" n. 177, 1991, p. 131-134.
92 I O SISTEMA DOS QUADRINHOS
que compõe o enunciado. No máximo podemos aceitar que existe um limite implícito (im-
possível de se determinar precisamente) na quantidade de texto de que um balão pode ser
receptáculo, sendo que um discurso muito longo obrigatoriamente será picotado em vários
fragmentos dispersos por vários salões, que também distribuídos por diversos requadros.
Mas não é tanto o "objeto" balão que impõe esse limite; trata-se de um mecanismo de re-
gulação inerente ao sistema das histórias em quadrinhos pensadas na sua totalidade.
É evidente que o balão contribui para estruturar a composição da imagem com a
qual disputa a superfície do quadro. Seu contorno, sua dimensão e sua posição informam
o emprego de diferentes componentes do representado — quando não serve a evitar o en-
cobrimento de uma zona semanticamente pertinente. Na composição da imagem, é parti-
cularmente a disposição respectiva de personagens e balões que é pensada já de início de
forma solidária.
Guardei para o fim a função de expressão, que se revela pertinente não só para o
balão mas também para o requadro — mas que também suscitou, nos quadrinhos de humor,
uma profusão de invenções. Não tratarei aqui de todo o repertório dessa retórica, que já foi
bastante comentada, particularmente por Robert Benayoun desde 1968. Insistindo na diver-
sidade de enunciados que podem revestir um balão, Benayoun produziu uma lista empírica
de 72 ocorrências, entre as quais estão "o balão censurado", o "barão onírico", o "balão de
iluminação", o "balão-papiro", o "balão-cartaz", o "balão atômico", o "balão glacial", e o
"balão furado" 13 1 Ao trocar sua forma usual por um desses revestimentos simbólicos, o ba-
lão em si torna-se icônico, afirmando o comentário do enunciado verbal que encerra.
Convém acrescentar que a posição do balão em relação ao locutor pode, em alguns
casos, revelar-se expressiva em si. Voltamos à prancha de Bout de la piste desenhada por
Giraud (cf. supra, fig. 7): nos quadros três e quatro, aquele que é chamado de Kelly, cur-
vado sob o peso de um saco de pedras, expressa-se em balões que também parecem estar
cheios de chumbo, dado que ficam abaixo da personagem e reforçam o corpo combalido.
O diretor da penitenciária de Francisville perdeu sua altivez; o posicionamento dos balões
revela o declínio da personagem, mostrando que sua fala deixou de ser arrogante.
1.10 -A INCRUSTAÇÃO
Até o momento, o multirrequadro foi descrito como se fosse necessariamente composto
de requadros justapostos, ou seja, organizados com divisórias estanques. Contudo, o diálogo
135 Vroom tchac zowie, le ballon dans la bando dessinée, Paris, André Balland, 1968, p, 32-33. Note-se que a lista montada por
Benayoun combina diversos critérios, sendo que algumas denominações fazem referência à forma do balão e outros ao conteúdo
do enunciado.
THIERRY GROENSTEEN 93
dos quadros passa frequentemente por outras configurações, entre elas um requadro que acolhe
um ou outro(s) quadro(s) dentro de si. Esse dispositivo, que designarei aqui pelo nome incrus-
tação"6, demonstra a extrema flexibilidade que caracteriza a gestão dos espaços na história em
quadrinhos. Ele abre uma ampla gama de procedimentos nos quais a repetição de requadros,
fugindo à relativa automação da corapartimentagem tabular (ou, antecipando uma ideia que
será definida mais à frente, à lógica da quadriculação), e mais diretamente ditada pelas articu-
lações semânticas da história e participa plenamente de sua composição de cena.
Não haveria como estabelecer um catálogo completo desses procedimentos e todas
as suas variantes, dado que as estratégias narrativas e a retórica dos autores podem reno-
var-se e ser moduladas a seu bel-prazer. É possível ao menos identificar os princípios-mor
que elas aparentemente seguem. E observar, desde o início, que a incrustação por vezes
beneficia o quadro de fundo (englobante), às vezes o quadro incrustado.
Benoit Peeters definiu o quadro da história em quadrinhos como "uma imagem 'em
desequilíbrio', encaixada entre aquilo que a precede e aquilo que a segue, mas não menos
entre seu desejo de autonomia e sua inscrição na história", e concluiu que "a história em
quadrinhos repousa, a todo instante, sobre uma tensão entre a narrativa e o tabular. A his-
tória, que engloba a imagem em uma continuidade, tende a nos fazer deslizar por ela. E o
tabular que, isolado, permite que noS fixemos nela" 137.
Ao reexaminar esta alternativa sugestiva e fecunda, direi que a incrustação faz o
jogo do tabular ao mesmo tempo em que exalta o quadro de fundo, embora sirva mais
evidentemente à história quando seu propósito é a contextualização do quadro incrustado.
No primeiro caso, ela se permite ser reduzida a simples sobreposição; no segundo, ela
determina uma interação dialógica entre os dois quadros envolvidos.
Quando a incrustação está ao serviço do barão englobante, este geralmente repre-
senta uma paisagem, um espaço amplo, um "pano de fundo" onde as personagens são de
tamanho reduzido. Esse tipo de quadro frequentemente tem por função plantar a priori
a paisagem sobre a qual acontecerá a ação relatada, ou de criar um recuo a posteriori
para abstrair-se da ação, deixar os protagonistas ou concluir uma sequência. (Essas duas
funções são visíveis particularmente na trilogia Os companheiros do crepúsculo, de Fran-
çois Bourgeon, na qual vários capítulos abrem-se ou fecham-se em grandes quadros que
recebem uma ou mais incrustações.) Em tais casos, a incrustação não visa tanto construir
uma conexão entre os quadros; ela é principalmente consequência da vontade de oferecer
136 Também tratado pelo termo inglês ,nset [N.T.]
137 Case, planche, récit, op. cit, p. 20 e 34.
94 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 95
à imagem englobante a maior su- Victor Stoichita estudou durante muito tempo as cisões e as inserções de imagens
perfície possível, de forma a am- na pintura dos séculos XVI e XVII. Tratava-se sobretudo de opor um primeiro plano ao
pliar suas virtudes decorativas (no plano de fundo, na forma de uma antítese entre um "texto" sagrado (traduzido em ima-
risco de cair na estética de cardo gem) e um "fora do texto" de caráter profanom. Stoichita recorda que outros "domínios
postal). Os outros quadros assim da representação" também possuem formas de "cisão pictórica", em particular o teatro.
não possuem outro lugar possível Também nas histórias em quadrinhos a relação entre quadro englobante e quadro incrus-
se não dentro dessa imagem en- tado é muitas vezes uma relação de oposição dialética ou de contraste, por exemplo, entre
globante. Darei como exemplo a um campo e seu contracampo, o olhar de uma personagem e a cena ou local que ela con-
prancha do álbum Le Voyage en templa, um narrador integrado ao presente da ação e a representação de uma lembrança
Italie [Viagem pela Itália] (cf. Fig. (ou do sonho, de fantasia) que este relata etc. O caso mais frequente, ao que me parece, é
9), de Cosey. A vista do rochedo uma relação dialética entre a parte e o todo, que põe em relação uma visão de conjunto e
envolve dois sintagmas, cada um um elemento dessa mesma cena, apartada e ampliada. O desenhista introduz um requadro
composto por dois quadros; ela é dentro do requadro para colher um detalhe de seu "retrato", como num efeito de zoom que
posta como fator comum e inscre- aproxima o leitor do elemento pertinente (que pode ser, por exemplo, a expressão de uma
ve a prancha inteira numa lógica personagem no momento em que ela toma a palavra). De qualquer forma, muitos detalhes
"tabular", que corresponde assim à são retirados e o quadro de fundo abre espaço a diversos pequenos quadros incrustados,
disposição contemplativa das duas que parecem estar lá para soletrar os ingredientes da cena retratada.
personagens. Notaremos a tensão Fig. 9 Cosey,, Le voyage en Italie, vol. 1, prancha
-
Ressaltemos também, como outra modalidade frequente de incrustação, o estabe-
44, 1988. C) Ed. Dupuis lecimento de uma relação de simultaneidade entre dois ou mais quadros; essa relação re-
entre o instante fixo que é retratado
no quadro englobante e, nos outros presenta uma pausa no fluxo da sucessividade temporal — regime ordinário da consecução
quatro quadros, a decomposição de uma ação que se inscreve em uma longa duração de sequencial entre quadros justapostos. Para colocar em termos mais simples, a incrustação
tempo. O resultado é que essa sucessão de momentos consecutivos parece vir a se resumir traduz uma relação do tipo enquanto isso, ao passo que o vazio intericônico tradicional
no quadro de fundo, que, assim, mostra menos uma posição e mais sintetiza uma trajetória. geralmente equivale a um então'''. Na página de Cosey, podemos observar que, no caso
Notemos também, em relação a esse exemplo, que se aplicam aos fenômenos da de incrustações múltiplas, as relações temporais entre o conjunto de quadros envolvido
incrustação diversas das propriedades que encontramos e descrevemos a propósito do ba- talvez seja mais complexo. Aliás, não é raro que encontremos uma sucessão de três ou
lão. Não creio ser necessário insistir no efeito de dissimulação que o quadro incrustado quatro quadros incrustados "encimando" uma imagem de fundo; deve-se então conside-
produz, sobre a necessidade do quadro englobante acolher o quadro incrustado em uma rar separadamente a temporalidade interna desse sintagma multiquadros e sua relação no
"zona dessemantizada" e, portanto, sobre a necessidade de levar-se em conta o local do "momento" a que corresponde o quadro englobante.
quadro incrustado no momento em que sê elabora a composição da imagem englobante. O que distingue fundamentalmente o procedimento de inserção na história em qua-
Sublinhemos mesmo assim que, nessa imagem, o requadro exterior do quadro incrustado drinhos da "cisão pictórica" na pintura e no teatro é exatamente que não saberíamos re-
é simultaneamente o "requadro interno" do quadro englobante. duzi-la a uma cisão, pois o binômio quadro englobante / quadro incrustado não é vincu
A segunda grande motivação para uma incrustação é a de contextualizar um quadro
138 Victor I. Stoichita, L'Instauration du tableau, Paris, Méridiens Klincksieck, 1993. Cf, páginas 13 a 102, em especial as páginas
(ou uma série de quadros) e sublinhar o vínculo privilegiado que ele(s) estabelece(m) com 17-18.
139 É evidente que, formulada dessa maneira, esta última proposta é generalista e grosseira demais para não se encontrar diversos
outro quadro conectado semanticamente. exemplos contrários. Tratarei das devidas nuances no capítulo seguinte, dedicado à sequência.
96 1 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
lado a uma relação exclusiva, mas sim participa de um multirrequadro, ao qual continua
conectado por múltiplas determinações recíprocas. Nos quadrinhos, a incrustação nunca
é mais que um fenômeno local. Emeineio a uma multiplicidade de imagens caracterizadas
por diferentes níveis e graus de sblidariedade Unica, ela contenta-se em instaurar ou
(com mais frequência) sublinhar uma relação privilegiada entre dois termos. Essa relação,
contudo, exige ser lida e interpretada levando-se em conta tudo que, antes e depois, pode
indexá-la ou fazer-lhe eco.
Ao mesmo tempo que constrói, acompanha ou sublinha uma relação semântica en-
tre duas unidades de discurso, a incrustação apoia a artrologia e pode ser descrita como
figura auxiliar na decupagem. A incrustação, contudo, raramente é indispensável para es-
tabelecer tal relação, pois a simples contiguidade de quadros quase sempre será o bastante
para tornar a narrativa inteligível — afinal, a descontinuidade e a elipse são partes consti-
tuintes da linguagem dos quadrinhos. Em relação à decupagem, a incrustação geralmente
é da ordem do acréscimo, da inflação. Porém, na medida em que ela introduz um intervalo
marcante na ordenação espaçotópica do multirrequadro, ela também participa totalmente
do layout. É dessa relação que Philippe Druillet, sobretudo, fez forte uso.
Junto a Cosey, Derib, Hermann e Andreas, François Bourgeon é um dos autores
francófonos cujo trabalho é caracterizado pelo uso maciço e combinado de incrustações, a
princípio utilizadas a serviço da narração. Mas os layouts de Bourgeon também são carac-
terizadas pelo número geralmente elevado de quadros incluídos em cada prancha. Ele é um
dos desenhistas nos quais a tensão entre o tabular e a narrativa é resolvida com atenção ao
primeiro elemento, no sentido em que sua estética busca reconciliar a densidade "livresca"
a uma dimensão espetacular, que passa por uma renovação constante do layout e pela uti-
lização repetitiva de grandes imagens, de ambientações abundantes de detalhes. O recurso
às incrustações frequentes e múltiplas impõe-se assim como solução natural: graças a elas,
a ambientação retém suas prerrogativas (ele mantém-se confortável) sem esvaziar a his-
tória de substância. Bourgeon manifesta também grande liberdade no posicionamento do
texto, pois os balões frequentemente transb9rdam os limites do requadro ou são mesmos,
por vezes, empurrados para fora do requadro. Podemos observar isso nesse autor, que tem
consciência aguçada quanto aos recursos da espaçotopia, que quadros e balões tornam-se
igualmente espaços onde as usurpações, nidificações e outros empregos compõem um ver-
dadeiro mosaico que tira o melhor proveito de toda superfície do hiper-requadro.
À luz do que precede, pode-se questionar os limites que cabe reconhecer à analo-
gia, muitas vezes postulada (não sem qualquer fundamento) entre a incrustação, tal como
THIERRY GROENSTEEN 97
a conhece a história em quadrinhos, e a figura do inseri no cinema. Segundo Christian
Metz, o inseri define-se, na "sintagmática cinematográfica", como um "segmento autô-
nomo formado por um único plano". Os inseris "devem sua autonomia ao seu estatuto de
interpolações sintagmáticas" e dividem-se em pelo menos quatro categorias' 40. Empresto
de Roger Odin o resumo dessa tipologia:
O inseri não-diegético: plano sem relação direta com a ação mas que
possui valor simbólico (...); o inseri subjetivo: souvenirs, premonições, so-
nhos; o insert diegético deslocado: um único plano do perseguido no meio de
um grupo de planos dedicados aos perseguidores; e o insert explicativo: um
close no texto de uma carta. 141
Para que um plano singular seja autônomo, segundo Metz, é necessário que ele
"[exponha] sozinho um 'episódio' do enredo"; mas, sendo mais específico, essa autonomia
"não quer dizer independência, já que [cada segmento autônomo] só adquire seu sentido
definitivo em relação ao conjunto do filme" (p. 125) 142 .
Essa concessão me alegra; mas não estou certo de que seja necessariamente sufi-
ciente em se tratando da incrustação na história em quadrinhos. De início, porque muitas
vezes serão necessários vários quadros para produzir um enunciado equivalente ao de um
só plano cinematográfico (o equivalente de um inseri subjetivo, por exemplo). Em segun-
do, porque a autonomia do quadro incrustado é menor que a do inseri na medida em que
a imagem HQ, contrariamente à imagem fílmica, não se oferece sozinha ao olhar, mas em
situação de coexistência com imagens periféricas. O inseri é enquadrado por dois outros
planos conforme uma ordem de sucessão temporal; a imagem incrustada, por sua vez, é en-
volvida espacialmente pela imagem englobante, o que significa simultaneamente: a) que
uma mesma imagem faz fronteira com todos os seus lados — e não em dois planos distintos
— e b) que os dois quadros do binômio prestam-se a uma visão simultânea, assim como ao
ir e vir do olhar, a uma pulsação da atenção. Por fim, sem ter de recorrer à "história em
quadrinhos como um todo", de início é a prancha como um todo, como multirrequadro no
qual a incrustação representa fenômeno local, que é primeira instância de interpretação
extremamente significante.
140 Essais sura signification au cinema, t. 1, op. cit., p. 125-126. [Edição brasileira: A significação no cinema. Trad. Jean-Claude
Bernardet, p. 145-146.]
141 Cinéma et production de sena, op. cit., p. 201.
142 Na edição brasileira: p.146, [N.T.]
98 s O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Notemos por fim que, dado que não há duração interna real (mensurável) que se possa
atribuir a um quadro de HQ, a "cena" representada no quadro incrustado não é, fundamen-
talmente, nem menos breve nem Lis longa que aquela que mostra o quadro englobante
(enquanto que o insert cinematogMfico liga-se geralmente a uma conotação de brevidade:
ele toma seu lugar — é interpelado, como diz Metz — entre dois sintagmas mais articulados).
1.11 — O LAYOUT
Entre as diversas operações que certificam a integração das partes componentes de
uma história em quadrinhos, aquela que tem com maior particularidade a função de reger
os parâmetros espaçotópicos é comumente designada pelo termo "layout" 143 . Já dispomos
do catálogo quase completo de questões que são da sua alçada. Vimos que não se trata
apenas de estabelecer relações proporcionais e posicionais entre quadros, mas também de
designar ao espaço da tira, seu grau de autonomia perceptiva e de pertinência, assim como
de ajustar a rede composta por balões "sobre" ou "dentro" do que desenham os requadros.
O layout também resolve o fechamento do hiper-requadro (sendo que os contornos podem
ser regulares ou quebrados, e também podem ser cruzadas por quadros propositalmente
à deriva), assim como a consistência de seu espaço interno (dependendo se os requadros
distribuem-se entre si na sua totalidade, como é o comum na BD franco-belga, ou, como
se observa em diversos comic books modernos e mangás, quando se distribuem espaços
vazios, zonas deixadas de reserva — o "fundo" que se enreda mais diretamente com as ima-
gens). Por fim, o layout pode exercer-se de maneira autônoma em cada prancha, ou levar
em conta o díptico natural que constitui as pranchas destinadas à impressão lado a lado.
Em breve recapitulação, esse é o conjunto de parâmetros que governa essa operação
fundamental. Resta compreender quais são os princípios e fins que guiam o desenhista no
momento que se faz layoutman. O que ele busca alcançar ou realizar através das opções
que toma em relação à distribuição de espaços?
Comecemos por sublinhar o que é evidente: o layout não opera sobre requadros
vazios, mas sim deve levar em conta seus conteúdos. Ele é um instrumento a serviço de um
projeto artístico global, frequentemente subordinado a um plano narrativo, ou, no mínimo,
discursivo; embora possa acontecer de ele seguir a priori tal regra formal que restringirá o
conteúdo e que em certa medida o suscitará'", o layout geralmente é elaborado a partir de
143 No original: mise en page. Utilizou-se o termo em inglês layout por ser mais familiar à prática quadrinistica no Brasil e para não
causar interferência com outros termos próximos, como composição e diagramação, que são utilizados com outros sentidos no texto
de Groensteen. [N.T.[
144 Cf. minha introdução à Oubapo intitulada "Un premier bouquet de constraintes" [Primeiro conjunto de restriçqes], op. cit., o
desenvolvimento de uma restrição de ordenado geométrico.
THIERRY GROENSTEEN 99
um conteúdo determinado semanticamente, sendo que a decupagem já garantiu a discreti-
zação em enunciados sucessivos que passam a ser chamados de quadros. Todavia, o layout
não pode ser definido como uma fase que sucederá a decupagem, com a missão de adapta-
-Ia ao aparato espaçotópico; ele não se inventa sob o que é determinado pela decupagem,
mas segundo um processo dialético no qual as duas instâncias determinam-se mutuamente.
Deixando provisoriamente de reserva essa pergunta — essencial — sobre a interação,
nada nos impede de identificar desde já os princípios específicos ao layout, ou seja, o que
ele pode ou deve observar "independente" do que a página deve significar, o que reduz o
arranjo de requadros ao que ele era no início: uma configuração espaçotópica. Resta-me
apenas retomar o que falo desde 1990 em meu artigo "Du 7e au 9e art: l'inventaire des
singularités" 45 [Da 7' à 9a arte: inventário de singularidades], a saber, que os requadros
deveriam ser traçados e dispostos de tal forma que:
"a / Eles respondam a opções compatíveis. É impossível, por exem-
plo, desenvolver (se não por uma ilustração de página inteira) a coexistência
de um quadro que ocupará toda a largura da prancha com um quadro que se
esticará em toda sua altura. É preciso optar, e cada opção de requadro restrin-
ge a gama de possibilidades para os outros.
"b / Eles organizam para o leitor um percurso desprovido de ambi-
guidade, sugerindo a ele um sentido de leitura (salvo quando o confronta
conscientemente, visando um efeito de desconstrução narrativa com diversas
opções de sentido contraditórias).
"c / Eles eventualmente seguem um princípio de composição global,
mais ou menos ostentatório, e submetem-se a uma ordem estética (...)."
O termo "eventualmente" sublinha o fato de que, se os dois primeiros princípios
impõem sua lei a todo layout (o primeiro por imperativo material, o segundo por preocu-
pação com a inteligibilidade), o terceiro princípio é apenas facultativo e contingente.
1.11.1. A tipologia de Bendit Peeters
Os especialistas concordam que se deu uma etapa decisiva na reflexão sobre o
layout da história em quadrinhos com a publicação do estudo de Benoit Peeters intitulado
"Les aventures de la page" [As aventuras da página]. Naquele texto, Peeters distinguiu
145 Na CinémAction especial: Cinéma et bande dessinée Courbevoie, Corlet-Télérama, verão de 1990, p. 16-28; trecho citado: p. 28.
100 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
quatro concepções da página, respectivamente designadas como convencional (quando os
quadros são "de formato rigorosamente constante"), ornamental (quando "a organização
estética tem primazia sobre qual4ner outra consideração"), retórica (quando "as dimen-
sões do quadro submetem-se à ação descrita") e, por fim, produtiva (quando "parece ser a
organização da página que dita a história").
Extremamente estimulante, esse texto levanta questões excelentes, mas nem sem-
pre as coloca nos termos mais apropriados. Na prática, a identificação das quatro catego-
rias propostas depara-se com dificuldades.
Na verdade, se várias pranchas seguem um layout que responde precisamente a uma
das categorias propostas (e assim a prancha de Teulé reproduzida anteriormente (fig. 6) seria
convencional, enquanto que as pranchas de Cuvelier e de Mufíoz que comentarei no capítulo
seguinte seriam ambas retóricas), existem outras, em quantidade considerável, que respon-
dem a definições de mais de uma categoria de Peeters. Muitas das pranchas que examinamos
até aqui apresentam essa ambivalência. Tomemos de inicio as de Baudoin (cf. supra, fig. 2).
Pode-se dizer que são retóricas, na medida em que os quadros que englobam um primeiro
plano ou um close-up são, no conjunto, menores que aquelas em que as personagens são
cortadas na altura do joelho. Mas elas não produzem também um efeito ornamental, em
virtude do efeito de espelho já analisado, que faz a segunda prancha ser um duplo invertido
da primeira? Há uma dúvida análoga aplicável às duas páginas de Del Barrio (fig. 3). Consi-
deradas em separado, elas são ambas convencionais, dado que cada uma é composta por três
requadros idênticos. Estarem lado a lado produz, contudo, um efeito ornamental inegável ou,
se assim preferirmos, um efeito tabular, sendo que a atenção é imediatamente atraída pela in-
clinação do eixo horizontal em eixo vertical. Por fim, caso lembremos dos significantes que
descrevemos naquelas páginas (de que, no decorrer da vida que essa história nos apresenta,
o destaque passa de um horizonte quase ilimitado a um fim incontornável), é preciso admitir
que esse layout também possui qualidades retóricas.
A prancha de Aleix Barba (fig. 5), construída segundo uma grade de nove quadros
com tudo que há de convencional, apresenta um aspecto produtivo, dado que a divisão
arbitrária de cada tira em três quadros vâa frear a leitura ao enquadrar separadmente as
porções do campo que se oferecem ao olhar. Quanto à de Cosey (fig. 9), ele me parece ao
mesmo tempo retórica e ornamental.
A frequência de casos em que se verificam várias categorias aplicadas ao mesmo
layout, sem que se contradigam e sem que fiquem delimitadas, obriga-nos a concluir uma
contradição na tipologia de Benoit Peeters, por mais sedutora que ela seja.
THIERRY GROENSTEEN 101
Devemos, ao que me parece, dirigir-lhe três críticas. I / Informada pela expe-
riência de autor (Peeters não é apenas teórico, mas também roteirista), ela não condiz
o suficiente com os esquemas perceptivos e cognitivos que ficam a cargo do receptor;
2 / Apesar das aparências, ela não possui a promessa ideológica exposta de início: a de
não separar as "opções de organização dos requadros e planos", de um lado, e dos "sig-
nificantes da HQ", de outro, a fim de "não arrasar essa coerência quase orgânica que
dá a cada elemento sua razão de ser" 46. 3 / A própria definição de layout à qual Peeters
refere-se é simultaneamente vaga e restritiva; ela faz silêncio total em relação a aspectos
importantes do sistema espaçotópico, tais como a consistência da prancha (no sentido
definido acima), o grau de autonomia das tiras 147, a distribuição espacial dos balões ou
o procedimento de incrustação.
Se os layouts a que se propõe a história em quadrinhos são, nessas configurações
específicas, em número quase ilimitado, resta uma clivagem fundamental: ou o requadro
varia de um quadro para outro (em forma e dimensão) ou não varia. Não conseguiríamos
imaginar terceiro termo a essa alternativa binária. O resultado disso é que podemos opor o
layout "convencional" a todos os outros, e que ficaríamos inclinados a ver nessa "conven-
ção" uma forma de grau zero do layout.
Constatamos contudo que o tipo de layout que é estatisticamente dominante corres-
ponde, sem oposição, ao que Peeters chama de concepção retórica. Isto porque, na verdade,
esse modelo não faz nada mais que aplicar, de maneira muitas vezes intuitiva e que se apoia
quase no automatismo, esse recurso que faz a história em quadrinhos distinguir-se do cine-
ma, pois permite a ela redefinir o formato de seu requadro a todo instante. O layout retórico
é mais frequente porque ele é o mais cômodo e o mais flexível, e porque, estando totalmente
a serviço da narrativa, é perfeitamente adequado ao projeto narrativo que a maior parte dos
quadrinistas busca. Jacques Samson resumiu pertinentemente essa adequação: "A elastici-
dade da representação (o requadro variável) `diegetiza' ao máximo o espaço figurativo e
apaga toda impressão de descontinuidade espacial ou temporal"". Não creio que tenha sido
por acaso que Rodolphe Tõpffer, alguém cuja compreensão intuitiva da mídia atingiu grau
surpreendente, optou especificamente por um aparato como esse.
Não se destacou o suficiente que o layout retórico, pelo motivo de não oferecer
resistência ao desenhista (salvo a obrigação de organizar a compatibilidade dos requa-
146 Case, plano/ia, récit, p. 8.
147 Neste sentido, Jan Baetens e Pascal Lefèvre comentaram propriamente que, dentro da opção retórica, a grande maioria de pran-
chas "Integra pelo menos um elemento convencional de tamanho, no caso, a attura das tiras (...) Na prática, a elasticidade do requa-
dramento limita-se apenas ao comprimento dos quadros", cf. Pour une facture moderna de la banda dessináe, Bruxelas, CBBD, 1993.
148 "Le champ tardien", op. cit., p. 32.
102 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
dros, ou de encontrar o melhor compromisso entre soluções locais, as restrições do
suporte e a configuração do conjunto), pode conduzir a um tipo de automatismo e, por
fim, de abandono da facilidade. CIYM um pouco de prática nos quadrinhos, aprendemos
rápido a desenvolver a intuição do tequadro que parece chamar cada imagem: um quadro
estreito para uma personagem sozinho, em pé ou em dose, um quadro largo para um
grupo de personagens, uma paisagem, uma cena de ação etc. Essas soluções espontâneas
tendem a certa banalidade, e por vezes pode ser 'Mais fecundo optar por uma solução
não tão previsível, contrariar essa "previsibilidade parcial" da forma mais querida à
teoria da Gestalt. Por exemplo, a ideia de desenhar um quadro-tira para introduzir uma
só personagem, para criar o que parece um desperdício ou um erro de enquadramento,
pode conduzir à liberação do espaço, a criar um respiro interessante do ponto de vista
plástico ou rítmico.
O layout retórico não apenas é o mais frequente; de todas as opções possíveis, ele
também é a que menos se nota, a que a leitura aceita já de saída como se fosse natural
(mesmo se essa discrição do dispositivo página possa ser mal utilizada, localmente, para se
ter um efeito notável, como a supressão de um requadro ou uma incrustação, por exemplo).
Os layouts que se desviam com maior ou menor clareza do modelo retórico são per-
cebidos pelo leitor como dispositivos particulares e assimilados precisamente às lacunas
notáveis em relação à norma implícita que constitui a concepção retórica. Essa percepção
aplica-se notavelmente, na maioria dos casos, ao layout que Benoit Peeters batiza de "con-
vencional", e que, pela mesma razão de não ser banal, da minha parte prefiro qualificar
como layout regular. Na verdade, desde que a prancha siga uma compartimentação uni-
forme, a ortogonalidade da grade é uma característica que se nota, e a qual muitas vezes
rende um efeito forte, dado que ela permite à prancha ativar e exaurir alguns potenciais do
multirrequadro "imagem-ado e imagem-ante, comparador e substitutivo (...), mutacional
e permutacional", recorrendo aos termos de Henri Van Lier 149. O leitor (falo aqui do leitor
competente, ou seja, aquele que tem familiaridade suficiente com a linguagem dos qua-
drinhos) percebe que as obras que seguem esse layout "privam-se de um certo número de
elementos reais que se colocam à sua disposição" 50 , na medida em que ele se abstém de
aproveitar a elasticidade potencial do requadro; e, sabendo que essa renúncia é voluntária,
ele pode também geralmente medir, à primeira vista, a estratégia ou o ganho que, em outro
plano, motiva essa opção.
149 "La bande dessinée, une cosmogonie dure', op. cit., p. 5.
150 Em Conséquences, op. cit., p. 36.
THERRY GROENSTEEN 103
1.112 Defesa e ilustração do layout regular
Em relação aos dois princípios que devem respeitar imperativamente layout regular
das histórias em quadrinhos, a escolha dessa opção resolve de imediato qualquer dificul-
dade. Os requadros são mais do que compatíveis, pois são idênticos; e não há dúvida para
o leitor quanto à ordem em que os quadros se encadeiam.
Se o layout regular foi escolhido apenas por comodidade, ele pode refletir certa
preguiça da parte do desenhista, um descaso que preza a solução mecânica. Esse layout
realmente não é muito favorecido pelos teóricos. Na primeira versão de seu estudo (1983),
Benoit Peeters já falava de um "instrumento mutilado", sublinhando que essas histórias
em quadrinhos submetem-se "a uma restrição imaginária, herdada de outra disciplina" 51 —
o cinema, por certo, no qual o tamanho da tela permanece constante. A noção de mutilação
só aparece quando o texto é revisto em 1991. Peeters então expõe as vantagens que passará
a reconhecer nessas concepções em certos casos.
As utilizações mais simples deste princípio são aquelas que (...) pos-
suem do início ao fim esta constância do requadro para atingir uma espé-
cie de plano fixo que se desenvolva na página. Desenhistas de humor como
Schulz, Feiffer, Bretécher, Wolinski ou Copi já deram exemplos notáveis de
sequências nas quais a mínima modificação sobre a regularidade do conjunto
assume valor considerável, favorecendo uma entrada real no desenho.
Mesmo um desenhista de aventuras realistas como Hugo Pratt serviu-
-se diversas vezes de dispositivos desse gênero (...), concentrando a atenção
do leitor sobre algumas modificações mínimas na ação e nas atitudes (p. 38).
Na reedição de Case, planche, récit de 1998, Peeters parecia ainda mais disposto
na sua consideração pelo layout regular. Mas aqueles que, nesse meio tempo, adotaram
essas categorias não demonstraram grande entusiasmo pelo recurso; é apenas em cará-
ter de concessão que Baetens e Letevre reconhecem que o "apelo mecânico do layout
convencional não exclui necessariamente soluções sutis e engenhosas". Creio que isto é
dizer pouco do recurso e que seria conveniente reabilitar a grade ortogonal regular como
um modelo simultaneamente rigoroso e que oferece múltiplas possibilidades interessan-
tes tanto de decupagem quando de entrelaçamento. O argumento proposto por Peeters é
extremamente forte; pois é fato que forçar o requadro a observar a máxima neutralidade
151 Em Con'sequences, op. cit., p. 36.
104 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
leva-o a exaurir outros parâmetros, dado que a visibilidade e, assim, a eficácia seriam
consideravelmente reduzidas caso o layout se entregasse a fantasias inúteis. Pode-se ob-
servar, por exemplo, o jogo da fisiáomia em Bretécher: veremos que o valor diferencial
do mínimo encolher de ombros ot franzir do cenho é acentuado quando não se muda
nenhum outro elemento.
De resto, longe de ser prerrogativa exclusiva das histórias em quadrinhos satíricas
craidas pelos adeptos do desenho-croqui, o layout regular muitas vezes caracterizou obras
ambiciosas e inovadoras, de Polly and her pais, de Cliff Sterrett, a Feux, de Mattotti, ou
ainda Watchmen, de Moore e Gibbons. Ao tratar de Watchmen, Baetens e Lefevre ainda
analisaram como as diferentes figuras dispostas em tabuleiro de xadrez conduzem a entre-
cruzamento de duas cenas mostradas em alternância e diferenciadas cromaticamente'. A
retilinearidade e a perpendicularidade dos vazios entrequadros criam um efeito de "rede
sintagmática estruturada, à base de alinhamentos". Tomo de empréstimo os comentários
que o grupo g fez a respeito de um quadro de Vasarely, comentário que se aplica aqui em
cada palavra:
Cada posição [cada quadro] fica na intersecção de um eixo horizontal,
de um eixo vertical e de dois eixos diagonais, pelo menos. Há, portanto, para
cada uma, quatro sintagmas possíveis. (Pelo menos quatro, pois, além disso,
cada posição pode adentrar figuras mais complexas que renderão posições
notáveis; cantos, centro, poios alto e baixo etc.) 153
O layout regular também é, portanto, aquele que exalta certos efeitos de entrela-
çamento porque ele permite produzir os empregos mais simples e pregnantes do ponto de
vista perceptivo, e porque ele reforça as correspondências entre lugares predeterminados
(cf. infra 3.3). Ele possui enfim essa última virtude; de lidar com a possibilidade de rup-
turas repentinas e espetaculares com a norma que se coloca de entrada. Em um álbum no
qual as outras páginas são regulares, uma página que se distingue repentinamente por uma
configuração especial obterá um impacto muito forte (vem à mente o exemplo da página
dupla que fica no centro do capítulo 5 de Watchmen). Enquanto que, quando todos os
quadros são discriminados por formatos distintos — como propõe a opção retórica — é mais
difícil fazer um destacar-se realmente.
152 Cl. Pour une lecture moderna_ op. cit., p. 57.
153 Traité du signe visuel, op. cit, p. 319.
THIERRY GROENSTEEN 105
1.11.3. Novas proposições
Caso queiramos descrever e analisar o layout de uma história em quadrinhos, a meu
ver, é necessário começar sempre pelas respostas a duas perguntas:
a / Ela é regular ou irregular?
b / Ela é discreta ou ostentatória?
Não podemos reduzir os termos da primeira alternativa aos da segunda, dado que a
regularidade restrita de requadros não é o único fator que determina o grau de visibilidade
do layout. Falei que a forma regular é percebida, na maior parte dos casos, como uma va-
riação em relação à norma, que é o layout retórico. Essa percepção tem exceções (lembro,
por exemplo, de algumas pranchas de Gastou ou de Achille Talou) e, sobretudo, admitem
diferentes graus. Quando todos os requadros que compõem uma prancha observam um for-
mato constante, esse layout torna-se particularmente mais notável porque: 1 / o número e/
ou o formato dos quadros tende a desviar da norma (os quadros mais numerosos, como os
de Joe Matt, ou mais alongados, como certas pranchas de Andreas ou de Régis Franc, regu-
lares em tudo mais, dão à página um caráter "vistoso" por serem atípicos); 2) a vantagem
que deriva dessa regularidade de requadros, no nível plástico ou narrativo, é em si notável.
A série cromática entrelaçada e os efeitos de tabuleiro de xadrez em certas pranchas de
Watchmen vêm sublinhar o principio que rege o layout de toda a obra mas que, em outras
pranchas, costuma ser mais discreto' 54. Da mesma forma, os "planos fixos" a que Peeters
faz alusão reforçam a regularidade do requadro, pois aí é o próprio quadro que se repete
em sua (quase-)totalidade, imprimindo à prancha um aspecto serial.
Se o layout regular é tantas vezes impressionante, por outro lado, algumas compo-
sições que Peeters inclui na categoria "ornamental" são excessivamente discretas. Dessa
forma, a simetria que rege diversas pranchas de Edgar P. Jacobs não é percebida se não
produzirmos um diagrama, como fez Peeters, que mantenha os requadros esquematica-
mente vazios. No álbum, a densidade de imagens, a relativa homogeneidade de seus for-
matos, a profusão de texto e o trabalho de cor encobrem a percepção desse ordenamento
particular dos quadros; o layout é, assim, por motivo desta discrição, percebido apenas
como irregular.
A possibilidade do layout tornar-se ostentatório, ou seja, de atrair atenção para si
mesma por tal qualidade notável, corresponde, como já notamos, ao terceiro princípio,
facultativo, enunciado há pouco: o de seguir um imperativo estético próprio.
154 Fica evidente que, do instante em que ela se repete ao longo de toda a história, um layout, mesmo marcante, sofre um processo
de naturalização progressiva que o banaliza. Aí faz-se necessário que efeitos particulares venham a incrementar o dispositivo página
pontualmente para que ele recupere seu vigor.
106 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
'11111nr—
A combinação, em pares, de características que aqui se designam como fundamen-
tais permite-nos definir quatro categorias de layout:
- regular e discreto;
- regular e ostentatório;
- irregular e discreto (que corresponde ao layout "retórico" clássico);
- irregular e ostentatório.
Quando se está diante de um layout julgado ostentatório, é oportuno interrogar-se,
em um segundo momento de análise, as motivações que o desenhista seguiu na elaboração
da página. Para realizar essa avaliação, devemos imperativamente comparar o layout aos
conteúdos icônicos e narrativos, ou mesmo, em alguns casos, o projeto artístico que enseja
o conjunto da obra. Apenas essa confrontação autoriza decidir se o layout realizado obe-
dece a fins ornamentais (que entendo que aconteça dele contar com um benefício estético
pelo simples motivo de exibir seu aspecto marcante, e assim não responder a motivação
alguma exterior a ela mesma), retóricas ou produtivas. Dessa forma, um layout muito que-
brado, bagunçado ou que desloque os requadros, terá aparência retórica (e não ornamental)
caso acompanhe, sublinhe, ou "traduza" uma situação caótica, uma perseguição de carros
eletrizante, uma crise etílica ou um acesso de loucura do protagonista.
A tipologia proposta por Benoit Peeters partia da oposição inicial entre narrativo,
"que, ao englobar a imagem dentro de uma continuidade, tende a nos fazer pairar sobre
ela", e o tabulai; "que, ao ser isolado, faz com que nos fixemos nele" (op. cit). As quatro
concepções de layout propostas definem-se pelo fato de que o narrativo e o tabular estejam
ou não independentes e, a seguir, que um domine o outro.
As instâncias do narrativo e do tabular me parecem generalistas demais para auto-
rizar uma análise final dos jogos que dizem respeito à operação de layout. Mesmo assim,
defendo que as pranchas em que o tabular é dominante são aquelas que qualifico como
ostentatórias, ou seja, aquelas em que o layout impõe-se de imediato à percepção; enquan-
to que a narrativa domina as pranchas nas quais a composição é discreta, que por sua vez
estão sujeitas à lei da decupagem. Tomando de empréstimo outro vocabulário, podemos
igualmente distinguir entre pranchas "de dominante configuracional" e pranchas "de do-
minante sequencial" 155.
Para dar uma ideia da complexidade dessas questões, vou me conceder a prerroga-
tiva de retomar aqui a análise que já produzi em outro momentol" sobre a página dupla de
155 Estes termos vêm de empréstimo de Marie Mandy, La Fiction dans le discours photographique, dissertação de Mestrado em
filologia romana, Université catholique de Louvain, Louvain-la-Neuve, setembro de 1985, p. 40 s.
156 Cf. "Un premier bouquet de contraintes", op. cit., p. 37-38.
THIERRY GROENSTEEN 107
watchrnen à qual fiz referência há pouco'". Trata-se das pranchas 14 e 15 do capítulo 5 de
Watchmen, intitulado... "Terrível simetria" (Fearful symmetry). São as páginas centrais do
capítulo, que no total tem 28; elas são impressas frente a frente e refletem-se mutuamente.
Essa estrutura espelhada é sublinhada diversas vezes: pelo caráter não-habitual do formato
e pela disposição dos quadros nessas duas páginas, em ruptura com a grade regular a que
obedece o restante da obra; pela grande letra V, na qual as duas metades dividem-se sime-
tricamente na divisória das páginas; pelo efeito de relação entre os dois quadros centrais
(quase) contíguos, que recebem as duas metades de um único e mesmo desenho; enfim,
pelo fato de as próprias personagens estarem inclinadas sobre um tanque, superfície rele-
xiva que comunica a ideia do duplo.
O leitor alerta só pode ficar perplexo diante dessa organização. Na verdade, a
estética de Watchrnen não é de forma alguma ornamental nem ostentatória, sendo tudo
nessa obra sacrificado ao imperialismo de uma história quase exagerada no roteiro e
minuciosamente arranjada. Excluindo-se a hipótese de um simples efeito de estilo e ten-
do-se o título do capítulo, a perspicácia do leitor pode levá-lo a entender que a simetria
estende-se, mesmo que de modo discreto, ao conjunto do capítulo, sendo as pranchas
situadas antes e após a página dupla central refletem-se em pares em relação ao aspecto
único de ordenamento dos requadros."0 leitor chegará ainda a um nível complementar
de análise de forma que deriva da proliferação, no conjunto da obra, de elementos grá-
ficos que seguem determinado princípio de simetria: a máscara que veste a personagem
de Rorschach (e cartas que contêm seus textos), o bottom do "smiley", o símbolo do
átomo de hidrogênio inscrito na testa do Dr. Manhattan, o mostrador do relógio com
seus ponteiros, a nave do Coruja, o emblema do restaurante Burgers 'n' Borscht, o em-
blema macabro dos piratas sobre a bandeira negra e muitos mais. Enfim, essas instâncias
de elementos simétricos — que compõem uma verdadeira rede, gerando uma malha no
conjunto da narrativa — pode, ao preço de um último passo, desembocar em uma inter-
pretação simbólica global da obra. A simetria torna-se assim uma categoria abstrata, que
engloba, sobretudo, o face a face de homem e mulher, os superpoderes e um julgamento
moral de equivalência entre criminosos e justiceiros, dado que se utilizam de meios
comparáveis. É a categoria, em suma, que une e permite pensar em conjunto a maior
parte dos grandes temas de Watchmen.
Vemos que uma prancha dupla que parece ser regida por um efeito gráfico ou orna-
mental simples pode revelar, em seu layout, que segue motivações muito mais profundas.
157 0 direito de reproduzir essas duas páginas nos foi recusado e só nos resta remeter o leitor aos álbuns.
108 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 109
111111r
Buscando retificar o que não me parece operacional o suficiente na tipologia de nascem os desenhos sobre o papel, ou mesmo antes de o roteiro encarnar-se graficamente.
Peeters, não a substitui por outra (sendo meu sistema mais aberto), mas modifiquei le- (No máximo pode-se falar de remontagem, dado que uma tira de jornal é remanejada em
vemente a abordagem do problenfà. As quatro opções descritas por Peeters dão-se como vista de sua publicação na forma de livro — pensemos no trabalho realizado por Hergé e
procedentes de opções artísticas o4anizadas, mas seu uso como categorias analíticas pode seus colaboradores em diversas aventuras de Tintim — ou quando um álbum é "adaptado"
apenas recorrer à apreciação, da parte do receptor, quanto ao equilíbrio (muitas vezes pro- para o formato de bolso.)
blemático) que se dá em cada prancha entre o efeito-narrativo e o efeito-tabular. Jan Baetens descreveu com propriedade essa diferença ao tratar da história em
De maneira mais específica, a análise sugerida aqui mobiliza, por sua vez, um cri- quadrinhos e da fotonovela:
tério rigorosamente objetivo: a regularidade ou irregularidade dos requadros; um critério
parcialmente dependente da apreciação subjetiva do receptor: o caráter ostentatório ou não Para o criador de quadrinhos, o problema inicial consiste em repartir
do layout; por fim, um terceiro critério que, simetricamente, faz intervir a intencionalidade um suporte vazio. Para o realizador da fotonovela, a dificuldade primeira é
do autor, e que é a motivação capaz de justificar a opção mantida por sua correlação com fazer uma seleção entre as fotos disponíveis e combiná-las da melhor forma
os conteúdos icônicos e narrativos. possível nos limites da página. O primeiro raciocina em termos de comparti-
A outra correção que me parece essencial é distinguir, na avaliação do terceiro cri- mentação, o segundo determina sua atividade como uma forma de colagem.
tério, entre o nível global da prancha e o nível local de determinado quadro, determinada A perspectiva, assim, muda completamente.'"
tira ou determinado sintagma. Dado que é frequente que o valor retórico ou ornamental
do requadro (que não são mais que aplicações particulares daquilo que identifiquei como No mais, é lamentável ver o mesmo autor, ao lado de Pascal Lefèvre, ceder à confu-
sua função de expressão) afeta apenas uma unidade ou um subconjunto da prancha, visto são ao intitular um capítulo de seu ensaio sobre os quadrinhos "A montagem da história"'".
que o dispositivo paginal, na sua concepção geral, é relativamente neutro. A sugestão de Minha conclusão, para este capítulo, será: deixemos a montagem para o cinema (e
um requadro, a transgressão nesse espaço do hiper-requadro, o alargamento ou a obtu- para a fotonovela) e nos prendamos ao estudo do layout — aquilo que o cinema não faz.
ração de um espaço intericônico, o posicionamento particular de um conjunto de balões
(em rosário, em cruz, em círculo, em arquipélago...) ou o recurso a uma incrustação são
alguns dos exemplos de fenômenos locais relevantes do layout, nos quais a pertinência
retórica ou ornamental — mas igualmente reflexiva, rítmica ou outra — deve ser apreciada
separadamente.
Por vezes encontra-se nos estudos sobre histórias em quadrinhos o termo mon-
tagem, visando designar por vezes o layout, por vezes uma espécie de compromisso ou
amálgama entre layout e decupagem (que nem sempre são distinguidas em termos de con-
ceito). Antes de fechar este capítulo, gostaria de me opor ao emprego abusivo desse termo,
emprestado do léxico da sétima arte. Suscitarei apenas dois motivos, sendo cada um sufi-
ciente por si só: 1 / o encadeamento de planos de um filme, que é propriamente o trabalho
da montagem, efetua-se em uma só dimensão, linear: a do tempo, enquanto que os quadros
da história em quadrinhos são articulados simultaneamente no tempo e no espaço; 2 / a
montagem é uma operação posterior à filmagem, e consiste em uma intervenção sobre ma-
terial já elaborado; o layout, por outro lado, inventa-se geralmente ao mesmo tempo que 158 Du roman-photo, Mannheim-Paris, Medusa-Médias et Les lmpressions nouvelles, 1992, p. 80.
159 Cf. Pour une lecture modeme de la Pende dessinée, op. cit., p. 63-65.
110
CAPÍTJLO SEG, \DO
ARTROLOGIA RESTRITA:
A SEQUÊNCIA
Aquele que se movimenta pelas analogias tudo pode, exceto ficar
ricocheteando e pular de uma imagem para outra.
HENRI MICHAUX, FAÇONS D'ENDORMI, FAÇONS D'EVEILLÉ
2.0. "Quadro, prancha, narrativa": por mais que os pressupostos teóricos não sejam
os mesmos, a trajetória proposta nestas páginas para se ter a compreensão global do siste-
ma das histórias em quadrinhos é análoga à que segue Benoit Peeters. Já vimos quais são
as funções do requadro e os parâmetros que definem o quadro como forma; a seguir, como
o layout configura o dispositivo espaçotópico em função do projeto narrativo e artístico.
Agora precisamos analisar como a "nave da história" atravessa e contribui para esse dis-
positivo, compreender como o diálogo entre os quadros produz o sentido. Vamos nos ater,
de momento, ao exame da artrologia restrita, ou seja, às relações semânticas de tipo linear,
regidas pela decupagem.
2.1 - SOBRE O LIMIAR DA NARRATIVA
Imagens imóveis apartadas pelo vazio. Como contar uma história apenas com isso?
A narração está contida nas imagens? Está dispersa entre cada uma delas ou emerge quan-
do se vai de uma ponta a outra? O vazio intericônico teria uma função simbólica? Que
função tem o texto na produção de sentido? São essas algumas das questões que se apre-
sentam a nós que desejamos teorizar a operação da decupagem, da mesma forma que elas
se apresentam, pelo menos de forma intuitiva, ao desenhista que busca traduzir em urna
sequência de desenhos a história que tem em mente.
Os teóricos do cinema já buscaram definir qual é o limiar da narrativa. Abrirei este
capítulo com uma breve recapitulação das conclusões que eles tiraram. Embora todos
concordem que a montagem possui papel decisivo na narração, as opiniões divergem em
relação a saber se uma imagem pode ser narrativa por conta própria. Christian Metz deu
resposta negativa:
111
•..a foto é tão inapta a narrar que, quando ela quer narrar, ela se torna
cinema. A fotonovela não é um derivado da foto, mas sim do cinema. Uma
foto isolada nada pode narrar, evidentemente! Mas por que será que, devi-
do a um estranho corolário, duas fotos justapostas sejam obrigadas a narrar
alguma coisa? Passar de uma imagem a duas imagens é passar da imagem à
linguagem.'"
Roger Odin já se opôs a esta concepção. Emprestando de Michael Colin a hipótese
de que "a leitura da imagem fílmica (e, no geral, da imagem como um todo), na nossa
cultura, é vetorizada como o discurso escrito, da esquerda para a direita", Odin afirma:
Uma imagem fixa pode ter estrutura narrativa: basta que a vetorização
corresponda a uma estrutura actancia I de categoria conflitiva entre sujeito e
anti-sujeito ou as relações entre um sujeito e objeto de desejo.'
André Gaudreaultm, por sua vez, leva em conta os dois "princípios da narrativa"
anunciados por Tzvetan Todorovi", que seriam os da sucessão e da transformação: "...Po-
de-se efetivamente considerar narrativo (...) todo enunciado que relata os atos, os gestos
ou os acontecimentos que possuam entre si uma 'relação de sucessão' e que desenvolvam
'uma relação de transformação — . Ele recorda que, para que possamos falar de transforma-
ção entre, digamos, duas fotografias, é preciso que seu vínculo "afirme simultaneamente a
semelhança e a diferença". E observar, em consequência, que "a transformação (no sentido
de modificação) poderia, no seu limite, ser considerada como única e singular condição da
narratividade, sendo por definição um processo, ela implica logo de saída em sucessão."
Gaudreault conclui que, em se tratando do cinema, é no movimento que reside a condição
suficiente para a narratividade. As imagens em movimento seriam "desde sempre narra-
tivas", independente de qual seja "o grau de estruturação da ação que elas apresentam".
160 "Le cinema: langue ou language?", Communications n, 4, Paris, Le Seuil, 1964, p. 63. Texto republicado nos Essais sur Ia
signification au cinema, 1. 1, 1968. [Edição brasileira: A significação no cinema. Trad. Jean-Claude Bernardet, p. 62-63.1 É uma
opinião bastante similar que sustenta, nesse caso tratando da pintura, Aron Kibedi Vargas em Discours, récit image, Pierre Mardaga,
Liège, "Philosophie et langage", 1989. Segundo ele (p. 96n), uma imagem fixa, um quadro que representa "seres vivos envolvidos
em uma ação" pode suscitar uma narrativa (particularmente se essa já é conhecida do espectador) mas não vai propriamente contar
o ocorrido. Somente "a justaposição de imagens é geradora de narrativa."
161 Cinema et production de sens, op. cit p. 219. O livro de Michel Colin a que o autor faz referência é Langue, fim, discours.
,
Prolégomenes à une sémiologie générative du fim, Paris, Klincksieck, 1985,
162 Resumo aqui o essencial do capítulo III ("Em busca da primeira narrativa filmica", p. 37-51) da obra de Gaudreault Ou littéraire
au filmique. Systeme du récit, op. cit. Todas as citações correspondem a essas páginas.
163 Cf. Todorov, Les Genres du discours Paris, Le Seuil, 1978, p. 66. [Edição brasileira: Os gêneros do discurso. Trad. Elisa Angotti
Kossovich, São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 64.1 Ênfases do próprio texto.
112 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Mas não se trataria de mais que uma narratividade "nativa", "espontânea" ou intrínseca
111F
r
dos intervalos entre os quadros, por assim dizer os próprios espaços onde se efetua sua
(pode-se dizer "vinculada diretamente às matérias da expressão"), à qual se unirá uma
0-`
"segunda camada" de narratividale, extrínseca, baseada na montagem, portanto através
do agenciamento dos "conteúdos harrativos".
Naturalmente, fiz aqui uma leve simplificação dos termos bastante técnicos desse
debate para ficar apenas com aquilo que me seria útil neste contexto, ou seja, aplicável às
histórias em quadrinhos. As imagens que nos interessam não são as imagens-movimento,
mas sim as imagens fixas. Segundo Gaudreault, só poderíamos tratar delas falando de
narratividade extrínseca: a narração nasceria da articulação de seus conteúdos, mas não
teríamos como encontrá-la dentro de cada imagem (mesmo em sua fase "nativa"). Enquan-
to que, para Odin, haveria narração no próprio quadro, desde que neste se represente um
conteúdo actancial pertinente, devidamente vetorizado na composição da imagem.
A noção de vetorização, se é que podemos atribuir-lhe alguma validade, aplica-se
certamente melhor à história em quadrinhos do que ao cinema. Isto por dois motivos: por
um lado, o quadro é fixo, de forma que os movimentos internos da imagem não criarão
oposição ao sentido da leitura; por outro, o quadro participa de um multirrequadro dentro
do qual, ao nível de cada tira, a sucessão das imagens é explicitamente vetorizada da es-
querda para a direita. Mas se a leitura obedece a um sentindo obrigatório (como já vimos
que certos layouts tornam a circulação do olhar muito mais complexa ou aleatória), basta
pegar uma história em quadrinhos qualquer para conferir que, na sua própria composição,
a grande maioria das imagens não é vetorizada, seja por que seus conteúdos não foram
considerados vetorizáveis, seja porque seu conteúdo simplesmente não é vetorizável, seja
porque o formato estreito e vertical impede qualquer impulso à exploração lateral. Não
teríamos, por conta disso, como resolver a questão de uma narratividade interna ao quadro
a partir apenas desse critério.
Mas a oposição entre as duas categorias, imagens em movimento e imagens fixas,
certamente é muito rasa, embora seja verdade que ambas permitem uma abundância de
imagens diferenciadas tanto no sentido semiótico quanto no estético. Veremos mais à fren-
te que a história em quadrinhos tende a Obras de desenho narrativo, e que suas imagens,
de modo geral, apresentam qualidades intrínsecas que não são as mesmas da ilustração
nem da pintura.
De resto, a questão de uma narratividade intrínseca à imagem nos diz menos res-
peito do que diz aos teóricos da sétima arte. Dada a co-ocorrência de quadros dentro do
multirrequadro, sua presença simultânea aos olhos do leitor, assim como a visibilidade
THIERRY GROENSTEEN 113
articulação simbólica (dado que no cinema o instante da passagem entre dois planos não
é visível quando se tem um corte seco: estou em um plano, de repente estou em outro),
somos inclinados naturalmente a atribuir o crédito da narração à sequência. Essa tendência
é reforçada pelo fato de a inscrição textual (balão ou recordatório), imiscuído no próprio
quadro, sobrepõe o nível da língua ao da imagem, nublando assim . as especulações a res-
peito de sua eventual narratividade intrínseca.
Ao privilegiar a sequência, a única coisa que estamos fazendo é deslocar o proble-
ma. Pois não é verdade, contrário ao que postula Christian Metz, que dois desenhos (assim
como duas fotos) justapostos sejam obrigados a contar algo. Nem três nem n desenhos que
sejam reunidos dentro de uma mesma prancha. Demonstrei este argumento durante o co-
lóquio de Cerisy sobre histórias em quadrinhos em 1987, tendo identificado cinco modos
infranarrativos nos quais os quadros podem ser reagrupados dentro do multirrequadro, a
saber, a amálgama, o catálogo, a variação, a declinação e a decomposição. Mas entre as
modalidades fundamentais de organização (qualificadas, à época, como "funções distri-
butivas primárias"), pelo menos duas — a variação (na qual as imagens definem o mesmo
paradigma temático) e a declinação (na qual um tema idêntico é sujeito a dois tratamentos
estilísticos distintos) — conformam-se à dupla condição de semelhança e diferença entre as
imagens, e assim podem ser posicionadas dentro do regime da transformação. Isso porque
o encadeamento de quadros não é determinado por uma inferência lógica, por uma ordem
causal-dedutiva. Entende-se daí que, entre duas imagens, a transformação não garante au-
tomaticamente uma relação de ordem narrativa. Na verdade, uma vez que as imagens apre-
sentam entre elas uma relação de transformação, elas constituem, no mínimo, uma série
(que seja de duas imagens apenas) mas não necessariamente uma sequência narrativaim.
Conforme os termos da questão do limiar da narrativa, da forma corno colocados
por Meta, Odin e Gaudreault, minha conclusão provisória será de que, se não podemos
descartar a hipótese de que uma imagem isolada poderia ser intrinsecamente narrativa
(este aspecto será rediscutido mais à frente), correlativamente podemos ter por certo que
a justaposição de duas imagens, mesmo que tenham uma relação de transformação, não
necessariamente produz narração.
Ainda tomando emprestada a teoria do cinema, o ponto de apoio mais sólido que
encontrei está na análise das "imagens-movimento" (planos) proposta por Gilles Deleuze.
164 Cf. "La narration comme supplément", Banda dessinée, récit et modernita, op. cit., p. 45-59. Nesse texto, defini a série como
"uma sucessão continua ou descontinua de imagens ligadas por um sistema de correspondências 'cônicas, plásticas ou semân-
ticas." Notemos que o catálogo e a decomposição também produzem séries, mesmo que não se baseiem em uma relação de
transformação.
114 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Particularmente na passagem a seguir: "Por um lado, a imagem-movimento exprime um
todo que muda, e se estabelece entre dois objetos: é um processo de diferenciação. (...)
Por outro lado, a imagem-movimenfé, comporta intervalos... (...) É um processo de espe-
cificação." Essa dupla característ1ica da imagem-movimento leva a uma matéria que é
formada "semiótica, estética e pragmaticamente", mas não linguisticamente:
Não é uma enunciação, não são enunciados. É um enunciável. Queremos di-
zer que, quando a linguagem se apodera dessa matéria (e ela o faz, necessariamente),
dá então lugar a enunciados que vêm dominar ou mesmo substituir as imagens e os
signos, e remetem por sua conta a traços pertinentes da lingua... i66
A imagem fixa da história em quadrinhos, que por definição não muda, não seria tam-
bém formada (estruturada) semioticamente, esteticamente e pragmaticamente, mas de outra
maneira? De momento, a pergunta só pode receber resposta parcial, dado que a primeira par-
te deste livro já lançou luz sobre o poder estruturante dos parâmetros espaçotópicos: forma,
dimensão e traço do requadro, posição do quadro, modo de inclusão do balão etc.
A meu ver, a condição de enunciável pode e deve ser estendida a toda forma de
imagem, mas não é suficiente para dar conta de seu potencial semântico. A imagem, como
veremos logo a seguir, não é somente um enunciável, é também um descritível e um in-
terpretável. O sentido que-o leitor (de uma história em quadrinhos) ou o espectador (de
um filme) constrói, a leitura que ele efetua da imagem, tem por condições uma descrição
seletiva e uma interpretação pessoal. Essa apropriação pode desembocar numa conversão
em enunciado; e igualmente pode conduzir a um julgamento estético, que considerará a
imagem em sua qualidade de apreciável.
Deleuze, contudo, não estendia a qualidade de enunciável a todas as imagens: ele
as reservava às imagens-movimento. No capítulo 7 de O que é a filosofia? (Percepção,
afeição e concepção), ele atribui o sentido de toda obra de arte, sobretudo da pintura, ao re-
gistro singular das sensações (percepção e afeição)' 67, ou seja, ela se posiciona, para deixar
François Wahl aturdido, "além de qualquer mediação da língua". Podemos nos interrogar,
aliás, o que faria das imagens-movimento uma matéria que a língua necessariamente toma-
165 Cinéma 2: L'image-temps, Paris, Minuit, 1985, p. 43. [Edição brasileira: A imagem-tempo. Trad. Eloiae Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 2005, p. 42.]
166 Ibid, p. 44. [Edição brasileira: p. 42-43]
167 Cf. Gilles Deleuze e Féfix Guattari, Ou'est-ce que la philosophie?, Paris, Minuit, "Critique", 1991, p. 154-188. Sobretudo esta
frase: "A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si" (p. 155). [Edição brasileira: O que é a filosofia?3a. ed.
Trad. Bento Prado Junior e Alberto Alonso Murioz. São Paulo: Editora 34. O capitulo referido encontra-se nas páginas 211 a 256 e
a citação, na p. 212.1
THIERRY GROENSTEEN 115
ria, dado que "o visível, aquilo de que a pintura fala" — ou melhor: dado que é a pintura que
fala — não será "arrancado do registro da sensação". Para Wahl, Deleuze estranhamente
fica num impasse em relação ao "ser discursivo da pintura e sua constituição para a frase",
sendo precisamente este o tema ao qual ele consagra a obra intitulada Introduction au
discours du tableau [Introdução ao discurso da pintura]' 68. A tese de François Wahl é de
que "é na estrutura da língua que se constrói a percepção" 69, a conversão da pintura em
proposição linguística assim se faria mais naturalmente quando a pintura (de forma mais
geral: o visível) já segue uma organização específica do discursivo, sendo que sua confi-
guração consiste em um jogo regrado de relações contextuais.
Mais uma vez, demonstar que o sentido é imanente à imagem não é um tema que
diz respeito diretamente à história em quadrinhos, dado que é entre os quadros que se
estabelece a relação de contextualidade mais pertinentes do ponto de vista da narração.
É justamente nesse nível que verificaremos, a seguir, que os encadeamentos de imagens
constroem as articulações que mais se assemelham às da língua.
2.2. - UMA NARRAÇÃO PLURIVETORIAL
Para tentar compreender o .que uma sequência de imagens fixas comunica de fato,
e como a narração se dá através dela, Vou partir da observação de uma prancha — escolhi-
da propositalmente por não conter diálogos, deixando para a fase posterior o estudo das
funções do texto. Vejamos (fig. 10) a segunda prancha do álbum Rencontres, de Mufioz e
Sampayo (Casterman, 1984). O que esta prancha narra aparentemente pode ser resumido
em poucas palavras: O herói, Alack Sinner, é acordado pelo barulho de um jornal que o
vento fez bater na sua janela. A manchete em destaque fala da morte de John Lennon. Os
autores utilizam sete quadros para produzir o equivalente a este enunciado.
Deve-se notar duas particularidades: 1/ Os dois primeiros quadros já bastam para
transmitir o conteúdo narrativo visível do conjunto da sequência, enquanto que as imagens
subsequentes aparentemente não possuem um prolongamento dessa ocorrência (Alack
acende um cigarro). 2 / As sete imagens decompõem-se em duas séries: de um lado, quatro
quadros nos quais aparece o protagonista, e, do outro, três quadros que mostram o jornal
e sua manchete em planos cada vez mais fechados. Nenhuma imagem mostra simultanea-
mente Alack e o jornal no qual se lê a frase John Lennon killed.
Se as duas primeiras imagens resumem a sequência, nem uma nem outra podem ser
pensadas como intrinsecamente narrativas. É a partir de sua justaposição que posso de-
168 Éd. de Seuil, "L'ordre philosophique", 1996.0 material precedente vem do n. 87, o. 199.
169 Id., p. 17, ênfase do texto.
Ii
116 O SISTEMA DOS QUADRINHOS TH1ERRY GROENSTEEN 117
duzir uma proposição narrativa. seus olhos"? Sozinho, o primeiro quadro me mostra apenas um jornal achatado contra uma
Mais uma vez, isto implica uma janela, sem que eu pudesse dizer a que habitação pertence essa janela, nem se a aparição
dose considerável de interpreta- do jornal é notada por quem quer que seja o ocupante dessa habitação. Podemos assim
ção. Alack estaria realmente dor- formular a primeira regra: que o sentido de um quadro pode ser informado e determinado
mindo? Se estava acordado, sua tanto por aquilo que o precede quanto pelo que o segue. Se existe uma vetorização da lei-
atenção foi atraída pelo barulho tura, não existe vetorização unívoca na construção do sentido.
(que nenhuma onomatopeia si- O melhor exemplo de determinação retroativa é o que encontro em uma imagem
naliza) ou apenas pela visão do que não está nessa prancha, pois trata-se do primeiro quadro da prancha seguinte. Vemos
jornal? Nada nos permite res- Alack Sinner inclinado sobre um bidê, numa posição que não deixa dúvidas de que ele está
ponder categoricamente essas vomitando. Esse quadro dá seu próprio sentido, não apenas às imagens que o precedem
dúvidas. Como leitor, construí imediatamente (e sobretudo ao sexto quadro da prancha reproduzida, que mostra Alack
esse sentido a partir das infe- tendo um acesso de tosse), mas ao conjunto da prancha precedente. À luz dessa revelação
rências que me parecem mais postergada, devo corrigir a tradução linguística espontânea que fiz no início. Agora a se-
prováveis. Existe aquilo que al- quência se deixa reduzir ao seguinte enuciado: A notícia do assassinato de John Lennon
gumas das imagens me mostram, afeta Alack ao ponto de fazê-lo passar mal. Todo o resto (o despertar de Alack, o jornal, a
e existe aquilo que sua confron- janela, o cigarro) fica reduzido ao nível de simples circunstâncias.
tação me permite fazê-las dizer Esse quadro — o qual deveríamos considerar como fechamento da sequência — es-
Todavia, no restante da clarece e justifica a posteriori o plano fechado e depois o plano detalhe sobre as letras que
sequência, certas imagens, con- Fig. 10— José Mufioz e Carlos Sampayo, compõem a manchete do jornal (cf. quadros 5 e 7). Agora está evidente que eles materia-
Mack Sinner: Rencontres, prancha 2, 1984.
sideradas isoladamente, são ins- — Casterman, p. 128. lizam o impacto emocional dessa notícia no herói. Chocado, ele a sente ressoar cada vez
tantaneamente traduzíveis em mais forte dentro de si, ao mesmo tempo em que cresce sua náusea. O status desses dois
enunciados linguísticos que exprimem uma ação; e, fiéis aos desejos de Roger Odin, essa quadros é, portanto, diferente do que têm os outros: não são representações objetivas (no
ação põe em relação "um sujeito e um objeto de desejo". Assim, no quarto quadro: Alack mais, o vento já levou o jornal para longe; além disso, como Alack não está se aproximan-
acende um cigarro. O terceiro quadro pode, da mesma forma, traduzir-se em um enuncia- do da janela, não há razão objetiva para a ampliação das letras), mas são, isto sim, tradu-
do similar, que seria: Alack estende o braço para pegar um cigarro e um isqueiro. Mas só ções gráficas dos efeitos. O que eles exprimem se passa completamente dentro da cabeça
opto por essa tradução por conta do que verifico retroativamente no quadro seguinte. Sem (e do estômago) de Alack Sinner.
considerar o terceiro quadro, eu poderia muito bem supor que nosso amigo quis acender
seu abajur. O quarto quadro, que o mostra acendendo o cigarro, me informa a posteriori' 2.3. - OS PLANOS DE SIGNIFICADO
a significação precisa do gesto, ao mesmd tempo positivamente (ele teria que ter pego Passemos a formular em termos mais genéricos o que observamos. A análise desse
cigarro e isqueiro para poder acender o primeiro com o segundo) e negativamente (ele não exemplo permite, ao que me parece, concluir que existe uma escalonamento do sentido. E
acendeu a lâmpada, dado que a peça ainda está imersa em sombras). , este só se revela plenamente ao leitor após o fim de travessia de diversos planos sucessivos
No mais, não é a determinação retroativa que me deixa saber que o jornal se mostra de significado.
a mim, no primeiro quadro, tal como o vê Alack — ou melhor: que eu o vi com ele e "por Dado que ele não possui outra existência que não a teórica (posto que o fora de quadro,
170 Esse efeito retroativo deverá mesmo assim ser relativizado, na medida em que, a partir do primeiro olhar do conjunto da prancha, ou o perimetral, está sempre imposto à percepção do leitor de história em quadrinhos), o plano
é provável que o conteúdo do quarto quadro, que ocupa posição quase central, já foi visto e registrado, de forma a provocar confusão.
118 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
do quadro deveria ser considerado como principal. A imagem, vista nela mesma, fora de todo
contexto, é, como sugere devidamente Deleuze, um enunciável. Posso traduzir ou exprimir o
que vejo dentro do quadro (o que dacfúilo que é mostrado) em termos linguísticos. De qualquer
forma, esse enunciado virtual será nahativo logo de saída (Allack acende o cigarro), enquanto
que em outros momentos, não conseguindo perceber uma relação dinâmica interna à imagem,
eu deveria contentar-me em nomear o objeto-signo (ou os objetos-signos) que ele mostra. Ao
invés de narrativa intrínseca, empregarei um termo mais neutro, o do significado imanente.
Nesse estado elementar, minha função de leitor é simplesmente observar e identificar.
O segundo plano é o do sintagma, limitado, quando ocorre, à tríade composta pelo
quadro que está sendo lido, o que o precede e o que lhe é posterior. Nesse nível, minha lei-
tura do quadro já é forçosamente distinta, informada antes e depois por outros conteúdos
com os quais construí (ou conferi), tendo a base de um postulado de coerência narrativa, as
relações semânticas. Agora estou no nível da interpretação. Essa microcadeia artrológica
constitui uma instância de interpretação em movimento: a qualquer momento de minha lei-
tura, eu privilegiarei as relações de proximidade imediata e reconstituirei essa tríade, que
carrego comigo. (É apenas o fenômeno da incrustação que contradiz essa regra, ao instau-
rar um diálogo privilegiado entre dois termos, o painel incrustado e aquele que o acolhe.)
O terceiro plano de significado é o da sequência. As articulações semânticas da
história permitem-me identificar e circunscrever uma história segmentada de qualquer
extensão, caracterizada por uma unidade de ação e/ou espaço. Permite-se converter a se-
quência em um enunciado sintético que, transcendendo as observações e construções de
nível inferior e cessando (pelo menos provisoriamente) o trabalho de inferências, produz
um sentido global explícito e satisfatório.
A artrologia geral demonstra que o quadro também pode ser objeto de determina-
ções semânticas distantes, que superam o requadro seguinte e criam uma operação em
rede. Como toda obra narrativa (implantada no tempo), uma história em quadrinhos é regi-
da pelo princípio da différance: sua significação só é construída por completo ao final da
leitura — sendo que depois disso a interpretação é livre para aprofundar a busca do sentido,
que não conhece limite definitivo.
É sempre bom lembrar que várias obras menos tradicionais e menos sofisticadas que
Alack Sinner obedecem a uma ordem narrativa estritamente linear (do tipo causal-dedutiva) e
não chegam a dispor de uma determinação retroativa no nível da sequência. É preponderante,
acima de tudo, o plano do sintagma. Nas histórias em quadrinhos para crianças pequenas, os
autores simplificam ainda mais a proposta, de maneira que cada quadro fique totalmente explí-
THIERRY GROENSTEEN 119
cito e significante por si só. A análise de uma prancha extraída de uma série desse tipo (Jojo, de
Geerts) demonstrará, todavia, que mesmo nelas certos efeitos, como os cômicos, por exemplo,
funcionam apenas se o leitor efetuar as ligações entre quadros e cenas distantes entre si. A op-
ção pela rede como nível de interpretação de última pertinência não está limitada às histórias
em quadrinhos modernas e sua escrita fragmentária, mas é, isto sim, um princípio geral.
2.4. - EM BUSCA DO VAZIO
"É mais fácil fazer ver que dizer, mais fácil contar do que descrever", já comentou
Claude-François-Brunonm. E sublinhou, conforme outros, que o essencial da narrativa se
dá muitas vezes "fora da imagem... entre imagens". Há autores que parecem se esforçar
para trabalhar de forma que o olhar do leitor, "frustrado quanto aos episódios principais",
seja "transportado de ausência em ausência" — mesmo que muitas vezes "o texto substitua
o que a imagem recusa-se a expor".
Daí a concluir que o sentido é produzido pelo vazio intericônico ("o entre-ima-
gens"), ao menos no ponto em que ele é colocado entre as próprias imagens, há apenas um
passo que alguns tentaram dar. Assim, Benoit Peeters diz: "A verdadeira magia da histó-
ria em quadrinhos está entre as imagens que ela opera, na tensão que ela libera. (...) Em
Hergé, no fim das contas, o que se deve analisar são os memoráveis 'vazios, os intervalos
entre dois quadros que são prodígios em precisão e audácia.. "172
Na verdade, -o vazio em si (o nada, pode-se dizer) evidentemente não merece ser fe-
tichizado. Quando não há vazio, mas um filete simples que separa duas imagens contíguas
(como é comum em Bretécher, ou há muito tempo em Tõpffer), as relações semânticas
entre as imagens são rigorosamente as mesmas. Se devemos supor um requadro implícito
nas imagens que não o tem, não há porque postular um vazio implícito quando o desenhis-
ta não fez uso do mesmo.
- Pode ser, como dirão, mas o termo "vazio" deve ser entendido como metáfora.
Nós o utilizamos para designar "aquilo-que-não-está-representado-mas-que-o-leitor-
-não-pode-deixar-de-inferir". Um virtual, portanto. E note-se que não é um virtual aban-
donado à fantasia de cada leitor: um virtual restrito, uma ausência identificável. O vazio
é apenas o espaço simbólico dessa ausência. Mais que uma zona sobre o papel, ele é a tela
interna sobre a qual cada um projeta a imagem (ou imagens) faltante(s).
171 Tentrimages", Europe n. 720: La bande dessinée, Paris, Messidor, abril de 1989; p. 37-46.
172 Case, planche, récit, op. cit., p. 27. Scott McCioud também faz da elipse (fechamento) o conceito fundamental de sua teoria da
história em quadrinhos, distinguindo seis "tipos de transição" entre dois quadros. Cf. L'Art invisible, Vertige Graphic, 1999, cap. 3.
[Edição brasileira: Desvendando os quadrinhos. Trad. Hélcio de Carvalho e Mansa do Nascimento. São Paulo: Makron Books, 19951
 120 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
É certo que não acredito que o leitor de história em quadrinhos tenha de construir
mentalmente "quadros fantasma" (a,. expressão é de Peeters), salvo quem sabe nos raros
exemplos em que os teóricos se esbaldam — mas que são exemplos escolhidos a dedo que
não autorizam conclusões gerais. Olhando-os mais de perto, não há como não se sur-
preender com um aparente paradoxo: esses exemplos famosos nunca tratam de segmentos
compostos de apenas dois quadros — amplitude neçessária, mas suficiente à exibição do
vazio. Quase sempre está envolvido um terceiro quadrom, o que confirma que se trata no
mínimo de um sintagma ternário, quem sabe até de uma sequência maior, que é o nível
prepondente de significância, o limiar a partir do qual pode-se elaborar as devidas infe-
rências lógicas.
Seria engano querer reduzir a qualquer custo os "silêncios" entre dois quadros con-
secutivos e assimilar a elipse a uma imagem virtual. O silêncio, na verdade, muitas vezes
é plenamente silencioso. Não há nada a introduzir nele, fora uma lacuna a suturar. É nesse
sentido que Hei Van Lier fala do "vazio nulo" no qual o multirrequadro flutua como uma
aeronave. O vazio, "a anulação de qualquer continuidade" 174, é exatamente o contrário do
vazio- revezamento. É o vazio mallarmeano do Lance de Dados, o vazio na música de We-
bern e o da física quântica. Ao ler uma história em quadrinhos, estou aqui, depois estou lá,
e esse salto de um quadro a outro (salto ótico e mental) equivale ao eléctron que muda de
órbita. Dizendo de outra forma, não existe intermediário entre os dois quadros. A imagem
HQ não é uma forma que, sujeita à metamorfose continua, modificar-se-ia com o incre-
mento de requadros sucessivos (entre os quais seria aceitável reconstituir os momentos
faltantes). É preciso sim que o vazio anule (provisoriamente) o quadro já lido para permitir
ao seguinte existir, por sua vez, como forma plena e compacta.
Quadros que fazem parte de uma mesma sequência certamente estão em dívida um
com o outro. Dentro do plano semântico, essa solidariedade icônica, na qual reconhece-
mos o próprio fundamento do sistema da história em quadrinhos, é programada pelo autor
na fase da decupagem e, no momento da recepção, postulada pelo leitor sob a forma de
uma hipótese de coerência narrativa. Conforme essa falsa premissa, todo quadro faz um a
propósito. O leitor de HQ, ao pressupor que existe um sentido, procura descobrir no que
o quadro que ele "lê" se relaciona aos outros, e como ele é relido em função dos outros.
1
173 Assim, no famoso exemplo escolhido por Peeters em Tintim no Tibete, o da queda de Capitão Haddock no aeroporto de Nova
Délhi, é notável que Hergé interpolou um terceiro quadro que representa Tintim (que não tem relação direta com a piada) no local
onde deveria estar o "quadro fantasma" e, sem essa imagem suplementar, a relação entre os outros dois quadros do sintagma não
teria tanta graça.
1741a bande
dessinée, une cosmogonie dure", op. cit p. 8
THIERRY GROENSTEEN 121
A história em quadrinhos não existe como forma narrativa satisfatória se não na
condição de admitir que, apesar de a enunciação ser descontínua e a demonstração inter-
mitente, a narrativa ainda produz forma, ou seja, uma totalidade ininterrupta e inteligível.
O "vazio" entre dois quadros não é o lugar de uma imagem virtual, ele é lugar de uma
articulação ideal, de uma conversão lógica, a de um segmento de enunciáveis (os quadros)
em um enunciado singular e coerente (a narrativa). A prancha de .Alack Sinner nos de-
monstrou que essa conversão às vezes se dá por etapas. O primeiro enunciado, resultado
do diálogo entre dois ou três quadros justapostos — e, naturalmente, forjados sob o con-
trole dos precedentes — pode ser nada mais que provisório e submeter-se a seguir, diante
de uma determinação retroativa imprevisível, a uma grande correção que leva a um novo
enunciado mais englobante.
É evidente que essa construção progressiva do sentido não é exclusividade da histó-
ria em quadrinhos. O texto literário segue um processo análogo, como bem o demonstrou
Wolfgang Iser. O "ponto de vista em movimento" constitui em si, segundo ele, "a base
hermenêutica da leitura". Em uma sequência de frases, os novos correlatos frequentemen-
te "modificam ou até desapontam as expectativas previamente dadas (...) No texto, cada
correlato de uma enunciação prefigura, através de suas representações vazias, a correlação
seguinte, construindo, em virtude de suas intuições satisfeitas, o horizonte para a enuncia-
ção anterior"r".
A imagem da história em quadrinhos, cujo sentido muitas vezes permanece aberto
quando ela se apresenta isolada (e sem ancoragem verbal), encontra sua verdade na se-
quência. Por outro lado, o vazio, insignificante em si, investe-se de uma função artrológica
que só é decifrável frente a frente com as imagens singulares que ele une e separa. O vazio
intericônico poderia ser qualificado de "polissintático", como diz Anne-Marie Christin
em relação ao "nada pictorial" (o que separa as figuras dentro de uma mesma imagem, tal
como uma pintura). Christin sugere que a função que o "nada pictorial" assume com maior
dificuldade é a função narrativa:
... a designação clara e imediata do papel das personagens representados não
depende do espaço que os isola mutuamente, mas dos códigos dos quais eles são investi-
dos individualmente, códigos de vestimenta, códigos sobretudo gestuais, como mostram
as pinturas de gênero como as de G reuze, por exemplo. Se o nada é necessário entre as
175 L'Acte de facture. Théorie de l'effet esthétique, Pierre Mardaga, "Philosophie et language", Liege, 1976, traduzido do alemão
por Evelyne Sznycer, p. 204-205. [Edição brasileira: O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer, São
Paulo: Editora 34, 1999, p. 16-17,1
122 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
figuras pintadas para que se constitua uma sto ria, como preconizou Alberti, é porque é
acima de tudo uma marca de inteligibilidade, indício de uma copresença...'"
O vazio intericônico marca, obretudo, a solidariedade semântica dos quadros con-
tíguos, ambas trabalhadas conforme os códigos do desenho narrativo e sequencial. Entre
as imagens polissêmicas, o vazio polissintático é espaço de uma determinação recíproca,
de cima para baixo e de baixo para cima, e é dentro dessa interação dialética que se cons-
trói o sentido — mas não sem a participação ativa do leitor.
2.5 -A REDUNDÂNCIA
Outro lugar comum na teoria das histórias em quadrinhos deseja que a mídia seja
forçada à redundância icônica, sendo este o "preço" para que a continuidade narrativa se
garanta. "Arte do gago", segundo formulação pouco elogiosa de Pierre Massonl", a his-
tória em quadrinhos estaria baseada em uma dialética da recepção e da diferença, e cada
imagem encadear-se-ia à precedente por uma reprise parcial do conteúdo.
Essa concepção provém de influência dupla. Ele encontra suas fontes na teoria
da informação, segundo a qual a redundância é indispensável à transmissão do elemento
novo que constitui propriamente a informação, e da narratologia clássica (a de Todorov e
Gaudreault), que reconhece a possibilidade de narração apenas entre imagens ao mesmo
tempo similares e diferentes (cf. supra 2.1).
Não se pode negar que a redundância é princípio básico da maioria das histórias em
quadrinhos (mesmo que algumas fujam à regra). Mas é preciso verificar que isto normalmen-
te é consequência direta da organização da narrativa em torno de uma personagem central
(convencionalmente designada por "herói") que, solo ou ladeado por parceiros, estará quase
continuamente no centro da ação. Tal focalização narrativa traduz-se na imagem através da
ubiquidade de dita personagem, representada em grande número de quadros'". Na verdade, o
caráter insistente do protagonista da história se vê em todas as formas narrativas, incluindo a
literatura, onde ele vira um nome ou pronome NU" ou "ele", conforme a narração em primei-
ra ou terceira pessoa) que é repetido incansavelmente. Isto apenas fica mais evidente quando
temos uma história em imagens, e particularmente uma história em quadrinhos, dado o fato da
discretização das imagens distribuídas pelo multirrequadro em regime de co-ocorrência.
176 Anne-Marie Christin, L'Image écrite. Paris, Flammarion "Idées et Recherches", 1995, p. 18.
177 Cf. Lire Ia bando dessinée, Presses Universitaires de Lyon, 1985, p. 72.
178 A cor usualmente torna o protagonista ainda mais visível nessa repetição: o blusão azul de Tintim ou o traje vermelho de Spirou
marcam sua presença múltipla.
THIERRY GROENSTEEN 123
Entre os pesquisadores que insistiram em especial quanto à obrigatoriedade da re-
dundância, cito o alemão Ulrich Krafft 179 e o norte-americano Richard J. Watts. Para o
último, o autor da história em quadrinhos, dado que se utiliza de meios verbais e visuais
para representar uma ação "ostensivamente manifesta", se dá "de tal maneira que o lei-
tor é capaz de fazer a distinção", não apenas "entre informações novas e antigas", mas
igualmente entre as informações novas, as que são pertinentes e as outras.'" A aparência
levemente maniqueista de tal tipologia das informações não foge à atenção de Watts. Ao
perceber devidamente na produção de inferências o essencial do trabalho do leitor, ele virá
a reconhecer que "não é possível explicar a totalidade dos processos de comunicação dos
quais dependem a história em quadrinhos por meio da mera aplicação de modelos de co-
municação codificada", e que a arte da história em quadrinhos reside, quem sabe, por fim,
na "descoberta do limite último que o leitor é capaz de atingir dentro de sua capacidade
inferencial." 8 '
Encontramos em Michel Tardy a ideia de que, na construção da imagem, a infor-
mação pertinente torna-se ostensiva através de um conjunto de técnicas e procedimentos
que garantem uma hierarquização de motivos (divididos entre "objeto central" e "objetos
secundários"). Mas o próprio autor sugere limites que barram a vontade de dominar a
recepção da imagem, quando, suscitando uma sequência televisiva hipotética, escreve:
Deve-se levar em conta que, assim como no mundo real, os objetos
necessariamente mantêm relações de vizinhança com outros objetos, e cor-
rem o risco de que o espectador, dado um ato voluntário cujo controle foge
ao fator das imagens, perturbe as hierarquias perceptivas que se lhe propõe.
Lá, em meio à multidão, uma silhueta feminina é mais interessante que o
close-up de uma personagem que se pensou como principal... 182
Vemos que a utilização teórica da noção de redundância conduz necessariamente à
concepção de que cada quadro se organiza em torno da informação nova e pertinente que
fará a narração progredir. Há, contudo, diversas objeções contra tal uso. Para começar, o
próprio conceito de informação é reducionista: ele vincula-se a uma concepção funciona-
lista demais da narrativa em imagens. Em um desenho (e tanto melhor quando se trata de
179 Comics lesen, op. cit. Cf. sobretudo p. 27.
180 "Comic strips and theories of communication", Word & Image, vol. 5, n. 2: The picture and the text, Taylor & Francis, abril-junho
1989, p. 173-180. Citações das p. 176-177,
181 Ibid., p 176.
182 Iconographie et sémiogénése, tese de doutorado, Estrasburgo, Université Louis-Pasteur, 1976, p. 510-511.
124 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 125
uma imagem fixa), tanto "objetos" ou detalhes podem suscitar um interesse, provocar um imagens que representam um
prazer, dar um toque discreto à obra ou, em resumo, atender a uma modalidade de perti- jornal, e uma segunda série na
nência que não seja diretamente Ébmissa à condução da trama. qual os quadros representam
Em segundo lugar, insistd no fato de que a progressão da narrativa não é nem Alack Sinner.
constante nem linear. Não é verdade dizer que cada quadro tem por missão fazer a trama Em resumo, a redundância
avançar rumo à resolução. Alguns mangás, em particular, são notáveis pelo uso maciço de está longe de ser passarela obriga-
quadros supérfluos do ponto de vista estritamente narrativo, pois sua função é precisamen- tória entre dois quadros consecu-
te outra: ornamental, documentária, rítmica ou poética, conforme o caso. Esses quadros tivos de uma sequência narrativa.
respeitam o princípio geral de correferência, mas sua contribuição não será avaliada em Em uma história em quadrinhos,
termos de informação. Mais que o quadro, é a página ou a sequência que, segundo essa a continuidade narrativa é garan-
relação, constitui a unidade pertinente. tida principalmente pela contigui-
Existe, é verdade, uma multiplicidade de correlações possíveis entre quadros con- dade das imagens, mas este lado
tíguos. Algumas apoiam-se, de fato, na redundância, correndo o risco de serem reduzidas a lado não é obrigatoriamente um
a elemento menor (um "objeto secundário"), como os adesivos de hotel que Winckler, a ponta a ponta de instantes narrati-
personagem de Georges Perec, tanto se esforçava para classificar: vos armados segundo uma lógica
mecânica ou unívoca, que seria
O que pretendia era um encadeamento, de modo que cada etiqueta es- a da repetição e da diferença. É
tivesse ligada à seguinte, mas sempre por um motivo diferente; por exemplo, importante proteger-se de con-
poderiam possuir um detalhe em comum, um vulcão ou montanha, uma baía clusões dogmáticas. A história Fig. 11 - Paul Cuvelier e Jean Van Hamme, Corentin:
Le royaume des eaux noires, prancha 38, 1974. © Ed.
iluminada, uma flor específica, um mesmo friso vermelho e dourado, a cara em quadrinhos admite toda sorte du Lombard, p. 138.
gorda de um cavalariço; ou, então, ter um mesmo formato, uma mesma for- de estratégias narrativas, que são
ma de grafar, dois slogans semelhantes ("A Pérola do Oceano", "O Diamante todas igualmente legítimas e modernas. Assim como parece pressentir Richard Watts, a de-
da Costa"); ou, ainda, uma relação baseada não na semelhança mas numa cupagem por vezes se manifesta por excelência como arte de fazer a economia da redun-
oposição, ou numa associação muito leve, quase arbitrária...'" dância. Por outro lado, um desenhista como Lewis Trondheim, em seus primeiros trabalhos,
diverte-se ao levar o princípio da redundância icônica ao paroxismo'".
Mas por vezes a correlação •foge totalmente à redundância do significante, por
exemplo, quando é da ordem da metáfora. 2.6 — DECUPAGEM E COMPOSIÇÃO DE CENA
Acrescento que os quadros que compõem uma mesma série (no sentido de que se- Analisarei agora a decupagem de uma sequência extraída de uma obra, mais clássi-
guem um princípio de redundância icônica parcial) não são necessariamente dispostos um ca, em termos formais, que a de Murioz e Sampayo. Trata-se de Royaume des eaux noires
depois do outro, mas podem alternar-se com quadros de uma ou até várias outras séries — [Reino das águas negras], último episódio das aventuras de Corentin, desenhado por Paul
como no nosso último exemplo (fig. 11), o entrecruzamento de uma primeira série de três Cuvelier a partir de roteiro de Jean Van Hamme (Éd. du Lombard, 1974). A prancha 38
(fig. 11) é uma cena de ação e mostra uma perseguição. O herói, Corentin, tenta fugir
183 La Vie modo d'emploi, Paris, Hachette, 1978, p. 54. [Edição brasileira: A vida, modo de usar Trad. Ivo Barroso, São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 47.] O fim da passagem faz uma critica maliciosa da neção de semelhança: "Não era apenas difícil, 184 Vide seus álbuns Monolinguistes [Monolinguistas] (Le Lézard, 1992) e Le Dormeur [O Que Dorme] (Cornélius, 1993), ou ainda,
acrescentava Winckler; era, sobretudo, inútil: deixando as etiquetas misturadas e escolhendo duas ao acaso, podia-se estar certo de em colaboração com Jean-Christophe Menu, Moins d'un quart de seconde pour vivre [Menos de um quarto de segundo de vida]
que teriam sempre pelo menos três pontos em comum." (L'Association, 1991 e 1996).
126 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
dos cavaleiros enviados em seu encalço por Chaltan, seu formidável adversário. Ele está
acompanhado da amiga ZaIla e do avô dela, o mágico Narreddine, assim como de seus
companheiros habituais, o gorila ifelzébuth e o tigre Moloch.
Em si, a ação que decorre desta prancha é perfeitamente "legível" independente do
contexto do álbum. O único ininteligível é o desenhado no último quadro, e não apenas
para o leitor, mas também para os próprios protagonistas, como indica o balão com um par
de pontos de interrogação. Os autores tiveram a destreza de situar essa imagem insólita e
espetacular no final da prancha (que, no álbum, ocupa a página à direita); de forma que a
sequência interrompe-se em uma imagem na qual o suspense coincide com a estupefação.
A explicação será dada na página seguinte: Narreddine recorreu a sua magia para deter os
agressores, criando um "muro magnético". É contra essa muralha invisível que o cavaleiro
e sua cavalgadura se bateram.
O que nos interessa é a dramaturgia dessa sequência. No primeiro quadro, os heróis
fixam-se em um objetivo. Sua jornada frenética se dá em um deserto rochoso onde eles não
têm como não ser capturados, encontram um caminho e, assim, a sequência inteira é dire-
cionada (vetorizada) para um fim incerto: conseguirão eles chegar ao abrigo no rochedo que
chamam de "Croc de Satan" [Garra de Satã]? O quadro 2 insiste na ameaça que representam
seus perseguidores ao mostrar seu número, armamento e determinação. O braço estendido de
Narreddine é repetido pelo chefe dos cavaleiros, que aponta na mesma direção. Mais fecha-
do, o quadro 3 é o único que deixa à vista os dois grupos, fugitivos e perseguidores; o leitor
pode ter a medida exata da situação e observar, particularmente, a distância que separa uns
dos outros. Moloch e Belzébuth, todavia, não aparecem nesta imagem; aliás, não os veremos
mais nesta página nem na seguinte. Evidentemente, não é a magia de Narraddine a causa de
sua desaparição. É esperado que eles participem dessa ação até o fim, mas, dado que devem
desempenhar apenas papel de figurantes, são deixados fora de quadro de forma que, no mo-
mento em que o perigo se aproxima, a atenção recaia sobre as personagens principais. É isso
que se passa nos quadros 5 e 6, onde apenas Corentin e Zaïla são representados.
Essa sequência confirma que um quadro não é determinado apenas por aquele que o
precede e pelo que o sucede, mas sim pelo arranjo global da sequência, que lhe dá sua devida
função. Percebemos que a redundância aqui é reduzida ao que é central a essa ação, a partir
do que podemos dizer que eles são objeto de uma focalização icônica (a qual não faz mais do
que transmitir seu estatuto privilegiado no conjunto da narrativa). Tudo que não tem neces-
sidade de repetição, por sua vez, só é mostrado uma vez; e essa ocorrência singular é como
que fatorizada pelo conjunto da sequência. O leitor "conserva" assim todas as informações
THIERRY GROENSTEEN 127
que são úteis à inteligibilidade da situação narrativa (que seriam, por ordem, a presença de
dois animais selvagens, o número de cavaleiros, a proximidade da "Croc de Satan", a distân-
cia entre os dois grupos), sem que as imagens sucessivas tenham necessidade de repetição.
Os quadrinhos podem ser comparados a amostras metonímicas que operam sobre
um "plano de conjunto" virtual, o qual encerra a sequência em sua totalidade tanto espacial
quanto temporalmente. O termo decupagem deve então ser entendido literalmente e em
relação a duas dimensões: o que é decupado não são apenas momentos do tecido narrativo
(os momentos chave da ação), são também vistas parciais, os enquadramentos seletivos
que enfocam zonas pertinentes e deixam diversas informações fora de quadro.
Roland Barthes lembrava: "... a mola da atividade é a própria confusão da consecu-
ção e da consequência, o que vem depois sendo lido na narrativa como causado por"185.
A narratologia moderna, contudo, cria um modelo de análise estrutural que tende a "des-
cronologicizar" o conteúdo narrativo e a "relogicizar"'". O que me parece é que a orga-
nização narrativa própria à história em quadrinhos, ou seja, a maneira como ela distribui
as informações por sua duração, excede com grande frequência a lógica do post hoc, ergo
propter hoc, usando procedimentos que já são eles mesmos estruturais.
A regra fundamental que estrutura essa prancha de Corentin é o principio da econo-
mia, em virtude do fato de que o desenhista só inclui nessas imagens o que precisa estar lá.
Não há duvida que tal focalização sobre os únicos elementos que são pertinentes nunca é
absoluta, e a imagem sempre prolonga, por natureza, a mensagem que ela comporta:
...a demonstração tem suas contingências próprias, e a "fala" que nela
se origina é sempre, muito ou pouco, poli-informacional. Se eu digo: "O ho-
mem está no corredor", eu não dou nenhuma informação contextuai sobre o
aspecto do corredor, sobre aquilo que ele contém, sobre a situação topografia
do homem em relação à parede da esquerda; etc. Enquanto toda imagem [...]
me faça compreender que um homem está em um corredor me dirá também se
ele está profudamente embrenhado nele, se esse corredor parece extenso, se ele
contém objetos, se o homem está apoiado ou não sobre a parede da esquerda.'"
185 "Introduction à l'analyse strucuturale das récits", in Poétique du récit, Paris, Le Seuil, "Points" n. 78, 1977, p. 22 [Edição bra-
sileira: "Introdução à análise estrutural da narrativa". In: BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia
Barbosa Pinto, Petrópolis: Vozes, 1976, p. 331 O texto saiu originalmente na Communications n. 8, 1966.
186 lbid, p. 26. [Edição brasileira: p. 371
187 André Gaudreault, François Jost, Cinema et récit. Le récit cinématographique, Paris, Nathan, 1990, p. 82 [Edição brasileira: A
narrativa cinematográfica. Trad. Adalberto Müller, Ciro Inácio Marcondes, Rita Jover Faleiros. Brasília: Editora da UnB, 2009, p. 1081.
Os autores escrevem "toda imagem filmica", mas me parece que sua proposta pode ser estendida com legitimidade a outros tipos
de imagens, em particular à imagem desenhada.
128 I O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 129
A "informação contextuar que a imagem traz (neste exemplo: a cor das pedras, a escolhido é perpendicular à
presença de nuvens no céu, a poeira que sobe das patas dos cavalos...) poderia conduzir à trajetória do cavalo, opção
perda do sentido caso, por culpa deita, a atenção do leitor se dispersasse. Por experiência, que nos permite perceber exa-
parece-nos que esse risco é apenaãlusório e que a coerência narrativa e semântica nunca tamente a proximidade física
corre algum risco. entre os heróis e seu adversá-
O que ela preserva é o fato de que a expectativa do receptor está espontaneamente rio e, sobretudo, tomar mais
orientada para a curiosidade narrativa, e sua atenção organizada pelo apetite particular que espetacular o choque brutal
desperta toda ficção. Parafraseando a fórmula de Bernard Noêl, eu diria que o leitor de HQ do cavaleiro e sua montaria
não vê a imagem, mas vê o sentido que tem para si a porção da imagem que a narrativa com o muro magnético. Além
designa para sua atenção 185. disso, a vertical que é dese-
De forma simétrica, a hierarquia de informações veiculadas pela imagem é garan- nhada pelos pontos de impac-
tida por sua organização intrínseca, a que obedece à instância da composição de cena. to é situada ao centro do qua-
Emprestado da esfera do teatro, este conceito pode ser muito bem estendido à história em dro, dividindo-o exatamente
quadrinhos, dado que o cinema já o utiliza por extrapolação. No caso da nona arte, seria em dois.
necessário o rigor de distinguir pelo menos dois componentes dessa organização da repre- A composição de cena,
sentação: a composição do quadro e a composição do desenho. Mas a vantagem teórica portanto, participa plenamen-
seria mínima, principalmente porque a composição do quadro apareceria com a relevância te da decupagem. Os quadros,
de dupla autoridade: a de decupagem e a de /ayout. que são o corpo material da
A composição de cena, portanto, organiza diferentes parâmetros da imagem (enqua- obra, são compostos em fun-
dramento, escolha do ângulo, composição, "jogo" de personagens, iluminação etc.) em fun- ção de articulações ideais, onde Fig. 12 - kl., com textos suplementares, p. 144.
ção da dinâmica interna à sequência, visando produzir um efeito estético ou dramático, e a decupagem decidiu e que ela
para uma legibilidade imediata daquilo que, na imagem, constitui o enunciável pertinente. deve tomar manifesta. A título experimental (cf. fig. 12), podemos nos entreter introduzindo, en-
Observemos os procedimentos de composição de cena empregados nos quatro últi- tre os quadros, as conjunções coordenativas ou outras articulações linguisticas que explicitem as
mos quadros da prancha de Corentin. Entre a queda de Zaila (momento crucial da sequência, articulações da sequência, sua artro-lógica. Se as informações enquanto isso/portanto / porém
sabiamente posicionado ao centro da página) e a imagem seguinte, que mostra Corentin a / imediatamente / infelizmente / repentinamente fossem introduzidas ali, seriam redundantes e
ajudando-a, o ponto de vista desloca-se aproximadamente 100% posicionados atrás de ZaYla, perfeitamente inúteis. A decupagem e, sobretudo, os procedimentos de composição de cena, já
nós nos vinculamos ao movimento de sua queda, mas é com Corentin que corremos em são estruturados e sustentados por esses operadores sintáticos implícitos, que o layout em si pode
seu auxilio. Além de reforçar a participação,,o deslocamento do ponto de vista possui duas às vezes ressaltar. Não fosse assim, a conversão de uma série de enunciáveis (os quadros) e um
outras vantagens: permite que o desenhista mostre o gesto e o rosto de Zaila pelo ângulo enunciado coerente (uma sequência narrativa) seria impossívell".
mais eloquente e prepara o surgimento do cavaleiro na imagem seguinte. Essa imagem será
enquadrada num ligeiro contra-plongée, para deixar a estatura do agressor mais ameaçadora. 2.7 - DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃO
A composição do último quadro, por fim, é sem dúvida a mais marcante: o ponto de vista Já comentei acima que a imagem não é somente um enunciável, mas também um
189 O cinema aprendeu a transmitir essas conexões verbais que, no tempo do cinema mudo, apareciam como legendas na forma
188 Cf. Bernard Noêl, Journal do regard, Paris, POL, 1988, p. 56: "Vemos menos o mundo e mais o sentido que nos tem a parte do de cartões. Lembramo-nos especialmente do célebre "e de repente" que, em O Encouraçado Poternidn, introduz a sequência da
mundo que enxergamos." escadaria de Odessa.
130 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
descritível e um interpretável. É chegado o momento de precisar de que maneira a des-
crição e a interpretação conseguem restituir à imagem sua real riqueza semântica (e sua
aplicável natureza emotiva), o que 5 redução a um enunciado linguístico correspondente a
sua "mensagem" narrativa imediath tende, mecanicamente, a ocultar.
É fato que a conversão do enunciável em enunciado não mobiliza, na imagens, ou-
tra coisa que não os elementos diretamente implicados no processo narrativo, ou seja, os
que estão envolvidos na ação. (É por isso que, salvo exceção, as personagens revelam-se
mais significativas que a ambientação.) Além disso, essa conversão não exige mais que
uma percepção global e sintética dos elementos que ela retém. Se, por exemplo, eu con-
verto o penúltimo quadro da prancha de Corentin (fig. 11) em um enunciado tal como "er-
guendo seu sabre, o primeiro dos cavaleiros lança-se sobre Corentin e Zafla imobilizados
em solo", a precisão relativa às atitudes dos protagonistas que são tidas como pertinentes
(ergue seu sabre... imobilizados no solo...) está longe de esgotar as informações visuais
contidas na imagem. Qual a distância exata que separa os oponentes de suas vítimas? Que
roupas os de cá e os de lá vestem? Como está o sol, qual é a paisagem, o céu? A imagem
não se emudece em relação a todas essas perguntas. Mas ela só me fornece essas respostas
no momento em que, mudando meu regime de leitura, eu a observo como um descritível
ao invés de consumi-la como enunciável.
Sabemosl" que a descrição é uma das operações fundamentais do texto literário.
Considerada como um dos meios da amplificatio, ela é um recurso de insistência, de ên-
fase: um texto detém-se em certos personagens, lugares ou objetos para descrevê-los de
forma mais ou menos prolongada, e ignora diversos outros, assim determinando uma ca-
tegoria implícita. Qualquer que seja a extensão e a minúcia da descrição, ela representa,
como lembra Philippe Hamon, "um 'pedacinho' relativamente autônomo, facilmente 'des-
tacável', `retirável' do fluxo textual" 191 .
Vemos já de saída que uma imagem não pode ser descritiva no sentido técnico deste
termo. Se ela nos mostra os componentes de um objeto qualquer, tais como as proprieda-
des desses componentes (formas, materiais, cores etc.), essas precisões não se acrescentam
à apresentação do objeto, elas lhe são consubstanciais. Aliás, é próprio da demonstração
visual apresentar necessariamente o "particular" e não o "gerar". A presença dessas
190 Os parágrafos a seguir resumem, mesmo que a perspectiva geral tenha sido modificada, as considerações já desenvolvidas em
meu artigo "Entre monstration et narration, une instance evanescente: la description", Anais do colóquio internacional L'Image BD,
louvain, Open Ogen, 1991, p. 41-55.
191 Philippe Hamon, Introduction à l'analyse du descdptif, Paris. Hachette, 1981, p. 25;
192 Cf. Daniel Arasse. Leüétail. Pour une histoire rapprochée de la peirdure, Paris, Flammarion, "Champs", 1996, p. 46-47. Primeira
edição em 1992 na coleção "Idées et Recherches".
THIERRY GROENSTEEN 131
precisões na imagem não é contingente e não é testemunho de uma intenção descritiva.
Em se tratando de uma imagem desenhada, em primeira instância, é o estilo próprio do
desenhista que determina o grau de precisão da imagem, a quantidade de detalhes que ela
contém. Um cartum de Wolinski ou de Pétillon é sumário e, poderíamos dizer, deficiente
em descrição. Por outro lado, uma caricatura de Mulatier ou uma ilustração de Crumb
trazem uma abundância de traços e elevam em muito a enumeração de particularidades do
tema representado. Por meio desses quatro exemplos, queremos defrontar duas concep-
ções radicalmente distintas do desenho "humorístico", que solicitam ao público dois mo-
dos de participação opostos: busco captar a ideia que se exprime no desenho de Wolinski
ou Petillon, e meu interesse esgota-se assim que percebo a brincadeira, ao passo que me
detenho voluntariamente a contemplar por mais ou menos tempo os desenhos de Crumb
ou de Mulatier, entregue ao fascínio pelos detalhes.
Encontra-se essa diversidade de escrituras gráficas na história em quadrinhos. Mas
soma-se a ela urna propriedade que faz a narrativa em imagens opor-se à narrativa literária:
o grau de precisão da imagem permanece mais ou menos igual independente do tema (lu-
gar, objeto, personagem) representado. Se a imagem é descritiva, ela o é indiferentemente
a todos os aspectos transmitidos pela narrativa, dando a mesma atenção a todos. Essa equi-
dade é estrita no cinema, onde a película não faz diferença entre os vários atores e objetos
que fazem parte do material profílmico, registrando todos com a mesma "objetividade".
Ela é aproximada na história em quadrinhos, na qual o artista tem a liberdade de alterar o
regime de sua escritura gráfica, detalhando tal aspecto enquanto outro fica como rabisco.
Apesar disso, essa possibilidade é, sobretudo, teórica; e suas ocorrências significativas
não são numerosas (me parece-me que elas se encontram principalmente nas pranchas de
artistas mais jovens, como Yvan Alagbé, Joann Sfar ou Dominique Goblet). A regra que
prevalece é a da homogeneidade do estilo.
A narrativa em imagens é, portanto, muito mais discriminativa que o texto literário.
Ao insistir sobre um aspecto e designá-lo como mais importante que outro, é necessário
que a câmera detenha-se mais nele; porém, ao fazê-lo, ela não produz mais que o equiva-
lente a urna descrição. Na história em quadrinhos, é acima de tudo pela frequência de suas
aparições que tal personagem ou tal objeto será privilegiado em relação a outros, e não
é por isso que sua "definição ótica" será superior à das personagens ou dos objetos mais
episódicos.
Essa questão também me leva a sublinhar que, uma vez que o mesmo aspecto é
representado diversas vezes, ele carrega todos os seus atributos (predicados) consigo. Se
132 f O SISTEMA DOS QUADRINHOS
queremos reconhecer no desenho propriedades descritivas, então devemos admitir que é
uma descrição infinitamente repetida, à qual não saberíamos designar um determinado lu-
gar. Em um texto, pelo contrário, as Efescrições em geral são dadas "de uma vez por todas";
uma vez descrita uma personagem, Oor exemplo, ela é simplesmente designada em seguida
por seu nome, por um pronome ou um deifico. A descrição dá lugar à denominação, da qual
pode ser considerada uma forma de extensão ' 93.
Por todos os motivos expostos acima, a história em quadrinhos (a narrativa visual
em geral) não me parece apta a produzir, por conta própria, equivalente algum da operação
que é conhecida como descrição no domínio literário. Por outro lado, cada um dos quadros
é descritível para o leitor, da mesma forma que os reconhecemos como enunciáveis. É ao
receptor que cabe, se for o caso, construir essa descrição, Tal construção só é possível dentro
de certas condições. De início, ela é subordinada, em extensão, à quantidade de informações
objetivamente veiculadas pelo desenho; é óbvio que a descrição de um quadro de Copi será
mais rápida que a de um quadro de Giraud. Ela precisa, sobretudo, de uma modificação
quanto ao modo de leitura. Ler uma história em quadrinhos é sempre, em primeira instância,
conectar-se prioritariamente ao encadeamento de fatos ou, se assim se preferir, à dinâmica
da narrativa. A leitura começa por colocar a obra em seu primeiro nível de coerência, o da
mecânica do sentido. Nesse estágio, a imagem é apreendida — não exclusivamente, como ve-
remos em um instante, mas, de toda forma, principalmente — na sua qualidade de enunciável.
Para chegar à leitura descritiva, não basta chegar mais perto ou perder-se na contemplação
das imagens. A descrição só se efetua ao preço de uma leitura ativa, minuciosa, que se põe a
estabelecer um inventário de informações contidas na imagem.
Como se pode imaginar, a imagem potencialmente descritível raramente é descrita na
sua totalidade. Não queremos que o leitor se predisponha — com que ganho? — a exercício tão
escolar (exercício este que, com o nome ecfrase, fazia parte do currículo da Grécia antiga,
de Bizâncio, e da Itália do Quattrocento). Mas não é raro que essa descrição não aconteça
de forma alguma. O grau de descrição da leitura efetuada varia de uma imagem para outra, e
também de um leitor para outro. Minha hipótese é que cada um buscará na imagem — e reterá
dela — tal ou tais detalhes que são significativos para si naquele instante. Essa amostragem'
excede o nível estritamente funcional de conversão da imagem em enunciado; constitui sim
um começo, mesmo que mínimo, do inventário e, portanto, da descrição.
193 Cf. Philippe Hamon, op. cit., II 43 e 76, sobretudo.
194 Se a imagem é descritivel, a descrição que pode fazer não obedece a organização alguma dada dentro da imagem. As notações
não seguem uma ordem determinada; como em uma descrição literária, elas estão distribuídas pela imagem, sobre a qual o olho
passeia livremente. Essa diferença essencial favorece a amostragem de um detalhe ou outro.
THIERRY GROENSTEEN 133
Daniel Arasse lembra que "a língua italiana diferencia o que é particolare do que é
dettaglio "I". Não importa qual mínima parte de uma figura ou objeto constitua um parti-
colare, ou seja, um detalhe no sentido objetivo. Essa pequena parte torna-se dettaglio no
instante em que ela "se torna significativa", no sentido em que ela é recortada, escolhida
pelo leitor/espectador da imagem, que encontra em seu detalhe um interesse ou prazer
particular. Assim, da minha parte, nunca vejo a prancha de Corentin sem que meu olhar
seja abordado ao menos por uma das "parcelas mínimas" a seguir: o tigre e o gorila no
primeiro quadro, a cabeleira de Zaila no quarto, sua atitude de descaso libertino no penúl-
timo. Esses detalhes, que são privilegiados apenas por mim (cada um com seu cada qual),
naturalmente informam a percepção global que tenho da prancha, assim como contribui e
dão a inflexão do prazer que extraio dela.
Mas a imagem, singularmente a imagem desenhada, é descritível em sentido duplo.
Por um lado, porque ela mostra sempre mais do que é necessário à inteligibilidade da ação
(esse acréscimo é composto por aquilo que André Gaudreault e François Jost designam
"informação contextuar); por outro, por ela ser produto de uma escritura gráfica singular,
em que cada traço pode ser descrito dentro de sua especificidade (técnica, motriz, estéti-
ca). Daniel Arasse faz a distinção (p. 12) entre o detalhe "icônico" e o detalhe "pictórico",
sendo que o primeiro remete a uma particularidade do objeto pintado, o segundo à presen-
ça da própria matéria pictórica. Da mesma forma, descrever um quadro desenhado é uma
operação necessariamente fragmentada. Uma descrição não se concretiza se não levar em
conta, além dos elementos desenhados, a maneira como estes são feitos. Se descrevo a
qualquer pessoa que não viu uma cena desenhada por Murioz, omitindo todas as caracterís-
ticas de estilo próprias a esse artista (como se não fizesse diferença o ilustrador ser Mutioz
ou Hergé), eu nunca chegaria a colocar diante de seus olhos, o mínimo que seja, a imagem
de que falo. É claro que é difícil descrever completamente uma imagem em suas duas
dimensões (icônica e gráfica), ou seja, dar conta ao mesmo tempo da cena representada e
do conjunto organizado e sensível de traços materiais que produzem tal cena. Na verdade,
essa ambição assimila a descrição em parte a uma forma de crítica no ato. Descrever, com
um mínimo de precisão, o traço ou o sistema gráfica de tal e tal artista, supõe competências
que estão longe de ser de conhecimento unânime.
Resta que, dado que paro em tal ou tal detalhe de uma história em quadrinhos, não
é raro que eu o aprecie (por mais que de forma confusa) como performance gráfica deter-
minada e prazerosa. Assim, nas patas do cavalo desenhado por Paul Cuvelier, admiro a
195 Le Détail, op. cit., p. 11.
134 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
ciência anatômica do desenhista, sua noção de movimento e a escolha que ele fez de uma
postura pouco convencional, na qual a precisão mesmo assim se impõe de forma inegável.
Minha apreciação do que o artista fez; nessa localização precisa, pode no mais me condu-
zir a uma interrogação sobre seu maklo: terá ele, neste desenho, utilizado uma referência
fotográfica? Em resumo, não é porque cavalgo ou porque sou amigo dos cavalos que me
interesso por esse detalhe, mas sim por ser amador no desenho e admirador de Cuvelier.
Falta ainda falar da interpretação, ou melhor, da imagem como interpretável.
Não é necessário mudar de exemplo. Basta sugerir que, para devolver à prancha 38
de Royaume des eaux noires toda sua densidade textual, devemos nos colocar no nível da
significância mais englobante: o do álbum. A queda de Zaila (após seu pé bater em uma
pedra) e o gesto de socorro de Corentin suscitam cenas anteriores, particularmente as dis-
putas que puseram nossos heróis em campos opostos. Retomemos o álbum. Na página 5
(prancha 3), Zgla, furiosa, dispara contra Corentin: "Espero que as pedras pelo caminho
lhe causem mil feridas". Na página 17, seu ardil feminino sugere uma forma de seduzir o
companheiro atacando seu orgulho de homem moço: ela simula uma queda para que Co-
rentin a socorra e tome-a em seus braços...
Uma imagem é interpretável no sentido em que, dentro da uma narração sequencial
como a da história em quadrinhos, ela está sempre próxima de outras imagens, situadas
antes ou depois na trajetória narrativa. Assim entramos no domínio da artrologia geral,
da qual tratará a terceira parte do livro. Nesse nível, a história em quadrinhos deve ser
apreendida como rede, que permite que cada quadro mantenha à distância as relações pri-
vilegiadas com outro ou outros quadros, não importa quais.
Naturalmente, a imagem pode apresentar traços característicos ou elementos cons-
titutivos que apontam para referentes externos à obra em questão; a interpretação — sempre
inconclusa — é assim convidada a levar em conta todas as determinações pertinentes que
pertencem à cultura, à memória coletiva (sócio-histórica) ou individual do leitor, à enci-
clopédia no sentido dado por Umberto Eco. Talvez deva-se sublinhar que um subconjunto
da enciclopédia é constituído por conhecimentos que o leitor possua a respeito do dese-
nhista sujeito à interpretação (seus outros trábalhos, suas obsessões temáticas, as flutua-
ções no seu estilo...), e sobre as histórias em quadrinhos no geral. Esse saber muitas vezes
é determinante, em se tratando de uma arte que muito pratica a autorreferência, sobretudo
sobre o modo de paródia, mas também sob os regimes mais sérios da homenagem ou da
releitura crítica. Por exemplo, não entendemos muita coisa da obra-prima que é Watchmen
se não possuirmos alguma familiaridade prévia com histórias de super-heróis.
THIERRY GROENSTEEN 135
Michel Picard já disse que o poema é um 'mil folhas de significados' que toda
análise achata devido a sua linearidade"'". Os mesmos termos são aplicáveis às histórias
em quadrinhos. A leitura padrão, aquela que privilegia em cada imagem sua qualidade de
enunciável, achata a riqueza semântica da imagem em prol de sua função narrativa ime-
diata. Apenas uma leitura descritiva — atenta, sobretudo, a sua materialidade gráfica — e
interpretativa permite à imagem compartilhar todos os seus significados e ressonâncias.
2.8 -AS FUNÇÕES DO VERBAL
A prancha de Mufioz e Sampayo era muda (abstraindo-se a manchete do jornal), e a
de Cuvelier e Van Hamme estava longe de ser "tagarela". Mas os poucos enunciados lin-
guísticos que ela encerra não são indispensáveis à compreensão de uma ação que é, aqui,
essencialmente visual. Nessa única prancha podemos, contudo, já identificar duas das
funções do verbal: uma função de dramatização (o intercâmbio de comentários colabora
para o pathos da situação) e a função realística. Esse é um ponto que é comum esquecer-
mos de sinalizar: há um efeito de real que se conecta à atividade verbal das personagens,
pelo simples motivo de que, no cotidiano, as pessoas falam (entendendo que muitas vezes
não dizem nada de importante ou de essencial).
Evidente que essas duas funções não são as únicas que se pode atribuir ao verbal na
história em quadrinhos. É evidente também que elas têm parte determinante na produção
do sentido global. Se já não levantei essa questão acima, é pela seguinte razão: dado que
a aptidão da língua a criar significação é uma evidência que todos admitem, parece-me
necessário estabelecer com clareza que a imagem sozinha é portadora de sentido, e mais
especificamente identificar os procedimentos semânticos próprios à sequência de ima-
gens. Já tendo definido de saída a história em quadrinhos como meio de dominante visual,
vejo-me compelido a justificar esse postulado, insistindo no que a teoria, até esse ponto,
havia deixado de lado: a morfologia, a sintaxe e a semântica das sequências icônicas. Mas
tratar a contribuição do verbal como negligenciável seria negar evidências. Portanto, é
hora de se interrogar-se a respeito do processo de reforço de sentido entre os dois registros,
o icônico e o linguístico.
Muitas vezes já cedemos à tentação de apresentar a história em quadrinhos como
ramificação ou subproduto da literatura. É certo que HQs são impressas, estão em livrarias
e os textos que fazem parte de seu discurso são feitos para ler, não para ouvir. Mas não po-
demos concluir, em relação a esses textos, que a coincidiência de suportes leva à identida-
196 La Lactara comine jeu, Minuit, "Critique", 1986, p. 157.
136 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
de de função. Se prefiro, da minha parte, falar mais das funções do verbal que das funções
do escrito, é porque penso que o discurso, na história em quadrinhos, está mais próximo
do discurso no cinema do que dot4exto literário (mesmo dialógico). Apesar da aparente
ingenuidade de suas propostas, Hérgé tocou justamente neste ponto ao declarar, em 1942:
Considero minhas histórias filmes. Assim, não há narração, não há
descrição. Atribuo toda a importância à imagem, mas naturalmente trata-se
de filmes 100% sonoros e falados, em que as falas saem graficamente da
boca das personagens.'"
Em comparação a uma narrativa literária, a imagem realmente traduz e exprime em
termos visuais tudo que se pode ver: personagens, cenário, objetos, detalhes de atmosfera,
expressões, gestos, ações. Na verdade tudo exceto as trocas verbais (e pensamentos), as
quais ela é incapaz de traduzir e pode apenas citar'''. Entre todas as ações à que as persona-
gens se dispõem, há uma que consiste exatamente em falar. Esse ato de discurso inscreve-se
na cadeia de ações e reações que constitui a narrativa, é parte integrante de sua trama de
fatos. Os recordatórios, equivalentes à voz em off encerram em si um discurso, o do narra-
dor explícito (que pode ser narrador principal ou secundário, intra ou extradiegético etc.)' 99
Servindo-se de outro código (digital, não mais analógico), e reservando-se um es-
paço circunscrito, o do barão, o discurso está ao mesmo tempo dentro da imagem — "saem
graficamente da boca das personagens" — e é distinto desta. Essa autonomia relativa dos
enunciados verbais permite que elas sejam entendidos como os elos de outro encadeamen-
to, paralelo (ou entrelaçado) ao das imagens. Da mesma forma que a significação de uma
imagem é dada por sua sequência, é também o encadeamento de balões que deve ser leva-
do em conta na interpretação de enunciados verbais. De forma que a artrologia gera três
níveis de articulação: os dois primeiros, homogêneos, dizem respeito ao encadeamento de
imagens, de um lado, e do encadeamento de balões, do outro; a terceira, heterogêna, diz
respeito à articulação dessas duas sequências, uma icônica e outra linguística.
É indiscutível que a presença visível, na imagem, de personagens em situação de elocu-
ção confere ao discurso inscrito nos balões o estatuto de intercâmbio oral. Materialmente, essas
197 Entrevista de Hergé à Radio-Bruxelles em 4 de março de 1942. Citada por Bendit Peeters em Case, planche, récit, op. cit., p. 82.
198 Estamos cientes de algumas tentativas de tradução de diálogos em sequências de pictogramas ou de pseudo-hieroglifos; já
renderam resultados divertidos, sobretudo com Avril e Petit-Roulet (Soim de Paris) ou com Berardi e Milano (em um episódio de Ken
Parker). Porém, não se pode generalizar esse procedimento, que logo se depara-se com limitações.
199 Para uma análise detalhada dos usos que se pode atribuir ao recordatório, cf. Régis Duque, Étude théorique et pratique du
texte narratif et du récit enchâssé dans la bande dessinée, Université catholique de Louvain, dissertação de mestrado em filologia
romana, setembro de 1995.
THIERRY GROENSTEEN 137
palavras não são menos escritas, letreiradas sobre o papel. Essa é a ambiguidade constitutiva
e irredutível do diálogo na história em quadrinhos'''. É essa ambiguidade que abre espaço
para diversas opções em relação à forma de escrita dos diálogos. Alguns roteiristas optam
pela oralidade, multiplicando os efeitos de "falar naturalmente" (elisões, frases incompletas
ou incorretas, expressões coloquiais ou triviais, transcrição fonética do sotaque próprio de
cada personagem etc.). Jean-Michel Charlier, como podemos verificai na página de Blueberry
(fig. 7), recheia de interjeições e exclamações (Héhé... Tssiss... Hee??... Ben... Ah... My God!...
Hey... Bon sang.). Por outro lado, alguém como Jean-Claude Forest voluntariamente introduz
em seus balões vários parênteses, travessões e reticências que fazem parte do registro escrito. A
genialidade de um Goscinny e de um Hergé estava sem dúvida em forjar uma linguagem que é
escrita, mas cuja fluidez e ritmo conferem-na aparência de natural. Notemos que nenhum autor
chegou mais longe que Hergé quanto à caracterização das personagens segundo tiques de lin-
guagem; além disso, nenhum autor desafiou tanto os obstáculos da familiaridade"'. Basta ou-
vir gravações em disco ou diálogos de filmes de animação inspirados nas Aventuras de Tintim
para perceber a que ponto o idioleto dos Dupondt, por exemplo, ressurge como naturalmente
falso, cômico e crível à leitura, mas penoso de se ouvir.
Se a ambiguidade estatutária do diálogo quadrinístico inevitavelmente me leva ao
tema do estilo, retorno sem demora a meu tema, que é o das funções do texto na economia
de uma sequência verbo-icônica.
Num célebre artigo, Barthes nomeou duas funções da mensagem linguística em
relação à mensagem icônica: a ancoragem (ou fixação) e o revezamento (ou relais). Sendo
toda imagem polissêmica, a mensagem linguística ajuda a identificar e interpretar a cena
representada, ela "dirige o leitor pelos significados da imagem e leva-o a considerar alguns
deles e a deixar de lado outros" 202 : essa é a função de ancoragem. Sobre a outra função,
Barthes escreve:
200 Christian Met comentou que os sons cinematográficos realmente são sons, da mesma natureza perceptiva que os sons que se
ouve na vida real, enquanto que as imagens são apenas efigies, que se distanciam da realidade pela ausência da terceira dimensão.
Vê-se ai o 'déficit fenomenológico" da imagem em relação ao objeto (cf. "Réponses à Hors cadre sur Le Signiffant imaginaire", Hors
cadre n. 4, Presses Universitaires de Vincennes, primavera de 1986, p. 70). Nas histórias em quadrinhos, a imagem não produz
o mesmo efeito de real que a imagem Arnica, e se apresenta imediatamente como artefato; é na reprodução da fala que o déficit
fenomenológico aparece com mais clareza.
201 Atualmente alguns autores passam pela tentação de superar o natural fabricado, como em Charfier ou Hergé. O britânico Dave
McKean, autor de Cages, explica a esse respeito; "O aspecto da conversa; eu queria gente falando, e fiquei observando as pessoas
falando cheias de pausas, aí você começa a falar uma coisa, mas toma outro rumo, e você diz uma coisa e sabe o que quer dizer,
mas aquilo é entendido diferente. Coisas que eu nunca vi representadas nos quadrinhos. Quer dizer, eu conheço gente que sabe
escrever ótimos diálogos. Mas tende a ser um diálogo muito literário. As pessoas falam frases limpidas, do principio ao fim, Não
conheço ninguém que fale assim. Queria representar isso" (trecho de entrevista que saiu no The Cornics Journal, Seattie, Fantagra-
phics Books, n. 196, junho de 1997).
202 "Rhétorique de l'image', Communications n, 4, Paris, Le Seuii, 1964, p. 44. [Edição brasileira: "A retórica da imagem". In:
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Trad, Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 38.]
138 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
A função de revezamento (pelo menos no que concerne à imagem
fixa); vamos encontrá-la sobretudo nas charges e nas histórias em quadri-
nhos. Aqui a palavra "(na maioria das vezes um trecho de um diálogo) e
a imagem têm uma rêlação de complementaridade; as palavras são, então,
fragmentos de um sistema mais geral, assim como as imagens, e a unidade
da mensagem é feita em um nível superior: o da história, o da anedota, o da
d iegese...203
Pode-se censurar esse artigo por não fazer distinção clara entre a imagem isolada
(que se trata do desenho humorístico, ou da publicidade da Panzani que Barthes analisa a
seguir) e a sequência de imagens (história em quadrinhos, fotonovela ou cinema, no qual
Barthes nos diz que a palavra-revezamento é muito importante, dado que ela "faz realmen-
te progredir a ação, colocando, na sequência das mensagens, os sentidos que a imagem
não contém"). Geralmente preponderante no primeiro caso, a função de ancoragem do
texto vê sua importância ser consideravelmente relativizada na segunda. Numa história
em quadrinhos, a imagem muitas vezes não necessita de mensagem linguística alguma
para ancorar-se em uma significação unívoca. Não é verdade dizer que, sem uma "muleta"
verbal, ela está condenada à polissemia. Pois, em primeira instância, o que determina sua
significação e autoriza uma leitura conforme o programa roteirístico, é exatamente — e já
vimos exemplos o bastante — sua inscrição em uma sequência icônica. A sequência exerce
ela mesma uma função de ancoragem em relação a cada uma das imagens que a compõe, o
que por consequência tira do texto essa responsabilidade, que ela assume somente no caso
da imagem solitária.
Dito isso, precisamos especificar qual(is) questão(ões) quanto ao significado da
imagem o texto, às vezes sozinho, pode responder. Vejamos mais uma vez a prancha de
Corentin. No primeiro quadro, a frase pronunciada por Nareddine ("Rápido, vamos tentar
chegar à Garra!") é necessária para entendimento da situação. Sem ela, eu nem seria capaz
de atribuir um sentido ao gesto do idoso. O braço designa algo, mas esse algo poderia ser
um segundo grupo de inimigos, um céu que anuncia tempestade ou qualquer objeto que se
encontre fora de quadro. É, portanto, o texto, nesse caso específico, que ancora a signifi-
cação do gesto e, portanto, do quadro.
Por mais que aqui ele se revele necessário, o recurso ao texto não nos permite
concluir que a imagem é insuficiente na função de representação (ou seja, como veículo
203 Ibid„ p45. [Edição brasileira: p. 33-34]
THIERRY GROENSTEEN 139
semiótico). Este exemplo apenas lembra que nossos sentidos são canais de informação
complementares. Se eu me encontrar na mesma situação de James Stewart em Janela In-
discreta, a espiar meus vizinhos, não tenho como compreender uma cena cujo som não me
chega porque ela se desenrola diante de uma janela fechada. Aquelas pessoas que falam
com gestos exagerados estão tendo uma discussão acalorada ou estão brigando? Se é uma
briga, qual o pretexto? A visão, sozinha, não me informa. Qualquer pessoa pode fazer essa
experiência tirando o som da televisão. Da mesma forma, em uma história em quadrinhos
"falante" (dado que existem as mudas), as intrigas das personagens só são reportadas de
forma plenamente inteligível graças às informações dadas pelo diálogo, que é justamente
equivalente, como vimos acima, à trilha sonora.
Às duas funções identificadas por Barthes, Benoit Peeters propõe a soma de uma
terceira: a função de sutura, "através da qual o texto visa estabelecer uma ponte entre
duas imagens separadas". É em Edgar P. Jacobs que Peeters constata essa função, que
aparentemente reserva aos recordatórios, os quais constituem "talvez os únicos elementos
capazes de ligar dois quadros totalmente desconectados no plano visual" 204. Sejamos então
mais precisos: a sutura também pode ser confiada ao diálogo. O primeiro exemplo que me
vem à mente está na oitava prancha de As Joias de Castafiore, onde a repetição da palavra
"entorse" torna possível a redução de uma elipse formidável. "Rien de cassé au moins?"
[Não quebrou nada, pelo menos?], pergunta Tintim ao Capitão que acaba de cair na es-
cada. "Non, heuresernent! Mais] 'aurais tout aussi bien pu me faire une entorse!" [Não,
felizmente! Também podia ter torcido o pé. Mas não foi nada...], responde Haddock pouco
antes de soltar um grito de dor. No quadro seguinte, o médico dá seu diagnóstico: "Une
solide entorse, mon amil... avec déchirures ligamentaires" [Um entorse e tanto, amigo! E
ainda rompeu os ligamentos.9. Entre essas imagens imediatamente consecutivas, ima-
gina-se que Tintim fez Haddock se sentar, procurou o número do médico, telefonou para
ele, esperou sua chegada, recebeu-o à porta e assistiu ao exame. Mas a repetição de uma
só palavra permite saltar esses episódios triviais, e assim suturar uma evidente brecha nos
ligamentos da história. Essa função de sutura, apesar de tudo, acaba sendo um caso parti-
cular da função de revezamento.
A coesão sintagmática, que permite que a narração se desenrole sem obstáculos, fica
garantida através da cooperação entre a sequência icônica e a sequência linguística. Essa
cooperação também permite ao meio brincar com uma ampla gama de efeitos cômicos, co-
204 Case, planche, récit, op. cit., p. 87.
205 A última tradução brasileira da obra (de Eduardo Brandão, lançada em 2008 pela Companhia das Letras) não faz, nesse trecho,
a repetição de palavras mencionada por Groensteen, embora construa uma aproximação fonética entre "torcido" e "entorse". [N,T.]
 140 () SISTEMA DOS QUADRINHOS
moventes ou dramáticos. É sem dúvida no humor que a complementariedade entre as duas
instâncias muitas vezes conduz às descobertas mais sutis. Nesse domínio, a função de an-
coragem é muitas vezes retomada: frequentemente à imagem que cabe dar a chave que
permite a interpretação justa do textO, por exemplo, ao explicitar o que é uma atenuação ou
eufemismo subentendido, ou mesmo ao denunciar, por sua trivialidade, a ênfase ou a pom-
posidade proposital de um estilo pseudoliterário. Já analisei em outros momentos as figuras
de ironia em Tõpffer206 , mas elas abundam também em outros, como Gotlib ou Goossens,
os quais, diferentes do genebrês, utilizam não só o estilo indireto, mas também os diálogos.
Outra função do texto, geralmente confiada apenas aos recordatórios, que podemos
chamar de função de condução, trata da gestão do ponto de vista narrativo. Para indicar
ao leitor as grandes escansões temporais da narrativa, o recurso mais cômodo de que o
narrador dispõe é o dos enunciados verbais ("enquanto isso", "uma hora depois", "naquela
noite", "no dia seguinte"...). Desse ponto de vista, pode-se pensar as histórias em quadri-
nhos como as sequências fotográficas de Duane Michals, sobre as quais Daniele Méaux
comentou: "A cronologia de fatos que são representados de maneira sequencial é definida
sobretudo pela informação verbal que pode indicar a presença de analepse (flashbacks), de
prolepse (flashforwards) e de elipses."'
Como a elipse está no próprio princípio da linguagem descontínua da história em
quadrinhos, essas indicações só dizem respeito a elipses de grande amplitude, aquelas que,
coincidindo com mudança de cena, geralmente implicam simultaneamente salto no tempo e
deslocamento no espaço. Tanto o hiato temporal quando o hiato espacial podem ser atestados
por meios estritamente icônicos. A mudança de lugar é, na prática, a mostração de um novo
cenário, que o leitor pode, a princípio, identificas como tal; além disso, a passagem de cena fre-
quentemente é sublinhada por uma modificação da dominância cromática, sendo a coerência
interna de cada cena geralmente atestada por uma gama de cores homogêneas que contribui
para seu impacto dramatárgico e emocional. Nesses casos, a ruptura cromática aproveita-se do
contraste natural entre duas sequências temporais, opondo dia a noite ou a luz da alvorada ao
sol do meio dia (as variações meteorológicas ç a oposição entre cenas internas e externas, por
isso, figuram entre diversas justificações visuais para a mudança de dominante).
Assim a imagem pode, quase em todos os casos, garantir a função de condução sem
qualquer extra linguístico. Isso é verificável, por excelência, nas HQs mudas. (Lembro
206 "Rodolphe Tôpffer scénariste", in Daniel Maggetti (ed.), Ripffer, Lausanne, Albert Skira, abril de 1996, p. 279-292.
207 "Duane Michals Real Dreams: lhe Treatment of Narrative and lime", History of Photography vol. 19, n. 4: Photo Narrative
Londres, Taylor & Francis, inverno de 1995, p. 278, a partir de tradução do autor.
THIERRY GROENSTEEN 141
particularmente de um álbum de Peter Kuper, O Sistema 208, no qual a complexa narração
que se desenrola em suas 104 páginas brilha graças à engenhosidade e diversidade de tran-
sições.)2" Mas as obras que não fazem parte dessa categoria também podem impor essa
restrição: lei Même [Aqui mesmo], obra prima "tagarela" de Forest e Tardi, proíbe todo
recordatório, mesmo para indicar mudanças de lugar ou elipses temporais.
A experiência que fiz com a prancha de Royaume der eaux noires mostrou que
podemos sempre nomear, ao menos com rótulos linguísticos, a "ponte" semântica especi-
ficada a cada vez que se representa a passagem a um quadro seguinte. Esse texto implícito
aflora às vezes na superfície do discurso: é precisamente a ele que correspondem os enun-
ciados de condução.
A última função que o polo verbal da história em quadrinhos exerce, ao que me pare-
ce, é afunção rítmica. Seguindo muitos outros, Jan Baetens e Pascal Lefevre declararam que
a HQ joga com "a lacuna temporal entre a percepção da imagem, que é quase global e quase
simultânea, e o percurso dos signos verbais, mais lento e sempre mais gradual." 21° Mas os
dois exegetas belgas enganam-se, a meu ver, quando escrevem que a história em quadrinhos
sujeita-se à "imperiosa necessidade de minimizar" essa lacuna, pois as mensagens linguisti-
cas correm o risco de desacelerar e confundir "o repassar de imagens feitas para serem lidas,
em regime convencional, a um ritmo fixo."2" Pelo contrário, é frequente que um pedaço de
diálogo seja introduzido em um quadro visando desacelerar a leitura. Embora existam muitas
outras comprovações, encontramos um exemplo dessa ordem no quinto quadro da prancha
de Corentin. As palavras de Zaila formam uma réplica improvável, pois muito elaborada,
dada a situação de urgência extrema em que se encontra. Mas como a imagem corresponde
a um instantâneo, suas palavras: "Não, pequeno roumi. Salve sua vida! Corral..." prolongam
um pouco nossa participação em momento eminentemente de pathos.
A presença ou ausência de um texto, o eventual parcelamento de um enunciado verbal
em vários balões, a distribuições dos balões por um número equivalente ou menor de quadros
(quando não estão agrupados dentro de um mesmo requadro), a alternância de diálogos e re-
cordatórios: são muitos os elementos que contribuem para imprimir ritmo — e duração —a uma
sequência narrativa. Já observei acima: dentro da própria imagem, o jogo das réplicas (por ex.:
uma questão seguida de resposta) pode registrar a passagem de tempo, que fica marcada pelas
atitudes dessincronizadas das personagens (cada um vivendo no momento de seu balão).
208 Edição brasileira: São Paulo: Abril, 1998. [N.T.]
209 Descrevi os principais procedimentos utilizados por Kuper na segunda parte de meu Histoire de la BD muette, op. cit., o. 104.
210 Baetens e Lefèvre, Pour une lecture moderne..., op. cit., p. 20.
211 Ibid.
142 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 143
As pranchas de Teulé e Cosey que foram comentadas na primeira parte deste livro narrador), em contraste, é mais frequente que elas nos sejam comunicadas por um cartão
podem ser reconvocadas neste momento. A forma como os enunciados linguísticos distri- ou por imagens incrustadas na imagem - o que, dentro da perspectiva que se desenvolveu
buem-se aqui constitui realmente iáa contribuição significativa ao ritmo interno dessas aqui, seria a mesma coisa.
duas páginas. Nós já observamos cebo se estabelece, do ponto de vista puramente visual,
a coerência interna de cada uma das três tiras que compõem a pranche de Teulé (fig. 6). 2.9 - UM EXERCÍCIO DE TRADUÇÃO
Para completar essa primeira análise, convém acrescentar que essa estrutura ternária é A fim de conferir e recapitular tudo o que vimos até o momento sobre o funciona-
reencontrada no nível verbal. O diálogo direto na primeira tira, os recordatórios na segun- mento da sequência, parece-me oportuno pôr em consideração um novo exemplo e utiliza-
da, o diálogo em off na terceira (os falantes estão fora de quadro): cada tira tem, também -lo como pretexto para um peque-
dentro desse aspecto, identidade própria. A página de Cosey (fig. 9) é composta por cinco no exercício. Trata-se, nem mais
quadros, e apenas o último é "falado". Esse único balão, situado no canto inferior direito nem menos, de converter uma
da página, corresponde assim à ruptura do silêncio. No mais, a questão posta pelo jovem página de história em quadrinhos
Keo não tem importância: serve apenas para iniciar a conversa com Art, a segunda perso- em seu "equivalente" linguístico
nagem. O verdadeiro objeto da curiosidade de Keo aparecerá na página seguinte: a vida ou, se preferirmos, traduzir uma
sentimental de Art. O balão que pontua a prancha 44 de Voyage en Italie tem função dupla série de enunciados. O interesse
no ritmo da sequência. Por um lado, por chegar após uma imagem que sugere uma duração pedagógico deste exercício não
que é impossível de quantificar (as duas personagens perdidas na contemplação do mar), deveria escapar aos professores
ela atribui um freio a essa temporização e devolve o leitor ao presente da ação. Por outro, de gramática, a quem incentivo
esse ato de fala, ao fim de uma página até então muda, abre-se para a página seguinte que que se inspirem. Embora o exer-
será inteiramente dialogada, com exceção de um quadro: a prancha 45, fechar-se-á, sime- cício corresponda ao fim do ensi-
tricamente com a precedente, em uma imagem muda que significa o retorno ao silêncio e no fundamental, escolho proposi-
à contemplação. talmente a página de uma história
Reconhecemos no verbal sete funções distintas na organização de uma história em em quadrinhos que pode ser lida 414I,IMAGÉO .14.5 6■WA,X6 1 et, A' LA CAMPArA,É,
117IN 1.0 7A0076 A tiog ARCO( C'sr LE
EA, Pir 401 CIZEJÉÇ.A,V

quadrinhos, sendo respectivamente o efeito de real, a dramatização, a ancoragem, o re- a partir dos seis anos, a página
vezamento, a sutura, a condução e o ritmo. Entre essas funções, contamos três (as duas 17 (fig. 13) do álbum Un été du
primeiras e a última) que se voltam para a ilusão referencial e para a composição de cena. tonnerre [Um verão do trovão],
As quatro outras são, em suma, casos particulares do que poderíamos resumir como fun- quinto volume da série Jojo, de
Fig. 13 - André Geerts, Jojo, 5. Un été du tonnerre,
ção informativa do verbal. A questão, em cada um dos casos analisados, reside em exigir Geerts (Ed. Dupuis). A opção por prancha 17, 1992. @ Ed. Dupuis, p. 160.
das declarações linguisticas que completem as informações entregues pelo encadeamento uma HQ supostamente simples -
de enunciáveis icônicos. Não estou certo se a teoria do cinema já analisou o diálogo dos mesmo assim de excelente qualidade - responde ao propósito de verificar que a quase
filmes nesses mesmos termos (a verdade é que, exceto por raras exceções, o diálogo não totalidade de questões levantadas até o momento não dizem respeito a quadrinhos espe-
se encontra entre seus objetos de estudo privilegiados), parece-me, entretanto, que todas cíficos selecionados devido a sua sofisticaçãom, mas sim à mídia enquanto tal em suas
essas funções são pertinentes, em se tratando da sétima ou da nona arte. Pode-se objetar operações constitutivas.
que, na tela, a função de condução talvez seja raramente confiada ao verbal. Mas a verdade 212 Essa é uma das principais criticas que eu dirijo ao livro de Baetens e Lefèvre, Poro une lecture moderne de/a bande dessinée,
é que se as grandes elipses temporais raramente são indicadas por uma voz em off (a do muitas vezes citado nestas páginas. Os exemplos selecionados pelos autores, como Régis Franc, Michel Duveaux ou Martin Vaughn-
-James, são bastante particulares, de forma que é em poucos momentos que a análise leva a aprendizados generalizáveis.
144 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
As regras do exercício são as seguintes: os quadros serão traduzidos em termos lin-
guísticos, um de cada vez, e os enunciados resultantes devem ser o mais concisos possível, —
mas sem omitir o essencial à inteliàilidade da ação. Os enunciados ficarão sujeitos aos
ajustes que se considerar necessário )para que o resultado final seja de leitura satisfatória,
ou seja, um texto tão fluido quanto é a leitura da prancha de Geerts. Depois questionare-
mos todo o resto que o exercício renderá, para ajustar-se ao que a página mostrou, disse ou
sugeriu e que nossa tradução linguística não levou em conta.
A página em questão (para não ser muito longo, vou me limitar à metade superior
e ao último quadro) está separada do restante do álbum, de forma que é necessário saber o
que a precedeu, ou pelo menos ter acesso a um resumo. Seria este:
"Mamy leva Jojo e seu amigo Gros-Louis para passar as férias na fazenda
com a prima Angèle. A família de Angèle consiste em seu filho Odilon (um
furacão), sua cunhada Emma e os dois filhos desta: Thomas e Marie. Desde
que chegou, Gros-Louis está caído de paixão pela pequena Marie. Encontra-
mos nossos amigos no dia seguinte à chegada na fazenda,"
Estes são os enunciados que proponho para dar conta dos três quadros da
primeira tira:
Quadro 1 – "O sol se levanta na fazenda, recepcionado pelo canto do galo."
Quadro 2 – "Gros-Louis desperta e se estica na cama."
Quadro 3 – "Ele levanta da cama e serve água de um jarro numa bacia."
Paremos para um primeiro comentário, a respeito da própria tira e da tradução proposta.
Em se tratando da tira, podemos nos livrar de saída do recordatório que encima o primeiro qua-
dro: é uma indicação de condução que logo se mostra redundante em relação ao que a imagem
nos mostra e, portanto, desnecessária (salvo quem sabe para a criança que ainda não tem a forma-
,
ção completa na leitura de imagens). O canto dosai() é urna marca do raiar do dia, tão banalizada
(especialmente nas histórias em quadrinhos) que quase já se tomou metáfora. Meu enunciado
dá destaque ao sol que se ergue, mais que a sua consequência ou corolário: o canto do galo. A
fazenda não aparece na imagem. Mesmo assim eu a menciono na intenção de contextualizar esse
quadro: na verdade, o erguer do sol só interessa à narrativa na medida em que ele se anuncia a
quem está na fazenda. Mas eu poderia ter escrito muito bem: o sol se ergue no campo.
THIERRY GROENSTEEN 145
Não há nada que nos dê certeza que Gros-Louis acordou por conta própria, se ouviu
o galo ou se foram os raios do sol (que vemos entrar no quarto) que o fizeram abrir os
olhos. É naturalmente conveniente, na transcrição, evitar toda especulação sobre hipóteses
não comprovadas. Especulação não é interpretação, à qual vamos recorrer em seguida,
mas sim uma interpretação abusiva.
No terceiro quadro, Gros-Louis já está de pé. Se eu o houvesse traduzido pelo que
é, abstraindo-me totalmente do contexto, eu teria escrito apenas: Gros-Louis serve água
de um jarro numa bacia. Mas avançamos na leitura de uma história em quadrinhos, assim
como na de um texto, pelo controle do que precede. Entre o segundo e o terceiro quadros,
sou obrigado, para preservar a coerência da narrativa, a supor uma elipse. Não vi Gros-
-Louis levantar-se, mas sei que ele o fez porque, depois de vê-lo deitado, eu o descubro
repentinamente de pé. O enunciado que proponho restabelece a continuidade da ação; ele
leva em conta o que estou certo que compreendi, mesmo que não tenha visto.
Creio que poderão dizer que meus três enunciados traduzem grosso modo o que
todo leitor, mesmo com pressa, terá percebido, compreendido e retido dessa primeira tira.
Não é mais que o mínimo necessário para passar à frente com conhecimento de causa.
Ler menos do que o que transcrevemos seria perder o fio da meada. Mas é evidente que
essas imagens nos dão infinitamente Mais a ver que aquilo que retive. A conversão dos
enunciáveis em enunciados – operação que corresponde aproximadamente à que realiza
mentalmente um leitor apressado, ansioso por uma coisa só: acessar a inteligibilidade da
história para prosseguir com o episódio – consiste em uma redução formidável da obra à
esfera do agir e dos fatos, uma mutilação que guarda apenas a cadeia actancial, sem se
interessar pelo que se passa com os protagonistas.
Se, com uma segunda chance, eu considerar a imagem como descritível, não mo-
dificarei apenas meu regime de percepção, mas passarei a um entendimento consideravel-
mente maior da obra. A descrição, como vimos, é uma operação fragmentada. Se me dou
ao trabalho de descrever as imagens de Geerts em sua dimensão icônica, vou descobrir
toda sorte de detalhes até então despercebidos como, por exemplo, que o despertador so-
bre a mesa de cabeceira indica sete horas, ou que Gros-Louis precisa ficar na ponta dos
pés para servir a água do jarro. Se as considerar segundo a dimensão plástica ou gráfica,
serei mais sensível às formas arredondadas, às cores meigas, a tudo que confere ao estilo
de Geerts um aspecto suave, aconchegante, antiquado (e o nome do vilarejo não é Aven-
tières23 ?) próprio a despertar em nós a nostalgia da infância, a tudo que as imagens sina-
213 O nome remete à palavra francesa avant-hier, que significa anteontem. [MI]
146 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
lizam. É preciso reconhecer que a distinção entre a dimensão icônica e a dimensão gráfica
nem sempre é evidente. Assim, a pintura pendurada sobre a cama tem diversas variações
entre o segundo e o terceiro quaerros. A casa é um pouco maior na segunda aparição, e o
formato do telhado muda. Mas cdmo saber se essas variações são propositais (o que seria
uma pequena recompensa, mesmo que de nada, ao leitor atento) ou se são atribuíveis a
uma execução casual; se trata-se de detalhe icônico ou de acidente gráfico?
Passemos à segunda tira. Ela distingue-se da primeira pelo fato de comportar diálo-
gos. Como os enunciados que escrevo levarão essas falas em conta?
Façamos uma primeira tentativa, que consiste em abstrair o diálogo:
Quadro 4. — "Enquanto Gros-Louis se lava, Jojo, que havia dormido a seu
lado, tenta se levantar."
Quadro 5. — "Mas sair da cama prova-se tarefa complicada."
Quadro 6. — "Gros-Louis penteia os poucos cabelos com gel."
O leitor não deixa de se surpreender ao descobrir a presença de Jojo (invisível até
aqui) na cama. Essa presença, porém, não é de todo insuspeita: no quadro 3, podemos ver
que, mesmo após Gros-Louis se levantar, o colchão continua no lugar e as molas aperta-
das, sinal de que outro corpo as segura. Compare-se com o estado do colchão no quadro 6,
quando Jogo está sentado sobre a armação da cama.
Ao longo da segunda tira, temos, portanto, a presença de duas personagens. Do ponto
de vista perceptivo, o leitor passa a se interessar pelo que faz uma e outra a cada momento.
Há duas ações paralelas (Jojo se levanta, Gros-Louis se lava), entre as quais a priori não
existe hierarquia alguma. Na minha tradução verbal, pensei que não precisaria mencionar
sistematicamente uma depois da outra. Pode-se fazer dessa forma, mas ter-se-ia uma formula-
ção pesada, complicada e deselegante. "O artificio do escritor tem certa inferioridade em rela-
ção ao do pintor, dado que o primeiro só pode mostrar os objetos em sucessão", queixava-se
Théophile Gautier em O Capitão Fracasso. o que a imagem me sugere à primeira olhada, as
palavras têm que suscitar parte por parte. Se não falei do que Gros-Louis fez no quadro 5, é
porque o fato de pegar um pote de gel geralmente implica o fato de que ele o utilizará: pode-se
imaginar a elipse. No quadro 6, é Jojo que é deixado de lado. Na verdade,,ele não se envolve
em outra ação que não a de falar — e combinamos que iríamos abstrair os diálogos.
Constatamos que: os diálogos não são indispensáveis à compreensão da sequência.
Eles não terão serventia para o que vem a seguir na página. Sozinhas, as imagens tornam
THIERRY GROENSTEEN 147
perfeitamente inteligíveis todas as informações importantes da esfera actancial: Jojo e
Gros-Louis descem para tomar o café da manhã, os outros já estão à mesa, Gros-Louis
senta-se ao lado de Marie, os dois garotinhos ficam assustados com o apetite pantagruélico
dos anfitriões, a pequena Marie distingue-se da família mordiscando um biscoito.
Isso quer dizer que o diálogo é supérfluo, ou mesmo um parasita? De forma alguma.
Já vimos acima que geralmente se vincula aos diálogos um efeito de real; vemos muito
bem, aqui, que eles são uma condição do "realismo" da cena. De fato, se os dois garotinhos
se levantassem sem trocar uma palavra, e se a família inteira fizesse seu café da manhã
em silêncio, acharíamos a cena anormal, estranha, contrária à nossa experiência do real,
e toda a página ficaria "des-real". Assim, o diálogo aqui é necessário mesmo quando não
passa de tagarelice inconsequente.
Mas ele é mais que isso. Em dois momentos da página, ele está em condições de
exercer uma função de revezamento e de completar, em uma modalidade quase sutil, as in-
formações que as imagens dão. Nos dois casos, essa cooperação entre icônico e linguístico
permite chegar a uma leitura mais profunda do quadro, leitura interpretativa que suscitará
a lembrança de episódios anteriores. Isso se demonstra no último quadro que convertemos
em enunciado. Essa troca verbal pode ser tida como inútil. Jojo não precisa perguntar a
Gros-Louis se ele passa o gel porque está vendo, e Gros-Louis não precisa dizer que tirou
o gel da gaveta porque nós vimos. Mas a razão de ser desse diálogo é outra: a surpresa de
Joj o visa nos fazer entender que Gros-Louis não tem hábito de passar gel; comportamento
estranho, razão extraordinária: ele está apaixonado e quer ficar bonito. (Essa vaidade terá
efeito mais à frente, pois no quadro 8 Marie lhe dirá: "Hmm! Que cheiro bom!".) O leitor
só pode chegar a esse raciocínio através das páginas 14 e 15 do álbum, onde já se estabele-
ceu o que Gros-Louis sente por Marie. O verbal, portanto, tem aqui sua importância, dado
que é através de sua medição que permite a construção de sua interpretação. O mesmo
acontece no último quadro da página, do qual vou tratar abaixo.
Anteriormente, tivemos de fazer experimentos com enunciados para dar conta dos
três quadros que compõem a segunda tira de forma que levassem o diálogo em conside-
ração. Há várias soluções possíveis. A primeira consiste em citar literalmente as palavras
pronunciadas pelas personagens envolvidas no enunciado.
Isso nos daria aproximadamente o quadro 4:
Enquanto se lava, Gros-Louis pergunta a Jojo, que havia dormido a seu lado:
— Ainda está dormindo, Jojo?
148 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Não — ele responde se remexando — estou tentando me levantar.
A segunda solução consiste em integrar o sentido das palavras ao enunciado, resu-
mindo ou parafraseando-as. Aplicaâo ao quadro 5, a solução nos levaria a escrever:
— Mas Jojo tem certa dificuldade para sair de uma cama tão fofa.
A explicação sobre a consistência da cama foi acrescentada ao enunciado proposto,
fazendo eco à exclamação de Jojo: "Nunca tinha visto uma cama tão fofa!"
Por fim, uma terceira solução — mais discriminante e, por isso, a meu ver, mais
Pedagógica — consiste em fazer referência ao diálogo apenas de maneira seletiva, ou seja,
apenas quando ele traz um complemento de informação realmente útil para a compreensão
da história. Dentro dessa perspectiva, vou ignorar as réplicas nos quadros 4 e 5, mantendo
os enunciados que propus de início. Por outro lado, modificarei o enunciado inicial cor-
respondente ao quadro 6, conformando ao interesse particular que reconhecemos na troca
verbal que ele contém. O enunciado seria algo como:
— "Para surpresa de Jojo, Gros Louis usa gel para se pentear-se."
Antes de saltar direto para a última imagem, farei uma observação a respeito do
quadro 7. Trata-se do maior quadro dessa prancha, e que engloba o maior número de perso-
nagens: nove, se contarmos o gatinho preto. Esse gênero de quadro está predisposto a sus-
citar uma leitura mais descritiva. Seu formato esticado compele o olhar a uma varredura
horizontal, da esquerda para a direita, e esse percurso visual coincide quase naturalmente
com uma enumeração dos vários objetos que se encontram (aqui, sobretudo: as persona-
gens), e que, por consequência, ele favorece. Na medida em que, no mais, aqui ressurgem
personagens que perdemos de vista por alguns momentos, e que, na sua maioria, não nos
são familiares, o leitor fica especialmente mais atento a reconhecer cada uma e perceber
em que atividade se envolvem. Faço esse Comentário apenas para sugerir que: se todos os
quadros são enunciáveis, alguns são mais descritíveis que outros.
Agora chego ao último quadro de nossa prancha. Convertê-lo em um enunciado
como Marie mordisca um biscoito não seria falso; mas esse enunciado, por ser breve,
não faz justiça ao interesse que há nesse quadro, a saber, sua dimensão humorística.
Cheguei a trabalhar essa página com alunos, e muitos não perceberam sozinhos o humor
THIERRY GROENSTEEN 149
que se conecta a esse quadro e lhe dá seu sabor; precisaram que eu explicasse. Portan-
to, também o explicarei aqui, não sem notar que o fato de o quadro fechar a página o
predispõe a coincidir com certa forma de "arremate da piada", ainda mais porque o fim
da página é também o fim da sequência. Se essa página poderia intitular-se "acordando
na fazenda", a seguinte abrirá uma nova sequência de quatro páginas dedicadas a "uma
volta de trator".
É o diálogo mais uma vez, que, em revezamento com a imagem, nos faz sorrir:
este "ela é delicada", que não podemos atribuir a um locutor preciso. O fato é que a
delicadeza de Marie é tema recorrente do álbum, um qualificativo que lhe é atribuído
diversas vezes. O tema é cômico porque Marie está em_ contraste vívido com os pais,
os dois obesos; é também porque Marie, por mais que tenha constituição delicada, não
tem um comportamento delicado. Na página 14, quando Odilon a compara a uma prin-
cesinha, ela solta um palavrão sonoro (o primeiro de uma série de "Vingtdju!"), o que
leva Angèle a ressaltar que ela é uma "camponesa bem criada". Aqui, da mesma forma,
o quadro revela que Marie, tão "delicada", não faz barulho quando come. Porém, em um
segundo grau de humor, o letreiramento das onomatopeias no quadro 9 é proporcional
ao tamanho de Marie e a seu microapetite. Sua minusculidade é sublinhada pelo grande
espaço em branco sobre a criança.
O lugar que o mundo camponês dá à delicadeza é um tema que ganha espaço em di-
versas variações humorísticas no álbum, constituindo-se um leitmotiv ou topos privilegia-
do. O sentido de cada uma dessas ocorrências desse tema só pode emergir na medida em
que o leitor as associa entre si. É essa leitura em rede que deixa que se transcenda o nível
da percepção (onde cada quadro é considerado dentro de sua significação imediatamente
própria) para chegar-se ao da interpretação.
Não haveria propósito em seguir em frente com este exercício de transcrição. Mas
fique à vontade quem quiser seguir até o fim da página!
2.10 - DECUPAGEM E LAYOUT
Jean-Claude Carrière adora repetir que, no cinema, não existe diferença essencial
entre um roteiro original e uma adaptação de um texto preexistente para a tela:
Na verdade, tudo no cinema é adaptação. Quando me pedem para en-
contrar uma história em um livro, quando me contam um fato cotidiano,
uma lembrança que eu recupere da minha própria memória, ou da minha
150 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 151
"imaginação", (...) do formato que for, meu trabalho será adaptação. Terei de ria a intervenção de uma cúmplice, o layout, que distribua a cadeia narrativa pelo espaço,
transformar essa ideia vaga, esse livro ou essa anedota em filme. 214 ajustando assim uma matéria já sequencial ao dispositivo espaçotópico, e atribuindo a
cada unidade em situação narrativa sua forma, sua superfície e sua posição.
Da mesma forma, é preciso eonceber a escrita de uma história em quadrinhos como Decupagem e layout informam-se mutuamente. Nenhuma dessas operações está em
a adaptação de um projeto narrativo segundo os recursos e exigências particulares do condições de controlar a outra. As práticas, porém, divergem. O layout precede a decupa-
meio. A decupagem é o primeiro agente desse processo. Ela toma um material narrativo gem quando é arbitrário, ou seja, regular ou regido por uma restrição formal a priori (nos
preexistente (escrito ou não, mais ou menos vago mijá bem estruturado), e transforma essa dois casos, os requadros são definidos sem consideração pelo conteúdo que a decupagem
fábula ou discussão em uma sucessão de unidades discretas, os quadros, aos quais frequen- lhes atribuirá). A decupagem, porém, precede o layout na maioria dos outros casos, mesmo
temente acrescentam-se enunciados verbais, e que são os elos de uma cadeia narrativa. que tenha de passar por certos ajustes determinados pelo layout. Quando o layout vem em
Esses quadros são providos de requadros (que podem ser virtuais), que lhes definem como segundo plano, vimos que ela pode às vezes acompanhar (e se necessário sublinhar), na
entidades à parte, cada um fechando uma parcela de sentido. modalidade retórica, as intenções que animam a decupagem, às vezes deixar de lado sua
A cada quadro corresponde uma situação no fluxo da história. Essa situação depen- própria divisão, buscando, por exemplo, produzir um efeito ornamental. Mas neste últi-
de daquilo que poderíamos chamar de cronotopia (ou segmentação temporal); corresponde mo caso, mesmo que animada por uma intenção concorrente, o layout continua a levar a
também a um local dentro da organização estrutural do discurso sequencial. decupagem em conta porque, para não exaltá-la nem ser servil, ele de forma alguma pode
A decupagem distribui a informação: atribui a esta um modo de enunciação (icôni- interferir na continuidade narrativa. O protocolo de leitura necessário para uma prancha é
co ou linguístico), que é destilado no tempo quando se organiza sua cooperação diacrônica sempre, garantidamente, o resultado de uma ação conjugada da decupagem e do layout, o
ou suas determinações recíprocas'. Por fim ela dirige a composição de cena, ou seja, a produto de ao menos duas determinações.
utilização coordenada de todos os parâmetros de enunciação icônica, na medida em que
participa da narração e condiciona a percepção e interpretação da parte do leitor.
(O fato de a história em quadrinhos ser produto de um autor só ou de uma cola-
boração não muda nada em relação ao postulado teórico. Mesmo que trabalhe seguindo
propostas bem precisas de um roteirista, o papel do desenhista ainda é preponderante no
que chamo de composição de cena. Isso não pode nos levar a dissociar a composição de
cena da decupagem; pelo contrário, deixa-nos estabelecer que o desenhista de HQ, longe
de ser simples ilustrador, está plenamente implicado na narração. Roteirista e desenhista
têm cada um sua parte na afinação da decupagem. Além disso, não busco nestas páginas
descrever concretamente o trabalho que realiza tal e tal agente de criação, mas definir
componentes objetivos de uma linguagem.)
A adaptação de uma narrativa à linguagem da história em quadrinhos não é a única
função da decupagem, evidentemente. Como mostrou o capítulo anterior, faz-se necessá-
214 In Jacqueline Aubenas, "Jean-Claude Carrière scénariste ou le voyage à Bruxelles", Revue belge du cinema n. 18, Bruxelas,
inverno de 1986, p. 48.
215 O documento escrito que é destinado ao desenhista, no qual o roteirista tradicionalmente estabelece a decupagem (Goscinny
ou Charlier, por ex.) é dividido em duas colunas, uma para descrição das imagens, outra para os diálogos. Essas colunas são por
sua vez seccionadas em segmentos correspondentes à sucessão de quadros. Canônica, essa forma de decupagern manifesta
explicitamente o entrecruzar do eixo vertical e do eixo horizontal, a organização conjunta e articulada de uma sequência linguistica
com uma sequência icônica.
152
CAPÍTULO TERCEIRO
ARTROLOGIA GERAL: A REDE
3.1. A FASE DA QUADRICULAÇÃO
Antes de tratar dos domínios do entrelaçamento, que definirei como algo que vai
além da decupagem, convém dar mais uma palavra a respeito do que vem antes do layout,
o que proponho batizar de quadriculação. Esta seria uma operação (ou pelo menos uma
fase de reflexão, que nem sempre chega a tomar forma) que intervém bastante cedo no
processo de elaboração da história em quadrinhos; ela define o dispositivo da HQ no mo-
mento em que esta surge. A quadriculação consiste em dividir o espaço no qual se planeja
investir em um certo número de unidades ou de compartimentos. Sempre destinada a per-
manecer em consideração, ela opera uma compartimentação inicial, provisória, da matéria
narrativa.
Ao nível do espaço total da obra (digamos, por exemplo, de um álbum), a quadricu-
lação inicia-se no instante em que o roteirista divide sua proposta em capítulos ou cenas, a
partir do que passa a avaliar a extensão respectiva de cada um deles (em número de pági-
nas). Nas mãos do desenhista, ela pode tomar forma na elaboração de um storyboard com-
pleto, sob a forma de esboços para implantação do conjunto de páginas. A quadriculação
é assim um equivalente aproximado daquilo que representa, no cinema, a pré-montagem,
uma disposição de todos os planos a se filmar. É nessa diferença essencial que os qua-
drinhos começam onde o cinema termina: a natureza do suporte com o qual se confronta
não permite ao desenhista fabricar suas imagens sem um conhecimento preliminar de sua
posição no espaço ou de sua situação na trama.
Aplicada à unidade de execução que é a prancha, a quadriculação corresponde ao
momento de tomada de posse do espaço paginal. A operação, como já disse, pode ficar
apenas no plano mental e não chegar a conhecer a devida tradução gráfica. Pode igualmen-
te encarnar-se em um esboço ou grid, que terá lvirtude dupla: de superar o efeito intimidan-
te da página em branco e de convocar a emergência do desenho.
Assim, para Hergé, essa fase consistia em traçar, sobre uma folha de esboços, três
traços horizontais para divididá-la em quatro tiras de importância mais ou menos similar,
no interior das quais poderia se desenvolver uma proposta de decupagem. Isso nos re-
vela o testemunho comovente da quadragésima-segunda e última página dos esboços de
153
Tintim e a Alfa-Arte (Casterman, 1986) 216 , onde, sobre uma tira finalizada, a segunda foi
apenas iniciada e a terceira é virgem de qualquer registro.
A quadriculação, portanto, define a primeira configuração do rnultirrequadro, mui-
tas vezes de forma ainda grosseira. Essa configuração provisória fornece ao autor um
quadro de trabalho, uma matriz. O layout será a versão revisada e corrigida da quadricu-
lação, ou seja, a versão informada pelos conteúdos exatos e pelas . duas outras operações
constitutivas da artrologia, a decupagem e (caso surja) o entrelaçamento.
Acontece por vezes de os conteúdos obedecerem a uma periodização estrita determi-
nada pelo programa narrativo. Assim, a quadriculação revela-se uma operação essencial, com
vistas a atribuir a cada sequência da trama uma parte determinada por seu suporte. O álbum de
Jeanne Puchol Dessous Troublants (Futuropolis, 1986) serve de bom exemplo. A ação se con-
centra em um apartamento composto por quatro peças: quarto, escritório, cozinha e banheiro.
Cada peça é suscitada por meio de quatro objetos característicos (o escritório, por exemplo, é
um livro, uma poltrona, um abajur e uma caneta). O algarismo 4 rege a decupagem narrativa,
as quatro sequências dedicadas a explorar individualmente uma das peças, cada uma contendo
quatro pranchas; no último quadro da quarta prancha aparece a porta através da qual efetuar-
-se-á o trânsito para a peça seguinte. Ao fim, o epílogo do pequeno álbum, composto por vinte
pranchas, consiste em quatro páginas e nos faz repassar sucessivamente por cada uma das
quatro peças. Tão simples quanto eficaz, a quadriculação — aqui sendo a divisão da história em
cinco sequências (4 + 1) de mesma extensão — não é nada menos que uma matriz global dentro
da qual os dispositivos do layout são constantemente renovados.
3.2 - PRIMEIRA ABORDAGEM DO ENTRELAÇAMENTO
Menos usual que os conceitos de decupagem e de layout, a noção de entrelaçamen-
to, que apresentei brevemente em edição especial da CinémAction publicada no verão de
1990217 mesmo assim teve certa fortuna crítica desde sua introdução. É chegada a hora de
precisá-la um pouco mais.
Repetiu-se diversas vezes nestas páginas que, dentro do multirrequadro pagina-
do que constitui uma história em quadrinhos completa, cada quadro está, em potencial
quando não de fato, em relação com todos os outros. Essa totalidade, cuja forma física
geralmente é, conforme as normas editoriais francesas, a de um álbum, responde assim
a um modelo de organização que não é o da tira nem do encadeamento, mas sim da rede.
216 Edição brasileira: 77ntim e a alfa-arte. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
217 Cf. "Ou 7e au 9e Art: l'inventaire das singuiarités", op. cit., p. 28. Nessa formulação primeira, eu inoportunamente limitei as
relações de entrelaçamento a quadros da mesma página.
154 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
Jon Baetens e Pascal Lefevre já comentaram devidamente que "... longe de apre-
sentar-se como um encadeamento de caixinhas, a história em quadrinhos exige uma leitura
capaz de localizar, além das relavgs lineares, os aspectos ou fragmentos de quadros sus-
cetíveis a entrar em rede com aspectos ou fragmentos de outros quadros'''. O entrelaça-
mento é exatamente a operação que, desde a fase de criação, programa e efetua essa função
de ponte. Ela consiste em uma estruturação bônus e marcante que, levando em conta a
decupagern e o layout, define as séries internas a uma trama sequencial.
Cabe aqui distinguir exatamente as noções de sequência e de série. Recorro, sem
fazer alteração, às definições que dei em Cerisy em 1987:
Uma série é uma sucessão contínua ou descontinua de imagens unidas
por um sistema de correspondências icônicas, plásticas ou semânticas; (...)
Uma sequência é uma sucessão de imagens cujo encadeamento sintagmático
é determinado por um projeto narrativo.'
(Tanto quanto é infranarrativa, a noção de serialidade opõe-se ela mesma à de suíte,
que designa uma miscelânea de imagens sem correlação. Mesmo que se apoiem de início
em terminologia matemática, esses termos têm uso frequente na História da Arte e na Esté-
tica. "Suíte, série, sequência", por exemplo, é o título do ensaio de uma página do escritor
Hervé Guibert, no qual as definições em nada diferem das minhas 220. É igualmente título
de um volume que reúne os anais de um colóquio organizado pela Université de Poitiers e
pelo College international de Philosophie221 .)
As séries a partir das quais nasce o entrelaçamento estão sempre inscritas em sequên-
cias narrativas, nas quais o primeiro sentido, independente da percepção de série, é suficiente
por si só. A série inscreve-se como um excedente que o texto secreta sob a superfície. Ou, em
outros termos: o entrelaçamento é uma relação suplementar, que jamais será indispensável à
condução e inteligibilidade da história, função esta que cabe à decupagem.
3.3 - DA POSIÇÃO AO LUGAR
Ao contrário da decupagem e do layout, o entrelaçamento desenvolve-se simulta-
neamente em duas dimensões e as faz colaborarem entre si: a sincrônica, da copresença
218 Pour une lecture moderno de la bando dessinée, op. cit., p. 72.
219 Cf. "La narration comme supplément", M Bande dessinée, récit et modernité, op. cit., p. 65.
220 Cf. Llmage fantôme, Paris, Minuit, 1981, p. 98.
221 Dominique Moncond'huy e François Noudelman (org.), Suite/Série/Séquence, Poitiers, La Licorne, 1998.
g!r THIERRY GROENSTEEN 155
de quadros à superfície do mesmo suporte, e a diacrônica, a da leitura, que reconhece a
cada novo termo de uma série um eco ou um remeter a termo anterior. Pode-se criar uma
tensão entre essas duas lógicas mas, longe de fechar um conflito, a tensão se resolve no
aprimoramento semântico e no adensamento do "texto" da história em quadrinhos. (O
termo entrelaçamento inscreve-se na toponímia que comumente associa ao texto as noções
de tecido ou de fiação.)
Por natureza, uma história desenvolve-se ao longo de uma extensão linear e irrever-
sível. Inerente a toda narração, a progressão vê-se reforçada pelo formato impresso, pela
montagem em livro da história em quadrinhos. Como escreveu Jan Baetens, "o volume
induz à inegável vetorização do discurso, o livro consagra a leitura linear, ou mais exata-
mente monovetorizada, que distingue (e às vezes discrimina), um princípio e um fim, um
incipit e um explicit, a primeira e a quarta capas. >9222
No que concerne a história em quadrinhos, essa disposição é constantemente com-
batida, e em certa medida neutralizada, pelas propriedades que reconhecemos nos quadros.
As redes que eles formam são certamente redes orientadas, dado que são atravessadas pela
instância da história, mas existem também dentro de um modo descronologizado, o da
coleção, da extensão panóptica e da coexistência, considerando a possibilidade de relações
translineares e de percursos plurivetoriais.
Segundo as palavras de Michel Tardy, nessa situação a leitura é uma operação
que tensiona o plano do processo e o plano do sistemam. Os quadros da série, disper-
sos, só constituem uma constelação na medida em que a leitura detecta e decifra suas
complementaridades ou interdependências. É a eficácia própria do entrelaçamento que
conduz a essa leitura de todo o conjunto.
Dentro da rede, o layout dota cada quadro de coordenadas espaçotópicas que lhe
atribuem uma posição. Suas coordenadas temporais (ou cronotópicas) lhes são conferidas
por seu lugar na decupagem. O entrelaçamento sobredetermina o quadro ao dotá-lo de
coordenadas que podemos qualificar de hipertópicas, indicando sua filiação a uma série
notável ou a diversas séries notáveis, e o local que ela ocupa.
Dado que ele se articula com qualquer de suas similares por uma relação que recor-
re ao entrelaçamento, o quadro aproveita ressonâncias cujo efeito é transcender a funcio-
nalidade da posição que ele ocupa, para conferir-lhe a qualidade de lugar. Um lugar não é
em si o espaço habitado, que podemos cruzar, visitar, investir, um endereço onde fazem e
222 "Contrainte, clinamen, antinôme. Quelques réflexions théoriques à propos d'un texte de Perec.„", Giallu, Revue d'art et de
sciences humaines, n. 3, Ajaccio, 3° trimestre de 1994, p. 46.
223 Cf. lconographie et sémiogènese, op. cit., p. 556 a 558.
156 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
se desfazem relações? Se todos os termos de uma sequência e, consequentemente, todos
os termos de uma rede constituem lugares, é a filiação, ainda, de tais unidades a urna ou
a diversas séries marcantes que os Éefinem como lugares. Um lugar é, portanto, um es-
paço ativo, sobredeterminado, umalposição onde uma série cruza com (ou sobrepõe-se a)
uma sequência. Há posições privilegiadas naturalmente predispostas a se tornar lugares,
sobretudo as que correpondem às posições inicial e terminal da história, ou dos capítulos
que a compõem. (Assim, em Little Nemo, folhetim no qual cada prancha semanal era um
capítulo em si, os quadrinhos terminais constituem uma coleção notável de momentos de
despertar do protagonista.) Mas há outros lugares que não coincidem com posições de pri-
vilégio; é o entrelaçamento que tem o efeito de lhes dar atenção particular e construí-los
como lugares.'"
É chegada a hora de dar exemplos dessas estruturações marcantes que definem as
séries. Não esboçarei aqui uma tipologia dos diversos procedimentos específicos ao en-
trelaçamento, que seriam indubitavelmente impossíveis de enumerar. Ficarei contente em
demonstrar alguns, através de exemplos na ordem crescente de sua amplitude, ou seja, da
distância que separa os termos de uma série.
A tira, a prancha, a página dupla e o álbum são multirrequadros nidificados, sis-
temas de proliferação progressivamente englobantes. Os três primeiros possuem uma
propriedade essencial em comum: permitem um diálogo in praesentia, um intercâmbio
direto entre as imagens que se encontram em situação de copresença aos olhos do leitor.
Enquanto que um quadro da página 5 mantém relação privilegiada com um quadro que
pertence à página 6, impressa no verso, ou com um quadro da página 27 (imaginemos,
para ficar em exemplo simples, que se trata de um único desenho reproduzido de maneira
idêntica), essa relação estabelecer-se-á necessariamente in absentia, à distância. As cor-
respondências que o entrelaçamento organiza remetem com frequência aos quadros (ou às
sequências pluriquadros) com várias páginas de distância entre si, e que não podem ser
vistas simultaneamente.
Notemos que nenhum quadro pode / ser repetido integralmente sem passar por
modificação. A repetição de um mesmo 4Uadro em duas localizações de uma história
em quadrinhos, contíguas ou distantes, não constitui duplicação perfeita. A segunda
ocorrência de um quadro já é diferente da primeira pelo simples fato de que se anexa um
efeito de citação. A repetição faz surgir a lembrança da primeira ocorrência, se consiste
224 0 álbum Nogegon, de Luc e François Schuiten (Les Humandides associés, 1990) constitui exemplo raro de história em quadri-
nhos em que todos os quadros, sem exceção, são ativos como lugares, dado que cada quadro da primeira metade do livro corres-
ponde a outro quadro da segunda metade, conforme um dispositivo de simetria global.
THIERRY GROENSTEEN 157
em uma rima (repetição distanciada) 225 , ou manifesta uma insistência singular caso as
duas ocorrências forem contíguas. Mas o mais importante é que esses quadros, isomór-
ficos, não seriam também "isótopos"; por definição, eles não poderiam ocupar a mesma
posição. Mesmo quando não o faz objeto de qualificação particular (o que certamente
não é o caso em se tratando de uma rima), a posição é um parâmetro constitutivo inalie-
nável do quadro.
3.4 -ALGUMAS SÉRIES COMPACTAS
Um exemplo tão simples quanto célebre é o tríptico que aparece na página 35 de
Tintin no Tibete, quando Tintim e amigos, após desistirem da busca por Tchang, abando-
nam a carcaça do avião caído e preparam-se para ir embora. A decupagem desse momento
da narrativa busca suscitar em três quadros contíguos a progressão lenta e insignificante
dos protagonistas reduzidos a dimensões de formigas na imensidão nevada. O entrelaça-
mento tira proveito dessa contiguidade para instaurar continuidade na representação do
cenário, que toma o aspecto de uma grande panorâmica; ao plano de fundo, o círculo de
montanhas prolonga-se por toda a extensão dos três quadros contíguos. Esse entrelaça-
mento relativamente elementar não só opera in praesentia, apoiando-se em quadros que
se apresentam conjuntamente ao olhar, mas a série como um todo desenha uma forma
compacta e uma suíte linear.
Para temperar levemente a euforia estruturalista da época, Georges Mounin obser-
vou há muito tempo que "uma estrutura (...) só é de interesse se pudermos demonstrar que
ela possui função precisa dentro da obra, ou seja, que ela é pertinente (e de qual ponto de
vista seria)" 22 '. Essa exigência metodológica aplica-se naturalmente a séries que geram
entrelaçamento. Quando ocorre, a pertinência narrativa do dispositivo hergeano salta aos
olhos: ao expandir o cenário, ele faz acréscimo à vastidão do local a se explorar para recu-
perar Tchang, e parece que traça a sina da busca do herói.
Em La Orilla, a narrativa de duas pranchas mudas de Federico Dei Barrio analisada
anteriormente (cf. 1.6, fig. 3), o entrelaçamento identifica-se, lembremos, como efeito de
composição plástica. É a localização da personagem na imagem que é sua agente. Suas
posições sucessivas desenham uma diagonal descendente e, simetricamente, uma diagonal
ascendente, assim inscrevendo um V gigante no cerne da história.
225 José Calvelo estuda o fenómeno da rima em seu artigo "Sous les grilles", Conséquences n. 11, Paris, Les Impressions nouvel-
les, 4° trirn. de 1988, p. 34-57 Cf. Particulamente as p. 40-41, onde comentam-se dois exemplos, tomados respectivamente de
Christophe e de Hergé.
226 "Structure, fonction, pertinence", La Linguistique, Paris, n. 10-11,1974.
158 O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 159
A prancha inicial de Per- que prepara a entrada de Alcazar em cena) são indissociáveis. Pouco se comentou que
didos no Mar (fig. 14) já foi mo- ,COKE EN STOCK se vê simetricamente, no último quadro do álbum, a inscrição (mais discreta, vale dizer)
"START". Mas o fim ao qual este incipit aponta não pode ser apenas o da obra, mas
tivo de uma análise brilhante por
Jan Baetens, que trouxe à luz a IIÇp
.ou Ge gaillaed qui jou.. le eo,',1, tizcZet . também da página em si, designada por antecipação como local privilegiado. À imagem
série notável dos três Alcazar 227.
AH
i Ák
.À1111RUFS, ',' p"-~ r'7.
'' ._
~I, cinematográfica de um cavalheiro que cavalga em paz, não poderíamos opor a imagem de
til 0:11.4111tigi ç ,. 1 ' ' 9 ,V7
Resumo sua demonstração: o 'JS---,••"—'
p.Vt,1
'Alk,j'a
4 1 ' or , ., N irt,. d5., um general que aparece de forma tão violenta?
ta .0
-
,

nome do general Alcazar é cita-

,. , .... - -Wklgo
111."
k& eif mi
jir.._,1 . li
3.5 — DIÁLOGOS DE PÁGINA A PÁGINA
do três vezes, sempre no último /...-,.. .,

quadro de cada tira. O primeiro .; t,:',, ;v:/;,;°, c.r,r,-::,..jr, ,:;i. :). ,r) -„,:?;":„t -1,r:7: : ',„' ,1;: z." d Todos devem se lembrar da cena, bem no início de A Estrela Misteriosa, na qual
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desses quadros traz um cartaz s•oqur. st,couceu!q, wai;Z.
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l. ...2. MEI wirer....00 Tintim chega ao observatório e descobre, através do telescópio, uma aranha gigantesca que
que representa um ator que lem- *- l. itoolk, ,. , g--, '. _ _
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parece colada ao asteroide que se aproxima da Terra. Esse quadro ocupa o lado direito da
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bra o general; o terceiro traz a difilio dri rs . - -7--- álikith 14 segunda tira da página 4. Tintim logo entende que não passa de uma aranhinha aumentada
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aparição do próprio Alcazar, mas Oitex daue,espke de projrctile
pela lente. Ele então consegue observar diretamente o asteroide sem a interposição da in-
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trusa apavorante. Assim, sua segunda observação pelo telescópio ocupa o quadro situado à

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um Alcazar cuja elegância civil e 'cle';.■

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L tizrRA./- 149 direita da segunda tira da página 5, impresso face a face para a precedente.

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pouco vistosa aparenta, dado ser

4. -II
militar, um disfarce. A passagem
- - 1 im-4,* `• Basta reabrir o álbum para conferir: a ressurgência da "bola de fogo" observada no

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do pseudo-Alcazar ao verdadeiro EM telescópio é mais impressionante porque os dois quadros juntos possuem as mesmas coor-
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kkátiti it WihiSV.A.
se efetua através do manequim Fig. '14 - Hergé, Goke en stock [Perdidos no
denadas espaçotópicas ao centro de suas respectivas pranchas. O efeito de rima é reforçado
sem cabeça que ocupa o quadro Mar], prancha 1, Ed. Casterman, '1958. C) Hergé/ consideravelmente, tanto quanto o desaparecimento da aranha (que voltará a ressurgir
Moulinsart, 1999, p. 178.
intermediário, ao fim da segunda ao longo do álbum- em formas diversas) tem a força de uni evento visual imediatamente
tira. A disposição dessas três figuras, sempre à direita de Tintim e do capitão, e a perma- perceptível. O entrelaçamento, também aqui, faz funcionar essas duas posições que se
nência das duas cores idênticas no vestuário (vermelho e verde), atestam o suficiente que correspondem naturalmente.
estamos diante de uma série orquestrada. Como mostram estes dois exemplos emprestados de Hergé, dado que o entrelaça-
Essa série desenha também um compacto, no sentido de que os três quadros são mento geralmente baseia-se na ressurgência marcante de um padrão icônico (ou de uma
contíguos. Distribuídos sobre um eixo vertical, porém, eles encadeiam-se de maneira qualidade plástica), ela se dá, sobretudo, em situações de aparecimento e desaparecimen-
translinear, abrangendo os outros quadros, que não dizem respeito ao efeito do entrelaça- to, ambas de forte potencial dramático.
mento, com quem dividem a prancha. Faz-se necessário sublinhar que o entrelaçamento Ao adaptar A Máscara da Morte Rubra, de Edgar Allan Poe, Alberto Breccia sis-
aqui apoia-se em lugares duplamente privilegiados: primeiramente por se tratar de uma tematizou relações translineares in absentia entre posições correspondentes de páginas
prancha de abertura, a seguir porque os três quadros ocupam lugares correspondentes em consecutivas. A ação se passa dentro do palácio do príncipe Prospero, cuja disposição
diferentes fases da prancha. Poe descreve nos seguintes termos: "Cada janela era composta por vitrais coloridos em
Ao invés dessa série marcante, o que todo leitor não pode deixar de considerar harmonia com a tonalidade dominante das decorações do salão para o qual se abriam. 1,228
nessa prancha é evidentemente o fato de que o álbum abre com um quadro que traz a pa- Na quarta prancha da história, Breccia apresenta-nos à orgia em curso por todas as sa-
lavra "FIM". Os dois fenômenos (o paradoxo dessa inscrição liminar, e o entrelaçamento las do palácio, enquanto lá fora a peste assola o país. Porém, ao soar da meia-noite, a

227 CL Hergé écrivain, Bruxelas, Labor, 1989, p. 93. 228 Cf, Edgar Allan Poe, Oeuvres en prose, traduçáo de Charles Baudelaire, GallImard, "Pléiade", p. 393.
160 o SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 161
"morte rubra" penetra-se no príncipe através do surgimento de um espectro e interrompe
as festividades. O espectro, diz o texto de Poe, "prossegue em sua rota sem percalço
r,
(...), do salão azul ao salão púrputra, do salão púrpura ao verde, do verde ao laranja,
deste ao branco, deste ao violeta, sem que se tome movimento decisivo para detê-lo.
Foi então, todavia, que príncipe Prospero, enlouquecido de raiva e com vergonha de sua
momentânea covardia, correu apressadamente pelos seis salões... (...) brandia um punhal
desembainhado."
Essa sequência é traduzida por Breccia em duas pranchas consecutivas, a oitava e
nona de uma narrativa que soma doze (fig. 15). O cruzar de seis salas materializa-se na
repetição da mesma personagem. Fora variações mínimas na silhueta, ela parece fixa em
uma postura nobre, dotada de ubiquidade. O tempo e a ação parecem suspensos, como se
o mesmo instante se encontrasse eternizado por efeito de uma difração. O mesmo proce-
dimento é aplicado sucessivamente ao espectro e, na prancha seguinte, ao príncipe. As
duas personagens jamais aparecem, nessa sequência, centrais a uma mesma imagem, tam-
pouco na mesma página, a temática de um perseguindo o outro pelos salões do palácio é
praticamente deixada de lado. Não constitui uma representação direta, mas que se realiza
somente através da criação da relação, dois a dois, de doze posições subentendidas, criadas Fig. 15 - Alberto Breccia, adaptação de Edgar Allan Poe, Le Masque de Ia mort rouge,
pranchas 8 e 9, @ Alberto Breccia, 1982, p. 182.
a partir da identificação de seis séries com diferenciação cromática. (As duas páginas em
consideração foram impressas lado a lado ou não, dependendo da edição.) dois loops narrativos, sendo o primeiro circunscrito ao capítulo inicial e o outro entendido
nas dimensões da obra como um todo.
3.6 —A REDE INERVADA É fato que o famoso bottom aparece em destaque no primeiro quadro do primeiro
A aranha de A Estrela Misteriosa ou o bottom amarelo de Watchmen são dois capítulo, depois no último quadro desse mesmo capítulo e, por fim, no ultimo quadro do
exemplos, doravante clássicos, de padrões cuja proliferação ao longo dessas obras, assim décimo-segundo e ultimo capítulo. Assim vê-se que se estabeleceu uma relação marcante
como suas aparições singulares em momentos essenciais da narrativa e/ou em posições entre dois posicionamentos antitéticos, predispostos a se corresponder pela modalidade e
naturalmente privilegiadas do suporte, produzem rimas e constelações marcantes. A textu- pelo emblema da circularidade. (A relação armada por Moore e Gibbons é mais complexa
rizaç'áo da trama que se dá por meio da recorrência desses emblemas é acompanhada por do que elaboro aqui, evidentemente.)
refinamento simbólico considerável. Há outros exemplos de proliferação de um padrão nos quais segue-se apenas uma
Watchmen, a obra de Alan Moore e Dave Gibbons, muitas vezes já citada nestas espécie de formalismo lúdico. Lembro principalmente da multiplicidade de círculos e de
páginas, soma mais de 300 pranchas e faz 'uso intensivo de todos os procedimentos do en- ovais de cor negra no álbum de Yann e Le Gall entitulado La Lune noire (Les exploits de
trelaçamento. Ela é notavelmente estruturada por uma declinação à figura do círculo, por Yoyo, t. 1, Glénat, 1986).
vezes utilizado como padrão geométrico recorrente que se presta a rimas plásticas, e por Assim que um padrão gráfico espalha-se pelo conjunto da rede que compõe uma
vezes em suas conotações simbólicas (a perfeição, o eterno retorno etc.). Uma das ocor- história em quadrinhos, ele pode evocar diversas séries diferenciadas por tema ou plasti-
rências do círculo que contribui a esses significados é o bottom sorridente do new beat, cidade. O entrelaçamento torna-se assim dimensão essencial do projeto narrativo, ener-
designado comumente como smiley. Os autores empreenderam esforços para posicionar vando o conjunto da rede que, vendo-se em efervescência, incita leituras translineares
162 I O SISTEMA DOS QUADRINHOS THIERRY GROENSTEEN 163
ou plurivetoriais. Conhecemos pontuada pela lua, três vezes repetida por uma diagonal que desce canhota; chegando à
no cinema filmes estruturados esquerda inferior da prancha, só resta voltar à janela, agora acesa, o que inevitavelmente
de maneira análoga: o Macbeth nos faz ver a roseta, perfurada por uma abertura em forma de trevo que orna o sepulcro
de Orson Welles, por exemplo, dos Sambre.
organiza-se totalmente, como Ao multiplicar os círculos e distribuí-los por lugares eminentemente orquestrados, os
observa Jean-Pierre Berthomé, autores não cederam à tentação do formalismo gratuito. A série de círculos aqui é portadora
"em torno de dois padrões, que de sentido: ela nos fala da justiça imanente e do poder, através da metáfora do olho que vê,
são a cruz celta e os forcados que sabe e que julga. É fato que essa janela, que, dentro do vocabulário da arquitetura, possui
que recorrem sem cessar, mistu- exatamente o nome de olho-de-boi, é a do escritório de Hugo Sambre, o pai ausente. Em re-
ram-se e afrontam-se, afirmando lação ao lema da família inscrito no frontão do sepulcro, lê-se o seguinte: "Sambre, a luz da
cada um sua pretensão de invadir lua te observa." Se a lua observa, pode-se deduzir que ela possui um olho ou considerá-la em
o espaço."'" Porém, salvo o uso si um olho. E esse olho que, do céu, observa as intrigas dos Sambre, não pode ser outro que
de videocassete ou DVD player, não o do pai. Ao deixar seu escritório, ele não fez mais que mudar de ponto de observação,
a visão de um filme é, por defi- mudar de nível. Seu ponto de vista confimde-se doravante com o de Deus. Tendo-se uma
nição, monovetorizada e irrever- personagem enterrada em 1848 e de nome Hugo, é difícil não lembrar do célebre verso do
sível; as imagens fílmicas são poeta homônimo: "O olho estava no túmulo, e encarava Caim."
fugidias, e o eco de uma imagem No último quadro, se o escritório volta a se iluminar, é porque - como atesta a pran-
que passou não tem outra reali- cha seguinte - a filha do falecido, Sarah, acaba de lá entrar. Ao tomar posse do aposento,
dade, nem verificação possível, Fig. 16 - Yslaire e Balac, Santre, 1: Plus ne mest ela pretende estabelecer sua autoridade moral sobre a família, assumir as responsabilida-
rien, prancha 17, 1986. - Glénat, p. 184.
que aquela da memória. des do morto. É ali que ela também se instala para trabalhar, tendo decidido passar a limpo
e terminar o manuscrito de uma obra que Hugo Sambre deixou inacabada, cujo titulo é... A
3.7 - O IMPERIALISMO DO ENTRELAÇAMENTO guerra dos olhos. (A prancha precedente já se concluíra por um dose de Sarah disparando
À primeira leitura, a décima-sétima prancha do primeiro álbum da série Sambre, de um olhar apoplético ao leitor. Seus olhos ocupavam justamente a mesma posição do olho-
Yslaire e Balac (fig. 16), surpreende. Parece-nos que nada acontece, fora a aparição (e uma -de-boi que, ao se iluminar, revela agora sua presença.)
vez só!) de uma luz em um espaço em tudo mais obscuro. O longo e complexo "movimen- Apenas no jogo das analogias de formas, uma rede semântica deveras poderosa se
to de apartar" que, atravessando o pequeno bosque, nos conduz da casa da família Sambre arma, e que vai se revelar-se rica em consequências narrativas e implicações simbólicas.
até o cemitério próximo onde o pai acaba de ser enteraddo, marca uma pausa marcante na Nessa única página, vemos se armarem temas que vão abastecer o conjunto de uma obra de
ação, e por isso não é um parêntese vão. Ele representa um caso esplêndido de entrelaça- diversos volumes, em especial o tema do olho. Citarei rapidamente três outras pranchas que,
r
mento, o qual escolhi para exemplo final. longo de exaurirem a questão, atestam o suficiente os prolongamentos da série aqui disposta
O percurso em Z que o olho deve traçar para percorrer os sete quadros que com- e a extensão que se dá ao procedimento de entrelaçamento, o qual, nesta história em quadri-
põem essa prancha está totalmente balizado na sucessão de padrões circulares. A janela nhos, exerce verdadeiro imperialismo sobre a intriga e sua decupagem sequencial.
redonda que de início é vista em dose é visível novamente na segunda imagem, mas de - Prancha 7 do tomo 1: Julie, a caçadora, heroína dessa tragédia, está de olhos
muito mais longe, logo abaixo do telhado; logo depois de o olhar chegar à faixa de branco vermelhos, sinal de sua pertença a uma raça maldita que se previu que levará à ruína dos
Sambre.
229 "Macbeth, une naissance de la conscience", Positif n. 378, julho-agosto de 1992, p. 11.
164 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
- Prancha 37 do tomo 1: a lua reaparece em cena onírica, e retorna em conexão
explícita com a ideia de justiça e de castigo.
- Prancha 46 e última do tomÊ.2, por fim: a lua, de novo, mas dessa vez vermelha
como os olhos de Julie. Grávida da temente de Bernard Sambre, Julie vai dar à luz uma
nova vida. A lua tingida de sangue anuncia, nesse sentido, a iminência da revolução, que
representa a esperança de uma vida nova e melhor para o povo de Paris.
Se os quadros de uma história em quadrinhos 'constituem uma rede, ou mesmo um
sistema, o entrelaçamento manifesta sua consciência. A lógica sintagmática da sequência
sobrepõe-se a uma lógica outra, associativa. Pelo viés da teleartrologia, as imagens que a
decupagem deixa à distância, independente se em termos físicos ou contextuais, revelam-
-se repentinamente comunicantes e próximas, uma em débito com a outra — assim como as
pinturas de Vermeer quando as vemos reunidas e percebemos que formam pares ou trios.
Como bem notou Pierre Fresnault-Deruelle, são essas "mil e uma formas de derivação e
correspondência que fazem da HQ um texto no sentido mais forte da palavra."" °
230 "Semiotic Approaches to Figurative Narration", op. cit., p. 596. Cito aqui a partir do manuscrito em francês que me foi entregue
pelo autor.
165
CONCLUSÃO
Ao abordar a história em quadrinhos em termos de "sistema", minha pretensão é
dar a entender que ela constitui uma totalidade orgânica que associa, segundo uma com-
binatória complexa, elementos, parâmetros e procedimentos múltiplos. A descrição que
aqui se propõe de sua linguagem talvez não seja sistemática, na medida em que certas
questões foram postas de lado (principalmente as que tratam da autoridade e funções do
roteiro como tema, programa e pré-texto, ou ainda as diferentes instâncias de enunciação);
mas me parece que ele é, no mínimo, coerente. O princípio fundador do qual parti, vale
lembrar, foi o da solidariedade icônica. Sabemos daqui em diante que as três operações
— decupagem, layout e entrelaçamento — definem suas modalidades principais. São ope-
rações solidárias entre si e, sobretudo no caso das duas primeiras, inconcebíveis à parte,
dado que a dinâmica ideal da narrativa não pode cumprir outra coisa que não se articular
na ocupação física do suporte.
Quanto ao método que se seguiu, não há dúvida que devemos qualificá-lo como
pragmático. Na escolha das ferramentas conceituais, de saída, absorvi tudo da estética, da
narratologia, da teoria comparada e da história da "Nona Arte" que me pareceu fecundo ou
que pudesse complementar uma reflexão de inspiração semiológica. Mas pragmático tam-
bém no sentido de que, tanto no que concerne à criação quanto à recepção (a leitura), eu
me vi no esforço constante de abrir a reflexão a todas as opções possíveis e imagináveis.
Vendo pelo lado da criação, isso quer dizer que nenhum procedimento foi considerado ex-
clusivamente com vistas à produção de um determinado efeito; mesmo que existam efeitos
dominantes, e que seja legítimo e pertinente identificá-los como tais, todo procedimento
é suscetível de entrar em um dispositivo particular que vai modificar ou especificar, pon-
tualmente, sua eficácia. Do lado da leitura, a distinção entre diferentes níveis de recepção
— a conversão de enunciáveis em enunciados, a descrição mais ou menos atualizada, en-
fim, a interpretação — e entre diversos planos de significado, longe de conduzir à formali-
zação de um protocolo de leitura unívoco e normativo, leva à conclusão de que o sentido
é, para cada leitor, sempre algo a ser construído e completado, no máximo direcionador de
sínteses provisórias e necessariamente impressionistas da subjetividade.
Muitas das considerações que desenvolvi nestas páginas com certeza mereceriam
ser ouvidas além do campo da história em quadrinhos e poderiam, inclusive, levar — e
166 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
que sofram os acadêmicos preconceituosos — à reconsideração de pressupostos teóricos
de algumas disciplinas. A narratolog, em particular, carrega o problema de ter se de-
..
senvolvido tendo por referência apenas a literatura, quando seu campo de investigação
por natureza é de fato o gênero narrativo, do qual não se deveria mais excluir as história
em imagens. Os pesquisadores especializados já tentaram adaptar à sétima arte os con-
ceitos forjados para dar conta apenas da narrativa literária. Mas isso acabou emperrando
em um diálogo (geralmente de uma via só), quando deveria, a partir de agora, abordar
a narração diante do conjunto de disciplinas narrativas. A expansão da pesquisa sobre
histórias em quadrinhos (e fotonovelas) só pode levar à conclusão de que certos concei-
tos precisam ser alterados ou relativizados. Foi uma constatação similar sobre a inade-
quação das categorias tradicionais do saber à realidade das mensagens que se trocam,
hoje, entre suportes cada vez mais diversificados a que levou Régis Debray a esboçar
uma nova disciplina: a midiologia — cujas ambições, entretanto, são muito diferentes das
minhas'''.
As histórias em quadrinhos não constituem uma arte sincrética — ou total, pode-se
dizer — como a ópera, elas não exigem do leitor o mesmo engajamento perceptivo que se
faz ao espectador do cinema, no qual, como lembra Francis Vanoye, o filme "faz-nos ver as
imagens em movimento, a linguagem escrita, ouvir ruídos, músicas, palavras faladas" 232.
Mas mesmo que elas não mobilizem outro sentido fora a visão, as HQs — que casam o vi-
sual e o verbal, apresentam descontinuidade, escalonamento e efeitos de rede, constituem
enfim uma espécie de banco de imagens — não ficam muito distantes da bifurcação entre
a civilização do livro e a civilização multimídia. Nesse sentido, hoje elas merecem muito
mais atenção crítica do que já receberam.
Já vimos que seu modus legendi é bastante complexo. Não é por essa complexidade
inerente aos quadrinhos que podemos concluir sua validade artística. Neste trabalho, dei-
xei propositalmente de lado a avaliação da legitimidade dos quadrinhos como arte. Este
livro não é uma obra militante — ou o é apenas incidentalmente, dado o viés dos exemplos
que traz e comenta. De resto, não cabe ao julgamento estético, seja lá o que isso for, de-
cidir a legitimidade de uma pesquisa teórica. Como escreveu Deleuze ao principio de seu
monumental Cinéma, "a enorme proporção de nulidades na produção cinematográfica não
compõe objeção'''.
231 Cf. de Régis Debray, Cours de médiologie génerale e Vie et mort de !image, Paris, Gallimard, "Bibliotègue des Idées", 1991 e
1992 [Edições brasileiras: Curso de midiologá geral e Vida e morte da imagem. Trad. Guilherme Teixeira (ambos). Petrópolis: Vozes,
1993 (ambos)1, além de, pela mesma editora, Les Cahiers de médiologre (n. 1, 1° sem. 1996).
232 Récit écrit, récit (fim/que, Paris, Nathan, "Nathan Université; Arte', 1989, p. 20.
233 Cinéma 1: L'image-mouvernent, op. cit,, p. 8.
11-IIERRY GROENSTEEN 167
Sugeri que a imagem dos quadrinhos, além de ser um enunciável, um descritível e
um interpretável, é também um apreciável. É imperativo retornar a esse tema para a con-
clusão. Não sem ter ressaltado que evidências, as qualidades artísticas que desejemos atri-
buir a determinado desenhista de quadrinhos, como criador de imagens, não determinam
por si só o sucesso das obras nas quais emprega seu talento. Ao fim das contas, a avaliação
lida com a obra em sua totalidade, ou seja, em todas suas dimensões: narrativa, plástica,
simbólica etc. Nessa concepção, uma melhor compreensão do sistema dos quadrinhos,
caso não seja imediatamente conversível em critérios de julgamento, permite, todavia,
melhor apreensão de cada obra como performance singular da mídia.
Voltemos, portanto, à imagem e a suas qualidades como performance gráfica. O
fato é que, fora a imagem-corpo que concerne à espaçotopia e a imagem-signo que concer-
ne à artrologia, não se pode esquecer da imagem-obra, a imagem assinada que é testemu-
nha de uma capacidade, de um estilo, de uma visão, de uma potência própria. Do ponto de
vista teórico, a única questão válida é a dos critérios à frente que se considera conveniente
avaliar. É uma questão realmente difícil, sobre a qual os especialistas não disseram muita
coisa até o momento. Dado que a imagem nos quadrinhos é problematizada por sua fina-
lidade narrativa e, se for o caso, sua vocação humorística. Decorre daí que os critérios de
julgamento aplicados tradicionalmente ao desenho de arte mostram-se muitas vezes, aqui,
inadequados e literalmente impertinentes.
Não há dúvida que desenhistas como René Giffey, Paul Cuvelier, François Schui-
ten e André Juillard (limitando-se a artistas francófonos) já demonstraram que não há
contradição entre as exigências da mídia e a grande tradição clássica, o "metiê" secular
do desenho artístico. Entretanto, outros quadrinistas de igual grandeza — lembremos, por
exemplo, de Hergé, Calvo, Franquin ou Bretécher — inspirando-se quase exclusivamente
nos caricaturistas (em sentido amplo) que os precederam, moldaram cada um seu próprio
e notável estilo, e o impuseram como síntese original que pouco deve aos cânones acadê-
micos do "bom desenho".
O desenho que se exige na história em quadrinhos tem suas próprias leis: as leis do
desenho narrativo. A mim parece que as principais características do desenho narrativo
são cinco:
1 / O antropoeentrismo: O desenho narrativo privilegia a personagem, o agente da
ação; ele sucessivamente atribui a cada personagem a escala de protagonista, no sentido eti-
mológico de "aquele que tem o papel principal". O formato do quadro muitas vezes parece
projetado para receber o corpo da personagem representada dentro do requadro. Como se a
168 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
caixa fosse seu habitat natural, seu espaço vital, que delimitasse o espaço de seu agir imedia-
to — uni volume especial, em suma, bastante próximo do que os surdos chamam de espaço de
sinalização ou o que o coreógrafo RucSlph von Laban propõe nomear kinésphère.
2 / A simplificação sinedóquicla. O desenho narrativo, como já vimos ao tratar da
prancha de Corentin, com frequência elimina o que não é necessário para a inteligibilidade
da situação representada. Se a sequencialidade obriga-o a fazer certas redundâncias, ele
não tira o privilégio, a todo momento, dos elementos que apresentam caráter informativo
imediato, eliminando ou deixando em segundo plano o restante.
3 IA tipificação. Como corolário dos dois primeiros pontos. A tipificação é a sim-
plificação no que se aplica às personagens. A estilização da personagem em poucos traços
pertinentes garante sua caracterização e, assim, sua identificação imediata. O topete de
Tintim ou o chapéu e brinco de Corto Maltese estão entre os emblemas mais célebres desta
estratégia gráfica. A tipificaç'ão apresenta um perigo: o do estereótipo, que responde à
necessidade de tudo ser expresso visualmente pelos "signos externos" (ou índices — de ri-
queza, de honestidade, de duplicidade etc.) decodificáveis de maneira simples e imediata.
Da mesma forma a sátira e a paródia, que utilizam os estereótipos para fins de crítica, são
inclinações naturais do desenho narrativo.
4 / A expressividade. O "jogo" das personagens é um fator essencial à compreensão
da situação da parte do leitor. A descontinuidade da narração quadrinística obriga que a
execução de cada imagem seja o mais eloquente possível, dado que constitui um momento
selecionado e retirado da suposta continuidade da ação. O corpo (o gestual) e a face (as
expressões fisionômicas) das personagens devem estar entre as mais expressivas possí-
veis"' — expressividade esta que se reforça com grande frequência ao se recorrer a toda
uma gama de ideogramas ou de signos convencionais (tais como as pequenas gotas de suor
em volta do rosto, que sublinham o emocional). A codifição do movimento é um elemento
de expressividade; mas se trata, como comenta Henri Van Lier, de um "movimento sem
mobilidade", de uma "cinemática sem dinâmica' 235 .
5 I A convergência retórica. O desenho, narrativo obedece a um imperativo de le-
gibilidade total. Por conta disso, utiliza os diferentes parâmetros da imagem (moldura,
dinâmica da composição, colorização etc.) de forma que eles se reforcem mútua e concor-
dantemente à produção de um efeito singular.
234 Ou seja: tão expressivas quanto permitem o código gráfico próprio ao desenhista e o código cultural que prevalece na sua esfera
de criação. A expressividade paroxistica de certos mangás japoneses não possui equivalência alguma na história em quadrinhos
franco-belga — exceção aberta, quem sabe, a desenhistas da histeria como Edika,
235 "La bande dessinée, image-texte exemplaire du monde 3", in Anthropogénie, cap. 14: Les images détaillées, publicado na
internet: http://www.ping.be/antropogenie, 1998.
THIERRY GROENSTEEN 169
Esses critérios não constituem um mapa dogmático que tem de ser aplicado por
completo. Mas se eles experimentam graus diversos na criação da obra, conjuntamente não
determinam nada menos que uma espécie de horizonte do desenho narrativo, que está mais
próximo da história em quadrinhos do que da ilustração. Dados esses pontos, o desenho
narrativo poderia ser visto em oposição ao desenho ilustrativo, que se sacrifica, sobretudo,
à tendência decorativa e convoca a uma leitura mais contemplativa.
Naturalmente, o respeito a esses critérios acolhe uma grande diversidade de esti-
los, do mais elaborado ao mais esquemático, do mais luxuriante ao mais apurado. Como
lembra o grupo 1.1, "uma flor ou uma folha podem ser utilizadas como objeto de estilização
romântica, fantástica, modernista, pueril, mecânica, psicodélica etc." 236 De toda forma,
observemos que essas condições do desenho narrativo satisfazem-se perfeitamente com o
grafismo mais minimalista. Lembro aqui particularmente das pequenas "figurinhas palito"
do espanhol Calpurnio, que me parecem representar o grau superlativo da simplificação.
Sua eficácia deve-se ao fato de que o desenho não conhece o virtual, o etc. Por mais es-
quemático que seja, ele é sempre acabado.
Rodolphe Tõpfer já havia compreendido intuitivamente o que há de essencial no
desenho narrativo. Desde as origens da nona arte, ele escrevia que a "linha gráfica" do
narrador imagético importa-se menos com ideais de beleza e precisão e mais com "todas
as exigências de expressão (...) todas que dizem respeito à clareza"; que esse traço "exige
enormes elipses em relação a acessórios e detalhes", e que os "esboços cursivos" que ele
se põe a traçar, "no que encadeiam uma série, muitas vezes não fazem mais que remeter a
ideias, como símbolos"237 .
O desenho narrativo é, por excelência, aquele no qual podemos falar da "sujeição
do traço ao logos", recuperando uma fórmula de Jean-Marie Pontéviam. Mostrar e contar
são, para o desenho narrativo, a mesmíssima coisa. O desenho narrativo não remete a um
referente, mas sim vai direto a um significante.
É claro que existem momentos em uma história em quadrinhos nos quais a pressão
narrativa é mais flexível. Pierre Sterekx já falou muito bem de imagens nas quais "a história
determina uma trégua, a narração deixa de exercer a tirania da sucessão de acontecimentos,
a mão do desenhista pode adotar a estática da história, florear o traço, amplificar as formas
e, sobretudo, os intervalos" 239. A evolução estética da história em quadrinhos, passado um
236 Traité (lu signe visual, op. cit., p. 368.
237 Tõpffer, Essa' de physiognomonie, cap. 4, reeditado em Thierry Groensteen e Benoit Peeters, TOplfer: rinyention de la bande
dessinée, op. cit., cf. p. 191 e 194.
238 La Peinture, masque et miroir, Bordeaux, William Blake & Co., 1993, p. 151, 1a ed. 1984.
239 Em Benott Peeters e Pierre Stercloc, Hergé dessinateur, Toumai, Casterman, 1988, p. 6.
170 O SISTEMA DOS QUADRINHOS
quarto de século, se deu no sentido de uma libertação da imagem. O desenho narrativo tradi-
cional, tal como o que prevalece desde Tõpffer até Franquin e de Milton Caniff até Mézieres,
se viu em concorrência com mãos mais soltas, mais pictóricas, mais poéticas. De Moebius
a Alagbé, de Loustal a Barbier, de Baudoin a Vanoli, a história em quadrinhos mostrou que
pode aceitar o desenho ilustrativo, e que pode inclusive abandonar por completo o desenho
linear, em beneficio do jogo livre de superfícies e cores, de luzes e intensidades. Numa
defasagem histórica, os quadrinhos viveram o equivalente do que Pontévia chama de "in-
surreição da pintura gestual". Como essa aventura, que entendemos ser tentadora ao pintor,
pode apresentar-se ao autor de HQs quando ele corre o risco de deixar de ser contador de
histórias? É simples: os próprios conteúdos narrativos evoluíram. Os temas narrativos por
excelência (a viagem, a busca, a investigação, o disfarce, a metamorfose...), dos quais a
história em quadrinhos tradicional usou e abusou, mesmo que não tenham sido abandona-
dos, foram pelo menos relativizados diante da conquista de novos espaços de história: mais
literários, mais plácidos, mais poéticos, mais sensuais e mais introspectivos. O sistema dos
quadrinhos fez a demonstração definitiva de sua plasticidade.
171
BIBLIOGRAFIA
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Alagbé, Yvan, 131, 170
Cham, 73
Alberelli, Christian, 58
Chante, Alain, 83
Alberti, Leon Battista, 37, 122
Charlier, Jean-Michel, 88, 137, 150
Altarriba, Antonio, 43
Christin, Anne-Marie, 121-122
Altana, Horacio, 87, 89, 91
Christophe, 157
Anderson, Cari, 24
Ciment, Gilles, 32, 34, 36, 46, 72
Andreas, 15, 59, 86, 96, 105
Cohen-Séat, Michel, 14
Apostolidès, Jean-Marie, 9
Colin, Michel, 111
Aragonês, Sergio, 44
Conrad, Didier, 44
Arasse, Daniel, 130, 133
Copi, 54, 103, 132
Aristáteles, 28
Cosey, 42, 94-96, 100, 142
Aubenas, Jacqueline, 150
Couperie, Pierre, 23-24, 28
Avril, Francois, 25, 136
Crepax, Guido, 25, 57-58
Baetens, Jan, 54, 76, 78, 101, 103, 105, 109, 141, 143, 154, 155, 158 Crumb, Robert, 25-26, 29, 131
Cuvelier, Paul, 100, 125, 133-135, 167
Balac (ver também Yann), 162
Bara, Guy, 24
Dagognet, François, 19
Barba, Aleix, 63, 64, 68, 100
Daix, André, 24
Barbier, Alex, 170
Damisch, Hubert, 13, 32, 79
Barthes, Roland, 37-38, 127, 137-139
Debray, Régis, 17-18, 166
Baudoin, Edmond, 26, 46-47, 56, 82, 100, 170
Dei Barrio, Federico, 47-48, 56, 100, 157
Bazooka, 26
Deleuze, Gilles, 31, 56, 113-115, 118, 166
Benayoun, Robert, 92
Delporte, Yvan, 43
Benveniste, Émile, 12-13
Derib, 96
Berardi, Giancarlo, 25, 136
Deum, Beb, 44
Berthonaé, Jean-Pierre, 162
Dorgathen, Hendrik, 25
Blackbeard, Bill, 23-24
Drillon, Jacques, 91
Bosc, 83
Druillet, Philippe, 42, 58-59, 96
Bourgeon., Francois, 71, 81, 93, 96
Breccia, Alberto, 25, 159-161 Duque, Régis, 136
Bretécher, Claire, 54, 76, 103-104, 119, 167 Duveaux, Michel, 143
Brunon, Claude-Françoise, 119
Eberoni, Didier, 26
Eco, Umberto, 35, 134
Callot, Jacques, 22
Edika, 81, 168
Calpurnio, 169
Eisenstein, S. M., 38
Calvelo, José, 157
Calvo, Edmond Francois, 167 Eisner, Will, 39, 54-55
Caniff, Milton, 170
Fabio, 25
Caran d'Ache, 24
Carrier, David, 25 Feiffer, Jules, 76, 103
Carrière, Jean-Claude, 149-150 Fellini, Federico, 20
Caza, Philippe, 25 Forest, Jean-Claude, 137, 141
178 179

Foster, Harold, 72 Jacobs, Edgar P., 50, 77, 81, 105, 139
Foucault, Michel, 52 Jacobsson, Oscar, 24
Franc, Régis, 25, 68, 105, 143 Jakobson, Roman, 27
Francesca, Piero delia, 25 Jaubert, Alain, 13
Franquin, André, 43-44, 167, 170 um, 83
Fred, 76 Jost, François, 127, 133
Frémion, Yves, 23, 46 Joubert, Joseph, 35
Fresnault-Deruelle, Pierre, 9-10, 20, 38, 68, 78, 164 Juan, Ana, 25
Prost, A. B., 24 Juillard, André, 25, 47, 167

Gabrion, Pierre-Yves, 44, 56 Ka, Olivier, 83

Gamier, François, 77 Kafka, Franz, 47
Gaston, 83 Keko, 25
Gaudreault, André, 16, 20, 33, 37, 51, 111-113, 122, 127, 133 K-Hito, 24
Gauthier, Guy, 11, 14, 50, 56 Krafft, Ulrich, 11, 123
Gautier, Théophile, 146 Kunzle, David, 9, 22-23, 28
Geerts, André, 119, 143-147 Kuper, Peter, 25, 141
Genette, Gérard, 28-29
Gibbons, Dave, 60, 104, 160-161 Lacassin, Francis, 9
Giffey, René, 167 Lacroix, Yves, 15
Giraud, Jean (ver também Moebius), 82, 87-88, 92, 132 Le Gall, Frank, 161
Glasser, Jean-Claude, 30, 72 Le Gallo, Claude, 9
Goblet, Dominique, 131 Lecigne, Bruno, 26, 57, 59, 82
Godard, Jean-Luc, 55 Lefevre, Pascal, 34, 101, 103-104, 109, 141, 143, 154
Goossens, Daniel, 140 Lehideux, Guy, 30
Goscinny, René, 137, 150 Lessing, Gotthold Ephraim, 17
Gotlib, 76, 140 Lips, Robert, 24
Greuze, Jean-Baptiste, 22, 121 Loustal, Jacques de, 170
Griffith, Bill, 60-61, 67
Gross, Milt, 25 Maggetti, Daniel, 140
Grupo 11, 13-14, 55, 63, 104, 169 Magné, Bernard, 34
Guattari, Félix, 114 Mandy, Marie, 106
Gubem, Roman, 9 Marin, Louis, 43, 63, 67
Guibert, Hervé, 154 Marti, 26
Martin, Jacques, 83
Hamon, Philippe, 130, 132 Masse, Francis, 26
Harvey, Robert C., 66 Masson, Pierre, 38, 55-56, 122
Herdeg, Walter, 24 Matt, Joe, 106
Hergé, 24, 40, 50, 52, 58, 70, 80-81, 86, 109, 119-120, 133, 136-137, 152, 157-159, 167, 169 Mattotti, Lorenzo, 104
Hen- iman, George, 25 McCay, Winsor, 25, 68, 70
Hjelmslev, Louis, 11 McCloud, Scott, 119
Hogarth, William, 22 McKean, Dave, 44, 137
Hugo, Victor, 163 Méaux, Danièle, 140
Menu, Jean-Christophe, 125
Iser, Wolfgang, 121
180 181
Metz, Christian, 10, 12, 14, 20, 37, 97-98, 110, 113, 137 Rey, Alain, 9, 22
Mézières, Jean-Claude, 170 Ricardou, Jean, 31, 46, 56
Michals, Duane, 140 Ricceur, Paul, 16, 21
Michaux, Henri, 110 Rio, Michel, 60
Milazzo, Ivo, 25, 136 Robin, Thierry, 25
Miller, Frank, 90 Rosinski, Grzegorz, 86
Mitterrand, Odette, 32, 46 Roux, Antoine, 23
Moebius, 25, 33, 49, 170 Rubens, Pierre Paul, 22
Moliterni, Claude, 34
Moncond'huy, Dominique, 154 Sadoul, Numa, 58
Montellier, Chantal, 64 Sampayo, Carlos, 115-116, 125, 135
Moore, Alan, 60, 82, 104, 160-161 Samson, Jacques, 26, 70, 101
Morin, Edgar, 34 Schaeffer, Jean-Marie, 17-19
Mounin, Georges, 157 Schiefe, 1 K., 24
Mulatier, Jean, 131 Schuiten, François, 46, 49, 156, 167
Muãoz, José, 76, 82, 100, 115-116, 125, 133, 135 Schuiten, Luc, 156
Mutterer, François, 26, 67 Schulz, Charles M., 103
Segar, Elzie Crisler, 72-73
Nal, Bernard, 128 Sfar, Joann, 131
Noudelman, François, 154 Sienlciewicz, Bill, 77, 82
Smolderen, Thierry, 34
Odin, Roger, 13, 27, 97, 111-113, 116 Soglow, Otto, 24
Oubapo, 61, 83, 98 Sommer, Anna, 25
Soumois, Frédéric, 85
Panofsky, Erwin, 78-79, 87 Sperzel, 25
Pascal, David, 24, 34, 101 Spiegelman, Art, 29 -
Peeters, Benoit, 16, 34, 38, 41, 51, 53, 60, 68, 70, 73, 86, 93, 99-103, 105-106, 108, 110, 119-120, Sterckx, Pierre, 19, 38, 169
136, 139, 169 Sterrett, Cliff, 104
Pekar, Harvey, 29 Stewart, James, 139
Perec, Georges, 124, 155 Stoichita, Victor, 95
Pétillon, René, 25, 141
Petit-Roulet, 25, 136 Tardi, Jacques, 26, 70, 82, 101, 141
Picard, Michel, 135 Tardy, Michel, 123, 155
Platão, 16 Teulé, Jean, 23, 73-74, 100, 142
plauen, e. o., 24 Thévoz, Michel, 15
Poe, Edgar Allan, 159-161 Tisseron, Serge, 9
Poïvet, Raymond, 25 Todorov, Tzvetan, 19, 111, 122
Pontévia, Jean-Marie, 169-170 Tiipffer, Rodolphe, 9, 16-17, 22, 35, 54, 67, 72, 101, 119, 140, 169-170
Popineau, Charles, 30 Topor, 83
Pratt, Hugo, 103 Tripp, Jean-Louis, 47
Puchol, Jeanne, 153 Trondheim, Lewis, 25, 83, 125

Raillon, Jean-Claude, 40, 46 Van Harnme, Jean, 125, 135

Reiser, Jean-Marc, 54 Van Lier, Henri, 12, 30, 32, 35, 57, 102, 120, 168
Renard, Claude, 49 Van, Martine, 26, 67
 183
182
entrelaçamento, 15, 32, 33, 85, 103-104, 152-164 margem, 42-45
Vanoli, Vincent, 170 enunciável, 114, 118, 128-130, 132, 135, 167 mostração, 18, 140
Vanoye, Francis, 166 escrito, vide verbo. mudas (HQs), 47, 83, 135, 139, 140, 142, 157
Varenne, Alex, 50 espaço intericônico, vide branco. multirrequadro, 30, 32, 33, 35, 39, 42-43, 45,
Varga, Aron Kibedi, 111 espaçotopia, 15, 31-34 54, 57, 65, 68, 73, 92, 96-97, 102, 112-113, 120,
Vasarely, Victor, 104 122, 153, 156
Vaughn-James, Martin, 23, 25, 41, 143
faixa, 70
Vautrin, Jean, 74 filactério, vide balão. narração, 17-18, 20, 21-22, 25, 112-115
Velter, Robert, 24 fora de tela (off-screen), 51, 79 narrativa, 18-21, 22-23, 32
Vermeer, Johannes, 164 forma mental, 32, 33, 39, 67
Vink, 44 fotonovela, 14, 16, 24, 28, 38, 109, 111, 138 ordenado geométrico, 98
Von Laban, Rudolph, 168 orientação, 58
funções
de fechamento, 49-53, 55, 90
Wahl, François, 114-115
de estrutura, 56-60, 91 página dupla, 46-49, 61-62
Watts, Richard J., 123, 125
de expressão, 60-62, 92, 108 personagem, 11,24-26, 83-85, 131-132
Webern, Anton von, 120
de indicador de leitura, 62-66, 68 perspectiva, 78-79
Welles, Orson, 162 pintura, 13
de ritmo, 55-56, 90
Wolinski, Georges, 54-55, 103, 131
de separação, 53-55, 90 plano cinematográfico, 36-38
plano de significado, 117-119
Yann, 44, 161 planos (escala dos), 15, 102
gênero narrativo, 16, 79, 166
Yslaire, 162
posição, 40-41, 45-46, 57, 65-66, 74, 154-157
hiper-requadro, 41-45, 56, 58, 64, 68, 70, 75-77, prancha, 30, 35-36, 39, 42, 57-60
ÍNDICE DE CONCEITOS 89, 96, 98, 108 profundidade, 77-80
humor, 10, 77, 81, 92, 131, 140, 148-149, 167
álbum, 29, 36, 40-42, 44, 46, 56, 69, 74, 83, condução, 140-142, 144 quadriculação, 40, 51, 152-153
87, 104, 105, 109, 126, 134, 152-153, 156, 158, convergência retórica, 168 imagem mental, 50-51, 53 quadro (propriedades do), 11, 12-15, 19, 31, 35-
159, 161 cor, 44-46, 55, 74, 77, 82, 85-86, 88, 122, 140, in absentia (relação), 25, 49, 156, 159 39, 76
amálgama, 113 158-159, 161 in praesentia (relação), 28, 156-157
ancoragem, 137-140 incrustação, 92-98, 101-102, 108, 118 real (efeito de), 64, 135, 137, 142, 147
artrologia, 15, 17, 31-34, 46, 49, 55, 62, 89, 96, declinação, 113 informação, 76, 84, 122-124, 128, 133, 150 recepção, 18, 28, 108, 120, 128, 132, 165
110, 118, 134, 136, 153, 164, 167 decomposição, 13, 72, 94, 113 interpretação, interpretável, 72, 84, 97, 114, recordatório, 75
decupagem, 32-34, 46, 57, 67-68, 71, 89-90, 96, 116, 118-119, 129-135, 149 rede, 153-156, 160-162
balão, 14, 31, 75-94, 113, 126, 136, 141-142 99, 103, 106, 108, 110, 120, 125-129, 149-151, redundância, 122-125
branco, 30, 39, 41-42, 44, 53-54, 69, 71, 77-78, 152-155, 157, 163-164 layout, 32-34, 45-46, 53, 58-60, 65, 67, 69-71, reflexividade, 77
81, 149 definição de HQ, 21-27 74, 96, 98-109, 128-129, 149-151, 153-155 requadro interno, 80
descrição, descritivel, 38, 114, 129-133, 136, leitor, leitura, 15, 17, 37, 41, 45-46, 55, 57, 60, requadro, 36-37, 39-40, 42-44, 49-66, 79-82, 86-87
caixa, vide quadro. 145, 148 62-66, 69-71, 73, 77, 84, 86, 91, 100, 132, 135, restrição formal, 98
cinema (HQ e), 10, 12-14, 16-17, 19-21, 24-25, desenho, 11, 14, 23, 28, 30, 50-53, 131-132, 144, 147, 148, 155, 161 revezamento (relais), 137-139, 147
27, 31, 36-38, 49-53, 55-56, 62, 68, 89, 97-98, 152, 167 letreiramento, 82, 149 rima, 41, 157, 159-160
101, 103, 109-114, 128-129, 131, 136-138, 142, desenho narrativo, 112, 122, 167-170 limiar da narrativa, 110-115 ritmo, 20, 54-56, 69-70, 90-101, 102, 141, 142
149, 152, 159, 162, 166 dissimulação (efeito de), 78-79;86, 94 linguistico (enunciado), vide verbo roteiro, 33
composição de cena, 51, 62, 71, 73, 93, 125- dramatização, 135, 142 literariedade, 28-29
129, 142, 150 duração, 94-98 lugar, 154-157 semiótica, 9-10, 13-15
composição do desenho, 128 sequência, 17, 113, 115-129, 135-140, 142, 146,
composição do quadro, 51, 128 elipse, 71, 96, 119-120, 139-142, 146
184 O SISTEMA DOS QUADRINHOS

150, 154-156 tipificação, 168

série, 113, 115, 124-125, 154-160 tira, 24, 30, 32, 42, 47, 66-75
sintagma, 37, 72
tt.‘ Nascido em Uccle, Bélgica, em 1957, Thierry
sistema, 12-15, 28, 45, 49, 56, 60, 155; 165 unidades elementares, 10-15, 32, 35 Groensteen é um dos principais teóricos e
solidariedade incônica, 23, 27-31, 120, 165 historiadores dos quadrinhos na escola
storyboard, 28, 51, 152 verbo, verbal, 15, 17, 18-19, 24-25, 88, 91-92,
franco-belga. Desde os anos 1980, ele já foi
sutura, 139 135-143, 147-148
colaborador de várias publicações - dirigiu a
vetorizaçào, 111-112, 117, 155
importante revista Cahiers de la bande
teleartrologia, 164
dessínée e foi crítico de HO do jornal Le
Monde -, organizador de exposições e
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES conferências, professor, palestrante, tradutor
e editor, sempre em torno dos quadrinhos.
Fig. 1 — Pierre-Yves Gabrion, L'Homme de Java, 1: Rebelle, prancha 26, 1990. Éd. Vents d'Ouest,
Já publicou mais de vinte livros, de ensaios
P. 44.
teóricos como O Sistema dos Quadrinhos a
Fig. 2— Edmond Baudoin, adaptação dos Diários de Kafka, duas pranchas, 1989. E. Baudoin, p. 47. obras de análise aprofundada de autores da
estatura de Hergé, Rodolphe Tópffer e Joann
Fig. 3 — Federico Dei Bani°, La Orilla, 2 pranchas, 1985. C F. Dei Barrio, p. 48.
Sfar. Atualmente é redator-chefe do
Fig. 4— Bill Griffith, The Piot thickens, 2 pranchas, 1980. B. Griffith, p. 61. Neuvième art 2.0, site mantido pela Cite
intemationale de la bonde dessinée et de
Fig. 5 —Aleix Barba, A Winter Story, prancha 1, 1985. A. Barba, p. 64.
l'image, em Angoulême, França.
Fig. 6— Jean Teulé e Jean Vautrin, Bloody Mary, prancha 46, 1983. C Éd. Glénat, p. 74.

Fig. 7— Jean Giraud e Jean-Michel Charlier, Blueberry: Le Bout de la piste, prancha 14, 1986. C , Éd.
Dargaud, p. 88.

Fig. 8— Horacio Altuna, Imaginaire, prancha 29, 1988. H. Altuna, p. 89.

Fig. 9— Cosey, Le Voyage eu Italie, t. 1, prancha 44, 1988. O Éd. Dupuis, p. 94.

Fig. 10— José Muãoz e Carlos Sampayo, Alack Sinner: Rencontres, prancha 2, 1984. — O Éd. Caster-
man, p. 116.

Fig. 11 — Paul Cuvelier e Jean Van Hamme, Corentin: Le royaume des eaux noires, prancha 38, 1974.
C Éd. du Lombard, p. 125.

Fig. 12 — Id., com textos suplementares, p. 129.

Fig. 13 —André Geerts, Jojo, 5: Un été du tonnerré, prancha 17, 1992. C Éd. Dupuis, p. 143.

Fig. 14— Hergé, Tintin: Coke en stock [Perdidos no Mar], prancha 1, Éd. Casterman, 1958. (C) Herget
Moulinsart, 1999, p. 158.

Fig. 15 —Alberto Breccia, adaptação de Edgar Allan Poe, Le Masque de la mort rouge, pranchas 8 e 9.
O Alberto Breccia, 1982, p. 161.

Fig. 16 — Yslaire e Balac, Sambre, 1: Plus ne m'est rien, prancha 17, 1986.— Éd. Glénat, p. 162.