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O parecido nem sempre é mais fácil de adquirir:


assimilação de sonoridade em sândi externo e
o desempenho do brasileiro aprendiz de inglês
como LE

Aurora Maria S. Neiva


Myrian A. Freitas
Mônica M. Nobre

1. Introdução

A assimilação de sonoridade, tradicionalmente entendida como


uma alteração fonética, é comum ao português do Brasil e ao inglês no
que se refere a consoantes fricativas coronais, sendo que, no inglês,
este processo atinge apenas os segmentos anteriores. A direcionalidade,
contudo, não é a mesma nas duas línguas: o processo é regressivo no
português e progressivo no inglês. Em vista disto, algumas indagações
podem ser feitas: (a) Como o aprendiz brasileiro de nível avançado
realiza a assimilação de sonoridade dessas fricativas? Segue a direção
progressiva como o falante nativo o faz em inglês, ou se orienta pelo
contexto seguinte à fricativa de acordo com o padrão de sua língua
materna (doravante LM)? (b) Diante de uma pausa potencial, o aprendiz
realiza sistematicamente uma fricativa surda, como no português, ou
seu desempenho apresenta variação? (c) Faz sempre a mesma escolha?
(d) Modelos recentes em fonologia, baseados no uso, explicariam
integralmente as características do processo de aprendizagem dessas
formas da língua-alvo pelo aprendiz? (e) A similaridade deste processo
de assimilação na LM e na língua estrangeira (doravante LE) é um
fator que favorece ou dificulta a tarefa do aprendiz que tenta dominar
seu funcionamento na língua-alvo?

Cadernos de Letras - n. 24 - p. 29-44 - mai. 2008


30 .

Ao tentar responder essas indagações, este trabalho


pretende verificar até que ponto chega o grau de influência das
categorias representacionais da LM dos aprendizes sobre a maneira
pela qual eles percebem e interpretam os segmentos da LE,
contextualizados em palavras e em grupamentos prosódicos na fala
corrida.
Neste artigo será descrito, inicialmente, o funcionamento do
processo de assimilação de sonoridade em inglês e em português.
Buscar-se-á apresentar os dados mais significativos no que se refere à
operação desse processo, dando ênfase mais ao seu funcionamento do
que à sua formalização. Em seguida, serão apresentados os critérios de
seleção do corpus e dos sujeitos da pesquisa, os instrumentos de análise
dos dados e os resultados obtidos. Por último, será mostrado como
modelos recentes, com base no uso, explicam o desempenho desses
aprendizes, levando-se em conta que o processo de aprendizagem se dá
no momento em que eles categorizam as unidades que depreendem a
partir do input variável da LE. Seu desempenho refletiria os protótipos
armazenados em sua memória (cf. BYBEE, 2002, 2001;
PIERREHUMBERT, 2001; SOLÉ, 2003).

2. Assimilação de sonoridade da fricativa coronal em inglês


e em português

De um modo geral, a assimilação é vista como um processo em


que um som adquire traços, tais como a sonoridade, de outro a ele
adjacente ou próximo. Normalmente, resulta de co-articulação e
classifica-se, de acordo com a direcionalidade em que opera, como
sendo de natureza regressiva, progressiva ou coalescente.1 O primeiro
tipo, da direita para a esquerda, é o mais encontrado nas línguas do
mundo. Menos freqüentes são os casos de assimilação progressiva, que
se realiza da esquerda para a direita. Há, também, situações em que um
segmento sofre influência tanto daquele que lhe é precedente, como
daquele que o sucede. Neste caso tem-se a chamada assimilação dupla
ou coalescente.
No português, as fricativas coronais, quer sejam anteriores ([s]
[z]) ou não ([S] [Z]) sofrem regularmente assimilação de sonoridade
. 31

em coda silábica, estejam elas em final ou no interior de palavra (cf.


CAMARA JR. 1971: 29 e 1972: 41-42; CALLOU e MARQUES, 1975;
MONARETTO, QUEDNAU e HORA 2001: 202). Fato semelhante
ocorre em inglês envolvendo, no caso, apenas as coronais anteriores
em coda final. Embora o processo não opere de modo igual nas duas
línguas, em alguns ambientes fonéticos dá-se a ocorrência de um fone
com especificação idêntica quanto à sonoridade.2
Diferem, no entanto, no que diz respeito a outras características
deste processo: a direcionalidade de sua aplicação, o tipo de
condicionamento encontrado e o domínio de sua implementação.
Enquanto em português faz-se uma assimilação regressiva, em inglês a
assimilação é progressiva (cf. ROACH 2000: 140-142; CELCE-
MURCIA, BRINTON e GOODWIN 1996: 160).3

Em português, o condicionamento é apenas fonológico, ao passo


que em inglês é necessariamente morfofonológico (cf. BURQUEST e
PAYNE 1993: 87): a fricativa coronal deve ser um sufixo de plural, de
terceira pessoa do singular em verbos no presente simples, ou do caso
possessivo; também ocorre quando há contrações das formas verbais is
e has, caracterizando o que GUSSMANN denomina de homofonia
morfológica (cf. 2002: 31-40)4. No português, essa fricativa pode ser,
igualmente, um morfema {-S} de plural (ex: casa+s) ou de segunda
pessoa do singular (ex: leva+s). Todavia, palavras que contenham essa
fricativa em coda medial, com ou sem fronteira morfológica (ex:
des+cascar, des+baratar, des+armar; dis+tensão, des+mistificar,
ex+portar, ex+comungar, casca, rasga, cesta, asno), sofrem o mesmo
processo que, portanto, se caracteriza como condicionado apenas por
fatores fonológicos. Em final de palavra, diante de fronteira prosódica,
a fricativa realiza-se regularmente como surda (ex: pires, paz),
independente de ter ou não status de morfema.
32 .

Outra diferença na maneira pela qual a assimilação opera no


inglês e no português diz respeito ao domínio de funcionamento do
processo. Em inglês, esta assimilação ocorre dentro da palavra, ou seja,
em sândi interno, nas fronteiras morfológicas citadas anteriormente.
Pode-se conceber um contexto de sândi externo apenas quando da
contração dos verbos is e has, dependendo do conceito de palavra que
se esteja empregando; mesmo assim, trata-se de um processo
morfofonológico. Em português, esta assimilação se manifesta
indistintamente em sândi interno e sândi externo, ou seja, tanto no
domínio da palavra, como no domínio de grupo prosódico.
Os quadros 2 e 3 a seguir ilustram os contextos de ocorrência do
processo nas duas línguas.

3. Sujeitos, corpus e instrumento de análise

Em vista do que já foi exposto, este trabalho examina como as


semelhanças e diferenças no funcionamento do processo de assimilação
da fricativa coronal se refletem no desempenho oral de brasileiros
aprendizes de língua inglesa de nível avançado, todos alunos de quinto
. 33

período de graduação em Letras, com habilitação em português e inglês.


Com este objetivo, foram efetuadas gravações correspondentes à leitura
de dois textos por sessenta alunos universitários de língua inglesa. A
escolha dos sujeitos, cujos dados foram analisados neste artigo, três
homens e três mulheres, foi exclusivamente em função da qualidade
técnica das gravações, de forma a que se pudesse submetê-las à análise
acústica com o programa PRAAT5.
O corpus compreendeu 31 ocorrências de fricativas coronais
anteriores em coda final de palavra, selecionadas de um número bem
maior, de forma a delimitar apenas os ambientes em que a aplicação do
processo poderia não implicar na realização de um segmento com a
mesma especificação de sonoridade no inglês e no português. Com o
intuito de verificar a influência da assimilação regressiva de sonoridade
do português na fala do aprendiz, foram consideradas palavras do inglês
terminadas em [s] ou [z] não morfêmicos, como por exemplo, police e
as.
Os esquemas representados nas figuras 1 e 2 a seguir apresentam,
de forma resumida, os contextos incluídos na análise e aqueles
descartados:
34 .

4. Descrição e análise dos dados

Foram contabilizados os dados em que os aprendizes produziram


segmentos de acordo com o processo de assimilação regressiva
do português. A certeza de que o aprendiz estaria se orientando pela
sua língua materna foi assegurada pela divergência entre a forma
por ele produzida e a que seria esperada para o inglês naquele
contexto. A tabela abaixo apresenta o percentual de ocorrência por
aprendiz.

Aplicação da assimilação regressiva de sonoridade do português


Contextos favoráveis Total de ocorrências
Aprendiz 1 21 13 (61,9%)
Aprendiz 2 19 16 (84,2%)
Aprendiz 3 17 12 (70,5%)
Aprendiz 4 21 14 (66,6%)
Aprendiz 5 20 15 (76%)
Aprendiz 6 19 14 (73,6%)
Total geral 117 84 (71,7%)
Tabela 1: Percentual de aplicação da assimilação regressiva de sonoridade do português

O total de contextos favoráveis varia de aprendiz para aprendiz


porque foram excluídos os dados em que o falante interpunha uma
fronteira prosódica entre a fricativa e a palavra seguinte, eliminando,
assim, a possibilidade de operação do processo regressivo de sonoridade
do português, uma vez que o segmento que determinaria a especificação
do traço sonoro desta fricativa deixa de estar a ela contíguo.
Verifica-se que o índice mais baixo de ocorrência desta
assimilação, segundo os padrões do português, ficou em 61,9%,
enquanto que a média dos seis aprendizes foi de 71,7%, o que revela
uma elevada taxa de recorrência à língua materna na produção deste
segmento em inglês.
Procedendo-se à análise em separado dos casos em que a fricativa
coronal anterior ocorre diante de fronteira prosódica, tal índice se
amplia, especialmente se forem considerados os ambientes em que a
fricativa seria sonora na forma nativa do inglês. Em dois terços dos
sujeitos da pesquisa (aprendizes 1, 2, 3 e 5) este índice alcança cem
por cento, conforme demonstra a tabela abaixo.
. 35

As três únicas ocorrências de fricativas sonoras nos dados


envolveram os itens lexicais cars, Netherlands e use. Nos dois primeiros
casos, produzidos pela mesma aluna (aprendiz 4), a fricativa em jogo é
um morfema e, indubitavelmente, foi realizada a forma nativa do inglês
com assimilação progressiva. O terceiro caso envolve uma palavra
freqüente no inglês e que ocorreu duas vezes no corpus: o verbo use.
É importante notar que o mesmo sujeito (aprendiz 6) que produziu a
fricativa como sonora diante de fronteira, como era de se esperar no
inglês, de outra feita ensurdeceu-a antes de fricativa surda, conforme o
processo de assimilação regressiva de sonoridade de sua LM.
Nosem
Dados quadro
Ocorrência 4deaassim
de fricativa
registro seguir,
sonora somam-se
em fronteira
ilação prosódica
regressiva a estes três dados todos aqueles
Aprendiz 1 Aprendiz 2
Número Aprendiz
de 3
fronteiras Aprendiz 4 sonoras
Fricativas Aprendiz
em 5 Aprendiz sonoras
Fricativas 6
once a registrados
once a em fronteira
once a de palavras
once a inglês once ae nos quaisonce os
a aprendizes também
realizadas
Aprendiz 1 produziram 10 oparts
segmento esperado
use skis
07 em inglês,partsnão -- coincidente com a
of parts of of
Aprendiz 2 12 07 --also
Aprendiz
fails so 3
realização dos
14
padrões previstos 06
do português. students
--
Aprendiz 4 10 floods cover 07 02
Aprendiz
residents ride 5 11
residents ride residents ride 07 residents ride --
boats along 6
Aprendiz boats along 12 07 boats along 01
roads to
Total geral 70 44 03
police also pol ice also
Tabela
methods for 2: Ocorrência de fricativas sonoras em fronteira prosódica por informante.
because she because she because she because she because she
complaints complaints complaints
ranged ranged ranged
4/8 1/3 3/5 3/7 4/5 3/5

Dados coincidentes com fricativa sonora do inglês em fronteira prosódica


2 (cars e 1 (use)
Netherlands)
Quadro 4: Não ocorrência de assimilação regressiva (dados por informante).

Percentual de aplicação da assim ilação regressiva do inglês (por informante)


Aprendiz 1 Aprendiz 2 Aprendiz 3 Aprendiz 4 Aprendiz 5 Aprendiz 6
4/24 1/24 3/24 5/24 4/24 3/24
(16,6%) (4,1%) (12,5%) (20,8%) (16,6%) (12,5%)
Média geral = 15,9%
36 .

Observe-se que no quadro 4 há alguns fragmentos em destaque


que correspondem a dados do corpus em que a fricativa coronal do
inglês não tem status de morfema flexional e ocorre em juntura de
palavras. Neste contexto poderia, potencialmente, haver sândi, se os
sujeitos da pesquisa seguissem o padrão do português. Nestas formas é
vedada a assimilação progressiva de sonoridade do inglês. Tem-se,
entretanto, ambiente de juntura de palavras, onde poderia haver sândi
externo se os sujeitos da pesquisa se guiassem por sua LM: once a, use
skis, police also, because she. Além disso, exibem outras características
especiais: once, use (verbo), police e because são palavras corriqueiras
e muito freqüentes no vocabulário de aprendizes dessa língua,
especialmente no nível avançado; sua grafia pode influir sobre a sua
pronúncia em função das convenções que regem a correspondência
entre letra e som: em todas o <e> final é mudo e duas delas sequer são
escritas com a letra <s>. Há, também, que se salientar outro fator
relevante: use apresenta contraste entre uma forma com fricativa surda
e outra com a sonora, correspondendo a palavras de classes gramaticais
distintas em inglês, oposição esta por demais enfatizada na maioria dos
manuais de ensino da língua, desde os níveis iniciais. É provável que,
em virtude de tais características, tenha sido verificada, nestes contextos
de juntura, uma tendência ao bloqueio de influência das formas da LM
no desempenho oral dos aprendizes.
Levando-se em conta apenas os casos em que a forma admitiria
a ocorrência da assimilação progressiva do inglês, ou seja, excluindo-
se os itens supracitados, obtém-se o seguinte resultado quantitativo por
aprendiz.

Percentual de aplicação da assimilação regressiva do inglês (por informante)


Aprendiz 1 Aprendiz 2 Aprendiz 3 Aprendiz 4 Aprendiz 5 Aprendiz 6
4/24 1/24 3/24 5/24 4/24 3/24
(16,6%) (4,1%) (12,5%) (20,8%) (16,6%) (12,5%)
Média geral = 15,9%
Tabela 3: Índice de ocorrência de assimilação regressiva (por informante)

A média geral de 15,9% na tabela 3 demonstra que a influência


da LM no desempenho oral dos sujeitos desta pesquisa foi considerável
. 37

no âmbito em que, no inglês, registra-se a assimilação progressiva da


fricativa coronal. A aprendiz 2 foi aquela com o maior índice
de influência da língua materna. Por outro lado, a aprendiz 4 parece
ter se guiado menos pelo português: alcançou o resultado
esperado em inglês em cinco dos 24 dados (20,8%), tanto em
juntura de palavras, como diante de fronteira prosódica. Os demais
sujeitos da pesquisa apresentaram percentuais variando de 12,5% a
16,6%.
Tomando-se o conjunto dos dados produzidos pelos seis
brasileiros, a tendência preponderante foi no sentido do predomínio do
padrão da primeira língua nesses casos de assimilação, sobretudo diante
de fronteira prosódica. A separação dos sistemas das duas línguas pode
se tornar um desafio para o aprendiz diante de processos que não são
idênticos, embora compartilhem várias características, como é o caso
da assimilação de sonoridade enfocada neste trabalho. Aprender a
diferenciar as categorias do inglês daquelas de sua LM implica uma
recategorização das fricativas segundo os padrões da língua-alvo. Isto
significaria mais do que apenas perceber as diferenças entre os
segmentos “novos”, “semelhantes” ou “idênticos” da LM e da LE, para
adotarmos a terminologia usada em FLEGE (1987,1996)6. Significaria
identificar diferenças de funcionamento de sons “idênticos” no inglês
e no português e perceber, além disso, que a assimilação no inglês
depende de informação morfológica para funcionar a contento. Seria
preciso, também, redimensionar o alcance deste processo no que se
refere ao domínio prosódico em que se manifesta: apenas no da palavra
e no da palavra fonológica (como no inglês: calls, Bob’s em Bob’s
called), ou nestes e ainda no da frase fonológica (como no português:
cisma, diz-me, mês longo). Há, também, pistas no sentido de que os
alunos restringiriam seu alcance de forma gradual, começando por
palavras e expressões com alta freqüência de uso. Os sujeitos deste
estudo, mesmo estando em nível avançado de aprendizado da LE, ainda
manifestam, com taxa elevada de ocorrência, processos gerais de sua
LM. Indícios de emergência das formas do inglês são ainda incipientes,
uma vez que, nos contextos em que se pode ter certeza de que houve
uma assimilação progressiva semelhante à do inglês, a freqüência
registrada foi muito baixa: apenas 15,9%.
38 .

5. Discussão dos resultados

Esteve subjacente à descrição dos resultados obtidos a partir do


exame da produção oral dos aprendizes a noção de que eles aplicariam
à língua estrangeira processos característicos de sua LM.7 Contudo,
como comprovam os exemplos apresentados, esta explicação para as
formas alternantes produzidas pelo mesmo aprendiz, ou por sujeitos
distintos, registradas como tentativas, nem sempre bem sucedidas de
alcançar um alvo estático no nível representacional, pressupõe uma
estrutura invariável, única, não compatível com a gradiência inerente à
fala.
As pesquisas realizadas nos últimos anos, tanto na área de
processamento, como aquelas especificamente direcionadas para a
aquisição de língua estrangeira, apontam não um só, mas vários fatores
como responsáveis por um melhor desempenho dos aprendizes (cf.
PAIVA, 2005: 23; PISKE, MACKAY e FLEGE, 2001). Fica afastada,
no entanto, a meta de uma performance idêntica à de um falante nativo8,
tomada como modelo invariante do qual as demais realizações
constituem desvios.
Propostas teóricas recentes em fonologia fornecem um
instrumental bem mais compatível com o desempenho dos sujeitos desta
pesquisa (cf. BYBEE, 2001, 2002; PIERREHUMBERT, 2001; SOLÉ,
2003). A variação interfalantes, todos eles aprendizes de nível avançado,
indica que não há uma uniformização em suas interlínguas. Ou seja, o
léxico mental de cada um deles não seria uniforme ou coincidente.
A variação registrada, como era de se esperar, em um mesmo
aprendiz, indicaria, por sua vez, que ele já está categorizando
em separado as ocorrências das fricativas coronais da LE – mas ainda
não as separou totalmente. A oscilação entre as categorias da LM e da
LE tornam evidentes a sua sobreposição na interlíngua destes
aprendizes.
Vale lembrar que o conceito de interlíngua, proposto por
SELINKER (1972), já não previa uma uniformidade, de vez que não se
referia a uma simples soma de características da LM e da LE e sim a
um estágio intermediário do desenvolvimento do aluno em direção à
proficiência na língua estrangeira. Atualmente, concebe-se a interlíngua
. 39

do aprendiz como estrutura dinâmica, moldável de sorte a permitir


adaptação constante a novas situações de uso (cf. LARSEN-FREEMAN,
1997). Esta estrutura é fruto da percepção e interpretação dos dados da
LE pelo aluno, tendo em vista o conhecimento lingüístico por ele
acumulado. Não se pode, deste modo, pressupor que todos os aprendizes
chegarão a uma estrutura idêntica.
Por outro lado, foi preciso separar, neste estudo de casos,
situações especiais, de vez que alguns itens lexicais ou expressões
produzidos pelos aprendizes mostraram comportamento peculiar. Nos
modelos tradicionais, seriam consideradas exceções à aplicação de
processos mais gerais. No entanto, um modelo baseado no uso poderia
explicar o alto índice de ocorrência destas formas, coincidentes com o
padrão da LE, com base em vários fatores, dentre eles a freqüência de
sua ocorrência no universo lingüístico a que os aprendizes de inglês
estão expostos, ou seja, o input recebido da LE (cf. BOGAERDE 2000:
1-16).
A resistência, por sua vez, ao uso de segmentos com maior grau
de sonoridade em determinadas posições, como em final absoluto ou
diante de fronteira prosódica, pode ser atribuída à robustez dos
exemplares9 da LM do aprendiz em que, neste contexto, se realiza um
segmento surdo.
O baixo índice de coincidência entre o grau de sonoridade das
fricativas em coda no inglês e nas interlínguas dos aprendizes indica
que sua exposição à LE não foi bastante para garantir a captação de
exemplares em número suficiente de forma a permitir uma nítida
separação entre estas categorias fonológicas da LM e da LE em todos
os seus contextos de ocorrência. Os exemplares da LM, em número
bem maior, garantem seu entrincheiramento e sua resistência, tornando-
os pouco maleáveis para permitir um reajuste e a emergência de novas
categorias, que não são necessariamente as da LE.

6. Conclusão

Tendo em vista as considerações feitas ao longo deste artigo, o


projeto ORALLE, ao qual se acha vinculada esta pesquisa, volta-se
para o exame das formas que emergem na produção oral de aprendizes
40 .

de uma LE – em especial, brasileiros aprendizes de inglês. Espera-se,


em consonância com os resultados observados até o momento, que a
influência das categorias mais robustas da LM se reflita nas interlínguas
dos aprendizes, qualquer que seja o seu nível de proficiência. Por outro
lado, espera-se que os exemplares menos freqüentes de sua LM exerçam
uma menor resistência e tendam a ser substituídos, com mais facilidade,
pelas tendências observadas a partir dos inputs da LE, aos quais o
aprendiz é exposto. Deste modo, sugere-se que os exemplares mais
robustos de sua LM atuam em direção contrária à reestruturação, ao
passo que os menos freqüentes são mais facilmente recategorizados de
acordo com os modelos de itens lexicais também freqüentes da língua
estrangeira.
Esta hipótese requer corroboração frente a um maior número de
dados, obtidos junto a alunos que ainda não atingiram um grau elevado
de proficiência. Tais aprendizes são aqueles que tiveram exposição mais
restrita à LE e, portanto, input insuficiente para prover ampla gama de
exemplares. É preciso analisar o desempenho oral destes alunos em
situações diversificadas de fala espontânea e, também, mediante estudo
longitudinal, avaliar outros fatores, além do input, que podem influenciar
o aprendizado de uma LE, dentre estes o papel da instrução formal em
sala de aula.

Aurora Maria S. Neiva, UFRJ


Myrian A. Freitas, UFRJ
Mônica M. Nobre, UFRJ

Notas
1
A assimilação regressiva também é conhecida como antecipatória e a
coalescente, como dupla.
2
Dependendo da variedade regional do português brasileiro, a assimilação de
sonoridade resultará em um fone idêntico ao do inglês.
3
Ocorre assimilação regressiva de sonoridade em inglês, mas será sempre
variável e condicionada fonologicamente. Em geral não envolve
exclusivamente a fricativa coronal anterior, à exceção do [z] do verbo
. 41

has, quando este forma um modal perifrástico (has to). Além disso,
conjuga-se com o outro processo alofônico que insere uma oclusiva entre
uma nasal e uma fricativa surda. Dá-se, neste caso, uma assimilação
progressiva de ponto de articulação e regressiva de sonoridade (assimilação
coalescente): length [lENkT] e comfort [ÈkEmpf«rt] (cf. CELCE-MURCIA,
BRINTON e GOODWIN 1996: 160)
4
Em seu livro, Gussmann faz uma descrição pormenorizada dessa homofonia,
caracterizando o segmento como uma espirante coronal. Note-se, também, que,
em consonância com tendências teóricas que não adotam o conceito de regra e
sim de restrição (“constraint“), não se vale do termo tradicional aqui empregado:
assimilação progressiva.
5
O programa PRAAT, da autoria de Paul Boersma e David Weenink
da Universidade de Amsterdã, pode ser gratuitamente obtido no site
www.fon.hum.uva.nl/praat/download_win.html.
6
Para FLEGE (1996), um som da LE é “semelhante” a um som da LM quando
representado pelo mesmo símbolo fonético a despeito de diferenças
significativas em relação a ele; é “novo” quando difere do som da LM do ponto
de vista acústico e da percepção; finalmente é “idêntico” quando adequadamente
representado por símbolo fonético igual. Estes últimos são tradicionalmente
considerados como propiciadores de “transferência positiva” e não causadores
de desvios de pronúncia. Não são, por conseguinte, alvo de muita atenção nos
estudos de aquisição de LE. Espera-se que os aprendizes tenham pior
desempenho na produção de sons que são semelhantes, porém não idênticos,
aos de sua língua materna.
7
FLEGE (1980) afirma que a especificação fonética dos sons da fala em uma
língua estrangeira parece ser antes a manifestação de uma “interlíngua”, do
que o resultado da interferência da LM na LE.
8
A capacidade de atingir um grau de proficiência numa língua
estrangeira equivalente à de um falante nativo varia conforme o ponto de vista
com relação à teoria de aquisição de linguagem. Os modelos formais divergem
com relação ao chamado período crítico e sua conseqüência para o
aprendizado de línguas (cf. LEE: 2005 e HYLTENSTAM & ABRAHAMSSON,
2000).
9
O termo “exemplar” foi empregado como cada token ou ocorrência
de uma forma lingüística registrada no léxico mental do falante.
Um conjunto de exemplares forma uma nuvem que representa uma categoria
e contém informações lingüísticas e não-lingüísticas pertinentes a seus
contextos de uso efetivo (cf. BYBEE 2001: 52 e CRISTÓFARO-SILVA,
2003).
42 .

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Resumo
Este artigo examina a influência da assimilação regressiva de sonoridade do
português, que afeta consoantes fricativas coronais em sândi externo, na
produção oral de seis estudantes brasileiros de inglês. Segmentos semelhantes
em inglês, quando funcionam como morfemas flexionais, também sofrem
sistematicamente acomodação de sonoridade. Tal semelhança, porém, não
garante um desempenho oral idêntico por parte de brasileiros aprendizes de
inglês como LE e de falantes de inglês como LM. Explica-se o fato com base
em modelos fonológicos que enfatizam o papel do uso na categorização de
formas lingüísticas, conforme descrito por BYBEE (2001, 2002),
PIERREHUMBERT (2001) e SOLÉ (2003).

Palavras-chave: pronúncia; assimilação de sonoridade; inglês LE; fonologia


de uso.

Abstract
This paper examines the influence of Portuguese regressive voicing assimilation
of coronal fricatives across word boundaries in the oral production of six
44 .

Brazilian students of English as a Foreign Language. Since similar English


segments are also systematically affected by voicing assimilation when they
function as inflectional morphemes, the article provides a comparative
description of the operation of voicing assimilation in English and Portuguese
and argues that the transference registered in performance data of the subjects
can be fully explained in the light of usage-based models of phonology as
proposed by BYBEE (2001, 2002), PIERREHUMBERT (2001) and SOLÉ
(2003).

Key words
pronunciation; voicing assimilation; English as a Foreign Language; usage-
based phonology

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