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O Sujeito para além das

categorias estruturais

Celso Riquena, Julia T. P. Montenegro, Olívia Mentone Nogueira, João


Vitor dos Santos, Karla Mariana Guimarães De Marchi, Naamã Rubet
de Almeida e Sergio Lopes de Oliveira.

Temos trabalhado nestes últimos anos com a análise crítica de


conceitos psicanalíticos que foram forjados em um tempo do qual
estamos distantes historicamente e culturalmente, não somente nos
distanciamos no tempo, como a estrutura de relações e costumes se
alteraram consideravelmente, tanto em relação à Viena do final do
século XIX quanto da Paris dos meados do século XX, o que nos levou
a perguntar se “ainda” escutamos os mesmos sujeitos supostos pelas
teorias freudianas e lacanianas?
Em um breve panorama histórico podemos destacar alguns pontos que
mostram de forma evidente as diferenças históricas que serviram de
base para as origens da psicanálise com Freud. O fim do século XIX e
início do século XX, marca o tempo de formulação da teoria freudiana,
se não bastasse o tempo que nos separa, as condições sócio históricas
também acrescentam elementos importantes. Freud constrói a teoria
na capital do Império Austro-húngaro, Viena, que neste momento
especifico da história representava um dos centros mais vivos e
importantes do cenário cultural mundial.
Neste contexto cultural destacava-se a ópera, com suas variantes
musicais populares que difundiam, através de suas narrativas, diversos
estereótipos sobre a mulher, que destacavam aspectos frívolos,
maliciosos e sexuais as colocando como em situação precária e
sobretudo frágil (BERTIN, 1990).
A realidade porém revelava as duras condições das mulheres que para
poder trabalhar tinham que se submeter a trabalhos de serviçais para
a crescente família burguesa, com uma baixa remuneração (BERTIN,
1990).
É no contexto da Belle Époque europeia e da Viena fin-de-siècle, com
alguns elementos filosóficos e literários precedentes que Freud irá
compor a Psicanálise, e aqui podemos listar alguns como: Shopenhauer,
Hegel, Mill, Aristóteles, Kant, Darwin, Le Bon, Charcot, Breuer,
Helmultz, Shakespeare, Sófocles, Cervantes, Schntzler entre outros
personagens importantes que figuram direta e indiretamente na obra
freudiana.
Este é o tempo da formulação e concepção da teoria, um crepúsculo
político, uma crise econômica mundial, guerras por independências
coloniais e duas grandes guerras mundiais. Será que conseguimos
encontrar semelhança suficiente para repetirmos rigorosamente os
diagnósticos freudianos dessa Viena do século passado e hoje aqui,
abaixo do Equador, em um país colonizado e de organização
escravagista?
Não há aqui nenhuma intenção de apontar contra a Psicanálise mas
seria hoje, necessária outras formulações dentro do campo da
Psicanálise?

No campo das relações intersubjetivas as transformações também


ocorreram de forma vertiginosa. Se a principal formulação conceitual
que pressupõe a estruturação do aparelho psíquico em Freud e depois
do sujeito em Lacan, estão assentadas no mito edípico, que em sua
formulação reconhece e necessita de uma ordem patriarcal para ter
um bom funcionamento. Ordem esta que pressupõe como nos mostra
Roudinesco e Plon (1998), que o “patriarcado” é um sistema político-
jurídico onde a autoridade e o direito sobre os bens e as pessoas se
concentram nas mãos do homem que também se ocupam da posição
do pai fundador. Em outros termos, o patriarcado presume poderes
desiguais e uma hierarquia entre o pai e os outros membros da família.
Esta ordem tem sofrido abalos significativos, nas últimas décadas, a
partir de mudanças no território da sexualidade, de movimentos sociais
feministas que contestam com ímpeto a dominação masculina e a
autoridade paterna.
O campo da sexualidade promove uma verdadeira “revolução dos
costumes sexuais”, com desdobramentos sobre a moral sexual que se
pressupunha civilizada ao preconizar um único modelo sexual (hetero)
como normal para o humano, e que colocava todas as outras
possibilidades no campo da perversão psicopatológica e da
criminalidade.
O movimento feminista reivindica para as mulheres o direito de gerir o
seu próprio corpo, com a exigência de sejam feitas mudanças que
possibilitem que o controle seja de cada um e não um controle do
estado, via discurso e solicitação machista.
“Denuncia da mesma forma a violência simbólica que faz de seu sexo
um objeto desvalorizado. Reivindica a autodeterminação quanto ao
exercício da sexualidade, da procriação, da contracepção. Reivindica,
também, o direito à informação e ao acesso a métodos contraceptivos
seguros, masculinos e femininos. Propõe, principalmente, que o
exercício da sexualidade se desvincule da função biológica de
reprodução, exigindo dessa forma o direito ao prazer sexual e à livre
opção pela maternidade.” (ALVES, PITANGUY ,1985 p.60/61).
A concepção dos bebês, outrora imaculada, passa a ser objeto de
debates e de disputa, até chegar aos nossos dias com a quase total
emancipação do corpo feminino desta tarefa de procriar. O avanço da
ciência e o advento do anticoncepcional legitimou a luta feminista de
separação entre sexo e reprodução, erotismo e maternidade, cunhando
o conceito de direito reprodutivo.
Esta luta feminista instituiu conquistas como: escolarização da mulher;
entrada da mulher no mercado de trabalho; separação entre
sexualidade e reprodução; A crise da forma burguesa de família com
surgimento de novos arranjos familiares (famílias recompostas,
monoparentais, anaparentais, homoafetivas, eudemonista ...) que
contribuíram para desencadear mudanças importantes no território das
sexualidades e, ainda as políticas de visibilidade para as
homosexualidades bem como a mudança de sexo das identidades
trans.
Todos esses fenômenos apontados aqui, provocaram uma crise nas
referências simbólicas organizadoras da sociedade moderna,
principalmente a partir do deslocamento das fronteiras homem-público
e mulher-privado, configurando um novo território para pensar as
sexualidades. (ÁRAN, 2006, p. 17).
Com as crescentes reivindicações feministas e produções significativas
no campo da cultura e da ciência sendo realizada por mulheres, as
vozes alcançaram destaque e criaram lugares que não existiam
anteriormente na cultura. Com Simone de Beauvoir insistindo no papel
do social na construção do gênero “Não se nasce mulher, torna-se”,
novas e diversas produções foram sendo formuladas, e não cessam
ainda hoje, contra a ordem de espoliação de direitos e abusos violentos
culturais diversos contra as mulheres. Nessa perspectiva, o gênero
passa a ser reconhecido como uma construção social. “Assim, a
unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção que
abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo” (BUTLER,
2003, p. 24).
Como reflexo dessas transformações, Lanz (2015) afirma que no
mundo atual, tornou-se uma tarefa complexa distinguir-se um homem
de uma mulher com segurança e exatidão. Grandes discursos de uma
lógica binária identitária - homem e mulher ou masculino e feminino-
que por muito tempo foram predominantes na sociedade, aparentam
estar nos seus derradeiros dias. ‘Identidade de gênero, papéis de
gênero e estereótipos de gênero, que até pouco tempo eram sólidas e
inequívocas referências da categoria de gênero de uma pessoa,
entraram em franco colapso” (LANZ, 2015, p.29)
A contemporaneidade, com todas estas transformações, parece
funcionar em uma lógica que diverge da que Freud e Lacan tiveram
como modelo para formular os conceitos iniciais da psicanálise.
E é sob as contribuições e construções teóricas freudianas e lacanianas
que estão formuladas as bases de todo trabalho clínico analítico.
Servindo-se da importação dos diagnósticos psiquiátricos e até
neurológicos, utilizando uma mesma nomenclatura para designar tipos
clínicos, a prática analítica produziu um repertorio de ações que
necessita das chaves diagnosticas para orientar a direção de sua
prática e para a elaboração de suas interpretações clínicas. Apesar de
haver um certo distanciamento, poderíamos aproximar as
classificações nosográficas em Psiquiatria do que é considerado hoje
como os tipos clínicos utilizados em Psicanálise para definir a
estruturação dos sujeitos.
Encontramos na literatura psicanalítica, variados exemplos que
apontam para a necessidade de estabelecer um diagnostico estrutural
nas primeiras entrevistas, como forma de orientação do trabalho de
escuta do sujeito. Esta escuta orientada, é a marca de uma surdez
analítica que não reconhece as nuances e as diferenças que se
apresentam nos discursos dos sujeitos. Variações que foram sendo
construídas na cultura a partir de todas as transformações que ainda
sequer foram reconhecidas por grande parte do discurso psicanalítico.

Mesmo as versões recorrentes de uma classificação


psicopatológica como o DSM vem produzindo transformações variadas,
que pretende abarcar e compreender as diferenças produzidas pela
cultura no adoecimento, este processo tem levado a cada vez mais
alargar e criar novas categorias, e que vislumbra mesmo, a
impossibilidade da própria classificação, visto as inúmeras criticas que
vem recebendo a sua ultima versão, que descontenta muitos
profissionais. Esta diversidade pode gerar, como vem acontecendo em
outros campos da ciência, o reconhecimento da singularidade, como
condição de cada sujeito, e a possibilidade de podermos contar com
uma necessidade de escuta sem uma pré-classificaçao e ou conduta
predeterminada de ações clínicas, abrindo-se para o inédito e revelador
do sujeito.

Nossas indagações: Seria aceitável em nome de um diagnóstico


reduzir, enquadrar ou até mesmo adequar esse sujeito de hoje a
categorias relacionais diagnósticas do século passado? A que outro
lugar se deve apontar a escuta do psicanalista que não ao lugar de
onde fala o sujeito? E ainda, como imaginar que todas essas mudanças,
que trouxemos aqui, do lugar do feminino, ainda nos permitiria hoje
pensar uma psicanálise com apenas um sexo (levando em conta que
em algum tempo foi)? Ou ainda em um sexo anatômico que
determinasse a hierarquização dos sujeitos?

As respostas dessas questões juntam-se a uma exigência de nova


leitura ética da psicanálise agora em “choque” ou desencontro com as
novas organizações culturais e morais do nosso tempo.

Em um de seus últimos seminários, o seminário 23, dialogando com


Joyce, Lacan pressupõe o inconsciente por meio da articulação entre
as dimensões do Real, do Simbólico e do Imaginário como um nó
borromeu que se entrelaçam com um novo elo, o sinthoma, que produz
uma nova consistência ao no anteriormente feito a 3, “esse quarto
termo, sobre o qual quis simplesmente lhes mostrar hoje que ele é
essencial ao nó borromeano” (LACAN, 1975-1976/2005, p. 38)
Assim, tomamos este Seminário de Lacan, “O sinthoma” (sintoma com
th), que entendemos previamente não tratar, essa formulação
lacaniana, de: um resto de sintoma edípico não analisado, ou ainda,
de uma nova apresentação do Nome-do-Pai. Nossa leitura sustenta que
este quarto elemento apresenta uma nova possibilidade analítica ao
inserir, na estruturação do no um elemento que precisa ser criado à
feição do sujeito, com seus “instrumentos” historicamente construídos.

Este Sinthoma é uma nova produção do sujeito, inventada por esse,


uma invenção singular, que não pode ser previamente manufaturada
por não haver modelos disponíveis em nenhum arcabouço teórico. Ele
será construído pelo sujeito para dar consistência aos seus registros do
Real, Imaginário e Simbólico.

Ele não é uma invenção que vem remediar o que alguns leitores
apontam como um déficit em Joyce, ou seja a foraclusão do Nome-do-
Pai em uma psicose não deflagrada. Ele é a construção que Joyce faz
para lidar com o que ele é enquanto sujeito. Sua solução literária,
única, é um exemplo máximo de toda a singularidade, que deve ser
estendida a todo o sujeito em suas produções, mesmo que elas
pareçam ser ordinárias e corriqueiras. As criações originais de cada um
em seus contextos de ação podem ser o resultado de uma solução
sinthomática. Haroldo de Campos nos dizia que a melhor tradução para
este significante, para preservar a homofonia presente no idioma
francês, seria Sinthomem, o que nos dá maiores condições para
sustentar nossa posição frente a este conceito.

Lacan nos últimos seminários nos abre uma perspectiva de tratarmos


estas questões postulando um sujeito capaz de inventar uma nova
forma de fazer na relação com o outro e com seu desejo sustentado
em um saber que lhe pertence e que é constituído pela sua
interpretação de tudo aquilo que se oferece a ele. Este sujeito que
está para além das sobredeterminações estruturais do Édipo, que
pode, até mesmo, não tê-lo como referente estrutural, excede os
contornos possíveis das categorias estruturais pré-estabelecidas, e
abre a possibilidade de lidarmos com uma nosografia tão diversificada
que nos aproximaria dos index psiquiátricos classificatórios. Nos resta
porém, e esta é a nossa posição, o caminho de fundamentar uma
psicanálise sob os princípios, que inclusive já estão em grande parte
supostos, da singularidade do sujeito, sem ter que inscrevê-lo em
subgrupos classificatórios.
Ao reconhecermos a queda do pai, e também do significante Nome-do-
Pai, que fracassa e falha, não apenas em uma possível psicose, nossa
leitura vê aqui o momento de invenção do sujeito, a invenção de um
quarto elo que passe a dar consistência ao registro de suas
experiências, tendo como invenção a nova organização de seus meios,
de sua herança, o produto de seu saber-fazer, de sua arte como artesão
que é, a invenção do novo, frente aos riscos do reconhecido.

Sustentamos assim, que em uma análise, esse sujeito torna-se


inventor de uma saída para sua vida, inventor do seu sinthoma. Esta
invenção não pode ser adjetivada de boa ou má por parte do analista,
ela é um resultado singular, potente e que pode sempre ser revisitado,
retomado, e refeito, pois nos lugares de produto, produção e produtor
haverá sempre o sujeito!

O sinthoma produto do saber-fazer desse sujeito, também restaria


marcado, mas marcado com “algo de si”, com sua verdade, verdade
essa que não seria mais a do sintoma que o classifica e o alinha nas
fileiras indiferenciadas dos manuais, e sim no sinthoma como forma de
vira a ser!
Trabalhamos no nosso grupo sob uma nomenclatura de Psicanálise
Pós-Edipiana, que já aponta para uma diferença significativa dentro
do campo psicanalítico, com a perspectiva de estarmos lidando com
um tempo pós-edipiano. Este outro tempo não implica numa total
substituição do tempo edípico, mas sim no reconhecimento de que
podemos falar de outras formas de inscrição e estruturação do sujeito
que não estão submetidas ao universal edipiano.
Abrir esta possibilidade dentro do discurso psicanalítico não o faz
menor, e muito menos o coloca em risco frente a outras modalidades
de pensamento, mas sim o torna mais complexo em sua leitura do
contexto cultural que vivemos, assim como fora no tempo de Freud e
de Lacan ao formular e reformular a Psicanalise no espirito de suas
épocas.
Não se trata, porém, de ir contra a Psicanálise, mas sim de fazer com
ela uma leitura do que se apresenta na cultura e na clínica hoje e que
é distinto daquilo que se apresentava no momento de sua construção.

Nosso trabalho se inscreve na direção de fundamentar uma


Psicanálise que reconhece a diversidade das condições estruturais a
ponto de torná-la singular.

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