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II Seminário Internacional de Língua, Literatura e Processos Culturais ISSN: 2237.

4361

Universidade de Caxias do Sul


Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
Centro de Ciências Humanas e da Educação
Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade
Programa de Doutorado em Letras – Associação Ampla UCS/UniRitter

ANAIS DO
II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE LÍNGUA, LITERATURA E
PROCESSOS CULTURAIS - SILLPRO

ESPAÇO, TERRITÓRIO E REGIÃO

Organização dos Anais

Dr. João Claudio Arendt – UCS


Dr. Márcio Miranda Alves – UCS
Daniele Marcon – UCS
Karen Gomes da Rocha – UCS
Larissa Rizzon da Silva – UCS
II Seminário Internacional de Língua, Literatura e Processos Culturais ISSN: 2237.4361

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Universidade de Caxias do Sul
UCS - BICE - Processamento Técnico

S471a Seminário Internacional de Língua, Literatura e Processos Culturais (2. :


1 2014 maio 19-22 : Caxias do Sul, RS)
Anais do II Seminário Internacional de Língua, Literatura e Processos Culturais – SILLPRO:
espaço, território e região, 19 a 22 de maio de 2014 / org. João Claudio Arendt... [et al.]. - Caxias
do Sul, RS : UCS, 2014.
1214 f. : il. ; xx cm

Apresenta bibliografia.

ISSN 2237.4361

1. Língua - Literatura. 2. Cultura. I. Arendt, João Claudio. II. Título.

CDU 2.ed.:81'1

Índice para o catálogo sistemático:

1. Língua – Literatura 81'1


2. Cultura 008

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária


Carolina Machado Quadros – CRB 10/2236.
II Seminário Internacional de Língua, Literatura e Processos Culturais ISSN: 2237.4361

ST 14: A tradução na supressão de fronteiras

A LITERATURA JAPONESA EM TRADUÇÃO NO BRASIL

Andrei dos Santos Cunha


UFRGS

No Brasil, os processos de adoção de modelos culturais estrangeiros foram


ditados por uma combinação de circunstâncias locais e internacionais 1. Como ressalta
ANDERSON (1991, p.47), “a língua não era um elemento de diferenciação entre a colônia
e a metrópole” — “todos tinham língua e ancestralidade em comum com aqueles contra
quem estavam lutando”. No início do século XIX, Portugal via a língua francesa como
potencialmente subversiva — o meio pelo qual as colônias poderiam absorver os novos
ideais liberalistas e antimonárquicos (BATALHA, 2001, p.117). Em oposição a Portugal,
os intelectuais brasileiros viram, por muito tempo, a influência francesa como
principalmente benéfica. Paris, a “capital do século XIX”, na expressão lapidar de
Walter BENJAMIN, era um centro criador de movimentos artísticos e literários
(CASANOVA, 2002, p.42). Não se deve esquecer, no entanto, que os fluxos culturais
eram tanto do centro para a periferia como vice-versa. Nas palavras de Antonio
CANDIDO (1977, p.15-16):
Tomemos o caso bastante complexo do Indianismo literário da época
romântica. Nascido na França com as teorias do bom selvagem, a partir de
sugestões oriundas da América, [...voltou] sob a forma de uma tendência
literária que era exótica para os franceses, mas que se ajustava de forma
admirável a nossas necessidades espirituais e políticas.
A sede de exotismo dos centros culturais europeus conheceu diferentes fases e
ênfases. Após a abertura dos portos japoneses a estrangeiros, na década de 1860, o fluxo
de bens e pessoas entre o Japão e a França, combinado a uma tradição orientalista
europeia, deu início a uma febre de japonisme, com importantes consequências para a
história das artes visuais, já bastante conhecidas. Em concomitância, também ocorreu a
adoção japonesa de modos de representação visuais com matriz no Ocidente (KATO,
1994).
No campo da literatura, houve também reflexos dessa moda. O Japão, aos
poucos, passou a representar “um outro Oriente”, mais distante do que o “Oriente daqui
[de lá]”, quase não comprometendo “nenhum país real”, um lugar meramente de

1
Alguns trechos deste artigo são uma reescritura de outro texto anterior (CUNHA, 2013).

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fantasia, e que podia ser usado “sem a mínima pretensão de representar ou de analisar
qualquer realidade, por menor que fosse” (BARTHES, 1970, p.9). É esse Japão “de Cocanha”,
engendrado na Europa, que foi trazido ao nosso sistema literário, duas décadas depois da
chegada de japoneses de carne e osso ao porto de Santos. Eis aqui, já nesse fin de siècle, um
exemplo de um traço da formação intelectual brasileira que é tanto homogeneamente
verificável como solenemente ignorado: o orientalismo periférico1.
Graças aos estudos de Paulo FRANCHETTI (2012), sabemos que a obra poética mais
importante no contexto da recepção inicial do haicai no Brasil foi Les Haïkaï, de Paul-Louis
COUCHOUD: “republicado no volume Sages et Poètes d’Asie (1916), esse texto correu o
mundo [...], tornando-se uma das principais referências sobre o assunto, para os leitores de
formação francesa” (p.199). Assim como o japonisme é considerado uma espécie de
“precursor de eleição” para as realizações dos impressionistas (mas as coisas não são assim
tão simples), a percebida “concisão sem retórica” do haicai japonês foi o traço que os
modernistas adotaram como ideal2. Ora, um estudo (menos centrado em conceitos ocidentais)
da história da poesia japonesa revelaria facilmente que o haicai é um sistema retórico (além
disso, um sistema retórico tradicional, com séculos de história), e que foi o realismo ocidental
(sobretudo o realismo nas artes plásticas) que foi usado como modelo, por autores do
modernismo japonês, como MASAOKA Shiki, para renovar o haicai por meio de uma reação
contra a retórica. Mais ainda: a concisão do haicai, no contexto japonês, é muito mais
complexa do que se pensava no Ocidente, nessa época. Ela depende de sofisticados elementos
de intertextualidade e de topoi consagrados pelo uso para expandir suas possibilidades
semânticas, e se apoia numa poética da ambiguidade, do vago e do misterioso — e não num
ideal de precisão, como imaginavam os modernistas.
O segundo momento da recepção do haicai no Brasil, com os concretistas, ainda que
caracterizado por um aprofundamento da reflexão sobre o gênero textual (como objeto visual,
como poética, como filosofia) também dependeu de desleituras da metrópole. Dessa vez,
foram os americanos, nas figuras de Ernest FENOLLOSA e de Ezra POUND, que serviram de
mediadores (cf. FENOLLOSA, 1977; CAMPOS, 1977a). A concepção do haicai de autores como
Haroldo de CAMPOS é consideravelmente mais sofisticada do que a dos primeiros
modernistas. No entanto, o ideal de concisão é mais uma vez enfatizado, agora a partir de uma
visão “ideogramática” da poesia. Essa interpretação da poética japonesa faz todo o sentido,
quando vista como um instrumento de legitimação do movimento concretista, que buscava
uma estética totalizante e sintética, unindo o visual, o sonoro e o textual.

1
Proponho uma discussão do conceito de “orientalismo periférico” em CUNHA (2013). Uma definição provisória
poderia ser: reprodução acrítica, por parte de uma periferia, da atitude dos centros com relação a outras
periferias.
2
Vide o prefácio de Paulo PRADO à coletânea Pau Brasil, de Oswald de ANDRADE (FRANCHETTI, 2012, p.195-
196).
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A estética concretista é uma das grandes glórias da literatura brasileira, um dos poucos
momentos em que a vanguarda nacional era também a vanguarda internacional, com novas
propostas poéticas e uma visão de literatura que era genuína e universalmente inovadora. No
entanto, ela deve muito menos à poesia japonesa do que se imagina. Além disso, a insistência
na ideia de concisão resultou numa ênfase desmesurada ao gênero haicai (sendo essa a forma
poética mais curta), quando outras formas japonesas de expressão literária já haviam
desenvolvido a estética da alusão e do não-dito, muito antes (especial menção deve ser feita
ao waka, ao monogatari, ao nikki e ao zuihitsu) — séculos antes.
O resultado desse desequilíbrio de ênfase é que o leitor culto brasileiro acredita que o
haicai é a culminância da literatura japonesa, algo com que um japonês médio acharia difícil
de concordar. Essas distorções viriam a se corrigir em parte nas gerações posteriores, em
especial nas obras de Paulo LEMINSKI e de Paulo FRANCHETTI. Ora, ainda que relacionada
automaticamente ao haicai, a obra de Leminski (mas quase não se escreveu sobre isso) faz
alusões a muitas outras formas e influências filosóficas do Japão. Por sua vez, Paulo
Franchetti, que também atua como tradutor e divulgador da literatura japonesa, sempre
procurou estabelecer um contato mais direto com a produção de haicai em japonês no Brasil.
Essa maior receptividade à cultura japonesa, não mediada por Pound e Fenollosa, assegura
uma compreensão da sua poética que vai além de sua visualidade ou promessa de inovação
formal, refletindo também o profundo e tradicional interesse japonês pela investigação
filosófica, pelo desenvolvimento espiritual e pela observação da vida quotidiana.
No entanto, essa não é a única maneira de se contar essa história. O haicai foi trazido
antes, pelos imigrantes japoneses. Já do Kasato Maru, o primeiro navio japonês a trazer
imigrantes ao porto de Santos, em 1908, desembarcou UETSUKA Shuhei (1876-1935), que
teria escrito (a história pode ser apócrifa) o primeiro haicai feito em terras brasileiras
(UETSUKA apud GOGA, 1997). Subsequentemente, o Brasil recebeu Nempuku SATO (1898-
1979), que trouxe consigo os princípios da escola de Masaoka Shiki (o renovador do gênero
para o modernismo japonês). Masuda GOGA, o maior haicaísta brasileiro, foi discípulo de
Sato. É a partir das tradições trazidas do Japão por essa linhagem de poetas que uma nova
vertente de autores de haicai floresce atualmente no Brasil: no início, esses grupos eram
compostos por imigrantes e descendentes de japoneses; hoje em dia, os clubes e agremiações
de haicai acolhem todo tipo de sócio, e a produção poética se dá tanto em japonês como em
português. Ao contrário da idealização operada pelos mediadores de língua francesa, russa e
inglesa, no caso das teorias adotadas pelos poetas modernistas e concretistas, esses grupos
desenvolveram um fazer poético em língua portuguesa do Brasil (FRANCHETTI, 2012, p. 209-
212), que se apropria de maneira mais direta das práticas dos haicaístas do Japão. No entanto,
como esses fazeres poéticos se baseiam em comunidades não centrais à cultura brasileira
considerada como “alta”, e como não fazem referência a línguas ou culturas de prestígio
tradicional, ainda são vítimas de incompreensão por parte de acadêmicos brasileiros.

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Por muito tempo, a literatura japonesa se viu restrita ao público leitor dos imigrantes
japoneses (chegados ao Brasil inicialmente em 1908) e de seus descendentes (YOSHIDA,
2003). A primeira publicação comercial de uma obra literária japonesa traduzida para o
português do Brasil é de 1945 (KATO, 2006), quando a Editora Brasiliense lançou Rua sem
Sol (太陽のない街, Taiyô no nai Machi, edição japonesa de 1929), de TOKUNAGA Naoshi
[Sunao], com tradução assinada por ninguém menos que Jorge AMADO .
No entanto, a mais recente biógrafa de Jorge Amado (Joselia AGUIAR, cuja obra está
no prelo no momento em que se escreve este artigo) afirma que, na verdade, ele não traduziu
esse livro — apenas emprestou seu nome (e prestígio de escritor) a uma coleção de textos de
caráter socialista (Fábio BONILLO, ago. 2013, comunicação pessoal). Jorge Amado pertenceu
ao Partido Comunista Brasileiro de 1931 a 1955, e era amigo de Arthur NEVES e Caio PRADO
JÚNIOR, fundadores da Brasiliense (BOTTMANN, 2013). Tokunaga (1899-1958) foi um
importante representante do movimento proletário no Japão. Ainda que essa publicação
pareça ser um evento isolado, ela é uma consequência doméstica da reconfiguração da ordem
mundial do pós-guerra, que polarizou as ideologias e a produção cultural, seguindo um padrão
de internacionalização (neste caso, o ideal de um “socialismo de todos os povos”).
O segundo livro de literatura japonesa traduzido e publicado no Brasil é de 1958.
Árvores Irmãs é uma coletânea de contos, traduzidos diretamente do japonês3. A tradução
contava com a colaboração de José YAMASHIRO, que era um dos representantes da nova
intelectualidade nipo-brasileira que atuava principalmente em São Paulo e Curitiba nos anos
1960 e 1970. Esse grupo de intelectuais bilíngues acreditava estar imbuído de uma missão:
apresentar a cultura japonesa ao Brasil, e a partir dessa intermediação valorizar a posição
social e o prestígio da comunidade nikkei — não se deve esquecer que, durante a Segunda
Grande Guerra, a comunidade nipo-brasileira sofreu toda sorte de perseguição política e
cultural por parte do governo brasileiro.
A escolha dos contos de Árvores Irmãs e o processo de tradução está em forte
contraste com o caso de Rua sem Sol: trata-se de textos contemporâneos, de autores que,
ainda que já considerados muito importantes domesticamente, na época ainda estavam em
vias de consagração fora do Japão (alguns ainda vivos em 1958). A curadoria era, portanto,
muito avançada para a época, e reunia nomes até então pouco conhecidos, mesmo na Europa e
nos Estados Unidos (incluindo até KAWABATA, dez anos antes de ganhar o prêmio Nobel).
Devido ao fato de obedecer a uma lógica tradutória incomum, esse volume não fez tanto
sucesso como outros, traduzidos na década seguinte, a partir do inglês e do francês.
A publicação de Depois do Banquete, de MISHIMA Yukio, em 1968, é o início de um
novo período na história da tradução de obras do Japão no Brasil. Além da crescente
importância do Japão como uma potência econômica no cenário internacional, os motivos

3
Outra importante coletânea de contos foi publicada quatro anos depois: Maravilhas do Conto Japonês, com
organização de Antônio NOJIRI.
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para o súbito interesse pela literatura japonesa são provavelmente o grande sucesso de
Mishima nos Estados Unidos e na Europa, assim como o Nobel de Literatura concedido a
Kawabata Yasunari, naquele mesmo ano. Kawabata, que era também mentor de Mishima, foi
o primeiro autor japonês a receber o prestigiado prêmio. Em 1969, dois livros de Kawabata
são publicados no Brasil (Nuvem de Pássaros Brancos e O País das Neves) e, nos anos
1970, sete títulos de autores japoneses são traduzidos (incluindo Mishima, Kawabata, ENDÔ
Shûsaku e MATSUMOTO Seichô).
A indústria cultural nacional, a partir dos anos 1960, vai se tornar cada vez mais
globalizada; ainda assim, ela continua sendo o reflexo do campo literário internacional, em
cujo contexto os dois maiores jogadores (a partir de uma perspectiva brasileira) são os
Estados Unidos e a França. Estão aqui anunciadas as duas vertentes da norma tradutória
brasileira, com relação à literatura japonesa. Até os anos 1980, as literaturas de línguas não
hegemônicas deviam passar preferencialmente pelo crivo de línguas hegemônicas; e a
prioridade era dada ao tradutor cujo fazer era reconhecido pelo polissistema (o tradutor do
inglês, devidamente “aculturado” às normas do mundo editorial), não ao falante nativo da
língua exótica, tido como alijado dos fazeres e saberes da indústria de livros no Brasil. Por
outro lado, já se pode perceber que, desde o final dos anos 1950, há uma tendência em sentido
contrário, que poderíamos denominar de “segunda vertente”, por parte da comunidade nikkei
no Brasil, no sentido de criar uma imagem cultural do Japão menos ligada ao exotismo e
legitimada pela tradução direta do japonês.
Em 1985, como resultado do sucesso do filme de Paul SCHRADER4, iniciou-se um
fenômeno que pode ser chamado de “boom Mishima” no Brasil (com um total de nove livros
traduzidos em quatro anos). O filme ganhou o prêmio de contribuição artística no Festival de
Cannes, e estreou no mesmo ano no Brasil, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Em 1986, o biópico foi distribuído comercialmente em todo o país.
O filme Mishima foi a primeira grande coprodução nipo-americana. Os produtores
executivos foram Francis Ford COPPOLA e George LUCAS. Para criar um panorama da vida e
da obra do escritor, Schrader alterna a narrativa do último dia de vida de Mishima
(culminando no suicídio), algumas passagens apresentando os “fatos” de sua vida (em parte
adaptados, na verdade, do romance Confissões de uma Máscara, que é tratado pelo filme
como fonte biográfica, não como ficção) e partes adaptadas de livros do autor — O Pavilhão
Dourado, Kyôko no Ie [鏡子の家, A Casa de Kyôko] e Cavalo Selvagem.
A análise dos títulos adaptados torna clara a centralidade do filme (e de Hollywood e
dos Estados Unidos) para o polissistema literário brasileiro. Desses cinco livros de autoria de
Mishima aqui mencionados como fontes para os roteiristas, apenas A Casa de Kyôko nunca

4
MISHIMA: a life in four chapters [lançado no Brasil com os títulos Mishima: uma vida em quatro capítulos ou
Mishima: uma vida em quatro tempos]. Direção: Paul SCHRADER. Produção: Francis Ford COPPOLA e George
LUCAS. Criterion, 1985.
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foi traduzido para o português (Confissões, Pavilhão e Cavalo Selvagem foram traduzidos
duas vezes cada um). A explicação é bastante simples: A Casa também nunca foi traduzido
para o inglês, e a edição prévia em inglês parece ser condição necessária para que a maioria
dos livros japoneses conheçam uma tradução brasileira (mesmo quando traduzidos direto do
japonês).
Nos anos 1990, houve poucas traduções de obras japonesas. Um fator a ser
considerado é o lamentável estado da indústria cultural e da economia brasileira nesse
período. Fernando Collor de MELLO (Presidente de 1990 a 1992) adotou políticas econômicas
neoliberais que incluíam a suspensão de toda e qualquer assistência financeira a produtos
culturais. Fernando Henrique CARDOSO (Presidente de 1995 a 2002), ainda que mais
sintonizado com as questões culturais, não mudou a política econômica de corte de gastos
nesse setor. A Brasiliense, que era uma das editoras que mais investira na tradução de obras
japonesas, passava por sérias dificuldades, publicando um número reduzido de títulos. As
grandes editoras perderam o interesse por literatura japonesa (KATO, 2006, p.52).
Durante essa fase, a “segunda vertente” mostrou-se ativa, sobretudo na figura de
professoras universitárias pertencentes à comunidade nikkei, como Geny WAKISAKA, Luiza
Nana YOSHIDA e Meiko SHIMON. Sua atuação não reflete a crise econômica ou a cultural
(alguns livros foram publicados por universidades; outros, financiados privadamente), e essas
educadoras continuaram a produzir (editar, traduzir) livros de alta qualidade, formando
também os tradutores que começariam a atuar na década seguinte. A sua presença em
destaque na história da literatura japonesa em tradução no Brasil pode ser explicada em parte
como sendo a continuidade dos primeiros esforços tradutórios nipo-brasileiros, ao final dos
anos 1950 e início dos 1960.
Nos anos 2000, ao contrário de Portugal, onde as traduções de textos de línguas não
hegemônicas ainda são realizadas por intermédio do inglês ou do francês5, no Brasil, as
editoras começaram a investir em “traduções diretas” 6. O renovado interesse pela literatura
japonesa vem na esteira do grande sucesso comercial de Musashi (YOSHIKAWA Eiji; lançado
no Brasil em 1999; tradução de Leiko GOTODA) e da obra de Murakami HARUKI. Não se pode
negar, também, que fatores extraliterários, como a grande voga da cultura popular japonesa no
Brasil, foram determinantes para a maior visibilidade desses títulos.
A imigração japonesa no Brasil completou oficialmente cem anos em 2008, e
importante parcela da população brasileira descende de japoneses — a maior população
nikkei do mundo (cerca de um milhão e meio de descendentes de japoneses — cf. MOFA,

5
O Romance do Genji, por exemplo, foi lançado pela editora portuguesa Relógio d’Água em 2008, com uma
nota explicando que a obra foi escrita “em japonês medieval [sic], de que não existem tradutores em Portugal.
Por isso, e dado o interesse em divulgar esta obra singular, optou-se por recorrer” às traduções francesa, inglesa e
espanhola como textos de partida (MURASAKI, 2008, verso da folha de rosto).
6
Dois exemplos de alta visibilidade sendo o Livro das Mil e uma Noites, de Mamede Mustafa JAROUCHE (o
primeiro de quatro volumes foi publicado em 2005) e as obras de DOSTOIEVSKI lançadas pela Editora 34 (um
total de dezoito títulos, os primeiros dois publicados no ano 2000).
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2013). A tradução de textos literários japoneses tem desempenhado importante papel social e
cultural na aproximação dos dois países, e mesmo na criação literária brasileira. No entanto, o
número de obras literárias traduzidas do japonês ao português brasileiro está longe de refletir
os estreitos laços históricos, étnicos e diplomáticos entre os dois países. O mesmo se pode
dizer com relação à tradução de obras brasileiras no Japão, e os motivos são, na verdade,
semelhantes — a começar pelo status não-hegemônico das duas línguas nacionais. Nesse
sentido, talvez se pudesse dizer que as trajetórias das duas literaturas em tradução têm mais
afinidades circunstanciais do que a brasileira teria com outras literaturas estrangeiras mais
conhecidas no Brasil, como as de língua francesa, espanhola ou inglesa.
O propósito do presente texto foi lançar, na forma de questões para futuro
desenvolvimento, algumas hipóteses sobre a presença da literatura japonesa no polissistema
literário do Brasil, tal como ela se configura em três eixos: como um dos hipotextos da poesia
brasileira do século XX, em especial nos períodos do modernismo e do concretismo; como
produto cultural, a partir do fim da Segunda Grande Guerra; e como elemento da construção
identitária da comunidade nipo-brasileira.
Fica claro que a abrangência pretendida do estudo não cabe em dez páginas. Ainda
assim, meu objetivo com o formato e o recorte escolhidos para este texto foi discutir a
interação de fatores estruturais, que possam ser desmembrados posteriormente e analisados
em maior detalhe. Desejo chamar a atenção para o fato de que não se pode pensar em
tradução no Brasil sem levar em conta o sistema de interações mundiais e, principalmente, de
que a presença da literatura japonesa no polissistema nacional não é um caso isolado, uma
exceção ou uma anomalia (modalidades que lhe são de praxe atribuídas). Muito pelo
contrário, a forma como ela se instaura nesse contexto está em calma conformidade com os
desenvolvimentos históricos, culturais e estéticos de cada época, tanto dentro como fora do
Brasil.

Referências

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