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A cultura do livro na Hungria

eEuropaCentralnaépoca
moderna (séculos XIX.XIX)
f'rédéricllarbier

A experiência me provou que a sabedoria se vende e se compra, como as outras


coisas. Na Europa, quanto mais se gasta, mais se aprende ]...]. Precisamos, ami-
go, de livros; precisamos de professores particulares, a quem devemos pagar;
precisamos da sociedade dos homens sábios, mais necessária, talvez, que a
própria leitura, e, para gozar. é preciso cultiva-la e rega-la com pequenos pre-
sentes. E o que falta ainda...? (Coral, Cartas /.../ ao 'protopsa/te" de Esm/rna,25
de dezembro de 1783).

O tema que me proponho abordar aqui é evidentemente demasiado vasto


para poder ser tratado apenassob a forma de uma introdução muito rápida:
limitar:me-ei, então, em insistir em alguns pontos que me parecem particular-
mente significativos, de uma história, em muitos aspectos semelhante à nos-
sa, na Europa do Oeste e, no entanto, fundamentalmente diferente. A Europa
ocidental redescobre atualmente o que poderíamos chamar "a outra Europa",'
esta Europapor tanto tempo fechada atrás da cortina de ferro e da qual nós
hoje começamos a nos perguntar onde estão suas fronteiras "naturais". O his-
toriador,e o historiadordo livro, têm com certeza,algumacoisaa dizer a
este respeito, para ajudar a melhorar o conhecimento de lógicas e fenómenos,

1 0 ano de 2002 foi, por exemplo, o 'Ano húngaro' na ltália e o 'Ano tcheco' na trança,
e foi tambémo ano do bicentenárioda fundação do MuseuNacional da Hungria, com a sua
biblioteca.

li4ãtcfiãl coq'l direitas at.itora


1« A cultura do livro tia Fluttgria e Europa Central na época tttoderna

durante muito tempo completamente ocultos, a ponto de terem praticamente


desaparecido da memória coletiva.2

ESPAÇOS

Uma geografia complexa e pouco favorável ao livro


Mas, primeiro, de que estamos a falar? O próprio conceito de Europa cen-
tral e oriental aparece vago e difícil de delimitar -- a ponto de ter suscitado, na
linguagem tecnocrática de Bruxelas, a apelação de "PECO" como abreviação
desses"países da Europa central e oriental", sem maiores precisões. Prefiro fa-
zer aqui referência à fórmula de Ellas Canetti quando se lembra da sua infância
em Roustchouk (Rude),sobre o Danúbio, antes de 1914:

Como cidade portuária sobre o Danúbio, Roustschouk tinha uma certa importância
no passado. O porto atraía gente de todos os lugares, falava-se sempre clo Danúbio
[...]. Quando a]guém subia o Danúbio indo para Viena, dizia-se: vai à Europa; a
Europacomeçava lá onde temlinava, em outros tempos,o Imperio Otomano...3

Canetti não tinha como prever o futuro e imaginar a Europa cortada de


novo em duas partes pela cortina de ferro, mais a Oeste desta vez
À primeira observação, trata-se de um espaço muito complexo, entre as
costas do Báltico, as do Adriático e as do mar Egeu. Esteespaço constitui um
duplo istmo: da costa báltica (Danzig) às do Adriático (Veneza), contam-se al-
guns mil quilómetros, e um pouco além do Báltico (antiga Prússiaoriental) até
a foz do Dniepr, no mar de Azov e do mar Negro. O mapa que abre um atlas
histórico húngaro recente' põe em evidência a coerência de um conjunto geo-
gráfico ainda um pouco confuso para o historiador "ocidental" e sublinha um
ponto essencial: trata-se de um conjunto de países, no caso deste mapa, des-
crevendo a situação em 1750, que são bloqueados entre os principais Estados
ocidentais (sobretudo os países alemães, mas também a ltália) e os dois blocos
orientais, dos eslavos (o Império Russo)e dos turcos (o Império Otomano).
Este espaço é antes de tudo um espaço continental,s atravessado por
grandes rotas de passagem, mas também um espaço cuja geografia física é

2 A estupeíação diante da separação da Tchecoslováquia ou do começo da guerra na lugoslávia


deu um testemunho trágico dessesdesconhecimentos.
3 Nisto;re d'unejeunesse. Trad. ír. Pãris:Le Livre de Poche, 1980, p. 9 e 10.
4 Kóz(es-Eurt5pa,J763-1993. Budapcst: Osiris Kiadó, 1997, mapa n. l.
5 Át/as of Centra/ Europe. Balatoníüred, Budapest: Society oí St-StevenPüski, reimpresso em
1993, P. 15. '

t.4ateiial com direitos autorais


Fréderic Barbier 185

extremamente
heterogênea.
A declinaçãoem latitude vai de 70' de latitude
Norte (costa norte da Finlândia) a 35' aproximadamente, na altura de Creta.
As condições climáticas são aquelas de um país continental; ao Norte, com
o Báltico, mar fechado e frio e, ao Sul, reforçadas pela disposição do relevo,
especialmente em volta do Mediterrâneo e do Egeu. O sistema fluvial é orien-
tado em quatro direções diferentes.

. Para o Oeste e para o mar do Norte, é a bacia do Elba e seus afluentes, espe-
cialmente o Moldau (Vlatava).Toda a geografia da Boêmia faz, de fato, parte da
geografia ocidental e, além disso, o reino constitui o principal eleitorado laico
do Santo Império.
9 Parao Norte, é o sistemado Báltico principalmente com o Oder oVístula (em
Varsóvia e Cracóvía) e o Niémen. Estamos aqui no interior das cidades hanseá-
ticas da costa báltica (com Danzíg) ou, ainda mais no interior das grandes rotas
comerciais por terra, de Frankíurte Nuremberga Leipzi& Cracóvia, Lemberg
(Lvov)e a planície russo-ucraniana(Kiev).
e O sistema principal da Europa central é, com toda evidência, o do mar Negro:
o Dniepr drenaas imensasplaníciesda Ucrâniae da Rússia(Kiev.Smolensk),o
gigantesco sistema do Danúbio designa de fato um conjunto geográfico próprio
--a Europadanubiana.'
' E, para terminal. um certo número de cursosd'água. de menor importância,
que desembocamno Mediterrâneoou no mar Egeu.

Trata-se, então, de um bloco central e três orientações maiores, segundo


o ponto de vista, para o Norte, para o Leste ou para o Mediterrâneo. Estaopo-
sição é confirmada pela distribuição das grandes massasde relevo que fazem
ressaltartrês conjuntos principais: ao Norte, as grandesplanícies, as da Europa
do Norte às planícies russase ucranianas até o mar Negro; no centro, o arco
dos Cárpatos separa a bacia correspondente ao curso do Danúbio médio e de
seu principal afluente, o Hsza (Theiss): o coração é constituído pela grande
planície húngara (a puszta), cercada por conjuntos de colinas ao Oeste e so-
bretudo ao Leste (a Transilvânia);por último, o relevo dos paísesdo Adriático
e do Egeuse caracterizam pela sua extrema complexidade e pelo seu caráter
compartimentado. Algumas dezenas de quilómetros além de Rijeka (Fiume),
não estamosmais no sistemahidrográfico do Adriático, mas no do Danúbio. O
papel dos transportes marítimos (a cabotagem) são os mais beneficiados.
Um último elementoe de muita importânciaparaa história do livro: es-
tamos não somente diante de um conjunto de regiões que são, em regra geral,
muito pouco povoadas, mas sobretudo caracterizadas pelas escassasredes ul'
banas. Alguns centros maiores, como as cidades do Báltico (Stettin/Szczecín,

6 Nos títulos das obras, como por exemplo: BÉRANGER,Jean. [ex/que hístor/que de /'furope
danubfenne. Pãris;Armand Colin, 1976; MAGRAS,Claudio. Danube. Trad. fr. fhris: L'Arpenteur,
1988

:eliai com dilectos autorais


186 A culttlra do livro na Hungria e Europa Centra! na época moderna

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aquisições.1648.89

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aquisições.t772-180S

#W limpe do Sacro Impóíio Romano, 178B

fronteira militar

Alias da História do Mundo. São Pau\o. folha de São nulo/ The Tomes,1995,
P.193.

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Fréderic Barbier 187

Danzig/Gdansk, Kõnigsberg/Kaliningrad, Rega.Tallin/Rival, São Petersburgo),


os grandes centros do interior. como Breslau (Wroclaw), Cracóvia, Lemberg,
Praga(a Boêmia e a Morávia são mais urbanizadas), Pest,enfim, as cidades das
grandes rotas comerciais para Constantinopla e as costas. Nuasnada compa-
rável, com exceção da Boêmia, às redes urbanas da Europa ocidental, e uma
escassezgeral de cidades de média importância que se combina com um certo
atraso sócio-político: essascidades são cidades de etapa, mercados para os
rincões circundantes, as atividades secundárias e terciárias são minoritárias, os
capitais disponíveis, em geral, insuficientes. Enfim, são, com frequência, po-
voadas na maioria por germanófonos, e a oposição em relação ao campo tor-
na-se ainda mais sensível. Poucas cidades, poucas estudas e pontes. As pistas
são para as caravanas, as pontes inexistentes (o Danúbio...), os deslocamentos
longos e aventurosos, às vezes mesmo perigosos, como quando o conde de
Choiseul volta da Grécia à Françanos anos 1780. A travessiada Ásia menor
tinha sido bem difícil, e no entanto:

essaparte da minha viagem me parece mais um passeio agradável, comparado


a todas as misérias reunidas que sofri alguns meses depois na Alta Grécia e na
estrada de Satânica a Spalatro pela Sérvia, a Bósnia e a Moralcquia...z

O clichê é recorrente,assimcomo a referênciaà lama onipresenteem


todos os relatos relativos à Europa central e oriental, à Rússia e à Turquia.
Outro viajante na Grécia, Bartholdy, no começo do século XIX, sublinha com
humor:

Em geral, as viagens no Levante não podem deixar de ser cada vez mais confor-
táveis e é de se prever que algum especulador, estrangeiro ou indígena, terá a
idéia de estabelecer ali boas pousadas. Mas haveremos de esperar mais algum
tempo para termos estudas para carruagens...õ

Poucasou nenhuma cidade, de populações relativamente improdutivas,


uma predominância esmagadorado setor agrícola: em regra geral, as condi-
ções são medíocresou mesmo ruins no que se refere à economia do livro,
manuscrito ou impresso Na época moderna, poucas tipografias e ainda menos
livrarias: o comércio de livros se faz nas feiras (Senigallia, na costa do Adriático,

7 Sobre esta viagem, ver BARBIER,Frédéric. [e Uoyagep/ttoresque de /a Grêce, par ]e comte de


Choiseu\-Goutfier. In: Hellénisme et hippocratisme dana I'Europe méditerranéenne: autour de D.
Coral. Montpellier: Université Ihul Valéry, 2000, p. 222-64. 'A Morláquia é um pequeno país da
Europa 1...1entre a Dalmácia e a Croácia, de 155 km aproximadamente sobre 39 1...1.Carlopago
e Zen8g são os principais centros" (Z)ic. un/v. de b/stória e 8eograf á, 11,1228).
8 BARTHOLI)\l, J. L. Voyageen Grêce Éa/tdons /es années 1803 e 1804.... Trad. do alemão.
Ihris: Dentu, 1807, 2 v. (Vol. 1,p. 35).

N4aietialcorri direitos autorais


188 A cultura do livro tia Hungria e Europa Central na época moderna

controla uma parte do comércio da península balcânica) e pelos comerciantes


"de generalidades" (Gemischwarenhãndler) ou vendedores ambulantes, sendo
que o papel dos viajantes e dos estudantes vindos "da Europa" é absolutamen-
te considerável. Em 1788, Adamantos Corais segue de Esmírnaa IMontpellier e
Pãríspara continuar seus estudos de medicina e depois de filosofia. Chegando
em Pârisem 1788, escreve, em 15 de setembro:

Imaginem uma cidade maior que Constantinopla, com 800.000 habitantes, uma
multidão de academias diversas, uma quantidade enorme de bibliotecas públi-
cas, todas as ciências e as artes na perfeição, uma multidão de homens eruditos
espalhadospor toda a cidade, nas praças públicas, nos mercados, nos cafés,
onde encontramos todas as novidades políticas e literárias, jornais em alemão,
inglês, francês, numa só palavra, em todas as línguas [...]. Acrescentem a isso
uma multidão de transeuntes, outra multidão de carros e correndo por todos os
lados [...], ta] é a cidade de Pãris]...

Eem l ' de julho de 1790

Já viram alguma vez um operário trabalhar sem suas ferramentas?E pensam que
os quatrocentos ou quinhentos volumes que mal existem em Esmirna (e ainda
em grego) me podem ser suficientes para obter a matéria necessáriapara meu
livro? Aqui, além da biblioteca do juiz IClavierl onde vivo, tenho tambémVillos-
son e dois outros eruditos, cujas bibliotecas têm oito ou dez mil volumes cada
uma. E se em tudo isso não encontrar o livro que preciso, tenho a permissão de
consultar na Biblioteca Real que possui 350.000 volumes...s

Parao nossomédico e filósofo, como para muitos membrosda diáspora


helênica da segunda metade do século XVlll, integrar-seà modernidade oci-
dental é antes de tudo apropriar-se dum certo campo conceptual (as "luzes"),
mastambém aderir a um projeto "político" em vias de redefinição e, em defini-
tivo, integrar-se às redes do livro e do impresso, dominados precisamente pelo
Ocidente.'' Sabe-setambém do exemplo do comerciante loannís Príngosque,
em 1762, expede oitocentos volumes de Amsterdã com destino a Zagora, sua
terra natal, perto de Votos (Thessaliaoriental), com o seguinte comentário:

9 lettres de Cbray au profopsa/le de 5myrne Dim/trios latos... Ed. Mis de Queux de Saint-Hilai-
re. Pâris:Firmin-Didot,1880.
10 BARBIER,Frédéric. L'impérialismecommunicationnel: le commercce culturel des nations
autour de la Méditerranée aux époques moderne et contemporaine. Posfácio em vias de edição
nos Áctes do colóquio de Montpellier ([e Gommerce cu/fure/ en Médíterranée aux époques mo-
derna et contempora/ne, dir. Henri Michel).

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Fréderic Barbier 189

A imprensa é uma bela coisa. Ela tornou os livros mais baratos, de modo que o
homem comum pode também compra-]os [...]. A ]eitura abre os o]hos do feitor
e faz dele um homem consciente...ti

Às margensda romaneidade
Abordemos agora a problemática propriamente histórica. Sob este ponto
de vista também dois conjuntos radicalmente diferentesse opõem na nossa
geografia, reagrupando em boa parte a oposição precedentemente assinalada:
dum lado, encontramosos territórios onde se desenvolveramas grandescivi-
lizações da Antigüidade greco-romana. O espaço é o da própria Grécia, no
sentido geográfico do termo (Grécia continental, ilhas do Egeu, cidades gregas
da Ásia menor), mas também toda uma plêiade de feitorias e de colónias atra-
vés do Mediterrâneo e do mar Negro: ou seja, uma geografia ao mesmo tempo
comercial, linguística e cultural, cujo sistema será, em certa medida, retomado
por Veneza e suas "escalas". Estageografia grega antiga cobre parte do Impé-
rio Bizantino, como cobre também uma parte da cristandade primitiva.'2 A
dominação romana alarga e estrutura este conjunto orientando-o mais para o
interior das terras. Uma das grandes vias do Império Romano é a v/a Egnatla,
que, ligando Durazzo/Durrês (Dyrrachium) a Salõnica, constitui um segmento
do grande itinerário por terra entre ltália e Constantinopla: de maneira lógica,
esta rota assisteao nascimento de algumas das comunidades cristãs mais anti-
gas, como, por exemplo, ao redor d'Ohrid (Ochrida).''
O outro bloco espacial se situa mais além do//mes(zona fronteira de uma
província do Império Romano), ou seja, às margens ou fora da romaneidade
-- da Remam/a.Durante o período de sua maior extensão, o império se fixou
sobre o Reno e o Danúbio, com as cidades de Vindobona (Viena), Aquincum
(Obuda), Sirmium etc. -- só a província da Dácia foi ocupada por um tempo
durável, em bloco. Mais além, entramos no mundo dos povos nâmades, vindos
sucessivamentedo Leste,e que são ao mesmo tempo povos não cristianizados
e sem escrita, dito de outra maneira, povos da pré-história. Trata-se primeira-
mente de diferentes tribos germânicas (especialmente os godos, mas também,
mais ao Oeste, os burgondes, os marcomanos etc.), depois os eslavos, as tribos
fino-húngaras, os hunos e os mongóis, sem esquecer os turcos.

11 É de supor que a biblioteca ainda exista e conserva um exemplar da //foda de 1542.


12 Cujos grandesconcílios têm lugar na própria Constantinopla nas suasproximidades, Calce-
dónia(Kadikõi) e Nicéa(lznik).
13 BARBIER, Frédéric. Encore les réseaux? La péninsule balkanique revisitée. In: les entrepr;ses
et /eu/s réseaux; hommes, cap/taux, techn;quemet pouvoin, X/X'-XX' sfêc/es IMélanges François
Caron]. Pãris:Pressesde I'Université de fhris-Sorbonne. 1998. p. 297-310.

Material com dilectos at.itor8


190 A cultura do livro na Hungria e Europa Central na época moderpta

Povos,línguas,religiões
A diversidade etnolingüística é uma das principais características dum es-
paço que não foi inteiramente reestruturado pela ocupação romana -- contra-
riamente ao que aconteceu mais a Oeste. Logo, o pertencimento a uma ou outra
etnia torna-se o desafia maior e os mapas especializados povoam os atlas desde
o século XIX: no antigo reino da Hungria, tende-se a identificar e localizar preci-
samente os próprios húngaros, mas também os alemães, os romenos, os croatas,
os servos, os vendes, os eslovacos, os rutenes e os ciganos, sem esquecer os
judeus... A descrição de Routschouk feita por Canetti nas vésperasda Guerra de
191 4 é das mais esclarecedoras-- lembre-se que Canetti faz parte de uma famí-
lia de judeus antigamente emigrados da Espanha depois da Reconquista(1492):

Gente de origens diversas viviam lá, e podia-se ouvir falar sete ou oito línguas
diferentes no mesmo dia. Com exceção dos búlgaros, o mais íreqiiente, vindos
do campo, havia muitos turcos, que viviam num bairro próprio, e, bem ao lado,
o bairro dos sefarditas espanhóis, o nosso. Encontrávamos gregos, albaneses,
armênios, ciganos. Os romenos vinham do outro dado do Danúbio ]...]. Havia
também russos,embora muito poucos...t'

A definição étnica baseia-seprimeiro na língua falada, mesmo se, em


certo nível social, dominam-se em geral várias línguas e que certas línguas oci-
dentais desempenham as funções de /agua âra/lca em um ou outro conjunto
de territórios -- o alemão no Norte e Leste, o italiano no Sul.
Mas a identificação se faz também num segundograu, por meio da con-
fissão como o texto de Canetti põe em evidência. Na origem, dois mundos
se opõem: a Antigüidade pagã e a cristandade primitiva do Oriente Médio
IPâlestina, Evito, Ária Menor, Grécia). Com o desaparecimento do Império Ro-
mano do Ocidente, a cristandade é praticamente assimilada ao novo Império
do Oriente, o Império de Bizâncio. Em 324, Constantino escolhe Bizâncio
como sua capital, a maior parte dos imperadores é doravante cristã e a queda
de Romã (476) coloca Constantinopla na continuidade direta da Antigüidade.
No século v.sob Justino e Teodora,Constantinopla é a capital do mundo civiliz-
ado. Portanto, a ascensãoao poder no Ocidente duma nova dinastia imperial,
a dos Carolíngios, apóia-se justamente no reconhecimento do bispo de Romã
como chefe da Igreja cristã.
A ruptura entre Romã e Constantinopla será consumida com o cisma de
1054, e será então a Igreja grega ortodoxa quem cristianizará uma parte dos
povos da Europa central e oriental: sérvios, macedónios, búlgaros, ucranianos
e russos.A Igreja romana avança da Germânia, cristianizada nos séculosVlll e

14 0P. cit., P. 9

tdatetial com dti-Citas âi.ttor&is


Fréderic Barbier 191

IX, para o mundo eslavo: fundação dos bispados de missão, em Pâssaue Mag-
deburgo, e, mais tarde, o desenvolvimento das igrejas nacionais em torno das
novasmetrópoles de Praga,Gniezno/Gnesen (Polõnia)no ano 1000, de Eszter-
gom/Strigonia(Hungria)em 1001 e de Zagreb/Agram(Croácia)em 1093.tsA
criação das igrejas nacionais será logicamente interpretada, nos séculos XVll
e XVlll, como um elemento de demonstração de independência em relação à
antiga geografiado cristianismo: como o jesuíta Melchior Inchofer (caca 1585-
1648), que redige uma história da Igreja húngaraaliando-a ao próprio Santo
Estevão.A publicação da obra é, durante muito tempo, retardadapela Áus-
tria,'' assim como a vontade de criar uma Proa/nc/a hangar/ca independente
da Proa/nc/a austr/aca também não pôde se concretizar.
De imediato, com o cristianismo, é todo um complexo político-cultural
que se instala, segundoo modelo dos reinos ou principados da Europaociden-
tal: os príncipes são coroados pelo primaz, criam uma administração, mais tar'
de fundarão uma universidade, etc. Enfim. o historiador do livro deve destacar
o fato de que as diferentes escolhas religiosas são acompanhadas de escolhas
também diferentes de escrita: os latinos desenvolvem escrituras derivadas do
alfabeto romano, enquanto os ortodoxos adotam os alfabetos derivados do
grego e do primeiro alfabeto cirílico. A fronteira passa,principalmente, entre a
Croáciacatólica e a Sérviaortodoxa.
O avanço secular dos turcos muçulmanos transtorna essasprimeiras rela-
ções. O sultão esmagao imperador de Bizâncio em Manzikert, perto do lago
Van (1071) e apodera-se da maior parte da Ária Menor. Progressivamente,
os otomanos entram na Europa onde estabelecem sua capital em Andrinople
(Édirne),depois se apoderam de Constantinopla (1453), conquistam a Rou-
mélía (Grécia) e a Bulgária, submetem a Moldávia e a Valáquia, como prin-
cipados vassalos, e avançam nos Balkans, na Sérvia e na Bósnia, e, também,
no Mediterrâneo. Depois dos búlgaros, os húngaros são vencidos em Mohács
(1526), Buda torna-sesede dum paxá turco e o exército turco assediráViena
em 1683... As primeiras instituições culturais autónomas são destruídas,na
Hungria e na Transilvânia;seja como conseqüência da ocupação otomana,
seja, mais tarde, devido ao progresso da Reforma.i'
A sensibilidade religiosa reforça ainda a extrema complexidade de nossa
geografia: ao lado dos católicos'' e dos ortodoxos estão os hussitas na Boêmia,

] 5 furopas Milfe um l IOa. Ed.Alfred Wieczorek, Hans Martin Hinz. Stuttgart: Konrad üeiss
Verlag,2000.2 v.
] 6 INCHOFER, Melchior, S. 1. Ánna/es ecc/es/astic/rega/ Hangar/ae, /. Romã, 1644.
\ 7 Leschemins de I'edil: bouleversement de I'Est européen et migrations vensI'ouest à la fin du
MoyenÁge.Pãris:ArmandColin, 1992
18 CEVINS, Made-Madeleine de. ['Ég/]se dons/es v///©s congro/ses à /a #n c/u Moyen Áge (wrs
1320-vens
1490). Budapest/Ihris:Szeged/InstitutHongrois de Ihris, 2003 ('Dissertationes").

N4alenal cou dit-oitos 8UtOFãt


192 A cultura do livro na Hungria e Europa Centra! na época moderna

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f.material com direitos autorais


l;réderic Bart)ier 193

mas também os luteranos e os calvinistas na Hungria, assim como os unitaris-


tas (antitrinitários), sem esquecer as comunidades judaicas quantitativamente
muito importantes -- a maior sinagoga da Europa é a de Budapeste, no fim
do século XIX. Sobretudo, a partir do fim do século XVI e do XVll, encontra-se
uma geografia sistematicamente trabalhada pela Contra-Reforma organizada
especialmente a partir de Pragae da fortaleza jesuíta do K/emenf/num.''

Cidades,reinos e impérios
As identidades coletivas se apóiam primeiro sobre o duplo paradigma da
língua e da confissão. Várias construções mais ambiciosas tentam se impor
entretanto, de um período a outro, como elemento dominante. Limita-me a
mencionar o reino da Hungria, que domina a Europadanubiana no século
Xv. em concorrência, sobre as margens ocidentais, com a Boêmia. Mathias
Hunyadyi apossou-sede Viena e governa um conjunto reagrupandoa Hungria
atual, a Eslováquia, a Croácia, a Bósnia e a Transilvânia. Estaconstrução desa-
ba no começo do século XVI sob o avanço otomano e, desde então, a Hungria
é dividida em três blocos: no centro, a Hungria otomana, governada de Buda;
o Oeste, a Hungria dita "real", em torno de sua capital Pozsony/Presburg(Bra-
tislava), e que permanece nas mãos dos Habsburgo; para o Leste, a província
da Transilvânia, colocada sob a autoridade de um príncipe praticamente inde-
pendente que reside em Kronstadt (Bra;ov).:o É evidente que a tendência cada
vez mais sensívelserá,com a retirada dos otomanos,a subida ao poder dos
Habsburgo de Viena, que avançam progressivamente sobre o eixo do Danúbio
e nos Balkans -- até que o Congresso de Berlim, em 1878, lhes confie a "ad-
ministração provisória" da Bósnia-Herzégovina.2t
Ao Norte, duas outras concorrentes galgam o poder a partir da segunda
metade do século XVll, depois do fracassoda Suécia:de um lado, o Brande-
burgo-Prússia, do outro, o Império russo, simbolicamente aberto sol)re o Oci-
dente com a fundação de São Petersburgo por Pedro o Grande. É de ressaltar
que a Prússiaé sobretudo assimilada aos interessesprotestantes,Viena ao cato-
licismo da Contra-Reforma e São Petersburgo, evidentemente. à ortodoxia. No
século XVlll, a Polõnia desaparece, e a partir de então a partida se desenvolve

19 La cartographie et I'histoire socio-religieuse de I'Europe jusqu'à la íin du XVll' síêcle. Antes


du colloque de Varsovie (1971), Recue d'H/stoire fcc/ésüsdque, Louvam, 1974 ('Bibliothêque
de la R.H.E.",V).
20 RO'Tt\ER,Chr\s\ian. Siebenbürgen und der Buchdruck im 16. Jdert.Mit einer Bibliographie
'Sielnnbiirgen und der Buchdruck'. Wiesbaden: Harrassowitz, Verla& 2002 ('Buchewissen-
schaftliche Beitrãgeaus alem Deutschen Bucharchiv München', 71). Uma introdução geral é
também dada por zurze Geschcihte S/ebenbtrgens. Dir. Bela Kõpcczi. Budapest:Akadémiai
Kiadó, 1990.
2 1 ANCEL, J. Peup/escf naf/ons des Ba/karts. Pãris: CTHS, 1992.

Matina: coa d+teilos at,itor&i


194 /\ cultwa do !ivro na Hungria e Europa Central na época moderna

pela concorrência entre essastrês potências maiores, cada uma movimentan-


do seus peões segundo seus interesses,jogo cujo apogeu é alcançado no sé-
culo XIX, com o Congresso de Berlim (1878) e com os diferentes tratados que
liqüidam a situação dos impérios multinacionais depois da Primeira Guerra
Mundial (o Imperio de Áustria e o Império Otomano).
Uma história tão complexa se traduz, particularmente, para o historia-
dor, pela diversidade da toponímia, que supõe a disposição de instrumentos
especiais:22a maioria das localidades têm pelo menos dois nomes usuais, e às
vezes mais: húngaro, alemão e eslovaco, como Pozsony/Pressburg/Bratislava;
alemão e húngaro como Open/Pest;alemão, húngaro e romeno como Temes-
chburgaemesvár/TlmiÓora; turco e búlgaro como Üsküb/Skopje, etc

A ESCRITA E O LIVRO SOB O ANTIGO REGIME

A confissão, a língua, a estrutura política, a identidade coletiva: compre-


ende-se que a escrita, e depois, o impresso, se achem impregnados de uma
carga simbólica absolutamente considerável na geografia que nos interessa
aqui. As condições gerais apresentadassumariamente na primeira parte deter-
minam até o século XIX a evolução do "pequeno mundo do livro" na Europa
central e oriental. Proponho-meagora examinar as três grandesetapas que
caracterizam esse processo sob o Antigo Regime (entendido como antes da
industrialização), para passar, em seguida, ao período contemporâneo (século
XIX) e chegar a uma certa tipologia dos fenómenosque o historiador pode
observar.

Um modelo: A Hungria de Mathias Corvin


Deixemos de lado a história bizantina que, ela mesma, constitui um todo.
A cristianização dos séculos Vlll-XI assiste à entrada progressiva, na história,
das populações germânicas, depois, das eslavas, húngaras e escandinavas. Um
fenómeno marcante é a ascensãoao poder de um reino moderno no curso mé-
dio do Danúbio: com a dinastia de Anjou, a Hungria se abre, de fato, profun-
damente às influências ocidentais (sobretudo francesase italianas), abertura
particularmente sensível no campo da arquitetura (a arte gótica), mas também
no do manuscrito, da iluminura etc.23A dominação de Luís l de Anjou esten-

22 Particularmente BENCSIK, Peter. He/»égnévvá/fozások kõzfes-furópában / 763- / 995. Bu


dapest leleki László Alapitvány. 1997. O equivalente para o mundo otomano é dado por AK-
BAYAR,Nuri. Osman//)er admarísóz/[igi}.]stambu]:Ara]ik,2001. '
23 1'Europe des Adiou: avenlure (íesprlnces angevins du X/JF'au XV' siêc/e. Pbris: Somogy. 200 1
(p. 150 e seguintes, com uma vasta bibliografia complementar). '

tç4aietia! con: dl! citas autorais


Frédei ic Barbier 195

de-se além da Hungria str/cfo senso,o rei é também rei de Polõnia, e possui
as terras compreendidas entre a Moldávia e a Valáquia, a Sérvia, a Croácia e
a Eslovênia, sem esquecer o reino de Nápoles. A biblioteca real é assinalada,
desde então, pela sua grande riqueza.
Depois da queda dos Anjou, a luta com os otomanos se intensifica no
flanco sul do reino, luta conduzida por um chefe de guerra originário da atu-
al Romênia, JánosHumyadi. Esteganha em Nándorfehérvár(Belgrado),em
1456, uma vitória que assegurapor 50 anos a tranqüilidade da fronteira. Com
a morte de Hunyadi, o rei faz executar seu prímogênito e foge a Viena e Praga
com seu filho mais novo, Mátyás (Mathias), antes de morrer de peste. Mas
Mathias é eleito rei pela nobreza (1458-1490) em Pest, e fará do seu caste-
lo de Buda um dos centros da Renascençaeuropéia,ali reunindo a célebre
B/b//ofbecaCora/n;ana,assegurandoa posição da Hungria, não só face aos
turcos, mas também ao Império -- se apodera, durante um tempo, de Viena e
carrega os títulos de rei da Boêmia e duque da Áustria. Conhecemos o rei sob
sua alcunha de Mathias Corvin, sobrenome inspirado do pássaroemblemático
dos Hunyadi.24
Sabe-se pouco sobre as origens da /i/b#ofheca Córv'/n/ana:2s o primeiro
volume foi oferecido ao rei pelo potestadode Cesena,SigismondoMalatesta
em 1465,2ómesmo ano em que Janus Ihnnonius, bispo de Pécs,27chega a
Romã, de onde traz igualmente manuscritos. Seja através desse ou daquele
intermediário, seja diretamente, o rei passa a encomendar manuscritos em
Florência, sem dúvida ao grande livreiro Vespasianoda Bisticci. Outros espe-
cialistas também trabalham para ele, notadamente os Attavanti, mas também
os irmãos Gherardo e Monte di Giovanni. Progressivamenteuma ou várias
oficinas especializadas são organizadas em Buda, ao serviço da corte. A Bi-
blioteca compreende manuscritos de textos clássicos e científicos, mas poucos
textos religiosos.zõA primeira característica dos volumes reside na sua suntu-
osidade: beleza da caligrafia e da sua apresentação, perfeição da decoração e

24 HOENSCH. J. K. A,fafh/asCbrv/nus, Dip/ornar, Fe/(/heraund A'fazem.Graz, Wien, Kõln,


Bõhlau, 1998.
25 Artigo de apresentaçãode MIKÓ, Arpád. La nascitâdella biblioteca di Mattia Corvina e
il suo rublo nella rappresentazione del sovrano. In: Ne/ signo de/ corvo: #br/ e m/n/ature de//a
bib/foteca d/ IUaff;a Gorv/no. Modena: ll Bulino, 2002, p. 23-31 (dá nas notas uma bibliografia
complementar recente).
26 Arpád Mikó, art. cit., p. 26 e 30. Sobreos Malatestae suarelaçãocom o livro, uma muito
boa síntese íoi recentemente dada: /Wa/atestaNove/b, mag/lago s/gnore; arie e cu/fura dí um
prÁncÚn de/ R/nasc/mento. Ed. Pior Giorgio Pbsini. Bologna: Minerva Edizione, 2002 (especial-
mente p. 211 e seguintes, "La Biblioteca Malatesliana" e a bibliografia).
27 MAILLARD, j-F.;. KECSKEMÉTI, J.; PORTALIER, M. I'furope des human/ates (X/W-XV7/'
siêc/esJ.fbris: CNRSÉditions,2003, p. 246-7
28 Um Ad/ssa/ee um Breviário romano, copiados em Florença nos anos 1480-1490, as Ob/as
de SãoTomasde Aquillo, uma ZJlb/la,etc.

Matei lai coa direitos autoras


196 A cultura do !ivro na Hürtgria e Europa Centra! na época moderna

da ilustração. O pergaminho é tingido de azul, verde ou púrpura, a escritura é


feita em letras de ouro ou prata, as molduras iluminadas fazem da página um
tapete num estilo absolutamente característico do Renascimento, as letras or-
nadas e as miniaturas são de uma precisão extrema. Em compensação, a pró-
pria forma dos volumes mostra que a biblioteca serve mais como instrumento
ou símbolo de poder do que como verdadeira biblioteca de trabalho -- aliás,
ela só contém dois livros impressos...
Depois da morte de Mathias, seu único herdeiro é seu filho bastardo, Já-
nos, e o país entra logo num período de crise política intensa, acoplada a uma
crise social que opõe senhores e vassalos: as revoltas conduzidas por Gyõrgy
Dózsa são aniquiladas em 1514 pelo exército de János Zápolya, voivoda de
Transilvânia. Ao mesmo tempo, os turcos retomaram sua progressão, Nándor-
fehérvár cai em 1521 , enquanto Soliman reúne suas tropas para o ataque defi-
nitivo. Em 1526, o pequeno exército de Lajos ll é destruído em Mohács, o rei
é morto e, também, os arcebispos de Esztergom e de Kalocsa, cinco bispos e
um grande número de representantesda nobreza... Desde 1529 os turcos estão
diante deViana, em 1532 diante de Graz. Buda cai em 1541 e ficará ocupada
até 1686. A Biblioteca de Mathias já havia começado a ser dispersa durante os
distúrbios e desaparece completamente com a queda do castelo real.29
E importante ressaltarque, desde cedo, a B/b//othecaCora/n/anaadquiriu
um status simbólico excepcional. Quando os turcos ocuparam a maior parte
do antigo reino, o príncipe da Transilvâniase esforçaem se colocar como o
sucessordos Hunyadi contra os Habsburgo,e procura encontrar alguns dos
manuscritos prestigiosos para serem parte do seu tesouro. Muito mais tarde,
em 1877, o sultão Habdul Hammid ll devolve à Hungria 37 manuscritostra-
zidos de Constantinopla e hoje conservadosna Biblioteca da Universidade de
Budapeste. A B/b//otheca Gorv/n/ana é como o símbolo da própria Hungria
e seu deslocamentomarca o fracassoda brilhante tentativa de Mathias em
construir. em torno de Budapeste, um estado moderno segundo o modelo oci-
dental. Estefenómeno não se limita aos tempos mais remotos: desde 1802,"
mais ainda depois de 1867,'' e, até hoje, a reapropriação de uma história e de
uma cultura nacionais muito específicas se apóia sobre a atividade de edição

29 Hoje se conhecem 2 16 manuscritos claantiga colação dispersadapelo mundo, dos quais 39


estão na Hungria (Budapest), um número importante na ltália (15 cm Módena, outros em Pârma,
Romã,Volterra, Verona, Milão, Nápoles, e sobretudo em Veneza e Florença), mas também em
Viena e em Alemanha (Munique e Gõttingen, Erlangene sobretudo em Wolíenbüttel), na Polõnia
(Torun),e alguns na França e nos EstadosUnidos.
30 Data da fundação da Biblioteca Nacional da Hungria. Irra uma introdução geral, consul-
tar a obra comemorativa: 5chãfze der ungariscben Nar/ona/-B/b//ofhek. Budapest: Magyar Kõni-
vklub. 2002.
31 Data da assinaturado 'Compromisso" que institui a dupla monarquia da Áustria-Hungria.

It4aterial com d:!eixos autorais


Fréderic Barbier 197

e investigação desenvolvidas particularmente na esfera da Biblioteca Nacional


da Hungría.

Os começos da imprensa na Europa central e oriental


Depois de Gutemberg, em Mayence entre 1454 e 1455, e sobretudo
depois da tomada desta cidade por Adolphe de Nassau(1492), os primeiros
impressores que se estabeleceram pela Europa são na maioria alemães emi-
grados.32Graças a eles, a impressão ganha terreno bastante rapidamente nos
séculos XV e XVI, na Europa central, oriental e sul-.oriental, ainda que de forma
pontual.3' O impresso faz sua aparição na Boêmia (Pilsen) sob o reinado do rei
utraquista Georges de PodÂbrady (1458-1 471 ):" a cidade alemã de Bamberg,
onde a imprensa aparece precocemente, parece ter servido como interme-
diária para a transmissãoda tecnologia. Trinta e nove dos quarenta e quatro
incunábulos atualmente inventariados pela Boêmia são em língua checa: essa
relação estreita, evidentemente característica de um mercado relativamente li-
mitado, põe em evidência, entretanto, a grande expansãoda alfabetização em
país checo e, ao mesmotempo, o papel do livro em língua vulgar como fator
importante de identidade coletiva.3s
Enquanto Mathias Corvin organizava em Hungria um reino moderno,
um grupo de humanistas ativos ocupava-se paralelamente dos negócios. O
arcebispoJánosVitéz apóía a fundação da primeira universidadedo país em
Pozsony,3õe sabe-seque Johannes Regiomontanus ali ensina durante três anos
(1465-1468). Ao mesmo tempo, Lázló Karai, vice-chanceler do reino, é en-
viado como embaixador a Romã(1470): entrando em relaçõescom os huma-
nistasque gravitam em torno da imprensade Georg Lauer,de Ratisbonne,na

32 HAEBLER,Konrad.Die l)eutschen Buchdrucker des XU/ahrhunderts inoÁus/ande; München:


Verlag, jacques Rosenthal, 1924. Uma síntese recente sobre os começos da tipografia em carac-
teres móveis é dada por Gufemberg; Aventar und Kunst. Uon Gele/munternehmen zur crsten
Medfenrevo/ution. Mainz: VerIaS Hermann Sçhmidt, 2000.
33 NETO, Philippe. "Géographie des impressions européennes au XV' siàcle', a ser editado em
Le Berceau du livre: autour des incunables, revue française d'histoire du livre. Genebra: L\bTat\e
Droz, 2003.
34 A obra de referência para um panorama geral da história do livro nos países tchecos é: BO-
HATCOVÁ,Mirjam (Dir.).Õoskdkdha lo livro checol. Praga,1990. Seu autor principal, especia-
lista do século XVI, publicou em alemão, particularmente no Gutemberglahrbuch, mas também
em francês:Le livre et la Reformeen Bohêmeet en Moravie. In: GILMONT Jean-François(Dir.).
h reáormeef /e /ív/e. Ihris, 1990, p. 39341 6.
35 Note-se que a situação é diferente na Morávia onde, dos 23 incunábulos conhecidos, dois
são em alemão e os outros em latim.
36 CSAPODINÉ GÁRDONYI, K. l)/e Bib//othek des Johannes Wtéz. Budapest, 1984. Sobre a
história da imprensa na Hungria sob o Antigo Regime: ECSEDY.Judit V. Á Kõnyvnyomtatás Ma-
gyarországon a kézis4fó korában, /473- /800. Budapest: balssi, Kiadó, 1999.

f.materialcom direitos ât.itoíâi$


198 A cult.ura do livro )ia llungria e Europa (:ent.ral na época niodenta

qual trabalha Andréas Hess. Karai leva-o a Buda e o ajuda a abrir a primeira
oficina tipográfica húngara, em 1473.3' A nova técnica se implantará em Viena
somente em 1482, com a oficina de Stefan Koblinger." A oposição de Viena
parece se degradar, em certa medida, por volta do ano 1500, quando a derrota
da Hungria faz da capital dos Habsburgo quase uma cidade fronteira.
No Mediterrâneo,
a ltália desempenha
a funçãode interntediária,
en-
quanto o avanço otomano, marcado pela queda de Constantinopla(1453),
introduz por vários séculos uma barreira atravésde toda a Europa. Na costa
do Adriático, a imprensa aparece, num primeiro momento, apenasde maneira
muito esporádica, com oficinas ligadas a diferentes entidades religiosas: a pri-
meira oficina se estabelece em Kosinje em 1471 , a mais importante em Zengg
(Sem) em 1494,as mas trata-se de tentativas isoladas, consideravelmente atra-
palhados pela dificuldade de se obter as fontes topográficas necessáriaspara
a impressão da língua eslava: são utilizadas fontes gla8olíticas, sem dúvida
depois de terem sido desenhadas e gravadas cm Veneza (o primeiro 23rev/ár/o
de Zagreb, em caracteres cirílicos, é impresso por Ratdolt em Veneza em 1484,
sob encomenda do bispo Osvát).w
Quando o príncipe Steían Crnojevié, antigo aliado de Skanderbergcon-
tra Veneza, se estabeleceu em Cetinje, perto do lago de Scutari, o primeiro
principado de Montenegro (Crna Gora) começa a ser organizado. Conforme a
tradição, Crnojevié teria enviado o monge Makarius a Venera para aprender
a arte da impressãoe se abastecerde fontes. Goerg, filho de lvan, se casou
na família do patriciado veneziano, e faz imprimir. em 1494, um missal gla-
golítico, talvez um segundo missal no mesmo ano e um saltério em 1495. En-
tretanto, em 1496, o príncipe deve abandonar definitivamente o Montenegro
para se refugiar em Venera. No começo do século XVI, Makarius ganhou a
Valáquía (1508-1 51 0), onde trabalha sob a proteção do voivoda Barraca e de
onde os livros eslavânios, e depois também os gregos, serão difundidos através
dos Balkans. Os prelos são progressivamente instalados nos meios relaciona-

37 Chron/c.] Hungararuno. Pref. E. So]tész. Budapest, ] 992 Ifac-sim. da edição [iuda, Andréas
Hess, t 473); KOKAY,Gyõrgy. Ceschfchle des l?ucbhande/s /rl Un8arn. Wiesl)éden: Otto Harras-
sowitz, 1990 (dá a bibliografia complementar); Konrad Haebler, op. cit., p. 280 e seguintes.
38 Koblinger, que tem prováveis origens vienenses, traball)a em Vicence em 1479 e 1480, ar\tes
de voltar para Viena (Konrad Hael)ler, op cit., p. 164 e 294-5). O segundo impressor llieronymus
Vietor, que vem da Cracóvia, se estabelecerá na cidade só em 1510, e o seu irmão tomará scu
lugar quando ele regressarà Cracóvia.
39 0 primeiro livro impresso na Croácia aludi é o Af/ssa/e g/ago//l/cu/n feito por Bla2 Baromié
e seusassociadosem Zengg(Senj)cm 1494 : ver les 3 /!/ois/ révo/uf/onsdu /fure lcatalogue
d'exposition]. Pãris:CNAM/]mprimeric nationa]e, 20(]2, p. 236. Baromiécolaborou na impressão
de um breviário eslavo em Venera em 1493 e é sem dúvida ele que está na origem do estabele-
cimento da tipologia em Senj.
4Q SCHM\'TZ. Werner. Südslawischer Buchdruck ül Venedig ( 16.- 18. Jt.): Untersuchungen und
B/b//oBraR/)/e.Giellen: Wilhelm Schmitz, 1977.

Material co!-n dilectos autorais


Fréderic Barbier 199

SCHEDEL Hartmann. Cbronk/e of the wor/cí, 1493. New York: Taschen, 2001,
P.cxxXlx.

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Debrecen

f\material com direitos autorais


200 A cult.ura do livro rta llungria e Eüropa Cena.ralna época moderna

dos com a Igreja, em Gora2de (1531), GraZanica(1539), Belgrado(1552), e,


mais tarde, em Nedeliãée/Drávavásárhely (1574) e Vara2din (1586)...'' Mas,
globalmente, a hegemonia veneziana é favorecida pela dificuldade, para os
tipógrafos, de se manterem num espaço muito restrito, onde o público é extre-
mamente limitado e a circulação muito difícil.
A difusão da técnica tipográfica é ainda muito deficiente ent toda a região
do Império Otomano: o livro por excelência é o Á/cotão e sua língua, o árabe,
é língua sagrada,o que proíbe toda forma de reprodução mecânica. Enquanto
isto, as poderosas corporações de copistas e iluminadores se opõem à difusão
da técnica, para impedir a concorrência. São, então, minorias não muçulmanas
as que implantam tipografias com caracteres móveis no Mediterrâneo oriental:
como na Grécia atual, onde o primeiro tipógrafo conhecido é Judah Gedaliah,
um judeu de Lisboa instalado em Salâníca na segunda metade do século XVI,
e que imprime em hebraico.'2 Até o fim do século XVlll, praticamente, toda a
produção "erudita", impressa êm grego, sai dos prelos ocidentais, de Veneza
e mais tarde da Rússia,'3de Viena, inclusive de Budapeste(para a devoção e
uma forma de edição "popular").'" Emgeral, excetuando-seo caso da Boêmia
e das diferentes comunidades judaicas, o livro impresso é antes de tudo, na
nossa geografia, coisa da Igreja e do poder: um esquema que corresponde bem
a uma geografia um tanto periférica com relação ao polo da invenção, e a uma
geografia glol)almente pouco aberta à civilização livresca. O papel do poder é
ainda central quando Pierre o Grande decide abrir o Império Russoao Ociden-
te, funda a sua capital cle São Petersburgo e organiza, em torno da Academia
im})erial, a difusão e, em seguida, a produção do impresso na Rússia.

\ SKnAtçC, \os\p. lugoslavica usque ad annum 1600: bit)liogrphic der südslawischen Friih-
drucAe. Baden baden; Heitz, 1959; PLAV$tC,Lacar. Srpske Jtampar#e o(/ kiala /5 do sre(#ne
19 veda IA imprensa serva do século XV ao XIXI. Beograd, 19S9. Dois exemplares do Brevür/urn
Zagrabense são conservados hoje, o })romeiro em Budapeste (Biblioteca Nacional da Hungria), o
segundo em Rama (Biblioteca Vaticana).
42 RHODES, Dinnis H. /cunabu/a /n Grei'ce /.../; d #rsl censo/s.München: Kraus, 1980; DROU-
LIA, Loukia et al. Te M.ítvtKê Ptl3À.oo.Athànes: BanclueNational de Gràce, 1986; DROULIA,
Loukia. L'imprimerie grecque: naissanceet retards. In: l.e //vre et /'h/slorlen: Mélanges H.-J. Mai'
tin. Genebra, 1997, p. 327-41 (dá uma bibliografia complementar); BARBIER,Frédéric (Dir.). Le
livre grec et I'Europe, du modõle à la diífusion des Lumiêres. Recuetrança/se d'Nisto/re du LJv/e.
n. 98-9. '199t3.Sobrevenera e os IFegosver Le edizioni di testagreci (JaAmo Manunzio e le prime
t4mgra#c grechc df Venezla.Arenas, 1993.
43 Vilnius e Leontopolis (Lvov/Lvív), desde a sc8un(Ja metade do século XVI.
44 No Oriente-Médio, com exceção de Constantinopla, a primeira imprensa funciona em Safed
IZefat)em 1563, no interior de Saint-Jeand'Acre, centro religiososefaraditamuito ativo no século
XVI (oficina tios irmãosAshkenazi).

Material com diteítos autorais


Fréderic Barbier 201

O período moderno, ou o tempo das redes privadas


A palavra de ordem, para a livraria de Europa central e oriental nos sé.-
culos XVl-XVlll,e até algumasvezesno cursodo "longo séculoXIX", é a
compensação.A conjuntura é primeiro dominada pela crise político-religiosa,
que culmina com a "defenestração de Praga" e o desencadeamento da Guerra
dos Trinta Anos em 1617-1618. Enquanto a maior parte da Alemanha é posta
a fogo e a sangue,a Contra-Reforma é sistematicamente conduzida pelos jesu-
ítas nas "possessões hereditárias" da monarquia dos Habsburgo (Erblande) e,
especialmente, na Boêmia. A guerra de religião se transforma logo em guerra
dos livros, a vigilância se reforça em toda parte, assim como a censura. Cole-
ções de grande importância mudam de mãos ao longo dos acontecimentos e
constituem ricas bibliotecas privadas.
As redes profissionais do livro permanecem, quase sempre, insuficientes,
a produção local, muito fraca, de maneira que os livros são, na sua imensa
maioria, importadosda Europaocidental por meio de representantes especia-
lizados (como será, no futuro, Grimm, o agente de Catarina ll em Pâris),mais
frequentemente graças a estudantes peregrinos, aos viajantes, aos nobres e,
no caso da Grécia, aos membros de uma diáspora negociante cada vez mais
atava.Os acervoshoje conservados,por exemplo, em nrgu Mure; (Marosvá-
sárhely/Neumark a/Mieresch), testemunham que uma grande parte dos títulos
chegou a Europa oriental por intermédio de estudantesda Transylvania que
passaram pelas universidades estrangeiras.'s Até a segunda metade do século
XVlll, as redes da livraria internacional especializada ocupam apenas uma
posição marginal, quer se trate das grandes feiras do livro em Frankfurt ou,
e cada vez mais,em Leipzig,ou, ainda, dc casasespecializadascomo as de
Estrasburgo,Treuttel e Würtz.4ü
De novo, limitemo-nos a duas séries de exemplos que ilustram os dois
pólos maiores,visto que se relacionam, um com a Igrejae o outro com a
nobreza. Na Hungría oriental, perto da Transilvânia,está Debrecen, cidade
importante que desempenha as funções de grande mercado rural e, também,
de centro cultural protestantedesde a década de 1530. A escola da cidade
(acho/a mostra)torna-se logo o principal colégio reformado de toda a região, a
ela se associando, desde 1561 , uma imprensa de produção bem específica: ao
passo que a proporção de livros em língua húngara é de um terço nos séculos
XVI e XVll, ela atinge 70% aproximadamente,em Debrecen,que se impõe

4S Catalogue librorum sedecimo saeculo impressorum Bibliothecae Teleki-Bolyai... nrgu Mure$,


Lura,2001 . 2 v.
46 BARBIER, Frédéric. Une librairíe "internationale': Treuttel et Wilrtz à Srasbourg, íris et
Londres. Recue d'H/face, t. 11 1, p. 1 11-23, 198S; JEANBLANC, Helga. Des Á//emands dons
r'índustr/e ef /e commerce du //vre à Par/s /8 71- /870. Pãris:CNRS, 1994.

Material com direitos autora


202 A cült.ura do livro na ]Jungria e Europa Cena.ra!na época moderna

não somente como a "Genebra húngara", mas também como centro de estu-
dos moderno, copiado do modelo pedagógico saxão de Melanchton: o ensino
dado é particularmente inovador nas áreas da filologia e das ciências naturais
e, mais tarde, também das matemáticas, ao mesmo tempo que as relações com
a universidade de Wittenberg são regularmente continuadas. O coração do
colégio é constituído de uma biblioteca extremamente rica e conta, hoje, com
mais de 5.000 livros antigos, sendo a mais importante coleção confessional da
Hungria.
Outras instituições têm um papel comparável, do lado católico: citemos a
biblioteca beneditina de Pãnnonhalma, a biblioteca da catedral de Esztergom
ou ainda a do bispado de Eger (Erlau). Erlau é ocupada pelos turcos, de 1596
a 1687, de modo qt.ie o "renascimento" só pode se desenvolverno século
XVlll, especialmente sob o reinado dos bispos-condes Ferenc Barkóczy (171 0-
1765) e Károly Eszterházy(1725-1 799): o primeiro cria, em 1754, a imprensa
episcopal e começa a desenvolver, em Erlau, instituições de ensino modernas.
Esterházy,com a ajuda do cónego lgnáz !3atthyáni,tenta fazer da cidade uma
cidade universitária, sem o conseguir devido à oposição de Joseph 11:faz então
construir um prédio para acolher a sua fundação e cria uma biblioteca que
conta, hoje, uns 150 mil volumes, um extraordinário marco barroco que exalta
a Contra-Reforma.4z
Do lacJodos nobres e das grandes personalidades, magnates etc., a imita-
ção da figura clo soberano conduz à constituição de bil)liotecas particularmen-
te importantes,sob o modelo da Hofbibliothek de Viena. Na Hungria, depois
da queda da monarquia, uma série de cortes senhoriais retoma o papel da cor-
te real de Buda, enquanto que, desde o século XVI, as grandes famílias nobres
são alfabetizadas, à semelhança dos Apafíi, Teleki, Bethlen, Nádaszdy,'l"hurzó
etc. Numerosos são os jovens aristocratas que viajam "à Europa", seja para
um "grand tour", seja como estudantes numa ou noutra universidade. Progres-
sivamente, são os representantes da mais alta aristocracia os que se ocupam
da problemática das Luzes: na família Batthyány,o conde Adam Batthyány
(1697-1782) possui uma grande coleção de livros em francêsou traduzidos
em francês. O príncipe Károly József Batthyány (1698-1 772) tem também vá-
rias bibliotecas, notadamente a da sua residência de Viena (boa literatura em
alemão e em francês, livros de história e títulos jansenistas,ao todo cerca de
3.000 volumes). lgnáz Batthyány,cónego de Erlau,é o promotor da instituição
do Bafthyaneum de Gyulafehérvár (Alba Juba): bibliotecário em Romã, ele tem
excelentes relações com a ltália eViena e retoma a antiga biblioteca da cidade
de Lócse, assim como a coleção privada de Anton Christoph Migazzi, bispo de
Vác e depois arcebispo de Viena...

47 O teta em "trompa-l'oeil" ilustra cenas do Concílio de Trento

tx4a.relia com :direitos autoras


Fréderic Barbier 203

Podemostambém citar os Bethlen (GcaborBcthlen, príncipe da Transil-


vânia, 1613-1629, em Gyulafehérvár),os Rákóczi(Gyõrgy I' Rákóczi, 1631-
1648, na Transilvânia e em Sárospatak), os Nádasdy ou ainda os Esterházy: a
grande biblioteca deles, em Kismarton, contava com mais de 12.000 volumes,
masela foi em parte destruída durante a Segunda Guerra Mundial. Em Keszthe-
ly, os Festetichfundaram uma escola de economia, o Georg/kon e, possuíam
uma biblioteca de 25.000 volumes... Mostraremos, agora, as contribuições de
personalidadescomo Miklós Jankovich (1772-1846)," e sobretudocomo o
conde FerencSzéchéyi(1754-1820), intervêm no contexto em que se opera o
desvio das coleções ditas "esclarecidas", em direção ao conceito de colação
Hangar/ca e, assim, o projeto patriótico-político propriamente dito.

NACIONALIDADESE MODERNIDADE

A vontadede integrara geografiada "nova Europa"do séculoXVlll no


processo de modernização que é iniciado pelas potências ocidentais se apoia
de maneira privilegiada.na ntediação através do impresso.

Redesdolivro e bibliotecas

A partir do final do século XVll, .a rede dos prelos topográficossegue o


retrocesso dos otomanos e marca a integração dos novos territórios ao reino
da Hungria: as imprensasestãoem Abram (Zagreb)desde1697 e a rede es-
tende-se aos centros secundários no decorrer dos séculos XVlll e XIX: Maribor
(Marburg a/d. Drau), Osijek (Esseg), Pécs (Fünfkirchen), Karlovac (Karlstadt),
VaraÃdin (Warasdin),etc.'s De forma geral, difundir as "Luzes" é al)rir cami-
nho à reforma social e talvez política, permitir o melhoramento do mercado
de trabalho (trabalhadores melhor formados e mais qualificados...) e favorecer
a inovação e o progressoeconómicos. As transformaçõesque se operam, nas
décadasde 1780-1820, vão dar uma nova dimensão nacional a um projeto
coletivo e, com frequência, dar início a um período de lutas políticas que vão
até à guerra declarada -- primeiro entre Budapeste e Viena.

48 Bibliófilo e fervorosocolecionador, arruína sua família para constituir uma extraordinária


biblioteca de hangar/ca e de documentos excepcionais: edições raras, manuscritos interessantes
da história da Hungria. documentosde arquivos (o testamentooriginal de Martin Luther), etc.
Jankoviché o autor de uma primeira bibliografia dos livros húngarosaparecidosantes de ] 830,
trabalho que ficou sob a forma dc manuscrito.
49 BARBIER,Frédéric. "L'Europe centrale et les reseaux du livre, XVlll' siêcle-1914' Kni2nitMy
vestrednia vychodnlEvropéév XVIII. Století-191 4'. In: tour une étude des bib/lothêques arislocra-
t/quis, burgoises el convenlue//es... Dir. Jitka Radimská. CoskéBudéjovice,2000, p. 9-42 ("Opera
românica', l ).

Material com dit-eixosa..imorais


2W A cultura do livro na Hungria e Europa Central na época moderna

QÜ. N

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f.l!!j-tvb. + +' -& +.«

Bologne

Material com direitos autorais


Fréderic Barbier 205

O conde Ferenc (Franz) Széchényi(1 754-1820) é a principal figura em-


blemática deste movimento. fora ele, a idéia de uma biblioteca nacional se in-
sere no projeto de uma instituição mais abrangente, sob a forma de um Museu
calcado no modelo inglês du British Museum: trata-sede uma coleção "nacio-
nal", na qual entram, naturalmente, livros, mas também medalhas e coleções
de mineralogia, pertencentes ao seu acervo privado. Sua biblioteca pessoal, no
castelo de Nagycenk (Hungria ocidental), compreende essencialmente títulos
"modernos" (economia, política etc.) e literatura em húngaro, no total, 20.000
documentos, dos quais 6.000 são mapas (1799).s' O objetivo é duplo: reunir
uma colação de Hangar/ca segundo uma definição catalográfica extensiva (li-
vros de autores húngaros, livros referentes à Hungria, livros em húngaro, livros
publicadosem húngaro),mas também põr à disposiçãodos eruditos húnga-
ros instrumentos de trabalho que facilitem as suas apropriações das grandes
correntesda modernidadeocidental. Em 1802, Széchényidoa sua biblioteca
à Academia como futura Biblioteca Nacional de Hungria (B/b//ofhecarego/-
co/ans).s' Outras doações análogas são feitas, com as mesmas perspectivas
de modernização e construção da nação, por magnatascomo o conde lstván
lllésházy (1 762-1 838) em 1835,sz etc.
Depois de Ferenc, lstvan Széchényi será o principal representante da mo-
dernidade na Hungria. Antigo aluno do Theres/anui de Viena, criador de ca-
valos, organizador de competições hípicas (1822), é também o autor de várias
obras que marcam a renovação da Hungria: Sobre os cava/os (1828), H/te/
("0 crédito", 1832), \4/ág ("0 mundo", 1831) e Sfadfum (1833)... O projeto
de economia política é central no seu pensamento: participa da fundação da
Companhia de Navegaçãoa Vapor no Danúbio (1831), lança o regulamento
deste rio na Hungria central (1833), projeta a primeira ponte entre Buda e
Peste(com a sociedadeZ.anca/d,1836), cria a Companhia dos Moinhos Ci-
líndricos de Peste(1837), o Banco Comercial da Hungria (1841) etc. Membro
da AssembléiaNacional em 1825-1827, ministro dos Transportesdo conde
Battyány no governo de 1848: os revolucionários o descrevem como "o maior
dos húngaros". Mas, depois da derrocada da revolução, Széchényideve se
retirar a Dõbling, num hospital psiquiátrico, onde se suicida em 1860 -- sete
anos antes do compromissoque funda a autorqomiada Hungria pelo viés da
dupla monarquia.

30 Catalogue Bibliothecae hungaricae Francisci comjitisl Szecheny. Tomus l scríptores'húngaros


ei rerum bungaricarum fyp/s ed7toscon)p/exus,pais ////7. Sopron: Typis Síessianis,1 79012 v.
51 Um catálogo de manuscritos é publicado em 181 5: Cata/obusmanuscr@torum 8/b/fothecae
nat/ona//s/)ungarlcae Szécényfano-regnlco/ar&.Sof)ron: Typis Haeredem Sissianorum, 181 5.
52 Note-se que a biblioteca nacional se separa do Museu somente em 1949.

Arterial cov. direitas autora


206 A cultura do !ivro lla HuPtgriac liuropa Ccntlal lia épocamoderna

A língua nacional
Dois outros elementos têm um papel central na construção das iclenti(Ja-
des coletivas e das nacionalidades: a língua e a "livraria nacional"
O século XVlll e ainda fetaiso XIX testemunham o aumento da impor-
tância cla problemática linguística, sob a influência elostrai)alhos de filólogos
alemãese reflexõessobreo papel da língua, articulado com a definição de
iclentidadccoletiva.s3Na Boêmia, embora a tradição literária seja muito anti-
ga,s' sendo a Bíblia traduzida e impressaem checo desde o período incuná-
bulo (Pilsen/Plzeto,1476), a era moderna é marcada por uma certa ressaca,
sob a dupla pressão da Contra-Reforma católica e da volta dos Habsburgo ao
poder. A restauraçãodo emÍ)rego clo checo como língua de edição data do
primeiro terço do século XVlll, e o movimento se acentua no XIX.ssNo reino
multinacional da }-lungria. a língua oficial até meados do século XIX é o latim,
à exceção clo grão-ducado de Transilvânia, onde é o húngaro. Sabe-secomo a
vontade de Joseph ll de impor o alemão como língua de administração choca-
se com a oposição de toda a "nação", onde os trabalhos de filólogos e escri-
tores como Ferenc Kazinczy (1759-1831) aspiram a fixar a língua Itúngara e a
desenvolvê-la como língua literária. O mesmo fenómeno se ol)serva até numa
Nação sem Estado,ou ainda sem geografia nacional reconhecida, como é o
caso, nessetempo, da Grécia: é em 1805 que Adamantos Coral (174é3-1833)
faz o elogio dc um.l história naturalmente "nacional", sublinhando sua urgente
necessidadepara a Grécia, e começa em Parisa publicação de uma Biblioteca
Helénica, cluando, no ano seguinte,é lançada a primeira edição de nucydide
cm grego moderno...sóA publicação de colcções de l)íl)liografia retrospectiva,
de bil)liografia corrente e de "monumentos", segun(Joo modelo dos õ/onti-
mer?faGerrna/7/e/"//flor/ca, se inscrevem na mesma lógica.s'

53 Herdei et les l.un iàres: L'Europede la plurallté culturelle et linguistique. [d. P]erre Pét\\sson,
Norbert Waszek. Paris, 2000 (Rev/sfaGerntzin;ca/n(ernaciona/, 20, 2003).
54 0 primeiro livro impresso em tcheco é a Kronika trofankó (Crónica troiana) em Pilsen, em
1468
55 KÓLLNER, plena. Buchtvesen /n Praz, Von Vác/av A{. Kramcr/us b/s /ar7 Olho. Wien: Edition
Praesens,2000 ("Beitrãge ztim Buchwesen in õsterreich", l ).
56 [)IMARAS, C. Th. NcocJ,ÀrlwZóv õ]ap i/ióu. Arenas: Ermis, 1993, espccia]mente <<'O Ko
paq{ Zczi f;xoXPÍTQv>>,p. 3 1 5 e seguintes.Mais antigo, do mesmo autor. [a Grêce au ter»ps des
Lumiàres. Gene\)ra: Díoz, '1969. VeT \ambém Flellénisme et hippocratisme dons I'Eurape tnéditer-
ranéen/le; at/tour de D, Corar. Ed. Rolar(J Anclréani, Henri Michel, Élie Péla(luier. Montpellier:
Univcrsité de Mpntpellier 111,2000.
57 ///slolre ( f naffon en fl/rode centra/e ef or/ent.a/e,X/X''.XX'siêc/es.Dir. Made-Élisabeth Du-
creux. I'ans:INRP.2000.

h.4atetia+
com direlios autorais
Fréderic Barbier 207

Aculturação, apropriação: a livraria nacional


A "nacionalização" cultural se apóia sobre um último elemento. Trata-se,
evidentemente, da própria "livraria". O ambíguo processo de construção das
diferentes "livrarias nacionais" passa pelas duas fasesclássicas de aculturação
e apropriação, mas choca-se com freqilência com a desconfiança das auto-
ridades, preocupadas com eventuais descontroles revolucionários. Acultura-
ção: a livraria da Europacentral e oriental é, desdeas origens,dominada pelo
Ocidente, de onde vêm os textos e edições, e também os profissionais do li-
vro. As primeiras importações de livros na Rússiase fazem a partiria Holanda
visitada por Pedro o Grande, e é também da Holanda que vem o material de
impressão -- prensas e fontes topográficas. Depois que os tipógrafos alemães
invadiram os centros de impressão dos séculos XV a XVlll,sõ são as grandes
feirasdo livro, em Frankfurte em Leipzig, que dominam o conjunto do merca-
do na Europacentral e oriental, até na Escandinávia.A literatura bil)biográfica
e os manuais de trabalho (catálogosde edição, anuários dos profissionais e,
sobretudo, catálogos das feirass9)são também um elemento muito importante
na organização do mercado internacional em torno de alguns pólos maiores,
dos quais Leipzig ocupa o primeiro lugar." O próprio conceito de "livra-
ria nacional" é alemão, com a publicação, pelo livreiro Friedrich Perthes,
de sua p\aquela Der Deutsche Buchhandel als Bedingung des Daseins einer
deutschen Z./feratur("A livraria alemã como condição de existência de uma
cultura alemã") em Hamburgo, em 181 6. E quando a casa Deubner, instalada
em Mosca desde 1842, estençlea rede de suasfiliais, Odessafigura entre as
cidades aptasa desenvolvercom proveito um comércio livreiro internacional
(1859)

A necessidadecada vez maior. na Rússiameridional, de uma livraria alemã,


francesae russa.solidamente estabelecida, que entregue suasencomendas rapi-
damente e a preços favoráveis, [...] aos eruditos, aos particulares e aos artesãos

58 Além das obras ló citadas,ver particularmente:PAISEYDavid L. Deuscbe Buchdruckec


Buc/)bãn(//er und Ve/h8e4 170 /- 17SO.Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1988 ("Beitrãge zur Buch-
und Bibliothekswesen").
59 Esses'catálogos das feiras' (MeJ3kata/oge)são, primeiro, publicados por certas livrarias para
apresentaraos colegas seu 8cervo ou sua variedade e, a partir de 1599, a totalidade das novida-
des propostas na Feira de Frankfurt (pelo livreiro I'eter Schmidt). Rapidamente são publicados sob
o controle dos Magistrados (por razões que incumbem a censura).
60 BARt31ER, Frédéric. Construction d'une capital: Lcipzig et la lit)raide allemande, 1750-1 914.
ln: Capitales culturelles, capitales symboliques: Paria et les expériences européennes. Dir. Chr\s-
tophe Charle, Daniel Roche. Pâris; Publications de la Soüonne, 2002, p. 335-S7.

fç4aterial com direitas autoras


208 A ciilf.ura do livro na lÍungria e Euros)aCena.ralna época moderna

de suas províncias,leva-me a fundar aqui um comércio independentesob a


razão social de "J. Deubner em Odessa"...bi

Mas, em comparação a Leipzi& a escaladade Viena aparece como o


primeiro fenómeno importante: os gastosde expedição etc. tornam-semuito
elevados para os vianenses, e não se justificam, pois, na mesma época, dois
terços das populações dominadas pela capital imperial não são gcrmanófo-
nos. A política, ao mesmo tempo, mercantilista e esclarecida de Mana Teresa
(1740-1 780) e de Joseph ll (1780-1 790) favorece o desenvolvimento cle uma
"livraria austríaca": desde os anos 1765, e com o apoio das autoridades, o
livreiro Romãs Trattner, que será mais tarde enobrecido, começa sistematica-
mente a fazer frente a seus colegas alemães. Em 1772 funda-se, em Viena, o
Deufscbe Scbu/a/7sfa/t,ao qual é outorgado o monopólio da edição (Joslivros
escolares: criações análogas começam a se fazer nas províncias, em Laia)ach
(Ljubljana), Brünn (Brno) e Praga, Innsbruck, Graz e Linz, na Galicie etc..Vie-
na, que nos meados clo século XVlll era a 43' cidade em edições alemãs (pelo
número de livros anunciados nos Cata/egosdas áe/ras),passaao terceiro lugar
em 1800, atrás de Leipzig e Berlim.
Portanto,a extensãoclãsredesaustríacasdo livro em direção à Europa
central e oriental é cada vez mais densa, conforme se avança na cronologia:
a primeira livraria de importância aberta em Agram (Zagreb) é a de Emil Hirs-
chfeld, que em 1835 compra por 2.000 florins a livraria Rudolph, e cujo êxito
é assegurado pelas relações regulares com Leípzig e pela integração às redes
profissionais alemãs. Mais tarde, Emir Carow. proprietário de Voss & C' em
Viena, expande progressivamenteseus negócios em outras capitais do Império
Austro-Húngaro: em 1870, funda, em Budapeste, uma "livraria aml)ulante",
e depois cla sua revenda retoma em 1875 a livraria de Friederich Bolt nesta
mesma cidade. Já em 1871, se estabelece em Grau (Esztergom),sobre o Danú-
bio, antiga capital e sededo primaz da Hungria, enquanto uma última filial é
aberta em Agram. Outros exemplos poderiam ser citados, desde os fins do sé-
culo XVlll, redes similares de livrarias cujo centro, em Viena, controla uma ou
várias filiais numa ou noutra capital de província (Klagenfurt, Laibach etc.).
O sistema de comissão se desenvolve calcado no modelo alentão, em
Viena, Praga e Budapeste, cidades em torno das quais as "livrarias nacionais"
tendem a se organizar em redes. Em Viena, uma editora como a de t-lartleben
trabalha dessa maneira, em 191 3, com 68 representantescomitentes estabele-
cidos nas grandes cidades da Áustria (Salzburgo, Klagenfurt, Graz, Linz etc.),
mas também em Praga e Presburgo (Bratislava), na Boêmia, Morávia, Eslová-
quia, Galicie(Lemberg, Tarnow) e através dos territórios húngaros: Hermannsta-

61 Leipzig Deutsche Bücherei, Goschãíísrun(/br/eÁen(/es IJõrsenvcre;ns

1.material
com direitos autoras
Fréderic Barbier 209

dt (Sibiu), Laibach, Agram, Zara (Zadar), Raguse (Dubrovnik) etc. As lógicas da


geografia, a eficácia de uma livraria alemã muito avivae que trabalha seguindo
práticas profissionais perfeitamente reguladas, o modelo constituído por uma
Alemanhaem pleno desenvolvimentoeconómico e cultural (pensemosnos
estudantes estrangeiros atraídos pela reputação das grandes universidades ale-
mãs) constituem elementos para explicar o fato de que as grandes livrarias das
novas "capitais" são, com freq(]êncía, membros do Bórsenvere/n de Leipzi& e
praticamente sempre em relação de negócios com os comissionados alemães.
Assim, por exemplo, de Kohn, estabelecido em Belgrado desde 1901 ...
A lógica da aculturação se atenua progressivamentediante da de apro-
priação: é a afirmação de uma identidade cultural específica, construída sobre
base de uma língua e na dimensão privilegiada de um território comandado
por uma capital, que tornar-se-á,ela própria. nacional. Étambém o tempo do
reconhecimento de uma língua e de uma literatura para as quais são criadas
cátedras universitárias de filologia e de história literária e sobre as quais traba-
lham academias e sociedades de eruditos. Claudio Magris insiste na importân-
cia do fenómenocom referênciaà Bulgária:

No século XIX, os l)úlgaros, antes mesmo de poder tentar de renascer. tiveram


que retomar consciência de sua existência, redescobrir e reencontrar sua pró-
pria identidade, como Aprilov. que se considerava grego sob a influência des-
nacionalizante da cultura e da igreja ortodoxa, estaúltima aliada dos Otomanos
-- e se reconheceu búlgaro lendo Os búlgaros de ontem e de hoje, obra publi-
cada em 1829 pelo sábio ucraniano Venelin. O livro teve um papel de primeira
importância na constituição da identidade búlgara: é um livro escrito e recopia-
do infinitas vezes à mão, a História dos eslavosbúlgaros de fbisii de Hilendac
que marca, em 1762, seu ressurgimento depois de séculos de silêncio...a

O retorno a uma língua veicular é, às vezes, indispensável, incluindo aí


motivos de ordem económica: quando em 1792 o abade Joseph Dobrosvsky
(1753-1829) publica em Pragao manual fundador dos trabalhos de lingüística
e literatura checa, o faz em língua alemã.õ3
Ihralelamente, as bibliotecas serão criadas ou reorganizadasem profun-
didade para conservaro que tornar-se-ãoos "monumentos culturais" da na-
ção. O interesse que despertam os fatos culturais será ainda mais importante
nas províncias, onde as decisões políticas lhes escapam para serem tomadas
em Viena e Budapeste, e mais ao Leste, em São Petersburgo (com respeito à
Polânia e à Finlândia), e até em Constantinopla.

62 0P. cit.,P.416-7.
b3 Geschichte der bõhmischen Sprachc und ãltern Literatur

f-4atelial cola direitos autoras


210 A ctittura do livro na llungria e Europa Central na época moderna

'Hssot

Material com direitos âutorâis


l;réderic Barbier 211

A instalaçãode "livrarias" específicassupõe a reunião de difíceis condi-


ções: não só são necessáriasas condições materiais propícias ao comércio do
livro, mas também que os profissionais possam contar com um público capaz
de rentabilizar seus investimentos-- um ponto que a imposição de línguas
veiculares estrangeiras, o alemão e até o francês ou o italiano, nas camadas
mais alfabetizadas, fica por muito tempo hipotético.
O exemplo de Budapeste,estudado de maneira detalhada por Dorottya
Lippak,''" mostra que a transferência passa, de maneira aparentemente para-
doxal, pelo intermédio de livrarias alemãs de origem, mas que decidem, num
momento dado, privilegiar sistematicamente a "livraria húngara" face à livraria
importada. O papel das casasjudias é igualmente importante -- como, por
exemplo, a grande livraria de Samuel e Leó Revai. lera todos, o Compromisso
de 1867 marca um novo ponto de partida, enquanto as "festas do milênio"
(1896) marcam de trunfo uma geração de extraordinária conquista: o livro
ocupa um lugar privilegiado.'s O nacionalismo não está absolutamenteau-
sente nessas perspectivas, como destaca Claudio Magrasfazendo referência a
Temesvár (Timi$oara):

EmTemesvár.capital do Banat,contava-seem 1902, doze jornais alemães,


doze húngaros e um romeno: aliás, a magyarização solapava profundamente
a presença alemã. Adam Müller-Guttenbrunn descreve esta desnacionalização
crescente. a diminuição das escolas alemãs, a magyarização dos nomes e so-
brenomes, o desaparecimento progressivo, nas paredes das casas suavam,dos
retratos de Francisco-José.Enquanto os saxões da Transilvânía defendiam com
pugnacidade a sua identidade nacional, os suavosdo Banat se deixavam, volun-
tariamente, assimilar, dando nomes húngaros aos seus filhos ou magyarizando
OS SEUS...exp

Seria possível ir além dessas análises um tanto subjetivas, e tentar uma


aproximação mais geral, esclarecendo as modalidades das relações entre as
redesdo livro e as organizaçõesdo espaço cultural, económico e político na
Europa central e oriental a partir do século XV? Consideremos, desde o início,
a dificuldade metodológica que isso implica: o fato de ter de levar em conta
entidades demográficas que foram durante muito tempo pouco importantes
no Oeste torna difícil uma padronização sol)re uma base estatística segura.
Não somente as aberturas das populações concernentes são muito diferentes,

64 LIPPAK,Dorottya. Au XIX' siêcle: Budapestet la modernité éditoriale. In: [e s/êc/e de Vector


Ruga: la librairie romantique et industrielle en France et en Europe. Genebra: t)roz, 2003, p. 267-
88 {RevueFrançaised'/Ifsfo/re du l/vre, 116-7, 2002, 2' impressão).
Cl5 BARBIER,Frédéric. "Le livre exposé: le livre et lcs bil)lioth&lues dana les expositions indus-
trie[[es, ] 850-1 914", a aparecer nasAlas do co]óquio de Budapeste, 2002
66 Claudio Magras,op. cit« p. 377

fdaterial com direitos atltora


212 A culttlra do livro na Ifungria e Europa Central na época rlzoderria

mas os próprios conceitos relativos à "cultura" podem, nesta lógica, mobilizar,


como amores principais, núcleos muito minoritários.
Portanto, a pesquisa nos abre um certo número de perspectivas das quais
apresentaremosquatro:

1) Primeiro, ela põe em evidência as tendências a muito longo prazo, as dos rit-
mos mais amplos. Não somente a vários séculos passados,a Europa dos PECO
permanece, ainda em 2004, sendo aquela dos "recém chegados", mas a ques-
tão é ainda atual, em certos aspectos, como saber reduzir as distâncias entre os
diferentes grupos que constituem nosso subcontinente.
2) Emseguida, ela permite insistir na eloqüência de indicadores tais como a reli-
gião e a língua e definir certas filiações intelectuais: no decorrer do século XIX, a
nacionalidade não aparece como um dado a pr/orl, mas como uma construção
intelectual ({ue articula uma experiência quotidiana, segundo categorias e es-
quemas que esclarecem (ortemente a problemática das transferências culturais
e a relação (Jasforças políticas.
3) A escassezde redesde relaçõesdesenvolvidasdificulta por muito tempo a
penetração do impresso no interior de espaços geográficos tão extensos, mas
substitutos são quase imediatamente implantados: são as redes de negociantes
"de generalidades", que percorrem a Europa sul-oriental, são também os viajan-
tes, os estudantesetc., são as práticas de cópia manuscrita e de circulação sob
forma de correspondência.

Por tudo isso, o trabalho fica ainda por ser feito, o que permitiria melhorar
o quadro algo impressionista aqui apresentado: a aproximação serial se apoia-
ria notadamente na prosopografia dos impressores, livreiros e outros profissio-
nais da "livraria" e, também, nas estatísticas da produção impressa e no estudo
das redes e dos sistemas da difusão. Outras perspectivas, sem dúvida mais
distanciadas, se abrem também pelo lado dos autores e autores secundários
(tradutores, adaptadores etc.), assim como a circulação e recepção de livros
e textos, devendo, a perspectiva comparatista sempre e em todo lugar, ser sis-
tematicamente privilegiada. No começo do terceiro milênio, a construção da
Europa passa também, e sempre mais, pelo trabalho dos historiadores, e dos
historiadores do livro, já quc as problemáticas de ordem cultural são cada vez
mais reconhecidas e relevantes na formulação de projetos políticos, o que era,
durante muito tempo, negligenciado.

h4atetial cona d1l-eixosautoraís

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