"A imaginação humana pode conceber, sem muito esforço, repúblicas ou
outros estados comunitários, dignos de alguma glória, desde que dirigidos por homens ungidos, por certos aristocratas. Mas não será particularmente por instituições políticas que se manifestará a ruína ou o progresso universal (o nome pouco me importa). Será pelo aviltamento dos corações. Preciso dizer que o pouco que restará de política se debaterá penosamente entres as garras da animalidade geral, e que os governantes serão forçados, para se manterem e para criarem um simulacro de ordem, a recorrerem a medidas que causariam arrepios até mesmo à tão endurecida humanidade de hoje! − Então o filho deixará a família não aos dezoito mas aos doze anos, emancipado por sua glutona precocidade; ele a deixará não para buscar aventuras heroicas (...), mas para iniciar um negócio, para se enriquecer; e, para fazer concorrência ao seu paizinho, será fundador e acionista de um jornal que se proporá a difundir as luzes e que fará com que se veja o Siècle de então como um elemento da superstição. (...) − Então as errantes, as desclassificadas, aquelas que tiveram alguns amantes (...), então essas. digo, não serão mais que implacável sensatez, sensatez que condenará tudo, menos o dinheiro, tudo, até mesmo os erros dos sentidos! Então, o que se assemelhará à virtude, que digo eu?, tudo o que não for ardor dirigido a Pluto1 será considerado um imenso ridículo. A justiça − se é que nessa afortunada época será ainda possível existir uma justiça − cassará os direitos dos cidadãos que não souberem fazer fortuna. Tua esposa, ó, Burguês, tua casta metade − cuja legitimidade é, para ti, poesia, colocando doravante na legalidade uma infâmia irrepreensível −, guardiã vigilante e amorosa do teu cofre-forte, não será mais que o ideal perfeito da mulher manteúda. Tua filha, na sua nubilidade infantil, sonhará, no seu berço, que se vende por um milhão. E tu próprio, ó, Burguês, menos poeta ainda do que és hoje, não achará nada para dizer quanto a isso; não te arrependerás de nada. Pois há coisas no homem que se fortificam e prosperam à medida que outras se enfraquecem e diminuem; e, graças ao progresso desses tempos, de tuas entranhas só sobrarão as vísceras! − Esses tempos estão, talvez, bem próximos; quem sabe até se já não chegaram, e se o espessamento da nossa natureza não é o único obstáculo que nos impede de apreciar o meio no qual respiramos? (...)"
BAUDELAIRE, C. Meu coração desnudado.Belo Horizonte:
Autêntica Editora. 2009 (Col. Mimo). Pág. 36-37.
1 Pluto, na mitologia grega, é o deus das riquezas. Conforme Aristófanes, Zeus teria cegado Pluto porque este insistia em outorgar seus bens apenas às pessoas honestas.