Você está na página 1de 14

FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

Arte e Tecnologia:
diferença e invenção1
Edilamar Galvão

Resumo Abstract

O modernismo assume a crise da representação Modernism assumes the crises of representation with
com a estratégia de quebrar o paradigma mimético the strategy of breaking the mimetic paradigm which
que, de um modo geral, caracterizou toda a tradição has generally characterized the entire artistic tradition.
artística. No campo da arte, logo se estabelece uma In the field of the arts soon is established a divergence
divergência que vai pautar todas as discussões no that will guide every discussion in the realm of culture:
âmbito da cultura: a emergência das vanguardas e dos the emergence of the vanguards and of the technical
meios de reprodutibilidade técnica, que fundam um reproductibility media that found a massive consumer
mercado massivo de consumo de produtos culturais. A market of cultural products. The characteristic taken by
característica tomada pelos meios de reprodutibilidade, the productibility media, that is, their submission to the
ou seja, sua submissão às leis do mercado e da mercadoria market laws and to the laws of merchandise, and thus
e, dessa forma, sua inserção na lógica capitalista colocada their insertion in the capitalist logic placed in the relation
na relação entre práxis e ideologia, fundamenta a crítica between praxis and ideology, substantiates Adorno
de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural. and Horkheimer’s critique on the cultural industry.
A nova configuração imposta pela estética tecnológico- The new configuration imposed by the technological-
digital altera o sentido tradicional que a teoria crítica digital aesthetics alters the traditional sense that
conferiu à técnica e, por extensão, à tecnologia e à critical theory has conferred to technique and by
relação entre arte e técnica ou entre arte e tecnologia. extension to technology and to the relation between
A arte tecnológico-digital opera no mecanismo de, art and technique or art and technology. Technological-
pelos dispositivos tecnológicos, negar uma linguagem digital art operates in the mechanism of, through the
pré-formada. Nesse processo, o indivíduo (interator/ technological devices, deny a pre-formed language.
autor) é levado a uma situação “sem linguagem”, na qual In this process the individual (interactor/author) is
ele opera a desmaterialização da própria linguagem. taken to a “non-language” situation, in which he/she
operates the dematerialization of the very language.

Palavras-Chave Keywords
Arte tecnológico-digital, Reprodutibilidade Technological-digital art, Technical
Técnica, Indústria Cultural, Estética. Reproductibility, Cultural Industry, Aesthetics.

“Por hora a técnica da indústria cultural só chegou à estandardização e à produção em série, sacrificando aquilo pelo
qual a lógica da obra se distinguia da lógica do sistema social. Mas isso não vai imputado a uma lei do desenvolvi-
mento da técnica enquanto tal, mas à sua função na atual sociedade econômica.”
Theodor Adorno e Max Horkheimer em A Indústria Cultural

16
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

Horkheimer sobre a indústria cultural.


“Uma das tarefas mais importantes da arte foi sempre Esta “confere a tudo um ar de semel-
a de gerar uma demanda cujo atendimento integral só hança” (2000:169), “sua ideologia são
poderia produzir-se mais tarde. A história de toda forma
de arte conhece épocas críticas em que essa forma as- os negócios” (2000:185), sua estru-
pira a efeitos que só podem concretizar-se sem esforço tura esquemática e repetitiva é logo
num estágio técnico, isto é, numa nova forma de arte. reconhecida pelo público e inscreve o
(...) Toda tentativa de gerar uma demanda fundamen- produto artístico no âmbito da previsi-
talmente nova, visando à abertura de novos caminhos, bilidade e, portanto, da fácil decodifi-
acaba ultrapassando seus próprios objetivos.”
Walter Benjamin em A obra de arte
cação. “Logo se pode perceber como
na era de sua reprodutibilidade técnica terminará um filme, quem será recom-
pensado, punido ou esquecido; para
“O poeta começa onde o homem acaba. O destino não falar da música ligeira em que o
deste é viver seu itinerário humano; a missão daquele é ouvido acostumado consegue, desde
inventar o que não existe. Desta maneira se justifica o
ofício poético. O poeta aumenta o mundo, acrescenta os primeiros acordes, adivinhar a con-
ao real, que já está aí por si mesmo, um irreal conti- tinuação, e sentir-se feliz quando ela
nente. Autor vem de auctor, aquele que aumenta. Os ocorre” (2000: 231).
latinos chamavam assim ao general que ganhava para Essa ausência de novidade é
a pátria um novo território.” logo escamoteada pela novidade tec-
José Ortega Y Gasset
em A desumanização da Arte
nológica, pelo próximo efeito especial.
Assim, a indústria cultural reduz “os el-
A indústria cultural e a reprodutibilidade ementos inconciliáveis da cultura, arte
e divertimento” a “um falso denomina-
técnica dor comum” (2000: 184). “Em virtude
do interesse de inumeráveis consumi-
O modernismo assume a crise da represen- dores tudo é levado para a técnica e
tação com a estratégia de quebrar o paradigma não para os conteúdos rigidamente
mimético que, de um modo geral, caracterizou toda repetidos, intimamente esvaziados
a tradição artística.2 Ainda que os românticos tenham e já meio abandonados” (2000: 184).
preconizado a independência da arte, seu idealismo Afinal, a apropriação dos meios técni-
não combina com as transformações vertiginosas cos para o consumo de massa assume
na vida social e urbana que atravessam o século os princípios do próprio capitalismo
XIX e deságuam no século XX. O mundo surgido da criticado pelos autores na perspec-
revolução burguesa não é nem igual, nem fraterno, tiva marxista. É a obra uma merca-
nem livre. É o mundo do capitalismo opressor, do doria que deve agradar um número
avanço vertiginoso das técnicas e da centralidade cada vez maior de consumidores para
do espaço urbano. o seu divertimento. Esse passa a ser
No campo da arte, logo se estabelece uma um “prolongamento do trabalho sob o
divergência que vai pautar todas as discussões no capitalismo tardio” (2000:185). É ain-
âmbito da cultura: a emergência das vanguardas da, como dizem os autores, o próprio
e dos meios de reprodutibilidade técnica que fun- antídoto do sistema.
dam um mercado massivo de consumo de produ- A lógica é relativamente sim-
tos culturais. A característica tomada pelos meios ples: a exploração do sistema capi-
de reprodutibilidade, ou seja, sua submissão às leis talista, o esquema rigidamente repeti-
do mercado e da mercadoria e, dessa forma, sua tivo do trabalho na linha de produção,
inserção na lógica capitalista colocada na relação oprime a liberdade, a autonomia e
entre práxis e ideologia, funda a crítica de Adorno e

17
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

a capacidade criativa do sujeito; o Não há rebelião ou revolta porque todos es-


produto da indústria cultural fornece, peram a mesma salvação e ficam sob o signo da
ao modo do entretenimento, uma “dis- concordância: “a afinidade originária de negócio e
tração” da opressão que traz embuti- divertimento aparece no próprio significado deste:
da uma promessa de salvação e uma a apologia da sociedade. Divertir-se significa estar
percepção ideológica da realidade de de acordo. (...) Divertir-se significa que não devemos
que, a qualquer momento, serei eu a pensar, que devemos esquecer a dor, mesmo onde
ser reconhecido e escolhido pelo sis- ela se mostra. Na sua base do divertimento planta-
tema, disseminando assim padrões de se a impotência. É, de fato, fuga, mas não, como
comportamento e desejos que serão pretende, fuga da realidade perversa, mas sim do úl-
continuamente alimentados pela má- timo grão de resistência que a realidade ainda pode
quina da indústria cultural. ter deixado” (2000:192).
Adorno e Horkheimer assinalam A oposição fundamental que Adorno e
ainda que “a impudência da pergunta Horkheimer percebem entre arte e entretenimento
retórica: ‘Que é que a gente quer?’ pode ser resumida na antítese entre razão esclarece-
consiste em se dirigir às pessoas fin- dora e razão técnica, como anuncia o prefácio de
gindo tratá-las como sujeitos pen- Dialética do Esclarecimento. Dito de outro modo, na
santes, quando seu fito, na verdade, é oposição entre pensamento – a razão ativa no molde
o desabituá-las com a subjetividade” kantiano, como resistência ou o pessimismo como
(2000:192). A indústria cultural é a for- método epistemológico – e a razão técnica que pro-
ma pela qual o capitalismo se apropria porciona bens de consumo e entretenimento para o
inclusive do tempo livre do sujeito e conforto e a construção de um status social. É desse
de sua capacidade de escolher o que lado que se coloca a indústria cultural fornecendo
fazer ou pensar, enfim, de ser sujeito. a distração como passividade, perda de autonomia,
Está claro que Adorno aponta para a aderência acrítica aos discursos e ao sistema domi-
impossibilidade de uma revolução nos nante; enfim, ausência de pensamento. Numa visão
termos marxistas: a revolta resultante mais global da Dialética do Esclarecimento, a sobre-
da opressão foi apaziguada por uma posição da razão técnica sobre a razão esclarece-
promessa que nunca poderá se reali- dora significa a vitória dos discursos totalitários e
zar no âmbito coletivo, mas que per- fascistas mesmo nos regimes “democráticos” (ou a
manece no sonho individual do Um impossibilidade de uma democracia verdadeira em
que se destaca na massa, desejo que
tais condições de dominação ideológica).
já foi programado pelo próprio discur-
Dessa perspectiva, a arte de vanguarda, a
so. “Na época da estatística as mas-
arte “verdadeira”, assume um papel completamente
sas são tão ingênuas que chegam a se
diferente e toma a contramão do discurso da indús-
identificar com o milionário no filme.
tria cultural. “A indústria cultural, mediante suas proi-
(...) A fortuna não virá para todos, ap-
bições, fixa positivamente – como a sua antítese, a
enas para algum felizardo, ou antes
arte de vanguarda – uma linguagem sua, com uma
aos que um poder superior designa –
sintaxe e um léxico próprios”. (2000:176)
poder que, com freqüência é a própria
Apesar de, como está colocado na epígrafe
indústria dos divertimentos, descrita
deste capítulo, a estandardização não poder ser
como na eterna procura de seus elei-
atribuída “a uma lei do desenvolvimento da téc-
tos. (...) A starlet deve simbolizar a em-
nica enquanto tal”, à sua época os autores afirma-
pregada, mas de modo que, para ela,
ram que “por hora” a técnica só havia chegado “à
à diferença da verdadeira, o manteau
estandardização e à produção em série”. E aqui me
parece feito sob medida” (2000:193). parece estar a raiz dos contínuos equívocos das leit-

18
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

uras panfletárias desse texto. Pois à tecnologia ficou aspecto físico é apenas uma face do
automaticamente associada a banalização do dis- fenômeno. O que escapa à reproduti-
curso, uma vez que, como disseram os próprios au- bilidade é sua “existência única”,
tores, a exploração de sua novidade utilizada como “o aqui e agora da obra de arte” em
entretenimento escamoteia a repetição vazia da que “se desdobra a história da obra”.
mesma estrutura ideológica, além da proximidade “Essa história compreende não ap-
que a expressão “razão técnica” tem com técnica e enas as transformações que ela sof-
tecnologia. reu, com a passagem do tempo, em
Nesse ponto, “Indústria Cultural” encontra a sua estrutura física, como as relações
“A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, de propriedade em que ela ingressou.
publicado em 1936 na revista Zeitschrift Sozialforsc- Os vestígios da primeira só podem ser
hung3, onze anos antes da publicação de Dialética investigados por análises químicas ou
do Esclarecimento. Benjamin também condenou a físicas, irrealizáveis na reprodução;
apropriação dos meios de reprodutibilidade pela ex- os vestígios das segundas são o ob-
ploração e ideologia capitalista. Antes de Adorno- jeto de uma tradição, cuja reconsti-
Horkheimer, assinalou o mecanismo do culto à es- tuição precisa partir do lugar em que
trela como mercantilização do discurso artístico: se achava o original”. (...) A esfera da
autenticidade, como um todo, escapa
“À medida que restringe o papel da aura, o cinema con- à reprodutibilidade técnica, e, natural-
strói artificialmente, fora do estúdio, a ‘personalidade’ mente não apenas à técnica.”(1984:
do ator; o culto da ‘estrela’, que favorece o capitalismo
167) Dizer que a aura é atingida sig-
dos produtores cinematográficos, protege essa magia
da personalidade, que há muito já está reduzida ao en- nifica que, de qualquer modo, ela o
canto podre de seu valor mercantil. Enquanto o capital- foi inclusive na obra de arte “original”,
ismo continuar conduzindo o jogo, o único serviço que pois a obra reproduzida pode estar
se deve esperar do cinema em favor da revolução é o em qualquer lugar e qualquer tempo.
fato de permitir uma crítica revolucionária das antigas
concepções de arte.” (Benjamin in Lima, 2000:239)
“Generalizando, podemos dizer que
a técnica da reprodução destaca do
domínio da tradição o objeto reproduz-
Mas o que mais chamou a atenção no texto
ido”. (1984: 168)
de Benjamin foi o fenômeno da “perda da aura” com
A aura não é, portanto, um as-
o advento dos meios de reprodução e a afirmação de
pecto físico da obra, mas seu próprio
que estes viriam a alterar o próprio conceito de arte.
revestimento simbólico; sua unicidade
Esse insight de Benjamin acabou por tornar o seu
caracteriza também a experiência úni-
ensaio uma referência teórica incontornável para os
ca do sujeito diante da obra. Experiên-
rumos da arte a partir da apropriação de cada novo
cia que está fundada no que Benjamin
meio de reprodução que pudesse surgir dali por di-
ante. chamou de “valor de culto”: “A forma
Mudança do conceito de arte e perda da aura mais primitiva de inserção da arte no
são interdependentes, pois, diz Benjamin, “o con- contexto da tradição se exprimia no
ceito de aura permite resumir essas características: culto. As mais antigas obras de arte,
o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica como sabemos, surgiram a serviço de
da obra de arte é a sua aura”4. (Benjamin, 1984: 168) um ritual, inicialmente mágico, depois
Parte do ensaio de Benjamin é dedicado a esclarec- religioso. O que é de importância de-
er o conceito. Não se deve entender a aura como cisiva é que esse modo de ser auráti-
um atributo físico da obra simplesmente. O próprio co da obra de arte nunca se destaca
Benjamin não o permite. Embora a aura esteja fun- completamente de sua função ritual.
dada na idéia de originalidade e autenticidade, seu Em outras palavras: o valor único da

19
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

obra de arte tem sempre um funda- tanto, quanto menos colocar em seu centro a obra
mento teológico, por mais remoto que original” (1984: 180).
seja”. (1984: 171) O valor da arte não está no tipo de experiên-
Isso quer dizer que a aura cara- cia que ela qualifica, se contemplativa, próxima ou
cteriza um tipo de relação entre pú- distante, mas que essa experiência seja a experiên-
blico e obra inserido na tradição e na cia do aprendizado de novas percepções. Segundo
contemplação distante. Fundamental- Benjamin, nunca houve antes, na história humana,
mente, é essa relação que foi para sem- uma técnica tão emancipada,
pre alterada. Pois a reprodutibilidade
técnica, segundo Benjamin, emancipa
“mas essa técnica emancipada se confronta
a obra de arte, “pela primeira vez na
com a sociedade moderna sob a forma de uma seg-
história, de sua existência parasitária, unda natureza, não menos elementar que a da socie-
destacando-a do ritual”. (1984: 171) dade primitiva, como provam as guerras e as crises
Com a obra de arte destacada de sua econômicas. Diante dessa segunda natureza, que o
função ritual, o valor de culto é suplan- homem inventou mas há muito não controla, somos
tado pelo valor de exposição propici- obrigados a aprender, como outrora diante da primeira.
ado pela reprodutibilidade técnica que Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendi-
zado. Isso se aplica em primeira instância ao cinema.
torna próximo tudo o que era distante. O filme serve para exercitar o homem nas novas per-
“Fazer as coisas ficarem mais próxi- cepções e reações exigidas por um aparelho técnico
mas é uma preocupação tão apaixon- cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana.
ada das massas modernas como sua Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tem-
tendência a superar o caráter único po o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa
de todos os fatos através de sua re- histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro
sentido” (1984: 174).
produtibilidade. Cada dia fica mais ir-
resistível a necessidade de possuir o
objeto, de tão perto quanto possível, É essa a perspectiva que mais interessa ao
na imagem, ou antes, na sua cópia, na debate da arte contemporânea que se insere no
sua reprodução” (1984: 170). campo tecnológico-digital, daí a importância do tex-
Benjamin aponta para duas di- to de Benjamin. É nesse ponto que a crítica de Ador-
reções: por um lado, a apropriação no e Horkheimer já é antecipadamente ultrapassada
dos meios pelo capitalismo que es- por Benjamin. Mas não se trata de desqualificar a
vazia sua possibilidade revolucionária; importância da reflexão sobre a indústria cultural.
por outro, a introdução das técnicas Provavelmente muito do que tem sido produzido com
como fator que modifica a experiência uma intenção verdadeiramente “artística” obriga-se,
e o modo de perceber. A arte assume de algum modo, a se desviar das condições assi-
nova função: “no momento em que naladas por Adorno e Horkheimer, que denunciavam
o critério da autenticidade deixa de principalmente a perda da autonomia da obra e do
aplicar-se à produção artística, toda artista frente aos interesses mercadológicos.
a função da arte se transforma. Em O âmbito dessa crítica é o da cultura de mas-
vez de fundar-se no ritual, ela passa sa, e ela não alcança as possibilidades de outras for-
a fundar-se em outra práxis: a políti- mas de uso e apropriação que o desenvolvimento
ca” (1984: 171-172). E não há espaço contínuo de novas formas de tecnologia propiciar-
para nenhuma nostalgia do passado, am, ao menos potencialmente. É essa reflexão que
pois “a arte contemporânea será tanto tem sido feita e que precisa ser feita.
mais eficaz quanto mais se orientar Já nos anos 80, Lúcia Santaella cunhou a ex-
em função da reprodutibilidade e, por- pressão “cultura das mídias” para identificar as al-

20
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

terações que vinham se produzindo no âmbito da


arte e da cultura. Sua posterior classificação das
eras antropológicas baseadas na dominância das
tecnologias da comunicação5 tornou a expressão
ainda mais clara, além de apontar os rumos e as
características próprios de cada meio. Além de sug-
erir que a acumulação da experiência de cada uma
dessas formas de comunicação, esta classificação
traz embutida uma espécie de saturação do próprio
meio, provocada no mais das vezes pelo discurso
artístico, que resulta numa vontade de superação
que altera qualquer uso previsível desse meio.
Seria uma tarefa interessante listar os mo-
mentos de pico dessa saturação na obra de arte,
como o que Joyce fez com o romance, Pollock com
a pintura, Duchamp com a escultura, Mallarmé com
a poesia, Nam June Paik com a arte do vídeo. E ago-
ra Stelarc com as tecnologias e próteses do corpo,
Charlotte Davies com as possibilidades da realidade
virtual, etc.
Na verdade, já é quase um lugar-comum afir-
mar que a arte, a “verdadeira arte”, subverte a fi-
nalidade para a qual a técnica pode ter sido progra-
mada: se o cinema, inicialmente, tinha a função de
reproduzir simplesmente em grande escala qualquer
espetáculo, façamos do cinema uma linguagem
própria; se a fotografia inicialmente é a realização
do desejo de uma visão automática, façamos dela
uma máquina de visão, capaz de mostrar o que não
pode ser visto nem reproduzido pelo “olho comum”,
e até mesmo criar abstrações. Se o computador foi
criado para ser uma máquina de calcular e produzir
exatidão, façamos dele o próprio instrumento para
vivenciar uma quantidade tão grande de possibili-
dades e respostas imprevisíveis que, de um equipa-
mento símbolo da exatidão, somos empurrados para
a própria experiência da multiplicidade e do caos.
Dessa maneira, não se deve pensar que as
manifestações artísticas tecnológico-digitais se
aproximam do registro da indústria cultural, mas
sim, mais exatamente das pesquisas tecnológico-
científicas de ponta.6 Ironicamente, é no âmbito do
discurso da indústria cultural, que se vale das tecno-
logias para produzir toda a ilusão do real, que é dis-
seminada uma visão pessimista sobre a tecnologia.
A criatura tecnológica que submete o homem aos
Jackson Pollock pintando em seu estúdio,
1950, fotografado pelo Hans Namuth 21
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

“seus desejos” pode ser considerada levaram à máxima eficácia: conquista do movimento
uma espécie de mitologia do nosso com o cinema, conquista da instantaneidade e da si-
multaneidade da geração da imagem, de seu registro
tempo cuja significação aponta para e de sua transmissão com a televisão, que suprime o
uma resistência da “humanidade” em prazo de registro da imagem próprio ao cinema e op-
nós, no sentido de uma “qualidade era uma aproximação definitiva entre a imagem e o
humana” que deseja permanecer real, o momento de sua captura e o momento de sua
no controle do desejo, que não quer representação. São idênticos, contudo, os processos
morfogenéticos de formação da imagem a partir de
perder sua “porção humana”. O que uma emanação luminosa; idêntica a aderência ao real”
essa “humanidade” significa ou pode (Couchot in Parente: 1993:41).
significar é um dos tópicos que fazem
parte da discussão contemporânea
É essa a diferença, para o autor, entre a rep-
entre ciência, arte e psicanálise. Mas
resentação, que aponta para uma aderência ao real,
que foge ao escopo deste trabalho.
e a simulação, pois aqui “se alguma coisa preex-
iste ao pixel e à imagem é o programa, isto é, lin-
Linguagem e simulacro guagem e números, e não mais o real.” (1993:42).
Por isso, Couchot vê na imagem numérica uma ver-
Em “Da representação à simu- dadeira ruptura na morfogênese da imagem depois
lação: evolução das técnicas e das da perspectiva, porque agora “a imagem torna-se
artes da figuração”, Edmond Couchot imagem-objeto, mas também imagem-linguagem,
afirma que a ilusão do real foi o “ob- vaivém entre programa e tela, entre as memórias e
jetivo permanente da Representação.” o centro de cálculo, os terminais; torna-se imagem-
O autor também explica que, na bus- sujeito, pois reage interativamente ao nosso conta-
ca da automatização dos processos to, mesmo ao nosso olhar: ela também nos olha. O
de figuração, foi fundamental o con- sujeito não mais afronta o objeto em sua resistência
hecimento dos processos de decom- de realidade, penetra-o em sua transparência virtual,
posição da imagem. Decompô-la no como entra no próprio interior da imagem” (Couchot,
seu elemento mínimo para então au- 1993: 42).
tomatizá-la. A perspectiva e a câmara Essa passagem de Couchot faz lembrar de
escura são técnicas de decomposição novo Benjamin na comparação que esse último faz
da imagem, mas esta ainda não é au- entre o pintor e o cineasta, de um lado, com o feiti-
tomática. Só a fotografia permite à ceiro e o cirurgião, de outro. A relação do pintor com
imagem se emancipar diretamente da a tela, para Benjamin, é uma relação fundada na uni-
mão do pintor. dade e na distância. O feiticeiro impõe as mãos sobre
Couchot trilha os caminhos téc- o “paciente”, mas essa ainda não é uma experiência
nicos da figuração e da decomposição de proximidade, e a experiência entre feiticeiro e pa-
da imagem e afirma que mesmo a tel- ciente é total e unívoca. Já o cirurgião, como aponta
evisão e o cinema não alteram o proc- Benjamin, penetra o corpo do paciente, se vale de
esso morfogenético da formação da instrumentos, fragmenta, intervém nele.
imagem, pois em todos esses casos
ela tem aderência ao real:
“A imagem do pintor é total, a do operador
composta de inúmeros fragmentos, que se recompõem
‘As técnicas fotográficas, fotomecâni- segundo novas leis. Assim, a descrição cinematográfi-
cas, cinematográficas e televisuais ca da realidade é para o homem moderno infinitamente
que vieram depois [do renascimento] mais significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece
não somente alteraram o modelo vi- o que temos o direito de exigir da arte; um aspecto da
gente desde o Quattorcento, como o realidade livre de qualquer manipulação por aparelhos,

22
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

precisamente graças ao procedimento de penetrar, Numa entrevista sobre Matrix


com os aparelhos, no âmago da realidade.” (Benjamin, para a revista francesa Nouvel Ob-
1984: 187)
servateur, o autor, que critica a filiação
do filme ao livro (se é assim, segundo
De qualquer maneira, mesmo a simulação ele, é porque os diretores não entend-
pode reproduzir uma ilusão análoga ao real e se in- eram o livro), cita o filme Truman Show
screver novamente na mesma tradição imagética como um exemplo mais preciso de
figurativa. Aqui acaba permanecendo, frente ao uso seu conceito.
e à função, a distinção entre arte e indústria cultural. Ao confrontar o exemplo citado
As técnicas de simulação têm sido usadas para fins por ele com o conceito proposto, per-
militares, empresariais e de entretenimento; mais cebemos que ali toda a vida de Tru-
especificamente no último caso, essa simulação man é um “simulacro” e o é precisa-
reproduz a estrutura da percepção ideologizada mente porque não há outra vida vivida
da realidade. As obras de arte tecnológico-digitais por Truman que não seja essa. O que
parecem se colocar então em algum lugar entre as Baudrillard parece não trazer nunca à
vanguardas e o discurso da indústria cultural, pois discussão é que mesmo nesse filme as
aqui, como o cirurgião e o operador de Benjamin, repetições, a estranheza percebida por
elas buscam, por meio dos próprios aparelhos, ofer- Truman no comportamento da esposa
ecer um aspecto da realidade livre de qualquer ma- ao fazer merchandising, um holofote
nipulação, ainda que isso, superficialmente, pareça que cai do céu, etc., são elementos
uma contradição. que atravessam o simulacro e indicam
É esse tipo de contradição que talvez não seja a presença de uma outra coisa.
percebido pelo filósofo Baudrillard. Seu conceito de Da mesma maneira que Platão
simulacro tem sido continuamente debatido e gan- afirma que tudo é ilusão no mundo
hou contornos massivos com o filme Matrix, no qual sensível, Baudrillard afirma que tudo é
seu livro Simulacro e Simulação é visto nas mãos Simulacro. Absolutamente tudo. Não
do personagem-herói Neo. Desde a publicação do há guerra. Há simulacro de guerra ou,
livro, Baudrillard tampouco parece ter abandonado no mínimo, só há guerra porque há
sua proposta inicial. O conceito em si é interessante simulacro de guerra. Esse argumento
e em muitos casos operativo. Baudrillard parte da universalizante de Baudrillard é pou-
distinção entre as ações de simular e de dissimular. co menos que inaceitável. Uma rápi-
No primeiro caso, diz ele, o que é simulado é sempre da olhada na história do homem já o
uma ausência – alguém precisa construir a imagem desqualificaria. De fato, creio que esse
daquilo que originalmente não tem. No segundo conceito é operativo, mas acredito que
caso, o ato de dissimular está ligado à dissimulação seu âmbito específico é o da Indústria
de uma presença, é uma tentativa de apagamento de Cultural como pensada por Adorno.
algo que originalmente tenho. De novo, poderíamos O problema da supremacia
complicar o jogo proposto e afirmar que a simulação dessa indústria e de seus mecanismos
de uma ausência é, ao mesmo tempo, a dissimu- sobre a cultura acaba se impondo
lação de uma outra presença, ao menos psicanaliti- em parte da comunidade intelectual.
camente. E, nesse caso, o próprio ato da simulação A idéia de que “não há saída” é uma
também seria um indicativo de um real dissimulado. outra forma de dizer que então não há
Bem, mas o que interessa saber é que para Baudril- o que fazer e propor, mas, pior e prin-
lard o conceito de simulacro está fundado no ato de cipalmente, que não há o que pensar.
simular. Portanto, todo simulacro é uma aparência Aqui o cisma “apocalípticos X inte-
absolutamente vazia. grados” é completamente desprop-

23
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

ositado. Pois buscar, propor e pensar 1999:151) E, nesse sentido, o filme que ele critica,
saídas não elimina de modo nenhum Matrix, acaba por ilustrar muito melhor sua noção de
a visão necessariamente crítica da re- simulacro. Afinal, Baudrillard chega a utilizar a ex-
alidade. Aliás, é impossível pensar se pressão “gênio maligno” (1999:150) para descrever
não se partir de uma dialética crítica. o espírito que rege a mídia num momento exemplar
Essa perspectiva não pode ser con- que acaba por sugerir a teoria conspiratória que está
siderada “integrada”. por trás de determinadas formulações intelectuais e
O que também não quer dizer se parece, ao final, com uma espécie de luta entre o
que não existam autores que pos- bem e o mal – esse, sim, um modo equivocado de
sam se enquadrar aí, na sua alegria ler o mundo.
esfuziante em relação às novas tec- Ao fim e ao cabo, não há existência humana
nologias, como em certas teorias da sem mediação da linguagem, sem a construção de
administração e do marketing. No ex- artefatos técnicos que ampliaram a esfera do hu-
tremo oposto, com um pessimismo mano. “É por isso que não faz muito sentido se falar
melancólico, nostálgico e conserva- em simulacro”, diz Santaella, e sua explicação é pre-
dor, o mundo acabou e na verdade cisa e demolidora:
nós somos apenas os últimos cadá-
veres. Penso que essa perspectiva, de “Se a fala já é uma técnica, um artifício, se,
tão fatalista, chega a ser messiânica: desde a instauração da fala e da capacidade simbóli-
ca, toda realidade é para nós inelutavelmente mediada,
como não há nada a fazer, estamos à onde está o natural e onde está o artificial, onde está o
espera do Juízo Final. original e onde está a cópia fraudulenta? Na verdade, o
Entre esses dois extremos há,
felizmente, vida intelectual mais com- Cartaz do filme Matrix

plexa. A supremacia atual não pode


impedir que se dê o devido valor ao
que a contradiz. Assim como a su-
premacia religiosa na Idade Média não
impediu, embora pudesse ter atrapal-
hado, que a ciência avançasse pelas
mãos de Copérnico e Galileu.
Na fúria universalizante de
Baudrillard, o que se percebe é uma
nostalgia por um “paraíso perdido” no
universo da comunicação, no qual,
talvez, nós soubéssemos separar o
que é real do que é linguagem. No qual
– quem sabe? – existisse um mundo
real. De que outro modo entender
a seguinte afirmação: “A Europa do
século XV ou do século XVIII se comu-
nicava de forma mais viva e mais livre
que a Europa televisual ou interativa
do século XX. Justamente essa res-
sonância limitada, esse horizonte
natural se abria sobre uma extensão
universal...”? (Baudrillard in Parente,

24
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

dos das expressões “prazer estético”


e “objeto estético”, que já não estão
mais necessariamente ligados. Con-
siderando a concepção kantiana de
experiência estética, tem-se o juízo
estético como resultado desse prazer.
Ou seja, qualquer experiência que at-
inja os sentidos de modo a colocá-los
em harmonia, num estado de suspen-
são do juízo analítico ou racional, seria
uma experiência que propicia prazer
“desinteressado”, que tem fim em si
mesma, uma “sensação”.7
Por sua vez, um objeto es-
tético é estético, em primeiro lugar,
por atingir os sentidos – ele se mani-
festa materialmente. Além disso, de
uma perspectiva histórica, a arte teve
muito pronunciados esses aspectos
de contemplação da beleza e da per-
Filme O Show de Truman feição, sendo percebida como objeto
sensório, que provoca as sensações.
privilégio e o castigo da mediação não pertencem ap- É mais recente a idéia de arte e ob-
enas às novas tecnologias. Para os humanos, existi- jeto estético que não se oferece a uma
ram desde sempre. Em vez de estarem fazendo pro- recepção “desinteressada” e “praz-
liferar simulacros, as tecnologias estão, isto sim, nos erosa”. Na modernidade, o objeto es-
permitindo ver o que não podíamos ver antes, a saber, tético reivindica um campo maior de
que a condição humana é, de saída, mediada por sua
constituição simbólica, técnica e artificial.” (Santaella, ação. Ele é estético por se oferecer
2003: 212) para uma compreensão estética que
aqui é mais ampliada. Portanto, o ob-
Embora as discussões em torno da arte tec- jeto estético pode ser “qualquer coi-
nológico-digital tenham revelado um bom número sa” no sentido de poder se manifestar
de pensadores originais e inovadores, tais como Pe- materialmente em qualquer suporte,
ter Weibel, Oliver Grau, Mark Hansen, Jeffrey Shaw, dependendo simplesmente do gesto
Stephen Wilson e Lev Manovich, entre outros, aqui e da intenção do artista. E esse gesto
é preciso reconhecer que poucos deles apresentam não causará necessariamente prazer;
contribuições tão relevantes para o desvendamento ele pode realçar a dor, incomodar o ol-
das culturas de massa, das mídias e digital, tal como har e até provocar repulsa. É como se
as apresentadas por Lúcia Santaella. quaisquer das atitudes possíveis do
receptor fosse uma parte da obra. A
própria recepção está incluída na obra
O prazer e o objeto estético depois de
de arte. O objeto estético é, nesse
Kant sentido, sempre “externo”, na medida
em que é materializável num suporte.
A nova configuração imposta pela estética Mas toda obra é a sugestão (na forma)
tecnológico-digital altera profundamente os senti- para construção de um significado

25
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

(que “acontece” na leitura/recepção). previsibilidade da linguagem, da convenção; de uma


É claro que o significado está na obra previsibilidade estabelecida pelo uso, de experiên-
material – se não estivesse, como se- cias já vividas, codificadas; a partir das vanguardas
ria possível lê-lo? ‘ retiram-se os significantes de seus usos conven-
A semiótica explica isso bem. O cionais, produzindo fundamentalmente uma alter-
interpretante (que é aquilo que um si- ação no modo de perceber. “Boa parte do que eu
gno pode significar) está lá potencial- chamei de ‘desumanização’ e asco às formas vivas
mente dentro do signo, à espera de provém dessa antipatia à interpretação tradicional
um intérprete “capaz”, ou seja, de um das realidades”, diz Ortega y Gasset.
intérprete que possa fazer as relações Desse modo, a importância do estruturalismo
possíveis que o próprio signo sugere. e do desconstrutivismo no trabalho de Peter Weibel
Mas se o signo não contivesse essas mostra que o processo de construção (e então de
possibilidades, ninguém poderia lê-lo, desconstrução) é mais importante que o produto
pois não estaria lá. Troquemos a pala- em si mesmo. Assim, nem a linguagem – ou, muito
vra “signo” por “obra” na frase ante- menos a linguagem – pode ser utilizada como baliza
rior. O interpretante (que é aquilo que de compreensão do objeto, pois é essa mesma lin-
um signo pode significar) está lá po- guagem que “constrói” e “determina” a realidade,
tencialmente dentro da obra à espera o que remete tanto a uma tradição marxista de in-
de um intérprete “capaz”, ou seja, de terpretação materialista da história, da ideologia e
um intérprete que possa fazer as re- da consciência coletiva quanto aos posteriores for-
lações possíveis que a própria obra malismo, estruturalismo e desconstrucionismo. Se a
sugere. Mas se a obra não contivesse linguagem é esse sistema que constrói a realidade, o
essas possibilidades, ninguém pode- único modo de torná-la reveladora de uma realidade
ria lê-las, pois não estariam lá.8 e de seus mecanismos é por meio de sua própria
O que foi profundamente altera- “desconstrução”; ou seja, é no seu desfazimento,
do na configuração atual é que a obra nesse “abrir o motor da linguagem” que ela revela
não está lá como signo à espera de seus mecanismos de produção de sentido e, então,
uma interpretação. Essa interpretação os sentidos ocultos nas estruturas.
agora “realiza” o signo ao ser transfor- É como se a linguagem, que foi sempre enten-
mada em resposta/intervenção do re- dida como mediadora e criadora dos processos de
ceptor, novamente diante de uma obra abstrações, passasse a ser expulsa por ela mesma
que está a se formar o tempo todo na da aquisição de sentido, mas não do processo de
espera de sua ação/interpretação. produção de sentido, pois ela participa desse proc-
Uma obra devir. esso mesmo “destruindo-se”, desfazendo-se:
Umberto Eco, em A obra aberta¸
já dizia que os artistas de vanguarda “Linguagem e Realidade: Legitimei minha forma de
descobrem que toda forma transmite pensar por meio do Círculo de Viena e da filosofia de
análise lingüística. Fritz Mauthner, um precursor de
uma ideologia ou um modo de pensa- Wittgenstein que escreveu ‘Beiträge zu einer Kritik der
mento; portanto, ao multiplicar as for- Sprache’ [Contribuições para uma Crítica da Língua] foi
mas o que se multiplica são os pontos uma influência particularmente forte para mim. A lin-
de vista e as formas de perceber. É por guagem constrói a realidade. Hoje em dia se diz que
meio da quebra da linearidade que as a mídia constrói a realidade, nos anos 60 falava-se da
construção social da realidade. Mas o que é o social?
vanguardas trabalham com a ruptura Nascemos numa determinada língua; o Estado constrói
do modelo artístico das escolas ante- nossa realidade por meio da linguagem da política e do
riores, da tradição da arte. Desvio da Direito. Só posso criticar a realidade se também crit-
referencialidade “mundana”: desvio da icar a linguagem. Se usar a linguagem como o Estado

26
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

a usa, não posso expressar nenhuma crítica nessa lin- 2


Ainda que esse paradigma mimético não
guagem, pois já estarei afirmando a realidade. Buscava tenha se realizado em toda a história ante-
uma forma de arte não-afirmativa – Herbert Marcuse rior de modo simplesmente “evolutivo”. Da
havia descrito a arte afirmativa em seu famoso ensaio. mesma maneira, um certo afastamento desse
Portanto, fui forçado a encontrar uma linguagem para paradigma mimético não pode ser atribuído a
uma crítica à realidade na qual eu me sinto inquieto. A uma “involução” das técnicas, como aponta
publicação de Écrits por Jacques Lacan em 1966 foi Gombrich no seu História da Arte. José Or-
um grande alívio para mim, já que ele escreveu que o tega y Gasset chega a afirmar que na arte
inconsciente é estruturado como uma linguagem. Isso religiosa esse afastamento trazia uma raiz de
acrescentou e confirmou as teorias que tinha aprendido sensibilidade propriamente estética. Em “Da
de Roman Jakobson, dos estruturalistas e de Claude Dualidade do Conceito de Mímesis ao Con-
Levi-Strauss. Convencido pelo poder da linguagem na ceito de Insuficiência da Linguagem”, outro
construção da realidade, tentei trabalhar contra a língua capítulo da tese A insuficiência da Linguagem,
distorcendo-a ou literalmente transferindo-a para o es- também tentei extrair dos textos místicos
paço real. Ao mostrar como a linguagem é construída analisados sua raiz estética quanto ao prob-
posso desconstruir a realidade. Apliquei esse método lema moderno da insuficiência da linguagem.
lingüístico à mídia eletrônica.”9
Para conferir Gasset: “A revolução contra as
imagens do cristianismo oriental, a proibição
Esse ponto-de-vista poético sobre a nega- semítica de reproduzir animais – um instinto
tividade da linguagem vai encontrar eco desde a contraposto ao dos homens que decoraram a
dialética platônica, na qual uma sentença nega a caverna de Altamira – tem, sem dúvida, junto
ao seu sentido religioso, uma raiz na sensi-
anterior para ser novamente negada por uma out-
bilidade estética, cuja influência posterior na
ra e assim, sucessivamente, até no inquestionável arte bizantina é evidente. Seria mais que in-
não-hipotético e na dialética adorniana, em que o teressante investigar com toda a atenção as
próprio pensamento é dialético. Agora se trata de erupções de iconoclastia que vez por outra
negar a própria linguagem e não de opor sentenças: surgem na religião e na arte. Na nova arte
utilizar a linguagem na sua negatividade revelando atua evidentemente esse estranho sentimento
iconoclasta e seu lema bem podia ser aquele
sua impotência na descrição de um conhecimento mandamento de Porfírio que, adotado pelos
verdadeiro (Platão), de um divino transcendente maniqueus, tanto combateu Santo Agostinho:
(mística medieval) ou do próprio pensamento como Omne corpus fugiendum est. (Deve-se fugir
abstração que não é da ordem da linguagem. A arte de tudo o que é corpóreo).” José Ortega y
tecnológico-digital, opera no mecanismo de, pelos Gasset, A desumanização da arte. São Paulo:
Cortez, 2001, pág. 68.
dispositivos tecnológicos negar uma linguagem pré- 3
A revista Zeitschrift Sozialforschung, dirigida
formada. Neste processo, o indivíduo (receptor/au- por Adorno e Marcuse, foi então editada em
tor) é levado a uma situação “sem linguagem”, na Paris.
qual ele opera a des-materialização da própria lin- 4
Para as citações a seguir do texto de Ben-
guagem. jamin optei pela versão anterior publicada no
Brasil pela Brasiliense. Os grifos em negrito
são de minha autoria; os em itálico, do autor.
Walter Benjamin, “A obra de arte na era da re-
Notas de Rodapé produtibilidade técnica”. Em: Walter Benjamin,
Obras Escolhidas – Magia e Técnica, vol. 1.
1
Esse texto foi originalmente produzido como capítulo 5 de São Paulo: Brasiliense, 1984.
5
minha tese de doutorado: GALVÃO, Edilamar. A insuficiên- As eras definidas por Santaella são: Era da
cia da linguagem: Fundamentos para uma estética da arte Cultura Oral, Era da Cultura Escrita, Era da
tecnológico-digital. Tese de doutorado. São Paulo: Pontifícia Cultura Impressa, Era da Cultura de Massa,
Universidade Católica, 2006. Na tese, o capítulo recebeu o Era da Cultura das Mídias e Era da Cultura
seguinte título: “Indústria cultural e a reprodutibilidade técnica. Digital. Como a própria nomenclatura já deixa
Linguagem e simulacro. Vanguardas e modernidade: diferença claro, cada uma dessas eras é marcada pela
e invenção”. O texto recebeu aqui uma ou outra adaptação qualidade dominante da invenção técnica cor-
formal, mas está reproduzido na íntegra. respondente. Por exemplo, com a técnica da

27
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

fala (cultura oral), as formas dominantes da


cultura serão a fluidez, a memória individual
mais exigida e, portanto, com mais facilidade Referência Bibliográficas
de assimilar e guardar muitas informações,
a presença de formas verbais auxiliares da ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, Dialética do Es-
memória como o ritmo na poesia etc. clarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
6
Essa relação entre Arte e Ciência é mostrada BADIOU, Alain, Pequeno Manual de Inestética. São Paulo: Es-
e comentada nos capítulos 1 e 2 da tese A tação Liberdade, 2002.
Insuficiência da Linguagem, op. cit.
7 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I, 1989.
Apresento e desenvolvo os conceitos de
juízo estético, belo e sublime kantinanos no COSTA, Mário, O sublime tecnológico. São Paulo: Experimen-
capítulo 3 “Do sublime kantiano ao sublime to, 1995.
tecnológico”, da tese A Insuficiência da Lin-
guagem, op. cit. DOMINGUES, Diana (org.), A arte no século XXI: a humaniza-
8
ção das tecnologias. São Paulo: editora da Unesp, 1997.
Conferir de Lúcia Santaella, Teoria Geral dos
Signos, Semiótica Aplicada e Matrizes da Lin- _________, A arte no século XXI: Tecnologia, Ciência e Criativi-
guagem. dade. São Paulo: editora da Unesp, 2003.
9
Curso ministrado por Peter Weibel pelo con-
GALVÃO, Edilamar. A insuficiência da linguagem – fundamen-
vênio Mecad/Unesco em http://217.76.144.67/ tos para uma estética da arte tecnológico-digital. São Paulo:
unesco/intro/info_weibel_eng.html: “Lan- Pontifícia Universidade Católica, 2006. Tese de doutorado.
guage and Reality: I legitimated my way of
thinking through the Vienna Circle and the phi- GRAU, Oliver, Virtual Art: From Illusion to Immersion. Cam-
losophy of linguistic analysis. Fritz Mauthner, a bridge: The MIT Press, 2003.
forerunner of Wittgenstein who wrote ‘Beiträge KANT, Immanuel, Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro:
zu einer Kritik der Sprache’ (Contributions to a Forense Universitária, 2002.
Critique of Language) had a particularly strong
influence on me. Language constructs reality. MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge, MIT
Nowadays it is said that the media construct Press, 2001.
reality, in the 1960s one talked about the social
ORTEGA y GASSET, José, A desumanização da arte. São Pau-
construction of reality. But what is the social? lo: Cortez, 2001.
We are born into a given language; the state
constructs our reality through the language of _________, Adão no paraíso e outros ensaios. São Paulo:
politics and the law. I can only criticise real- Cortez, 2002.
ity if I also criticise this language. If I use lan-
PAZ, Octavio, Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São
guage as the state uses it, I cannot articulate
Paulo: Perspectiva, 2002.
any criticism in this language, for then I am
already affirming reality. I was looking for a PEIRCE, C.S, Semiótica, trad. de Teixeira Coelho. São Paulo:
non-affirmative form of art – Herbert Marcuse Perspectiva, 1977.
had described affirmative art in his famous es-
say. I was therefore forced to find a language SANTAELLA, Lúcia. Produção de Linguagem e Ideologia. São
Paulo: Cortez, 2ª. ed. 1996.
for a critique of the reality in which I feel ill at
ease. The publication of Écrits by Jacques La- _________, Estética. De Platão a Peirce. 2ª. edição. São Paulo:
can in 1966 came as a great relief to me, as he Experimento, 2000.
wrote that the unconscious is structured like
a language. This added to and confirmed the _________, Teoria Geral dos Signos. Como as linguagens sig-
theories I had learned from Roman Jakobson, nificam as coisas. 2ª. edição. São Paulo: Pioneira, 2000.
the structuralists and Claude Levi-Strauss. _________, Matrizes da linguagem e pensamento. Sonora, vis-
Convinced by the power of language in the ual, verbal. Aplicações na hipermídia. São Paulo: Iluminuras,
construction of reality, I attempted to work 2001.
against language by distorting it or transfer-
ring it literally into real space. By showing how _________, Porque as comunicações e as artes estão con-
vergindo. São Paulo: Paulus, 2005.
language is constructed I can deconstruct
reality. I applied this linguistic method to the _________, Culturas e Artes do Pós-humano: Da Cultura das
electronic media.” Mídias à Cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003

28
FA C O M - n º 1 9 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 8

SHAW, Jeffrey and WEIBEL, Peter. Future Cinema: The Cine-


matic Imaginary after film. Cambridge: The MIT Press, 2002.

Webgrafia
Ars Eletronica
http://www.aec.at/en/index.asp

Austin Museum of Digital Art


http://www.amoda.org/

Digital Art Museum


http://www.dam.org/

Digi-Arts – Unesco Knowledge Portal


h t t p : / / p o r t a l . u n e s c o . o r g / c u l t u r e / e n / e v. p h p - U R L _
ID=1391&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html

FILE – Festival Internacional de Linguagens Eletrônicas


http://www.file.org.br

Itaú Cultural
http://www.itaucultural.org.br

Leonardo On-line
http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/index.html

MECAD – Media Centre of Art and Design


http://217.76.144.67/unesco/intro/info_general_eng.html

MIT – Media Lab


http://web.mit.edu/sap/www/departments/mas.html

[Re]Distributions – Information Appliance and Nomadic Arts as


Cultural Intervention
http://www.voyd.com/ia/

SIGGRAPH
http://www.siggraph.org/

Vasulka
http://www.vasulka.org/index.html

ZKM – Center for Art and Media Karlsruhe


http://www.zkm.de/

Edilamar Galvão

Professora de Estética e Cultura de Massa


na FACOM-FAAP e também de Metodologia
Científica e Teoria da Comunicação na pós-
graduação da FAAP. É Mestre e Doutora
em Comunicação e Semiótica pela PUC/
SP e possui mestrado-profissionalizante
em Tecnologia Educacional pela FAAP.

29

Você também pode gostar