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Arte e Tecnologia:
diferença e invenção1
Edilamar Galvão
Resumo Abstract
O modernismo assume a crise da representação Modernism assumes the crises of representation with
com a estratégia de quebrar o paradigma mimético the strategy of breaking the mimetic paradigm which
que, de um modo geral, caracterizou toda a tradição has generally characterized the entire artistic tradition.
artística. No campo da arte, logo se estabelece uma In the field of the arts soon is established a divergence
divergência que vai pautar todas as discussões no that will guide every discussion in the realm of culture:
âmbito da cultura: a emergência das vanguardas e dos the emergence of the vanguards and of the technical
meios de reprodutibilidade técnica, que fundam um reproductibility media that found a massive consumer
mercado massivo de consumo de produtos culturais. A market of cultural products. The characteristic taken by
característica tomada pelos meios de reprodutibilidade, the productibility media, that is, their submission to the
ou seja, sua submissão às leis do mercado e da mercadoria market laws and to the laws of merchandise, and thus
e, dessa forma, sua inserção na lógica capitalista colocada their insertion in the capitalist logic placed in the relation
na relação entre práxis e ideologia, fundamenta a crítica between praxis and ideology, substantiates Adorno
de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural. and Horkheimer’s critique on the cultural industry.
A nova configuração imposta pela estética tecnológico- The new configuration imposed by the technological-
digital altera o sentido tradicional que a teoria crítica digital aesthetics alters the traditional sense that
conferiu à técnica e, por extensão, à tecnologia e à critical theory has conferred to technique and by
relação entre arte e técnica ou entre arte e tecnologia. extension to technology and to the relation between
A arte tecnológico-digital opera no mecanismo de, art and technique or art and technology. Technological-
pelos dispositivos tecnológicos, negar uma linguagem digital art operates in the mechanism of, through the
pré-formada. Nesse processo, o indivíduo (interator/ technological devices, deny a pre-formed language.
autor) é levado a uma situação “sem linguagem”, na qual In this process the individual (interactor/author) is
ele opera a desmaterialização da própria linguagem. taken to a “non-language” situation, in which he/she
operates the dematerialization of the very language.
Palavras-Chave Keywords
Arte tecnológico-digital, Reprodutibilidade Technological-digital art, Technical
Técnica, Indústria Cultural, Estética. Reproductibility, Cultural Industry, Aesthetics.
“Por hora a técnica da indústria cultural só chegou à estandardização e à produção em série, sacrificando aquilo pelo
qual a lógica da obra se distinguia da lógica do sistema social. Mas isso não vai imputado a uma lei do desenvolvi-
mento da técnica enquanto tal, mas à sua função na atual sociedade econômica.”
Theodor Adorno e Max Horkheimer em A Indústria Cultural
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uras panfletárias desse texto. Pois à tecnologia ficou aspecto físico é apenas uma face do
automaticamente associada a banalização do dis- fenômeno. O que escapa à reproduti-
curso, uma vez que, como disseram os próprios au- bilidade é sua “existência única”,
tores, a exploração de sua novidade utilizada como “o aqui e agora da obra de arte” em
entretenimento escamoteia a repetição vazia da que “se desdobra a história da obra”.
mesma estrutura ideológica, além da proximidade “Essa história compreende não ap-
que a expressão “razão técnica” tem com técnica e enas as transformações que ela sof-
tecnologia. reu, com a passagem do tempo, em
Nesse ponto, “Indústria Cultural” encontra a sua estrutura física, como as relações
“A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, de propriedade em que ela ingressou.
publicado em 1936 na revista Zeitschrift Sozialforsc- Os vestígios da primeira só podem ser
hung3, onze anos antes da publicação de Dialética investigados por análises químicas ou
do Esclarecimento. Benjamin também condenou a físicas, irrealizáveis na reprodução;
apropriação dos meios de reprodutibilidade pela ex- os vestígios das segundas são o ob-
ploração e ideologia capitalista. Antes de Adorno- jeto de uma tradição, cuja reconsti-
Horkheimer, assinalou o mecanismo do culto à es- tuição precisa partir do lugar em que
trela como mercantilização do discurso artístico: se achava o original”. (...) A esfera da
autenticidade, como um todo, escapa
“À medida que restringe o papel da aura, o cinema con- à reprodutibilidade técnica, e, natural-
strói artificialmente, fora do estúdio, a ‘personalidade’ mente não apenas à técnica.”(1984:
do ator; o culto da ‘estrela’, que favorece o capitalismo
167) Dizer que a aura é atingida sig-
dos produtores cinematográficos, protege essa magia
da personalidade, que há muito já está reduzida ao en- nifica que, de qualquer modo, ela o
canto podre de seu valor mercantil. Enquanto o capital- foi inclusive na obra de arte “original”,
ismo continuar conduzindo o jogo, o único serviço que pois a obra reproduzida pode estar
se deve esperar do cinema em favor da revolução é o em qualquer lugar e qualquer tempo.
fato de permitir uma crítica revolucionária das antigas
concepções de arte.” (Benjamin in Lima, 2000:239)
“Generalizando, podemos dizer que
a técnica da reprodução destaca do
domínio da tradição o objeto reproduz-
Mas o que mais chamou a atenção no texto
ido”. (1984: 168)
de Benjamin foi o fenômeno da “perda da aura” com
A aura não é, portanto, um as-
o advento dos meios de reprodução e a afirmação de
pecto físico da obra, mas seu próprio
que estes viriam a alterar o próprio conceito de arte.
revestimento simbólico; sua unicidade
Esse insight de Benjamin acabou por tornar o seu
caracteriza também a experiência úni-
ensaio uma referência teórica incontornável para os
ca do sujeito diante da obra. Experiên-
rumos da arte a partir da apropriação de cada novo
cia que está fundada no que Benjamin
meio de reprodução que pudesse surgir dali por di-
ante. chamou de “valor de culto”: “A forma
Mudança do conceito de arte e perda da aura mais primitiva de inserção da arte no
são interdependentes, pois, diz Benjamin, “o con- contexto da tradição se exprimia no
ceito de aura permite resumir essas características: culto. As mais antigas obras de arte,
o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica como sabemos, surgiram a serviço de
da obra de arte é a sua aura”4. (Benjamin, 1984: 168) um ritual, inicialmente mágico, depois
Parte do ensaio de Benjamin é dedicado a esclarec- religioso. O que é de importância de-
er o conceito. Não se deve entender a aura como cisiva é que esse modo de ser auráti-
um atributo físico da obra simplesmente. O próprio co da obra de arte nunca se destaca
Benjamin não o permite. Embora a aura esteja fun- completamente de sua função ritual.
dada na idéia de originalidade e autenticidade, seu Em outras palavras: o valor único da
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obra de arte tem sempre um funda- tanto, quanto menos colocar em seu centro a obra
mento teológico, por mais remoto que original” (1984: 180).
seja”. (1984: 171) O valor da arte não está no tipo de experiên-
Isso quer dizer que a aura cara- cia que ela qualifica, se contemplativa, próxima ou
cteriza um tipo de relação entre pú- distante, mas que essa experiência seja a experiên-
blico e obra inserido na tradição e na cia do aprendizado de novas percepções. Segundo
contemplação distante. Fundamental- Benjamin, nunca houve antes, na história humana,
mente, é essa relação que foi para sem- uma técnica tão emancipada,
pre alterada. Pois a reprodutibilidade
técnica, segundo Benjamin, emancipa
“mas essa técnica emancipada se confronta
a obra de arte, “pela primeira vez na
com a sociedade moderna sob a forma de uma seg-
história, de sua existência parasitária, unda natureza, não menos elementar que a da socie-
destacando-a do ritual”. (1984: 171) dade primitiva, como provam as guerras e as crises
Com a obra de arte destacada de sua econômicas. Diante dessa segunda natureza, que o
função ritual, o valor de culto é suplan- homem inventou mas há muito não controla, somos
tado pelo valor de exposição propici- obrigados a aprender, como outrora diante da primeira.
ado pela reprodutibilidade técnica que Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendi-
zado. Isso se aplica em primeira instância ao cinema.
torna próximo tudo o que era distante. O filme serve para exercitar o homem nas novas per-
“Fazer as coisas ficarem mais próxi- cepções e reações exigidas por um aparelho técnico
mas é uma preocupação tão apaixon- cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana.
ada das massas modernas como sua Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tem-
tendência a superar o caráter único po o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa
de todos os fatos através de sua re- histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro
sentido” (1984: 174).
produtibilidade. Cada dia fica mais ir-
resistível a necessidade de possuir o
objeto, de tão perto quanto possível, É essa a perspectiva que mais interessa ao
na imagem, ou antes, na sua cópia, na debate da arte contemporânea que se insere no
sua reprodução” (1984: 170). campo tecnológico-digital, daí a importância do tex-
Benjamin aponta para duas di- to de Benjamin. É nesse ponto que a crítica de Ador-
reções: por um lado, a apropriação no e Horkheimer já é antecipadamente ultrapassada
dos meios pelo capitalismo que es- por Benjamin. Mas não se trata de desqualificar a
vazia sua possibilidade revolucionária; importância da reflexão sobre a indústria cultural.
por outro, a introdução das técnicas Provavelmente muito do que tem sido produzido com
como fator que modifica a experiência uma intenção verdadeiramente “artística” obriga-se,
e o modo de perceber. A arte assume de algum modo, a se desviar das condições assi-
nova função: “no momento em que naladas por Adorno e Horkheimer, que denunciavam
o critério da autenticidade deixa de principalmente a perda da autonomia da obra e do
aplicar-se à produção artística, toda artista frente aos interesses mercadológicos.
a função da arte se transforma. Em O âmbito dessa crítica é o da cultura de mas-
vez de fundar-se no ritual, ela passa sa, e ela não alcança as possibilidades de outras for-
a fundar-se em outra práxis: a políti- mas de uso e apropriação que o desenvolvimento
ca” (1984: 171-172). E não há espaço contínuo de novas formas de tecnologia propiciar-
para nenhuma nostalgia do passado, am, ao menos potencialmente. É essa reflexão que
pois “a arte contemporânea será tanto tem sido feita e que precisa ser feita.
mais eficaz quanto mais se orientar Já nos anos 80, Lúcia Santaella cunhou a ex-
em função da reprodutibilidade e, por- pressão “cultura das mídias” para identificar as al-
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“seus desejos” pode ser considerada levaram à máxima eficácia: conquista do movimento
uma espécie de mitologia do nosso com o cinema, conquista da instantaneidade e da si-
multaneidade da geração da imagem, de seu registro
tempo cuja significação aponta para e de sua transmissão com a televisão, que suprime o
uma resistência da “humanidade” em prazo de registro da imagem próprio ao cinema e op-
nós, no sentido de uma “qualidade era uma aproximação definitiva entre a imagem e o
humana” que deseja permanecer real, o momento de sua captura e o momento de sua
no controle do desejo, que não quer representação. São idênticos, contudo, os processos
morfogenéticos de formação da imagem a partir de
perder sua “porção humana”. O que uma emanação luminosa; idêntica a aderência ao real”
essa “humanidade” significa ou pode (Couchot in Parente: 1993:41).
significar é um dos tópicos que fazem
parte da discussão contemporânea
É essa a diferença, para o autor, entre a rep-
entre ciência, arte e psicanálise. Mas
resentação, que aponta para uma aderência ao real,
que foge ao escopo deste trabalho.
e a simulação, pois aqui “se alguma coisa preex-
iste ao pixel e à imagem é o programa, isto é, lin-
Linguagem e simulacro guagem e números, e não mais o real.” (1993:42).
Por isso, Couchot vê na imagem numérica uma ver-
Em “Da representação à simu- dadeira ruptura na morfogênese da imagem depois
lação: evolução das técnicas e das da perspectiva, porque agora “a imagem torna-se
artes da figuração”, Edmond Couchot imagem-objeto, mas também imagem-linguagem,
afirma que a ilusão do real foi o “ob- vaivém entre programa e tela, entre as memórias e
jetivo permanente da Representação.” o centro de cálculo, os terminais; torna-se imagem-
O autor também explica que, na bus- sujeito, pois reage interativamente ao nosso conta-
ca da automatização dos processos to, mesmo ao nosso olhar: ela também nos olha. O
de figuração, foi fundamental o con- sujeito não mais afronta o objeto em sua resistência
hecimento dos processos de decom- de realidade, penetra-o em sua transparência virtual,
posição da imagem. Decompô-la no como entra no próprio interior da imagem” (Couchot,
seu elemento mínimo para então au- 1993: 42).
tomatizá-la. A perspectiva e a câmara Essa passagem de Couchot faz lembrar de
escura são técnicas de decomposição novo Benjamin na comparação que esse último faz
da imagem, mas esta ainda não é au- entre o pintor e o cineasta, de um lado, com o feiti-
tomática. Só a fotografia permite à ceiro e o cirurgião, de outro. A relação do pintor com
imagem se emancipar diretamente da a tela, para Benjamin, é uma relação fundada na uni-
mão do pintor. dade e na distância. O feiticeiro impõe as mãos sobre
Couchot trilha os caminhos téc- o “paciente”, mas essa ainda não é uma experiência
nicos da figuração e da decomposição de proximidade, e a experiência entre feiticeiro e pa-
da imagem e afirma que mesmo a tel- ciente é total e unívoca. Já o cirurgião, como aponta
evisão e o cinema não alteram o proc- Benjamin, penetra o corpo do paciente, se vale de
esso morfogenético da formação da instrumentos, fragmenta, intervém nele.
imagem, pois em todos esses casos
ela tem aderência ao real:
“A imagem do pintor é total, a do operador
composta de inúmeros fragmentos, que se recompõem
‘As técnicas fotográficas, fotomecâni- segundo novas leis. Assim, a descrição cinematográfi-
cas, cinematográficas e televisuais ca da realidade é para o homem moderno infinitamente
que vieram depois [do renascimento] mais significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece
não somente alteraram o modelo vi- o que temos o direito de exigir da arte; um aspecto da
gente desde o Quattorcento, como o realidade livre de qualquer manipulação por aparelhos,
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ositado. Pois buscar, propor e pensar 1999:151) E, nesse sentido, o filme que ele critica,
saídas não elimina de modo nenhum Matrix, acaba por ilustrar muito melhor sua noção de
a visão necessariamente crítica da re- simulacro. Afinal, Baudrillard chega a utilizar a ex-
alidade. Aliás, é impossível pensar se pressão “gênio maligno” (1999:150) para descrever
não se partir de uma dialética crítica. o espírito que rege a mídia num momento exemplar
Essa perspectiva não pode ser con- que acaba por sugerir a teoria conspiratória que está
siderada “integrada”. por trás de determinadas formulações intelectuais e
O que também não quer dizer se parece, ao final, com uma espécie de luta entre o
que não existam autores que pos- bem e o mal – esse, sim, um modo equivocado de
sam se enquadrar aí, na sua alegria ler o mundo.
esfuziante em relação às novas tec- Ao fim e ao cabo, não há existência humana
nologias, como em certas teorias da sem mediação da linguagem, sem a construção de
administração e do marketing. No ex- artefatos técnicos que ampliaram a esfera do hu-
tremo oposto, com um pessimismo mano. “É por isso que não faz muito sentido se falar
melancólico, nostálgico e conserva- em simulacro”, diz Santaella, e sua explicação é pre-
dor, o mundo acabou e na verdade cisa e demolidora:
nós somos apenas os últimos cadá-
veres. Penso que essa perspectiva, de “Se a fala já é uma técnica, um artifício, se,
tão fatalista, chega a ser messiânica: desde a instauração da fala e da capacidade simbóli-
ca, toda realidade é para nós inelutavelmente mediada,
como não há nada a fazer, estamos à onde está o natural e onde está o artificial, onde está o
espera do Juízo Final. original e onde está a cópia fraudulenta? Na verdade, o
Entre esses dois extremos há,
felizmente, vida intelectual mais com- Cartaz do filme Matrix
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