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Capítulo III

Idades de Ouro e Declínio (1301-1526)

Como consequência do desenvolvimento que a Hungria, juntamente com seus


vizinhos do norte, vivenciou no final do século XIII, a Idade Média tardia e o
Renascimento foram períodos em que a integração do país à civilização do cristianismo
ocidental lhe impôs caminhos e processos peculiares e ambíguos, e não raro
contraditórios. No que concerne à organização política e eclesiástica, e principalmente
também ao cenário cultural, a Hungria podia ser estritamente diferenciada dos países
ortodoxos localizados a leste e a sudeste. Ao contrário dos pequenos reinos dos Bálcãs,
que viveram em estado de constante transformação até serem eliminados pela expansão
otomana no século XIV, e diversamente também do mais poderoso deles, o Estado de
Kiev, que, entretanto, sempre oscilou entre a desintegração e a reintegração, o regnum
Hungariae, com sua permanência e integridade, simbolizadas pela noção da santa coroa
de Santo Estêvão, era uma unidade politicamente robusta, com fronteiras claramente
definíveis e, mais ou menos, estáveis, o que ajudara o país a sobreviver aos golpes da
invasão mongol, à extinção da Casa de Arpad e à ira da facção do baronato daí
decorrente. A ideia, se não exatamente o formato, da organização e do exercício da
autoridade como uma rede de organismos legalmente privilegiados, a communitas regni,
também era reconhecidamente “ocidental”. O mesmo pode ser dito sobre os senhores
eclesiásticos tornarem-se políticos e proprietários poderosos – embora, do ponto de vista
técnico, apenas administradores – de grandes patrimônios na Hungria, como em todo o
Ocidente, conquanto sujeitos à suprema autoridade do papa; entre os ortodoxos, ao
contrário, o patriarca de Constantinopla era tão somente o primeiro entre chefes
equivalentes das diferentes igrejas nacionais, e os bispos permaneciam integrados ao
monasticismo; e mesmo quando presentes na corte, raramente apresentavam questões
ligadas a outros assuntos além da religião. Além disso, enquanto cartas e diplomas
continuavam a ser emitidos em ocasiões raras e solenes nos Estados dos Bálcãs e na
Rússia, o uso de documentos escritos por particulares, assim como pelas cada vez mais
sofisticadas instituições políticas e jurídicas, proliferou na Hungria. No entanto, tendo
sido dizimados pelas pilhagens dos tártaros e dos turcos, apenas cerca de 300 mil
documentos do período anterior a 1526 subsistiram – um número relativamente
inexpressivo, em comparação com os milhões que foram preservados na França ou na

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Inglaterra, mas que sugere uma diferença, mais de qualidade do que de quantidade,
quando comparado ao de meras centenas nos países balcânicos.
A impressão de que, no final da Idade Média, a Hungria tinha deixado para trás
sua desvantagem em relação ao Ocidente poderia ser reforçada inclusive quando se leva
em conta que, enquanto o século XIV foi presumivelmente um período de profunda
“crise” na Europa Ocidental, de maneira geral ele se caracterizou na Hungria pela
prosperidade econômica e pela estabilidade política, mais uma vez de maneira atrelada
com a Boêmia e a Polônia. Mas, após uma análise mais detalhada, essa impressão
revela-se falsa. Para simplificar, a Hungria manteve-se incólume diante da crise
justamente porque também foi intocada por importantes aspectos do desenvolvimento
que a suscitou no Ocidente. A crise foi causada por um crescimento hiperbólico, e hoje
pode ser considerada como uma série de dores do parto da modernidade, que
acompanhou o dinamismo da Europa entre os séculos XVI e XX. Seus principais
sintomas foram a superpopulação, controlada pela catástrofe demográfica da fome e das
epidemias, as terríveis jacqueries1 camponesas e as devastadoras guerras internacionais;
o relativo empobrecimento dos nobres e o declínio da autoridade eclesiástica; crises de
liquidez e falências de empresas comerciais e bancárias. De maneira geral, a crise foi
associada à desarticulação da tradicional divisão da sociedade em cavaleiros, padres e
camponeses, segura e previsível como o era em sua rigidez; de um modo ou de outro,
todos esses sintomas resultaram da circulação e da importância crescentes do dinheiro,
quando as relações monetárias passaram a substituir as relações de confiança jurídica.
Em outras palavras, o motor das mudanças – o catalisador da crise, assim como
da posterior recuperação – foi a rápida urbanização do continente. Na Europa de fala
alemã, por exemplo, antes do ano de 1200 o número de cidades que foram fundadas era,
em geral, inferior a cinquenta por década; até 1300, esse número em várias ocasiões
ultrapassou uma centena, chegando uma vez a até 250 por década. Além disso, os
centros urbanos do Ocidente medieval tardio eram de um novo tipo: afora o comércio de
longa distância de artigos de luxo, eles se tornaram sedes da formação de capital para
suprir as necessidades de uma indústria em expansão, que produzia principalmente
têxteis para um crescente mercado interno.
A Hungria não dispunha desses catalisadores, tanto os de crise como os de
retomada. Como vimos, sua urbanização começou relativamente mais tarde, e ficou por

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Em francês no original, essa palavra remete ás revoltas na França de camponeses, alcunhados “jacques”,
contra os nobres, que foram sufocadas mediante execuções arbitrárias, no século XIV. (N.T.)

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longo tempo confinada, em boa parte, nas mãos de mercadores estrangeiros, que
forneciam bens de luxo tão somente aos grupos que possuíam recursos para o consumo
ostensivo: a corte real e a aristocracia. Como toda generalização, esta é, naturalmente,
uma imagem simplificada: especialmente no oeste e no norte da Hungria, assim como
na Transilvânia, havia alguns assentamentos urbanos com uma próspera indústria local e
métodos de produção assemelhados aos do modelo ocidental de subcontratação de
trabalho. Contudo, apesar das políticas de diversos reis que, por uma ou outra razão,
concederam favores às comunidades urbanas, o quadro geral era de uma
industrialização e formação de capital fracas. O Reino da Hungria poderia ter sido
próspero, e em certo sentido talvez até o mais rico país do continente, uma vez que suas
minas de ouro abasteciam as casas da moeda e os tesouros de toda a Europa. A riqueza
e, por vezes, o comando político centralizado, além do poderio militar, dos monarcas
húngaros podem ter superado os de muitos homólogos ocidentais, como foi o caso do
rei Matias, no século XV, que também mantinha uma suntuosa corte renascentista. Mas
quando, por volta de 1500, se iniciou a fase seguinte de fermentação do progresso
econômico e social da Europa, a localização geográfica da Hungria – sua exposição à
expansão otomana e a exclusão do intercâmbio direto ultramarino – não foi a causa
principal de seu dramático declínio. Tal situação apenas agravou a desvantagem
decorrente de um desenvolvimento com face de Janus, e a própria insuficiência das
estruturas que a ajudaram a evitar as piores dificuldades, enfrentadas por seus vizinhos
ocidentais antes de 1450, tornou-se acentuada e revelou sua verdadeira natureza depois
de 1500, com um impacto duradouro sobre toda a história moderna húngara.

1. A Monarquia Angevina

Carlos Roberto d’Anjou, apoiado pelo papa Bonifácio VIII e os barões do sul,
foi convocado pela Hungria antes mesmo da morte de André, e prontamente coroado,
pouco antes de maio de 1301. No entanto, por aproximadamente uma década, ele teve
de competir com rivais que também pretendiam o trono da Hungria, e de enfrentar por
outros dois decênios o separatismo dos oligarcas regionais. De início, ambas as
dificuldades estavam ligadas. Sob o pretexto de que a coroação de Carlos era “irregular”
(tendo sido realizada sem a coroa sagrada, e em Esztergom, e não em Székesfehérvár,
como exigia a tradição, na época), e apreensiva com a influência de Roma, a maioria
dos senhores seculares e eclesiásticos convocou outro adolescente, o príncipe Venceslau

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da Boêmia, bisneto de uma filha de Béla IV, e neto de Otocar, mais tarde o último
governante Premislida da Boêmia. “Devidamente” coroado, mas desprovido dos meios
para exercer qualquer autoridade, ele foi, juntamente com a coroa sagrada, retirado do
país por seu pai, o rei Venceslau II, em 1304. Quando, no ano seguinte, ele herdou o
trono da Boêmia, renunciou à pretensão húngara em prol de seu parente e aliado, Otto
Wittelsbach, da Bavária, ele próprio neto de Béla IV. Sem contar com grande apoio no
país, o intento de Otto, coroado no final de 1305, estava fadado ao insucesso. Ele foi
expulso da Hungria por László Kán, voivoda da Transilvânia, que também tomou as
insígnias da coroação e se recusou a devolvê-las, a não ser em 1310, para Carlos
Roberto, que, graças ao apoio crescente no país, pôde auferir uma segunda coroação
ainda “indevida”, em 1309.
Mas a terceira coroação, em 1310, tendo respeitado o local e incluído toda a
parafernália exigida, foi plenamente legitimada. Preocupante, porém, foi a ausência de
alguns dos mais poderosos súditos do rei – o mais poderoso dos senhores regionais,
Máté Csák entre eles –, prenunciando outra década de contendas, desta vez entre o rei e
os oligarcas. Como se viu, o poderio destes últimos não surgiu em consequência da
extinção da dinastia da Casa de Arpad, mas teve origem nas últimas décadas do século
XIII, quando a autoridade real se tornara enfraquecida. Seus fundamentos eram a
fortuna pessoal e os altos cargos políticos (palatino, voivoda, ban, ispán), exercidos,
teoricamente, em nome do soberano, mas na realidade muitas vezes em aberta oposição
a ele; esse poder combinava as características de um feudo que crescera demais e as de
um estado-dentro-do-estado provincial com tendência à independência. Os oligarcas
mantinham cortes com cargos hierárquicos de pleno direito, os quais replicavam a do
rei; eles mesmos consagravam princeps ou dux, procuravam laços dinásticos com casas
estrangeiras, articulavam vínculos diplomáticos e travavam guerras internacionais.
Foi preciso coragem para embarcar na unificação do país em face da oligarquia;
ter lutado por ela com sucesso é um sinal inquestionável de habilidade política e de
competência militar. Depois de instalar seus quarteis generais em Temesvár
(Timisoara), no sul, cujo senhor, Ugrin Csák, era um de seus mais antigos e firmes
apoiadores, Carlos cuidou de derrotar seus adversários, um por um, os quais raramente
se uniram contra ele. O fato de o rei ser muito mais jovem que seus oponentes, também
ajudou: o controle da Transilvânia e das áreas ao norte foi garantido com uma rápida
reação às mortes de László Kán e Máté Csák, em 1315 e 1321, respectivamente. Mas a
vitória na batalha de Rozgony (Rozhanovce), em 1312, contra Csák e o clã Aba do

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nordeste, não decidiu, antes fez começar tudo; também se aproveitou a derrota do clã
Kószegi, em 1316, a do palatino Kopasz Borsa, em 1317, e, no sudoeste, a dos clãs
Subic e Barbonic, em 1323, para se criar as precondições do trabalho pacífico de
construção do Estado e das reformas econômicas que marcaram a segunda metade do
reinado de Carlos Roberto.
Foi simbólico da estabilização que, em 1323, a corte de Carlos tenha se mudado
para Visegrád, no coração do país. Um pavilhão erguido aos pés da cidadela, nos anos
de 1330, tornou-se a residência permanente do rei, até ser substituído por novos e
esplêndidos palácios sob Luís I e, especialmente, Sigismundo de Luxemburgo no final
do século. Afora as duas décadas de lutas, Carlos Roberto urdiu para si uma imagem de
considerável autoridade, a qual exerceu com circunspeção, e também com eficiência.
Foi também zeloso em reiterar sua descendência da Casa de Arpad (entre outros
expedientes, pela reunião dos motivos do brasão dos Arpad e os dos angevinos nos
novos emblemas). E também em afirmar a “restauração da antiga boa condição” do
reino como seu principal objetivo, enquanto ocorriam várias mudanças importantes,
inevitáveis em razão da maneira pela qual ele se estabeleceu no trono. Houve ainda
algumas inovações administrativas.
No decurso das guerras, a maioria dos castelos e herdades na Hungria foi
transferida para outros proprietários. O rei reteve um número suficiente deles para
assegurar, do mesmo modo que os antigos Arpad, a preponderância das propriedades
reais no país: no final do reinado de seu sucessor, Luís I, mais da metade dos castelos
(cerca de 150) e entre quinze e vinte por cento de todas as propriedades fundiárias
pertenciam ao rei. O restante foi repartido entre os nobres que tinham sido fieis a Carlos
desde o início. As poucas famílias influentes da era anterior que conseguiram preservar
sua importância juntavam-se agora a essa nova corte aristocrática, que era, de modo
bastante surpreendente, majoritariamente de origem nativa: além das famílias húngaras,
tais como Lackfi, Szécsényi, Ujlaki, Garai e outras, a única linhagem estrangeira que se
tornou ilustre foi a estabelecida por Fülop (Filippo) Druget, nascido numa família
italiana do sul de origem francesa, que chegou à Hungria com o séquito de Carlos,
quando ambos eram crianças. Para simbolizar a solidariedade entre o rei e sua nova
aristocracia, em 1326 Carlos Roberto instituiu a ordem de São Jorge, a primeira ordem
secular de cavaleiros da Europa Central (sobre cujo funcionamento, posterior, no
entanto, não dispomos de nenhum indício).

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Os novos barões eram, de fato, inquestionavelmente fieis; além disso, seus
domínios eram bases insuficientes para constituir um desafio à autoridade régia, ainda
quando reforçados pelas rendas dos castelos reais que eles administravam como ispáns
dos condados – uma prática introduzida por Carlos Roberto justamente para restabelecer
o prestígio e o poder do antigo sistema de condados reais, em um período em que os
condados tornavam-se cada vez mais uma instituição dominada pela nobreza mediante o
papel reforçado dos juízes por eles eleitos. Leais serviços à coroa tornavam-se, portanto,
um meio de ascensão social, assim como o sistema de familiaritas propiciava à pequena
nobreza uma chance de avançar no serviço aos súditos mais poderosos do rei, os barões
da corte.
Isso constituiu um elemento importante para a nova monarquia dos angevinos.
Uma vez que o sistema de “dignidades feudais” (honor) – bastante obsoleto como era, o
que refletia a natureza relativamente subdesenvolvida das relações de mercado na
Hungria – estava em vigor, Carlos pôde negligenciar a convocação de Dietas, o que a
emergente ideologia das classes previa desde os últimos Arpads, e o que ele só cumpriu
com relutância até que sua posição estivesse suficientemente estável. Assim como seu
sucessor, com frequência ele reivindicou governar, segundo sugeria a tradição siciliana
que remonta ao imperador Frederico II, com “a plenitude do poder” (plenitudo
potestatis), uma aspiração que se tornou cada vez mais plausível à medida que seu
reinado avançava à luz dos acontecimentos anteriormente descritos, e em decorrência
também das reformas na administração da justiça e na emissão de cartas régias. Carlos
Roberto assegurou com firmeza o próprio controle sobre os tribunais reais por meio da
escolha de juízes chefes fieis; já no reinado de Luís I o palatino também era obrigado a
abandonar as sessões dos tribunais nos condados e ajuizar sobre questões do âmbito de
sua província no tribunal régio. Em 1317, o chefe da corte clerical, o ispán da capela
real (posteriormente chamado também de “chanceler secreto”), foi autorizado a usar um
novo selo real; ou seja, terminara o monopólio da chancelaria para emitir cartas régias;
ao mesmo tempo, seu vice-chanceler era também um próximo confidente do rei.
A consolidação política angevina consistiu principalmente na combinação do
hábil tratamento aos subordinados e de um equilibrado exercício da autoridade,
enquanto a reorganização estrutural ficou em segundo plano. O caso das rendas reais foi
um tanto diferente. Devido ao sistema de “dignidades feudais”, há pouco referido, a
preponderância dos castelos e propriedades reais tinha relativamente pouco significado
econômico, porém um profundo impacto político. A fim de complementar suas rendas,

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Carlos Roberto racionalizou e reformou o sistema de regalia, constituído de impostos
diretos e indiretos, taxas e monopólios. Exploradas novamente durante o período Anjou,
as minas de sal da Transilvânia logo se tornaram a principal fonte de receitas para os
reis húngaros, que detinham o monopólio sobre seu comércio. A “trigésima” taxa,
esporadicamente mencionada em antigos documentos, passou a ser imposta sobre todo o
comércio exterior, e recolhida com muito mais rigor. Nesse comércio, as principais
exportações húngaras de matérias-primas, além da pecuária, eram os metais preciosos: a
maior atração para os mercadores italianos e germânicos do sul, que forneciam ao país
artigos de luxo, eram o ouro e a prata, dos quais a Hungria ficou conhecida como o
principal produtor mundial depois da descoberta das minas de ouro perto de
Körmöchánya (Kremnica) e Nagybánya (Baia Mare), na década de 1320. Segundo
estimativas, até o descobrimento do Novo Mundo, a Hungria respondia por um terço da
produção de metais preciosos da Europa, ou cerca de 5 mil libras de ouro e mais de 20
mil libras de prata por ano. Antigamente, proprietários locais dificilmente se
interessavam em explorar novas áreas, uma vez que o rei possuía o monopólio nas
rendas das minas. Desde 1327, tais proprietários foram autorizados a ficar com um terço
dessa renda, o que estimulou fortemente a produção, embora a maioria das minas ainda
se encontrasse em propriedades do rei. Ao mesmo tempo, o transporte de ouro e prata
em estado bruto tornou-se monopólio real. A entrega de todos os metais preciosos às
câmaras reais devia ser uma precondição da reforma monetária de Carlos: a emissão do
florim de ouro, que tinha por modelo o fiorino florentino, em 1326, com valor estável, e
uma relativamente estável taxa de câmbio em relação ao denarius de prata. A
substituição anual do dinheiro – a entrega compulsória de moedas para nova cunhagem
era um meio de os monarcas medievais “destruí-las” e, assim, reaproveitá-las – foi
abandonada; para compensar a perda resultante do “lucro da câmara” (lucrum camarae),
um novo imposto no valor de um quinto de florim por ano passou a ser cobrado de todas
as famílias servis. O resultado final dessas reformas foi um tesouro sólido, o fim da
anarquia econômica, e maior força e peso internacional.
Essas foram realizações espetaculares, embora, ironicamente, baseadas e
facilitadas, em parte, pelo relativo subdesenvolvimento da Hungria. Carlos Roberto
reconheceu que entre os escassos ativos do país estavam os recursos dos metais
preciosos, que podiam ajudá-lo a se projetar na economia internacional, e explorou
admiravelmente essa oportunidade. Ainda assim, a posição bastante desfavorável da
Hungria na economia internacional, como um mercado comprador principalmente de

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produtos industriais e artigos de luxo ocidentais, e que oferecia em troca pouco além de
ouro, prata, gado e vinho, não pôde ser alterada. Do mesmo modo, o fato de a Hungria
ter sido poupada da maior epidemia a atingir a Europa Ocidental da época, como foi a
peste negra de 1348, decorreu de ela ser então uma terra “vazia”, conforme qualificou
um frade dominicano francês que viajou pela Europa Oriental em 1308. Apesar dos
constantes assentamentos, em áreas virgens do leste e do norte da Hungria (hoje,
Eslováquia), de eslavos da Morávia, Polônia e de principados russos, e também de
germânicos e romenos – estimulados pelos reis angevinos por meio de privilégios –, a
densidade populacional continuou abaixo de dez habitantes por quilômetro quadrado até
o início do século XV. Havia longos intervalos no entrelaçamento das ocupações
urbanas, especialmente na Grande Planície, no leste, porém também no sudoeste
encontravam-se condados sem uma única cidade dotada de privilégios régios. A maioria
destas últimas concentrava-se em propriedades dos reis, que eram suficientemente
perspicazes para retirar cuidadosamente aglomerados urbanos selecionados da
autoridade do ispán, e dotá-los de autonomia e outros privilégios (o direito de realizar
feiras de âmbito nacional, o direito de “estocagem”, isto é, de explorar o tráfego
comercial etc.), além de colocá-los diretamente sob a jurisdição real (mais exatamente,
o tribunal do tesoureiro geral). Havia outras cidades em que as rotas de comércio se
cruzavam, e elas eram importantes também para as dioceses dos bispos, mas na falta de
privilégios urbanos e de autonomia elas não pertenciam ao patrimônio urbano
propriamente dito, que continuava reduzido e sem influência tanto como modelo social
como força política.
Por certo, os impostos das cidades contribuíram generosamente para o
fortalecimento fiscal dos reis angevinos, muito precisados disso para manter as forças
armadas, que eram cada vez mais utilizadas. Segundo a tradição, Carlos Roberto
introduziu a organização “bandeiral” bélica na Hungria, isto é, os mais importantes
conduziam suas tropas rumo à guerra sob suas próprias bandeiras (banerium). De fato,
essa prática já era conhecida na Hungria um século antes, mas o grupo de barões
habilitados a uma banderium em separado era então reduzido. A nova organização
baseava-se no sistema de honor: aristocratas da corte, os ispáns seguiam para a guerra
sob a bandeira do rei, à frente de tropas recompensadas com dinheiro do tesouro real.
Ademais, os dois reis angevinos confiaram no dispositivo da insurreição nobre, que,
contrariamente ao costume, tornou-se obrigatório mesmo no caso de uma guerra
ofensiva.

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Embora a unificação do país se adequasse bem a uma política externa expansiva,
e após 1323 o comando de Carlos Roberto sobre o país fosse sem precedentes desde os
tempos de Béla III, ele não conseguiu reproduzir seu sucesso militar contra os oligarcas
na cena internacional. A retomada do Banato de Maco da Sérvia, entre 1317 e 1319, foi
sua primeira expedição militar bem-sucedida, porém também a última. Embora a Bósnia
estivesse garantida como um Estado vassalo mais ou menos confiável, Carlos tentou em
vão obter, ao sul, a obediência do poderoso clã Subic, em 1322: seus aliados, os barões
croatas dividiram as fortalezas que foram tomadas entre eles mesmos, enquanto as
cidades da Dalmácia colocaram-se sob a suserania de Veneza. A tentativa de Carlos de
reduzir a Valáquia, o principado romeno que despontara nos Cárpatos, a sudeste da
Hungria, no início do século XIV, ao status de vassalo, terminou em um quase desastre.
O próprio rei escapou por pouco da batalha decisiva daquela campanha contra o
voivoda Basarab, em 1330.
Carlos saiu-se bem melhor em suas relações exteriores de viés pacífico, voltadas
principalmente aos vizinhos do norte da Hungria. Semelhanças de contingência
histórica também devem ter levado os três reinos da Europa Central a se manterem
unidos. As dinastias dos Piastas e dos Premislidas desapareceram quase ao mesmo
tempo na Polônia e na Boêmia, respectivamente, como a dos Arpads na Hungria; e
Carlos Roberto, Vladislau Lokietek e, em certa medida, João de Luxemburgo, desde o
início, prestaram mútua assistência uns aos outros, consolidando seus governos nos
respectivos reinos. Carlos casou-se posteriormente com a filha de Vladislau, Elisabeth,
enquanto o sucessor do rei polonês, Casimiro III (o Grande), nomeou o rei da Hungria e
os sucessores deste último como seus próprios herdeiros, vindo a morrer sem deixar
descendência. O maior sucesso da diplomacia de Carlos foi, contudo, a reconciliação
entre João e Casimiro: o primeiro renunciou à reivindicação ao trono da Polônia,
enquanto o último, por sua vez, sua reivindicação quanto à Silésia, durante encontro em
Trencsén (Trencin), em 1335, seguido, pouco depois, pela famosa reunião dos três
monarcas em Visegrád. Ali firmaram uma aliança de mútua defesa, bem como um
importante acordo comercial. Enquanto essa aliança voltava-se sobretudo contra a
Áustria, o acordo propunha estabelecer novas rotas comerciais rumo a territórios
germânicos, e assim impedir os direitos de estocagem de Viena.
Esses feitos compensam, aliás, o histórico ambíguo da política externa de Carlos
Roberto, cujo caráter resoluto e persistente gerava resultados que podiam não parecer
tão espetaculares, embora tenham sido os fundamentos sobre os quais seu sucessor, o

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esplêndido “cavaleiro real” Luís I (o Grande), construiu uma reputação que ofuscou seu
pai por muito tempo. Orgulhoso e ambicioso e, ao mesmo tempo, piedoso, Luís herdou
o trono em 1342, aos dezesseis anos de idade, e incorporou de diferentes formas o ideal
do monarca medieval, e em contraste com o sólido pano de fundo legado por seu
judicioso pai, não foi difícil para ele satisfazer sua paixão por grandeza e pompa. A
tradição e a historiografia antiga lhe atribuíram conquistas gloriosas e a criação de um
império “cujas costas eram banhadas por três mares”. Mas, de fato, suas conquistas
comprovaram-se bastante efêmeras; a Polônia, que manteve por um breve período uma
união pessoal com a Hungria após a morte de Casimiro, em 1370, a custo se expandiu
até o mar Báltico naquela época (sem falar no fato de que aquele relacionamento
envolvia parceiros iguais, e desse modo a Polônia não era governada pela Hungria); a
posição informal como vassalos da Moldávia e da Valáquia, os dois principados
romenos que emergiram na antiga “Cumânia” depois do enfraquecimento e do colapso
da Horda de Ouro tártara, dificilmente poderia justificar a pretensão de que o Mar
Negro foi “húngaro” sob Luís I. Ainda assim, a avaliação geral de Luís como uma
figura talentosa e poderosa, sob cujo reinado o status do Reino da Hungria representou
um fator a ser levado em conta na cena internacional, foi preservada, e até mesmo
fortalecida; além disso, foi um período em que processos importantes da sociedade
húngara chegaram a seu cume, e em que uma relativa prosperidade econômica e certa
estabilidade política interna contribuíram visivelmente para o florescimento da cultura
material e espiritual, bem como das artes.
No início de seu reinado, Luís buscou a grandiosidade em meio aos holofotes da
política de poder europeia. Isso ocorreu por ocasião do assassinato de seu irmão, André,
em 1345, em Nápoles. André era casado com Joana, que se tornou rainha de Nápoles
após a morte de seu pai, o rei Roberto; cortesãos dela mataram André, pouco depois de
Luís e a rainha Isabel [Elisabeth] terem obtido o consentimento do papa para a coroação
de André como rei de Nápoles. Insatisfeito com a investigação inconvincente conduzida
pela Santa Sé, Luís decidiu vingar-se por si mesmo. Depois de um árduo percurso até a
Itália, no segundo semestre de 1347, suas tropas entraram em Nápoles em fevereiro de
1348 sem encontrar resistência. Uma vez que Joana e seu segundo marido tinham
fugido para a França, Luís assumiu o título de rei de Nápoles e lotou os castelos com
cavaleiros húngaros e mercenários germânicos, deixando a seus apoiadores italianos
locais as principais funções. Entretanto, a chegada da peste negra obrigou Luís a deixar
a Itália. Com sua ausência, Nápoles logo capitulou, em junho de 1348, e Joana –

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contando com o apoio do papa, que dificilmente poderia ver com entusiasmo angevinos
húngaros conquistarem uma base também do lado italiano do mar Adriático – retornou a
Nápoles no segundo semestre. Um exército liderado pelo voivoda da Transilvânia,
István Lackfi, em 1349, e outro ainda, comandado pelo próprio rei, em 1350, tentaram
em vão recuperar Nápoles. Embora suas tropas tenham permanecido na Itália por mais
dois anos, com a paz de 1352 Luís abandonou tacitamente sua reivindicação. O fato de,
em 1381, Carlos de Durazzo, um jovem príncipe italiano criado na corte de Luís, ter
assumido o trono de Nápoles como Carlos III, depois de Joana ter sido sufocada,
representou algum consolo.
Seria razoável que Luís pudesse esperar maior sucesso nas menos remotas
Croácia e Dalmácia, as duas províncias que resistiram aos esforços de seu pai para
reunificar os territórios da coroa húngara. Em 1345, a invasão desses territórios
comprovou que bastaria para ele forçar a rendição dos barões croatas, e mesmo a do
porto dálmata de Zara (Zadar), sem combates. Contudo, no ano seguinte, a República de
Veneza, ao defender ciosamente sua hegemonia sobre o Adriático, retomou Zara,
infligindo uma grave derrota ao rei da Hungria. Luís só conseguiu reverter a situação
uma década depois. A campanha que liderou contra Veneza, em 1356, foi
inconcludente, mas em 1357 as cidades dálmatas rebelaram-se contra a República, e
reconheceram Luís como seu suserano, o que a paz firmada com Veneza em 1358 veio a
confirmar.
Ao mesmo tempo, Luís perseguiu uma política expansionista nos Bálcãs, de
modo a reiterar as tradicionais reivindicações de soberania, assim como, de forma
ostensiva, fazer proselitismo entre os “cismáticos” (ou seja, os ortodoxos) e erradicar a
heresia de Bogomil. Comandou pessoalmente várias das cerca de doze campanhas na
Sérvia, Bósnia e nos dois principados romenos. Depois da morte do tsar Dusan Stepan,
em 1355, a nação sérvia que ele criara nos Bálcãs logo se desintegrou, e Luís não teve
grande dificuldade em obter um juramento de fidelidade de seus sucessores após uma
série de campanhas realizadas entre 1359 e 1361. Um acerto semelhante foi garantido
com a Bósnia, não tanto por êxito das armas húngaras, mas devido ao conflito interno
que obrigou o ban Tvrko a ceder às reivindicações de Luís, em 1365. As tentativas de
sujeitar à obediência os “vassalos infiéis”, os voivodas da Valáquia e da Moldávia,
resultaram em um sucesso ambíguo, e o banato Vidin, estabelecido por Luís a partir das
ruínas do império medieval búlgaro, em 1369, teve curta duração. Enquanto a
supremacia militar húngara revelou-se bastante evidente ao longo desses combates nos

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Bálcãs, uma vez que nenhum dos rivais teve condição de lançar uma contraofensiva, os
objetivos políticos não foram alcançados ou, então, foram garantidos apenas
temporariamente. E no mesmo momento em que Luís lutava para implantar a soberania
húngara sobre os soberanos da região norte, um novo poder começava a preencher, no
sul, o vácuo deixado pelo enfraquecimento de Bizâncio e a desintegração da Sérvia e da
Bulgária: os turcos otomanos. Eles apareceram pela primeira vez em território húngaro
em 1375, como aliados de Vlajku, voivoda da Valáquia, que repudiava a suserania de
Luís. O efeito terrível desse breve ataque turco foi um prenúncio do que viria a se
tornar, cada vez mais, um recurso recorrente na história das áreas de fronteira nas
décadas que se seguiram.

Mapa pág. 105

4. Os Húngaros Angevinos e seus Vizinhos

Sacro Império Romano


Reino da Hungria
Banato de Maco
Bósnia
Croácia
Eslavônia
Grande Ducado da Lituânia
Reino da Boêmia
Territórios dos Habsburgos
Silésia
Reino da Polônia
Moldávia
Valáquia
Império Búlgaro
Sérvia
Reino de Nápoles
Estados Papais
Mar Adriático
Mar Tirreno

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Caros Roberto em 1330
Luís I em 1347-1348
Luís I em 1350
Luís I em 1351 e 1352
Luís I em 1363
Luís I em 1351

Luís I manteve-se belicoso no sudoeste e no sudeste, mas os vínculos pacíficos


que seu pai criou com seus vizinhos do norte e do nordeste foram reforçados. Suas
relações com os soberanos Habsburgos, da Áustria, eram cordiais, e apesar de duas
breves guerras, ele chegara a uma convivência amigável com Carlos IV de
Luxemburgo, com o rei da Boêmia e também com o imperador do Sacro Império
Romano (seu sogro até a morte da primeira mulher, Margaret). Seu mais próximo
aliado, porém, era o seu tio materno, Casimiro, da Polônia. A amizade entre eles foi
selada com a série de visitas que trocaram, e com as guerras que travaram juntos contra
a Lituânia, nas décadas de 1340 e 1350, o que fez surgir no leste da Polônia uma
potência a ser levada em conta. A união daqueles dois reinos soberanos após a morte de
Casimiro, em 1370, trouxe a Luís mais preocupações do que glória. Seus súditos
poloneses ressentiram-se do fato de ele ter se afastado de seu novo reino, deixando a
regência com sua mãe, Elisabeth [Isabel], que, apesar de sua origem – ela era irmã de
Casimiro –, cercou-se de cortesãos húngaros.
O simples fato de que durante os quarenta anos do reinado de Luís o exército
húngaro tenha combatido por trinta vezes no estrangeiro, dezesseis delas sob comando
pessoal do rei, já indica que, no plano interno, seu governo foi politicamente estável, e a
ordem social não se deparou com graves ameaças. Apenas nos anos de 1370, em um
período relativamente tranquilo nos campos de batalha quando comparado às décadas
anteriores, é que ocorreram algumas reformas administrativas abrangentes. Primeiro, a
chancelaria e o sistema jurisdicional foram reorganizados. A jurisdição tornou-se mais
uniforme, graças à audientia central criada sob o ispán da capela da corte para registrar
reclamações, indicar juízes e, desse modo, ajudar o rei a controlar os diferentes
tribunais. Tanto nestes como nas chancelarias, cresceu o papel dos leigos. Eles podiam
não ter grau universitário, mas conheciam a fundo os costumes locais, o que, assim
como ocorria na Inglaterra e seu direito consuetudinário, tinha maior importância que a

13
educação formal em disciplinas jurídicas. Uma nova chancelaria secreta foi organizada,
e o selo secreto, em uso desde os tempos de Carlos Roberto, tornou-se o símbolo da
vontade real, enquanto o grande selo foi “dividido” entre o rei e seu conselho, o que
sugeria que ambos passaram a ser, em princípio, considerados parceiros equivalentes no
governo.
Em documentos publicados pelas chancelarias de Luís, menciona-se com
frequência que as decisões do rei eram tomadas após consulta a seus prelados e barões,
isto é, ao conselho. De outro lado, os barões constituíam apenas o núcleo da corte
aristocrática, que, ao contrário do séquito disperso e instável dos reis Arpad, se tornara
um complemento bem organizado, quase institucionalizado em um adequado aparelho
burocrático de Estado, que ainda era inexistente. Além de serem guarda-costas do rei
em períodos de paz e o cerne de seu exército nas guerras, os cavaleiros, escudeiros e
pajens da aula regia, como passou a ser chamada, de fato administravam o país
mediante o envio de ordens do conselho aos condados e províncias, conduzindo
inquéritos em nome do rei nas questões em disputa, junto a embaixadas estrangeiras, e
assim por diante. O modo de vida e atitudes que essas poucas centenas de indivíduos
adquiriam na corte – uma vida de largos horizontes e de refinamento, tanto de
oportunismo como também de oportunidades – os colocavam em um mundo à parte da
vida sedentária de milhares de famílias de seus semelhantes, que só tinham como
perspectiva permanecerem confinados nos condados. As audiências na corte do condado
constituíam a mais animada atividade pública na vida destes últimos, que se sentiam
cortesãos “renegados” por terem abandonado a filiação ao clã patriarcal e o sistema de
valores associado à “liberdade nobre” em favor de uma carreira autônoma servindo a
autoridade da monarquia.
As tensões e clivagens começaram, assim, a aparecer no interior da classe nobre,
em uma época em que o longo processo de desenvolvimento de uma classe dominante
com status mais ou menos uniforme chegava ao fim. Demasiado abrangentes para os
padrões ocidentais (três a cinco por cento de toda a população), em consequência da
junção dos descendentes dos ispáns do período Arpad, dos servientes reais, dos
guerreiros castelães e de diferentes grupos detentores de imunidades e privilégios locais,
o estatuto de nobreza e o de propriedade fundiária definiam-se reciprocamente um ao
outro. Em outras palavras, o enfeudamento da propriedade em troca de serviço feudal, e
o nobre sem-terra, o cavaleiro andante, eram ambos fenômenos desconhecidos na
Hungria (assim como na Polônia). De outro lado, a natureza semelhante à de castas, na

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nobreza, seu status protegido por um conjunto de privilégios específicos eram os
mesmos tanto na Hungria como em qualquer outra parte da Europa Ocidental, e nisso a
legislação de 1351 – formulada pela única Dieta convocada por Luís, durante a crise
suscitada por seu fracasso militar em Nápoles e pela epidemia – constituiu um episódio
de importância simbólica. Já se enfatizou que cada um dos “verdadeiros” nobres que
viviam no país tinha direito à mesma liberdade; a Bula Dourada de 1222 fora ratificada,
à exceção do que estipulava sobre heranças. A livre disposição de bens pelo testador foi
abandonada em favor do costume da vinculação (aviticitas em latim): a propriedade
nobre era considerada como pertencente ao antepassado consanguíneo e a seus
descendentes do sexo masculino. Essa regulamentação permaneceu em vigor até 1848.
A inalienabilidade da propriedade nobre protegia a pequena nobreza da tendência à
desintegração do patrimônio, mas servia também ao interesse da coroa, que permanecia
como a origem da propriedade, e à qual o patrimônio revertia em caso de extinção da
linhagem masculina.
Leis emitidas pela mesma assembleia também favoreciam o processo de
desenvolvimento de um campesinato unificado, o que guardava mais semelhanças com
seu equivalente ocidental do que no caso da nobreza. A grande diversidade na condição
dos camponeses que caracterizou o período Arpad desapareceu no século XIV, quando
eles se tornaram, em sua maioria, sem-terra, ou seja, servos plebeus (jobbágy), livres
como pessoas, mas devendo aos donos pagamentos em espécie e em gêneros, em
retribuição pelo uso de lotes de suas terras como agricultores independentes. Esses lotes
(em latim, sessio) eram a unidade básica da economia agrária medieval, consistindo em
uma “área interna” adjacente à casa (em latim, porta, ou seja, um significado alternativo
da unidade de produção, assim como da tributação), alocada ao camponês dentro da
aldeia, e em uma “área externa” de terra arável fora dela. O tamanho médio dessas
áreas, que variava segundo as condições do local, era de trinta a quarenta acres, mas as
“áreas inteiras” tornaram-se cada vez mais uma ficção jurídica: a divisão da sessio em
metades, quartos ou oitavos começou no século XIV, e no século seguinte já havia uma
considerável comunidade de aldeãos (em húngaro, zsellér) sem área alguma, nem casa.
Como no caso da nobreza, o campesinato começou a se diferenciar, do ponto de vista
econômico, à medida que seu status se tornou mais padronizado. Independentemente da
proporção do campo que o servo cultivava, ele tinha direito hereditário ao seu uso, e
também possuía a prova mais valiosa de independência pessoal, o direito à livre
migração. Ao mesmo tempo, a legislação de 1351 confirmou o direito de jurisdição do

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dono da terra sobre o servo (em húngaro, úriszék, isto é, “tribunal do senhor”),
outorgado como um privilégio especial aos nobres com frequência cada vez maior.
Quanto às obrigações, deve-se enfatizar que a prestação de serviço (corvée)2, um sinal
de subserviência pessoal, foi mínima nesse período, enquanto as cotas crescentes ao
tesouro real e ao suserano indicavam o aumento da capacidade de cultivo do camponês,
malgrado a tecnologia relativamente primitiva e a natureza pouco rentável do sistema de
dois e mesmo de três campos. Além dos dízimos devidos à Igreja, já mencionei também
o “lucro da câmara”, a taxa padrão cobrada do camponês portae por Carlos Roberto
desde 1336; ademais, um “imposto de guerra” esporádico, de um florim anual, era por
vezes cobrado pela coroa. No que se refere ao dono de terras, ele era autorizado a
receber o aluguel pelo arrendamento em espécie e em “presentes” na forma de produtos.
A legislação de 1351 tentou, relativamente com pouco sucesso, introduzir padrões
uniformes concernentes ao fornecimento das prendas, ao estender a exigência da nona
(em húngaro, kilenced, isto é, o “nono dízimo”, devido após a prestação dos dízimos
eclesiásticos) dos viticultores a todos os camponeses. Isso visava a proteger a pequena
nobreza, cujos servos eram atraídos muitas vezes pelas propriedades de magnatas que
podiam oferecer condições mais favoráveis, especialmente nos anos após a peste negra,
quando a mão-de-obra se tornou mais valorizada. Mas, além dessa crescente carga de
impostos ao rei, ao suserano e à Igreja, a evidência mostra que um mercado cada vez
mais ativo de produtos agrários se desenvolveu no país nos séculos XIV e XV, com
base nos superávits produzidos por um campesinato cada vez mais próspero.
A prosperidade econômica e sócio-política gerada sob Carlos Roberto e, apesar
dos frequentes comprometimentos militares, preservada sob Luís I, não deixou de
causar impactos na cultura, no ensino e nas artes. Quer fossem urbanos, eclesiásticos ou
cortesãos, os ideais e comportamentos, os ambientes e as instituições, bem como os
produtos materiais e intelectuais da cultura húngara, nos séculos XIV e XV, podem ser
melhor interpretados se contrastados com as experiências ocidentais do mesmo período.
Mas sob o verniz, que dava um aspecto tão familiar ao observador ocidental, a
substância desses fenômenos foi modelada por fatores que introduziram uma estranha
particularidade na pintura como um todo.
A superfície consiste, em grande medida, nos poucos vestígios (e nas muitas
conjecturas) da arquitetura e da arte góticas, cujas produções foram vítimas de uma

2
Em francês no original; em português, corveia – serviço não remunerado que se prestava ao senhor ou
ao rei. (N.T.)

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destruição maciça durante os dois séculos de domínio otomano. Esses edifícios incluíam
as mais antigas moradas patrícias em localidades urbanas e mansões aristocráticas,
escavadas em cidades como Buda ou Sopron, estruturas em que a elegância artística
convivia com o engenho funcional. Igrejas paroquiais erguidas graças à prosperidade
das comunidades urbanas, como a de Santa Maria, construída pelos habitantes
germânicos do burgo de Buda, ou as catedrais de Kassa (Kosice, Kaschau), Kolozsvár
(Cluj, Klausenburg) ou Brassó (Brasov) são também bons exemplos de arquitetura
gótica, segundo modelos fornecidos pelas ordens monásticas, tanto as tradicionais como
as mendicantes. Estas últimas chegaram bastante cedo à Hungria. Os dominicanos,
tendo já estabelecido cerca de 25 mosteiros, perderam os favores reais depois de terem
ajudado Margarida, a filha de Béla IV, em sua busca de reclusão em um convento da
Ilha dos Coelhos (hoje, Ilha Margarida, entre Buda e Peste), contra o desejo de seu pai,
que pretendia que ela contraísse um casamento politicamente importante. No entanto,
ainda em 1304, os dominicanos inauguraram uma escola de teologia em sua sede mais
importante, a de Buda. No século XIV, eles foram superados em importância pelos
franciscanos, somando mais de uma centena de estabelecimentos em todo o país,
construídos com apadrinhamento aristocrático entre a criação da ordem provincial na
Hungria, em 1238, e o fim da Idade Média. Ao longo do século XIV, uma ordem
tradicional de origem autóctone, a dos paulinos, que empregou o nome do eremita São
Paulo, aprovada pelo núncio papal em 1308, também ganhou importância, tendo
construído cerca de cem mosteiros em dois séculos. Levando-se em conta que a
arquitetura eclesiástica foi dominada pela influência francesa e germânica, as
características mais notáveis da paisagem cultural eram os novos castelos, tais como os
palácios-fortalezas reais em Diósgyór e Zólyom (Zvolen), que devem ter se inspirado
em modelos italianos que foram obras-primas segundo os mais elevados padrões
europeus.
Além das finas peças de entalhe em madeira da região de Szepes, ao norte, que
revelam influência germânica mediada pelas escolas boêmia e polonesa, os modelos
italianos foram largamente empregados na escultura, na pintura e na iluminura de livros.
Vestígios da fonte do castelo Visegrád, dos angevinos, e entalhes na capela fúnebre de
Luís I, em Székesfehérvár, constituem monumentos impressionantes de escultura; em
tamanho natural, os retratos esculpidos encontrados em Buda, anteriormente datados
desse mesmo período, hoje são considerados como testemunhos da produção artística da
era do rei Sigismundo. Embora as estátuas de bronze dos santos Estêvão, Imre e

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Ladislau, esculpidas pelos renomados irmãos Martin e George de Kolozsvár, que
atuaram entre as décadas de 1360 e 1390, tenham se perdido, a única peça de sua autoria
que sobreviveu, “São Jorge e o Dragão” (de 1373, hoje em Praga), indica que era
possível tornar-se mestre de inspiração e qualidade europeias mesmo na periférica
Transilvânia. Caso semelhante é o da oficina real de ourivesaria, cujas mais esplêndidas
produções adornavam a capela dos peregrinos fundada por Luís I em Aachen, além dos
afrescos em Esztergom, Nagyvárad (Oradea) ou Zagreb, e, sobretudo, das pinturas em
miniatura que testemunham uma florescente cultura do livro. O códice conhecido como
o Hungarian Angevin Legendary (de c. 1330) foi provavelmente obra de mestres
bolonheses, porém outros manuscritos finamente ornados por iluminuras, como a Bíblia
ricamente ilustrada por Demeter Nekcsei, o tesoureiro-presidente de Carlos Roberto, ou
a Illuminated Chronicle (c. 1360) foram obras-primas dos ateliês húngaros.
Não obstante o predomínio eclesiástico, elementos de secularismo também
marcaram a cultura húngara do século XIV. Embora a maioria dos funcionários na
capela real fosse de clérigos graduados em universidades italianas, os da chancelaria
eram literati (“homens de letras”, em húngaro deák), juristas leigos que tinham estudado
em escolas húngaras. A onda de fundação de universidades na Europa Central também
atingiu a Hungria: depois de Praga (1348), Cracóvia (1364) e Viena (1365), Luís I
inaugurou uma universidade em 1367, em Pécs. Uma vez que o papa se recusava a
autorizar uma faculdade de teologia, essa universidade restringia-se à formação básica
em artes, direito e, eventualmente, em medicina. Sua principal proposta deve ter sido a
de fornecer juristas para a capela real, porém nos anos de 1390 ela deve ter deixado de
funcionar.
Os dois gêneros característicos da literatura secular medieval, a poesia cortesã e
os escritos históricos, surgiram na Hungria repletos de interessantes paradoxos. Os
costumes da vida cavalheiresca – o uso de armaduras e escudos, os torneios – foram
adotados até certo ponto pela corte, especialmente sob Luís I. O culto de São Ladislau,
considerado seu antecessor no papel de “rei cavaleiro”, foi valorizado no reinado de
Luís; a tradução húngara do romance de Alexandre, do século XII, foi reformulada de
modo a tornar seu protagonista parecido com o próprio Luís; ademais, uma história do
reinado de Luís foi escrita por János Küküllei, na qual o caráter e as virtudes
cavalheirescas de seus esforços e empreendimentos foram enfatizados. Além disso, a
única “lenda cavalheiresca” de alguma importância do período angevino a sobreviver
foi a de Miklós Toldi. Na vida real, Toldi serviu como mercenário na Itália, mas ele foi

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retratado como um herói honesto que ascendeu como cavaleiro de Luís, malgrado as
intrigas malignas de seu irmão cortesão, e foi imortalizado no épico do século XIX de
autoria de János Arany. A poesia lírica parece não ter existido. Em vez de trovadores, a
Hungria teve bardos populares que louvavam os barões e seus antepassados, porém não
suas damas. Embora promissores no início do século XII, o ethos e a mentalidade
ligados à cavalaria do Ocidente não se desenvolveram plenamente na Hungria. São
abundantes as contradições também nos textos de historiografia. Conquanto produzidos
pelos clérigos (com a exceção, em parte, de Kürküllei, que começou sua carreira como
leigo na chancelaria, embora a tenha terminado como arquidiácono), neles o legado
cristão do país quase foi eclipsado pelo dos chefes e dos clãs, ou seja, pelas
representações do passado pagão, reforçadas também pelo suposto vínculo de
parentesco entre os hunos de Átila e os húngaros. Inicialmente sugerida pelo
“Anônimo”, essa ideia tornou-se corrente com a crônica de Simon Kézai, que viveu na
corte de Ladislau IV, por volta de 1285. Entremeada com a ênfase no papel da nobreza
sobre o Estado, a teoria sobreviveu e se tornou extremamente influente no início do
período moderno. Por fim, conquanto o vernáculo fosse a linguagem por excelência da
cultura secular, desde a época em que essa cultura era oral, as poucas relíquias escritas
que chegaram até nós ainda foram concebidas em um contexto eclesiástico. O Lamento
de Maria, primeiro poema em húngaro de que se tem notícia, foi escrito em torno de
1300 em versificação refinada, o que sugere que a poesia em vernáculo não era
incomum naquela época.

2. Desafios e Respostas: Barões Rebeldes e Monarcas Vacilantes, Otomanos


Conquistadores e um Senhor da Guerra Carismático

Luís I morreu em 1382, sem deixar descendentes do sexo masculino, o que


tornou sua sucessão nada tranquila naquela sociedade patriarcal, embora suas filhas e os
maridos delas pudessem esperar pelo apoio dos aristocratas fiéis ao rei. O próprio desejo
real de Luís de fazer sua filha mais velha, Maria, a herdeira dos dois tronos, foi
frustrado pelos barões poloneses, que desaprovavam a ideia de um governante ausente.
A rainha mãe, Elisabeth [Isabel], acabou por ceder: sua filha mais nova, Hedwig, foi
enviada à Polônia e ali coroada, casando-se com o príncipe, ainda pagão, Jagiello, da
Lituânia, o qual então foi batizado e assumiu o trono da Polônia como Vladislau II, em
1386. Na Hungria, contudo, embora Maria tenha desposado Sigismundo de

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Luxemburgo, margrave de Brandemburgo e filho do imperador Carlos IV, o palatino
Miklós Garai e a própria rainha mãe preferiram, inicialmente, convocar Luís de Orleans,
irmão do rei da França, para assumir o trono; enquanto isso, a nobreza dos condados,
liderada pelo clã Horváti, considerando expressamente a sucessão por mulheres como
uma anomalia, preferia como sucessor Carlos de Durazzo, rei de Nápoles, que era o
último representante masculino da Casa de Anjou.
Com a anarquia que se seguiu, Sigismundo foi capaz de impor as núpcias com
sua noiva oficial em fins de 1385, e as duas partes da corte se reconciliaram, mas logo
tiveram de enfrentar uma Dieta hostil, convocada pelos Horvátis. Sigismundo refugiou-
se na Boêmia, e as damas reais foram feitas prisioneiras (Elisabeth seria mais tarde
estrangulada); mas embora Carlos II tenha sido coroado em 31 de dezembro de 1385,
reinou por apenas por 39 dias, até ser assassinado. Os nobres liderados pelos Horvátis se
recusaram a se render, mesmo depois da volta de Sigismundo, escoltado por seu irmão,
Venceslau, rei da Boêmia e da Germânia. Foi o apoio dos barões, então atuantes em
uma associação formal que exercia o poder em um país desgovernado, que conferiu a
Sigismundo o título de “Capitão da Hungria”, e o ajudou a ser coroado, em março de
1387, e a libertar sua esposa um pouco mais tarde.
As circunstâncias de sua ascensão ao trono demarcaram uma margem de ação
bastante estreita para Sigismundo durante os primeiros anos de seu reinado, e também
tiveram consequências profundas sobre o equilíbrio de poder no país. Conquanto Maria
fosse corregente, apenas nominalmente (o que durou apenas até 1395, com sua morte
prematura), Sigismundo teve de aceitar os termos impostos pelos barões que
governaram o país durante o interregno de 1386. Ele uniu-se à liga organizada pelos
barões, autorizando-os a tomar medidas coercivas contra ele, caso deixasse de cumprir
suas promessas. Entre estas, estava a determinação de que os membros de seu conselho
fossem escolhidos em meio ao círculo de prelados e barões, ou entre os herdeiros destes
– em outras palavras, a liga apresentava uma reivindicação de hereditariedade ao
governo do reino –, bem como a de que não se doassem terras a estrangeiros. Com
efeito, as principais instalações, juntamente com as terras de honor que lhes pertenciam,
foram divididas entre os membros da liga; e afora as distinções e benefícios [feudais],
eles também obtiveram enormes latifúndios privados dos domínios régios, uma vez que
o jovem rei não estava em condição de se recusar a retribuí-los por seus serviços. Mais
da metade dos castelos dos Anjou (cerca de oitenta, do total aproximado de 150) foram
distribuídos, concentrando-se em mãos de trinta famílias de barões; enquanto isso, o

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número de aldeias em domínios reais caiu para um terço do que tinha sido durante o
reinado dos angevinos (cerca de 1100, ou apenas cinco por cento do total). O governo
da liga era, no início, bastante estável: a oposição interna, ainda alimentada pelos
Horvátis, foi sufocada, o controle de Sigismundo sobre as províncias do sul foi
reforçado, e a área em torno de Pozsony, hipotecada por Sigismundo durante as
dificuldades que enfrentou, em 1386, foi recuperada alguns anos depois. Porém, os anos
imediatamente anteriores e posteriores a 1390 tiveram um papel fundamental no longo
processo que levou ao desaparecimento da antiga preponderância das propriedades
reais, entre os anos de 1200 e de 1500. A formidável riqueza familiar acumulada pelos
magnatas transformou o panorama sociocultural e as relações de poder político no país,
e tornou a facção baronial uma fonte sempre potencial de desintegração.
Foi também nesses anos que uma outra força despontou nas fronteiras sul do
Reino da Hungria, e, de modo semelhante, passou a representar uma ameaça à sua
integridade territorial. Depois de obter uma base desse lado do Bósforo graças à
conquista de Galípoli, em 1354, os turcos otomanos – poucas décadas antes, um
insignificante principado na Ásia Menor – ocuparam implacavelmente o vácuo de poder
que surgira nos Bálcãs, em consequência do conflito interno em Bizâncio e da
desintegração da Sérvia e da Bulgária. Sob a liderança de Murad I e Bajazeto I, eles
conquistaram grande parte da Anatólia, da Rumélia e da Bulgária, subjugaram a Sérvia,
depois da calamitosa derrota de Lázaro I em Kosovopolje (1389), e rebaixaram a
Valáquia à condição de Estado vassalo (1394). Muito embora o Reino da Hungria fosse
uma potência em condições diferentes daquelas dos debilitados Estados balcânicos, e os
otomanos não pudessem sequer pensar em conquistá-lo até mais de um século depois
daqueles feitos, suas recorrentes incursões e, desde então, sua presença constante ao
longo de toda a fronteira húngara meridional afetaram gravemente a política externa do
país, seus recursos econômicos e seu ânimo. Considerando-se, primeiro, que os reis
húngaros reivindicaram durante séculos direitos de suserania sobre os governantes do
norte dos Bálcãs e realizaram com regularidade incursões na região, essas oportunidades
então abruptamente cessaram. Em segundo lugar, conquanto exércitos estrangeiros não
tivessem mais devastado o território húngaro desde a invasão mongol, em 1241, as
invasões turcas tinham se tornado, agora, frequentes nos condados do sul, cuja
população ou fugia ou se tornava vítima da violência, começando a ser substituída por
eslavos egressos dos Bálcãs já no século XV.

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Abalada com essa nova situação dramática, não é de surpreender que a nova elite
húngara tenha encontrado dificuldades para se adequar a suas exigências. Conforme a
tradição de busca da glória pelos húngaros, ela reivindicava uma ofensiva em represália,
culpando em seguida o dirigente ou soberano no poder por um fracasso posterior, o que
era praticamente inevitável: Estados europeus mais poderosos, estáveis e prósperos que
a Hungria também teriam encontrado dificuldade em resistir ao poderio militar otomano
nesse mesmo período.
Sigismundo foi o primeiro a vivenciar as tensões internas daí resultantes, e não
pôde escapar a suas consequências. Reconhecendo, sobretudo após a tragédia sérvia de
1389, as dimensões do perigo, comandou ou enviou todos os anos suas tropas para
combater os otomanos, entre 1390 e 1395, mas não conseguiu travar uma batalha
decisiva, obtendo como único resultado a reabilitação de seu protegido, o voivoda
Mircea, que assumiu o trono da Valáquia em 1395. Em 1396 ele marchou rumo aos
Bálcãs à frente de um exército internacional de cruzados a fim de expulsar os otomanos
da Europa “de uma vez por todas”, mas o cerco do castelo búlgaro de Nicópolis
(Nikopol) foi um fracasso catastrófico. O próprio sultão Bajazeto chegou a ajudar os
sitiados, e a estratégia falha, adotada por insistência de cavaleiros franceses, quase
resultou na aniquilação do exército cristão. Vários líderes húngaros tombaram ou foram
capturados, e o próprio Sigismundo teve de voltar para casa depois de ter escapado por
pouco e após uma longa circunavegação pela península balcânica.
A derrota deu margem à polarização das forças políticas no país. Sigismundo
pôde, plausivelmente, usar a ameaça otomana como argumento para reforçar a
autoridade real. De fato, ele vinha fazendo esforços para livrar-se da tutela dos barões,
pelo menos desde 1392, quando dispensou seu primeiro palatino, István Lackfi, o mais
poderoso deles. Ao mesmo tempo, Sigismundo tentou criar um contraponto, formando
uma nova elite de cavaleiros de fora da aula e também de partidários estrangeiros. Sua
fidelidade foi adquirida, consolidada e recompensada por doações de vastas
propriedades, bem como por cargos. Foi assim que o cavaleiro polonês de Luís I, Stibor
de Stiborc, se tornou voivoda da Transilvânia; Hermann Cillei, da Estíria, passou a ser
conde da Zagória; Eberhard, germânico do sul, foi nomeado bispo de Zagreb e, depois,
chanceler; Miklós Garai tornou-se ban da Croácia e Eslavônia e, mais tarde, palatino;
Filippo Scolari (Pipo de Ozora), antigo empregado de um banco florentino em Buda,
veio a ser diretor das câmaras do sal, ispán de Temes e, por fim, um bem-sucedido

22
general. As famílias Marcali, Perényi, Csáki, Rozgonyi, Pálóci, entre outras, também
alcançaram importância e fortuna sob Sigismundo.
Inicialmente, o rei testou a força de sua nova equipe em uma Dieta convocada no
outono de 1397 em Temesvár. Ele ratificou a Bula Dourada, mas sem a famosa cláusula
do direito de resistência, além de suspender outra cláusula, a que limitava os deveres
militares da nobreza na guerra defensiva. A ameaça otomana, que obliterava os limites
entre guerra ofensiva e defensiva, com efeito tornava aquela disposição obsoleta, e
Sigismundo procurou responder às exigências da época mediante a introdução de uma
espécie de milícia: todo proprietário de terras devia fornecer um homem à cavalaria
ligeira a cada vinte (desde 1435, 33) lotes campesinos (daí o nome, militia portalis).
Ademais, a Igreja foi obrigada a ceder a metade de suas rendas para fins militares em
tempos de guerra. Tudo isso equivalia a desafiar os privilégios ficais dos dois principais
estamentos.
Foi naquela atmosfera do fracasso ocorrido em Nicópolis que os barões,
insatisfeitos, se rebelaram pela primeira vez contra as inequívocas afirmações de
independência de Sigismundo. O negligenciado Lackfi comandou essa rebelião no
início de 1397, a qual foi reprimida com facilidade, uma vez que a maioria dos barões
ainda tomava o partido do rei. Desde 1399, porém, Sigismundo se deslocou várias vezes
à Boêmia, que também estava dividida pelo sectarismo baronial, esperando poder
suceder a seu irmão Venceslau, que não tinha herdeiros. Sua prolongada ausência criou
uma situação crítica. Ao voltar para a Hungria, em abril de 1401, Sigismundo foi detido
pelo palatino Detre Bebek e pelo chanceler (também arcebispo de Esztergom) János
Kanizsai no castelo de Buda. Ao se recusar a suspender as funções de seus partidários
“estrangeiros”, foi declarado prisioneiro, e um conselho de barões e prelados assumiu o
poder e alegou governar o país sob o “selo da Sagrada Coroa”. Contudo, incapazes de
chegar a um acordo sobre quem substituiria Sigismundo (os candidatos eram Vladislau
II da Polônia, o príncipe austríaco Guilherme e também Ladislau, rei de Nápoles e filho
de Carlos de Durazzo), eles negociaram uma solução de compromisso com o rei:
Sigismundo manteria o trono, em troca da promessa de destituir seus funcionários
estrangeiros.
Logo Sigismundo se tornou “mais poderoso que nunca”, pelo menos na opinião
do rei da Boêmia; na verdade, a quebra de sua promessa de 1401 incitou os barões a um
último grande esforço para depô-lo. Quando Sigismundo firmou um acordo de sucessão
com Alberto IV, duque da Áustria, o qual também indicava este último como

23
governante da Hungria em sua ausência, a oposição, novamente liderada por Bebek e
Kanizsai, convocou Ladislau de Nápoles para assumir o trono. Ladislau já tinha enviado
tropas à Dalmácia, e foi coroado, em Zara, em agosto de 1403; o movimento por todo o
país, envolvendo a maior parte das casas baroniais que surgiram no período dos Anjou,
bem como a hoste de seus familiares, parecia realmente temerário. Mas embora essa
Hidra de múltiplas cabeças fosse incapaz de atuar de forma concertada, os comandantes
do rei agiram prontamente, e com grande determinação. A maioria dos barões rendeu-se
a tempo de tirar proveito da anistia geral oferecida por Sigismundo; os poucos que
persistiram tiveram suas propriedades confiscadas, e alguns foram deportados, mas
nenhum deles foi executado. Ladislau voltou para Nápoles ainda em novembro de 1403,
deixando para trás seu vassalo bósnio Hervoja como governante da Dalmácia, a única
província onde o poder de Sigismundo não fora restaurado. Em 1408, a maioria das
cidades foi recuperada, graças a uma derrota infligida a Hervoja, porém Ladislau
manteve Zara, bem como alguns castelos e ilhas, e então os negociou simultaneamente
com sua reivindicação veneziana sobre a Dalmácia. Em 1420, por meio de várias
guerras, Veneza conquistou toda a província, e embora os comandantes de Sigismundo
tenham triunfado várias vezes, desde então, sobre os mercenários da República, com a
paz firmada em 1433 os húngaros perderam a Dalmácia para sempre. Os ganhos, no
entanto, foram bem mais significativos: as lutas pelo poder acabaram, e os adversários
de Sigismundo, enfraquecidos e desmoralizados, não conseguiram mais representar uma
ameaça ao seu controle do país até o final de seu longo reinado. Sigismundo procurou
então implementar seus planos de reforma interna de longo alcance, em um país que
deveria constituir também o ambiente estável para suas ambições, igualmente de longo
alcance, na política externa.
Ao assentar as bases da estabilidade política, Sigismundo pôde contar com um
grupo de convictos defensores reunidos na luta contra os barões. A nova aristocracia,
além de ter recebido vastas propriedades e cargos influentes em troca de seus serviços,
também se uniu ao rei por via dos laços simbólicos e dinásticos firmados nos anos
posteriores a 1403. Em 1405, Sigismundo se casou com Borbála, filha de Hermann
Cillei, tornando-se, assim, também cunhado de seu novo palatino, Miklós Garai; e, em
1408, depois de uma derrota na Bósnia, ele fundou a Ordem do Dragão, uma liga de
cavaleiros do rei, da rainha e de 22 barões que tinham prestado os mais valiosos
serviços ao soberano, ao reprimir a revolta de 1403. Ao mesmo tempo, conquanto o
título de barão continuasse se referindo a pessoas de grande riqueza e status elevado, os

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principais dignitários deixaram de receber cargos feudais (honor), e consequentemente
se tornaram simples conselheiros, sem que uma base de poder territorial lhes fosse
conferida juntamente com seus títulos. Os castelos reais passaram a ser administrados
por capitães, que não participavam da tomada de decisões políticas. O monopólio dos
barões sobre os assuntos do Estado também deixou de existir, já que o rei consultava
geralmente “conselheiros especiais” recrutados entre estrangeiros, a média nobreza e os
clérigos, ou ainda especialistas em assuntos jurídicos, financeiros e militares, os quais
podiam ser até mesmo plebeus. Uma vez que a estes últimos não se doavam
propriedades, pagando-se salários por seus serviços, a reorganização do conselho por
Sigismundo prefigurou elementos de uma futura burocracia estatal. Paralelamente, o
aperfeiçoamento do funcionamento das chancelarias se restringiu a uma limitada
secularização do pessoal, sem as transformar em um órgão executivo do poder central; a
elas coube apenas passar as determinações reais para a escrita, de modo a serem
executas pela aula, cuja natureza não mudou muito desde a época dos Anjou. A
jurisdição foi reformada de modo a aumentar sua eficiência e profissionalismo. No final
do reinado de Sigismundo, as diversas altas cortes que existiam anteriormente no
interior da curia regis foram agrupadas no tribunal “da presença especial do rei” (de
fato, o tribunal da chancelaria), em parte porque as longas ausências de Sigismundo no
final de seu reinado tornavam, igualmente, obrigatória a delegação da “presença pessoal
do rei”; e o tribunal do tesouro, que tinha começado a julgar questões dos burgos livre
reais, sob os Anjou, passou a ser autorizado exclusivamente a isso, tornando-se repleto
de plebeus.
Por múltiplas razões, as cidades foram também firmes apoiadoras da política de
consolidação de Sigismundo. Sua população consistia predominantemente de
estrangeiros, sobretudo germânicos, que, em uma época de xenofobia, podiam esperar
proteção tão somente do rei, ele próprio estrangeiro; além disso, o enfraquecimento do
poder central podia acarretar às cidades a perda de seus status privilegiados. De outro
lado, desde que o número de fortalezas reais caiu dramaticamente, após 1387, a
importância das cidades amuralhadas aumentou significativamente, aos olhos do rei, e o
fato de os rebeldes serem rechaçados na entrada das cidades com muralhas teve um
papel no sucesso de Sigismundo contra os barões. Reconhecendo isso, ele se esforçou
desde então para aumentar o número de cidades fortificadas – para cerca de 1400,
quando havia apenas uma vintena delas no país – e também o poder político dessas
urbes. Foi com Sigismundo que as muralhas de Kolozsvár, Késmárk (Kezmarok),

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Eperjes (Presov) e Bártfa (Bardejov) foram completadas, embora seu plano de fortificar
certo número de cidades mercantes, ou oppida (na verdade, aldeias expandidas,
autorizadas a abrigar mercados semanais e, ocasionalmente, feiras anuais), tenha sido
frustrado por falta de recursos financeiros. Em uma mudança sem precedentes,
Sigismundo convocou representantes das comunidades urbanas para uma assembleia de
âmbito nacional, em 1405, a qual resultou em importantes decretos. As cidades livres
ficaram isentas de direitos aduaneiros internos; os direitos sobre produtos básicos de
Buda foram suspensos em relação a elas; comerciantes estrangeiros passaram a ser
autorizados a praticar apenas o comércio por atacado. Elas adquiriram direitos de
jurisdição; a jurisdição suprema sobre elas pelo tribunal do erário público já foi
mencionada. Após 1405, a legislação de Buda foi desenvolvida, substituindo a “lei de
Szekesfehérvár” como modelo de estatutos urbanos e tornando-se a base da “legislação
do erário público”, o direito comum das cidades livres. Tudo isso contribuiu
consideravelmente para a crescente importância econômica e a prosperidade das
cidades, e especialmente do rico patriciado mercantil que mantinha forte controle sobre
os magistrados da cidade diante da concorrência bastante fraca das guildas.
Todavia, as reformas de Sigismundo não lograram corrigir as anomalias do
desenvolvimento urbano na Hungria. As cidades continuaram de tamanho pequeno,
Buda, com aproximadamente oito mil habitantes, sendo a mais populosa delas; não
havia propriamente uma rede de cidades “genuínas” (isto é, dotadas de carta régia);
todas as de maior importância foram edificadas nos portais das rotas de comércio que
levavam à Áustria, à Polônia e aos Bálcãs, deixando assim um vácuo nas regiões
centrais do país. As poucas centenas de cidades mercantes distribuíam-se de modo mais
regular. Esses povoamentos de segunda categoria forneciam também facilidades de
intercâmbio às famílias de camponeses que viviam neles ou em seu entorno, e, até certo
ponto, mesmo alguma infraestrutura cultural, além de certos privilégios sociais e
liberdade pessoal. Ao mesmo tempo, eles contribuíam para a descentralização de um
mercado interno que era, de toda forma, limitado; e em última instância ainda estavam à
mercê do suserano local, fosse ele secular ou eclesiástico.
Além dos novos aristocratas e das cidades, a Igreja também se tornou um dos
alicerces da consolidação de Sigismundo. Diferentemente da maioria dos monarcas
europeus, os angevinos húngaros exerceram, no século XIV, forte controle sobre a
investidura dos prelados, mas, na turbulenta década de 1380, essas amarras se
afrouxaram e, em 1403, tanto arcebispos como diversos bispos tomaram o partido dos

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rebeldes. Eles foram encorajados a isso também pelo fato de o papa Bonifácio IX, que
tinha observado a benevolência de Sigismundo diante de seu rival Bento XIII, ter
apoiado o pretendente napolitano. Isso foi o pretexto para que o rei, quando as
tribulações cessaram, restringisse severamente a influência papal na Hungria: desde
1404, nenhum decreto ou veredito procedente de Roma podia ter efeito no país, a menos
que obtivesse o assentimento real (placetum regium), e o rei reservou expressamente
para si o direito de investidura (confirmado pelo concílio de Constança, em 1417).
Sigismundo exerceu esse direito com energia, recebendo considerável apoio político dos
novos incumbentes dos benefícios eclesiásticos. Não hesitou em colocar a riqueza da
Igreja a serviço da monarquia: antes de substituir os prelados rebeldes por outros dos
quais podia esperar lealdade, deixou seus domínios feudais vagos por vários anos, e os
administradores laicos aos quais eles foram confiados recolhiam suas rendas para o
tesouro real. Nos últimos anos de seu reinado, Sigismundo retomou esse método de
aumento na arrecadação de receitas, dessa vez com o objetivo de financiar as
fortificações e os preparativos militares contra a Turquia ao longo da fronteira do sul.
A Igreja, ou, para ser mais preciso, a restauração da unidade da Igreja latina,
tornou-se também um dos principais focos da política externa de Sigismundo, em
paralelo e em íntima conexão com sua ambição de se tornar sacro imperador romano, o
mais alto posto hierárquico entre os soberanos cristãos. Desde o agravamento do estado
de saúde de seu irmão Venceslau, Sigismundo foi considerado um candidato ao trono
germânico; e, após a morte do sucessor de Venceslau, Ruprecht, ele foi nomeado rei da
Germânia, em 1411. Esse desdobramento afetou também seu próprio status de rei da
Hungria, assim como a própria história húngara. Ao mesmo tempo, o fato de que o
Reino da Hungria se situava fora do Império, e era muito mais poderoso do que
qualquer dos principados germânicos, facultou a Sigismundo uma sólida base política,
econômica e militar, possibilitando que desfrutasse de uma independência muito maior
do que, geralmente, a de outros reis germânicos. Todavia, o título de imperador veio
apenas se acrescentar ao de um dos “Reis de Roma”, que lhe foi outorgado pelo papa, e
antes que Sigismundo pudesse empreender a arriscada e custosa viagem a Roma, o
grande cisma da Igreja ocidental precisou ser resolvido, o papado em Roma, restaurado,
e a crise geral da Igreja cristã, administrada.
Desde 1378, havia dois papas na Igreja ocidental, um em Avignon (onde o
papado se tornara “cativo” dos reis da França desde 1309), e outro em Roma; em 1409,
o concílio de Pisa chegou a eleger um terceiro. Sigismundo procurou pôr fim ao cisma

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com grande determinação. Foi em grande parte graças à sua habilidade diplomática e
simpatia pessoal, exercidas também no transcurso de visitas diplomáticas que
abrangeram desde a Espanha até a Inglaterra, que o maior encontro internacional da
Europa medieval e pré-moderna, o concílio de Constança (1414-1418), resolveu sua
mais premente questão: os três papas foram obrigados a renunciar, e um outro foi eleito
por unanimidade. Sigismundo podia agora fazer-se coroar imperador. O fato de isso ter
sido adiado até 1433 deve-se em parte a complicações causadas pelo fracasso em se
resolver o segundo item da agenda de Constança: a reforma da Igreja, especialmente em
relação à sua crescente mundanidade e à preponderância da hierarquia papal, pontos que
foram objeto de críticas por várias décadas. Sigismundo comprometera-se também com
esses objetivos, mas foi incapaz de convencer a maioria conservadora do sínodo a
considerar com seriedade a renovação interna da Igreja; ao contrário, essa ala assumiu
uma posição implacável contra uma reforma radical, e, em 1415, mandou Jan Hus para
a fogueira. Teólogo e pregador oriundo da Boêmia, onde as ideias do reformista inglês
do século XIV, o teólogo João Wycliffe, eram bastante influentes, o martírio de Hus
suscitou uma atmosfera revolucionária em sua terra natal. Além disso, o fato de ter
chegado a Constança a fim de discutir seus princípios munido de um salvo-conduto
concedido por Sigismundo por certo não fez aumentar a popularidade do rei da
Germânia e da Hungria na Boêmia, cujo trono este também veio a herdar, em 1419. Na
época, o país estava em mãos dos hussitas, e embora Sigismundo, recusando-se a aceitar
as demandas de seus “pontos de Praga”, pôde ser coroado em 1420, e por mais de uma
década travou uma guerra defensiva contra os hussitas ao longo das fronteiras do
noroeste da Hungria. Somente quando ele e os potentados eclesiásticos do concílio da
Basileia – convocado em vão para dar andamento à reforma eclesiástica em 1431 – já
estavam prontos para um compromisso com a ala moderada do movimento, os radicais
hussitas puderam ser contidos.
Em termos militares, foi o norte da Hungria que sofreu várias incursões
devastadoras de parte dos hussitas (Pozsony/Bratislava, 1428; Nagyszombat/Trnava,
1430; condado de Szepes, 1433). Contudo, o impacto ideológico dos hussitas pôde ser
detectado principalmente nas aldeias e cidades mercantes do condado meridional de
Szerém (Srem), onde o inquisidor papal Giacomo della Marca fez queimar muitos
hereges, em 1436 e 1437, e onde as primeiras traduções da Bíblia para o húngaro
(subsistentes em versões incompletas) foram preparadas por pregadores hussitas.
Parece, no entanto, improvável que o hussitismo tenha tido alguma influência direta,

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como já se sugeriu, na primeira grande revolta camponesa na Hungria. Seu pano de
fundo geral foi o impacto das dificuldades financeiras de Sigismundo sobre as
demandas dos proprietários por causa de seus rendeiros. Embora a renda regular da
coroa fosse de, pelo menos, consideráveis 300 mil florins por ano (e, possivelmente, até
bem mais), as injunções políticas constituíam uma atividade cada vez mais dispendiosa,
especialmente para um governante com grandes ambições na política externa, com uma
corte à altura de sua posição e diante da necessidade de manter uma grande força
defensiva. Além da cobrança de impostos esporádicos, em particular da Igreja, e dos
patrimônios reais hipotecados (mais notoriamente, as cidades saxônicas do condado de
Szepes, que só foram recuperadas da Polônia em 1772), ele também retomou a velha
prática do aviltamento da moeda.
A rebelião de 1437-38 foi desencadeada pelos arrendatários, os pobres das
cidades e os pequenos cidadãos húngaros, bem como pelos colonos romenos da
Transilvânia, diante da exigência do bispo György Lépes de que os dízimos passassem a
ser pagos em novas moedas, inclusive os que estavam em atraso de três anos, durante os
quais ele se recusara a aceitar as moedas antigas. Ademais, pequenos nobres e colonos
romenos, até então isentos dos dízimos, passaram a ser obrigados a pagá-los, e os
camponeses tiveram sua liberdade de migração cada vez mais restringida. As forças
rebeldes, lideradas por Antal Budai Nagy, um fidalgo pobre, depois de obter uma vitória
sobre as tropas do voivoda Lázsló Csáki, arrancou importantes concessões no acordo de
Kolozsmonostor (Cluj-Manastur, 6 de julho de 1437): a “comunidade dos habitantes do
reino” (universitas regnicolarum), como eram tratados, obteve a promessa de
diminuição dos dízimos, da continuidade da livre migração e da abolição da nona, ou
dízimo senhorial; reuniões camponesas anuais deveriam supervisionar o cumprimento
dos termos do acordo, e suseranos em falta deveriam ser punidos.
O acordo estendeu o direito de expansão associativa aos então desprivilegiados.
Porém, em setembro, os nobres húngaros, os burgueses “saxônicos” (germânicos) e os
vigias livres szekel (os corpos que vieram a ser considerados como os estamentos
políticos constituídos, ou nationes, da Transilvânia a partir do século XVI) celebraram a
União de Kápolna, um pacto de ajuda mútua contra os camponeses. Um mês depois essa
falange obrigou os camponeses a aceitar um acordo menos favorável, enviado para a
arbitragem de Sigismundo que, anteriormente, havia confirmado reiteradamente o
direito de livre migração dos camponeses. Quando a notícia da morte de Sigismundo
chegou à Transilvânia, em dezembro de 1437, os suseranos lançaram uma

29
contraofensiva, para a qual os camponeses, desarmados e cansados pelas arrastadas
negociações, tornaram-se uma presa bastante fácil. A cidade de Kolozsvár, que tomara o
partido dos camponeses, tombou no fim de janeiro de 1438, e foi punida com a perda
temporária de seus privilégios. Em 2 de fevereiro de 1438, os termos do pacto de
Kápolna foram confirmados pela União da Torda (Turda), estipulando um marco à
constituição das classes privilegiadas da Transilvânia por vários séculos.
O longo reinado de Sigismundo foi, por assim dizer, enquadrado pelos anos da
dissensão baronial em seu primeiro terço, e pela revolta hussita, na terceira parte. Já o
terceiro grande desafio, a ameaça otomana, continuou no mesmo ritmo: a pressão sobre
a fronteira do sul da Hungria diminuiu após a derrota de Bajazeto I, em 1402, infligida
[aos turcos] pelo novo conquistador provindo da Ásia Central, Tamerlão, a qual levou o
Império Otomano a uma crise temporária, que durou até que Murad II (1421-1451)
conseguisse lançar uma nova onda expansionista na década de 1420. Nesse interregno,
Sigismundo não apenas estabeleceu seu poder em novas bases na Hungria, despontando
como um governante da estatura de homólogos europeus, como também procurou
reforçar sua posição nos Bálcãs. Seu empenho em criar uma zona de Estados-tampão
formada pela Bósnia, a Sérvia e a Valáquia foi, aparentemente, uma retomada da
política de poder de Luís I. Mas, ao contrário de seu antecessor, que buscava apenas a
glória e os saques, o que Sigismundo esperava desses Estados era que fossem aliados
confiáveis, além de sacrifícios, e não a troco de nada: ele tentou atrair o interesse de
seus governantes com a doação de bens e distinções. Assim, depois do fracasso
otomano em Ancara, em 1402, o “déspota” sérvio, Stepan Lazarevic, aceitou a suserania
de Sigismundo, tornando-se um dos membros da Ordem do Dragão e também um dos
maiores latifundiários da Hungria. Sua fidelidade salvou os condados do sul vizinhos à
Sérvia dos ataques turcos até 1427, quando morreu. O caso da Valáquia foi semelhante,
com a diferença de que o fiel vassalo de Sigismundo, o voivoda Mircea, morreu em
1418, e como resultado da sorte errática na luta que se seguiu no país entre as facções
pró-húngara e pró-otomana, a Transilvânia ficou exposta a diversas incursões turcas, já
nos anos de 1420. Ainda mais efêmero foi o êxito de Sigismundo em garantir o apoio da
Bósnia, onde o “grande voivoda” Hervoja desistiu de sua lealdade, obtida ao longo de
cinco campanhas militares e favores generosos, logo em 1413.
Deve-se creditar a Sigismundo o fato de, quando o sistema de Estados-tampão
começou a ruir, ter lançado as bases de uma rede alternativa de defesa. Em algumas
regiões, ele impeliu a administração direta húngara para o extremo sul – por exemplo,

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até Jajce, na Bósnia, em cuja área meridional os otomanos tinham se entrincheirado com
firmeza, nos anos de 1430. Ao mesmo tempo, ele investiu, inicialmente, Scolari como
ispán de Temes, e depois os irmãos Tallóci, provenientes de Ragusa, que também
começaram sua trajetória como especialistas em finanças e, na época, controlavam os
banatos da Croácia, Eslavônia e Szörény (Severino), com comando centralizado e
recursos substanciais para construir ou modernizar fortalezas e organizar e manter
forças dotadas de maior mobilidade (constituídas em boa parte de nobres eslavos do sul
refugiados com seus vassalos) para repelir os turcos. O último encontro pessoal de
Sigismundo com eles, assim como tinha sido o primeiro, foi bastante inglório. Depois
de uma malsucedida tentativa, em 1428, de tomar – segundo os termos de um acordo
anterior feito com Lazarevic – a fortaleza de Galambóc (Golubac) dos turcos, aos quais
o comandante local a entregara após a morte do déspota, Sigismundo escapou por pouco
das forças da sentinela por uma segunda vez. Ainda assim, seus feitos foram
extraordinários: foi o sistema que ele implantou no último terço de seu reinado – a
articulação de duas linhas de fortalezas de fronteira, desde o baixo Danúbio até o
Adriático, com as tropas móveis que, sob circunstâncias favoráveis, podiam até mesmo
arriscar uma ação ofensiva – que veio a proteger o Reino da Hungria por quase um
século, assegurando um modelo para guerras de fronteira por décadas até seu colapso
definitivo.
Esses benefícios de longo prazo, bem como as realizações de Sigismundo em
geral, não foram reconhecidos pela elite húngara. De natureza pacífica e polida, ele
dificilmente poderia desfrutar de popularidade entre a nobreza belicista e rude do país.
Seus insucessos surpreendentes na frente de batalha contra os otomanos suscitaram
desdém, enquanto sua orientação política cada vez mais [pró] ocidental (e,
consequentemente, suas prolongadas ausências) causava impaciência, e sua lista de
prioridades – entre elas, a do cisma – estimulava a incompreensão. Todavia, seu caráter
firme conseguiu, depois da fase inicial desanimadora, unir a aristocracia em torno da
coroa, e subjugar as ambições corporativas da nobreza. Sua morte eliminou um grande
obstáculo ao desenvolvimento de um governo baseado em um papel reforçado dos
estamentos na tomada de decisões políticas.
Como em outros lugares, os “estamentos” eram grupos de titulares de
propriedade plena (possessionati), com condição e privilégios idênticos, ou, em outras
palavras, os “próprios” habitantes do reino (regnicolae). Além da nobreza, eles incluíam
os corpos eclesiásticos e as comunidades saxônicas das cidades livres e da Transilvânia,

31
porém, na Hungria, diversamente do que ocorria na maior parte da Europa Ocidental, e
de modo assemelhando apenas na Polônia, a nobreza predominava entre eles
(correspondendo ao fato de que, em meados do século XV, dois terços da propriedade
de terras no reino estavam em mãos da aristocracia e da nobreza). Com efeito, a noção
de Estados [ou estamentos] tornou-se quase idêntica à de nobreza. Vimos antes que a
origem da política corporativa, assim como seu contexto característico, com uma
assembleia nacional, ou Dieta (a generalis congregatio), à qual os “habitantes” podiam
comparecer pessoalmente (como era o caso da nobreza) ou serem representados pelo
estamento, é algo que remonta ao século XIII na Hungria. Contudo, essa tradição foi
abandonada com os angevinos e com Sigismundo, e as poucas dietas que eles
convocaram desempenharam o papel acessório de emprestar uma aparência solene ao
anúncio de decisões já tomadas pelo rei e seu conselho. Essa situação mudou
radicalmente após a morte de Sigismundo. Até que o próximo governante de
envergadura, Matias I, subisse ao trono, em 1458, convocaram-se dietas quase anuais,
com o objetivo de legislar, mais do que simplesmente de concordar. Em dois anos, a
nobreza demoliu o edifício das reformas de Sigismundo, inaugurando um reinado de
estamentos que durou duas décadas, e lançou os alicerces da classe política corporativa
do futuro.
Uma vez que Sigismundo não deixou herdeiros do sexo masculino, segundo os
termos de seu acordo de 1402 com Alberto de Habsburgo ele foi sucedido pelo filho
deste último (que era também seu próprio genro). Alberto foi, com efeito, escolhido e
coroado pelos estamentos, que evitaram o domínio do “grupo da corte”, mas foi forçado
a aceitar exigências de grande importância: ele prometeu pôr fim à influência dos
estrangeiros e à tributação da Igreja; abandonar todas as “inovações e costumes
detestáveis” introduzidos por Sigismundo; e submeter todas as questões e decisões
políticas importantes aos prelados e aos barões. Durante uma ausência do rei no ano
seguinte, os barões fiéis a Sigismundo aumentaram sua influência na corte a tal ponto
que os estamentos o obrigaram a convocar uma Dieta logo depois de seu retorno e a
“restabelecer os antigos costumes do reino” – na realidade, a ceder o controle final
sobre questões políticas aos estamentos. Ademais, a decadência da rede de fortalezas
reais desenvolvida por Carlos Roberto era agora completa, contando-se apenas 35
unidades ainda em posse do rei, na época da morte de Alberto. Para tornar as coisas
ainda piores, paralelamente ao enfraquecimento da autoridade da coroa, Murad II
desmantelou os últimos vestígios da zona tampão no sul, atacando as propriedades de

32
Djuradj Brankovic, que sucedera a Lazarevic como déspota da Sérvia, em 1439.
Alberto, que conclamara a nobreza à insurreição a fim de ajudar seu aliado, morreu de
disenteria em seu acampamento. Desde então, o Império Otomano passou a constituir
uma ameaça direta à integridade da Hungria: já em 1440, o sultão fizera uma tentativa
frustrada de capturar Belgrado, a pedra angular do sistema de defesa do sul.
A morte de Alberto lançou a Hungria em uma crise, e a disputa entre os
Habsburgos, ou o partido da corte, e o partido “nacional” – na verdade, a nobreza dos
condados – logo resultou em uma guerra civil. Os primeiros, liderados por Ulrik Cillei,
apoiaram a viúva, rainha Elisabeth [Isabel], filha de Sigismundo, que, meses depois da
morte de Alberto, deu à luz o filho do casal, e pretendia assegurar-lhe o trono. Ladislau
V (“o Póstumo”) foi, de fato, entronizado com a coroa de Santo Estêvão, em maio de
1440. Os estamentos, liderados pelos “barões soldados” de Sigismundo, tais como os
Rozgonys, os Tallócis e outros, recusaram-se a aceitar esse fait accompli3. Convocaram
então o jovem rei da Polônia, Vladislau III (em húngaro, Ulászló I), a ocupar o trono,
esperando que se mostrasse capaz de comandar a luta contra o Império Otomano. Tendo
assinado os compromissos de sua escolha e prestado juramento sobre a manutenção dos
“antigos privilégios” no país (isto é, entre a nobreza), Vladislau foi da mesma forma
coroado. Essa era uma medida de grande significado simbólico. A alegação de que a
coroação e o poder dos reis dependiam da vontade dos habitantes do reino, mais do que
da insígnia, equivalia a uma declaração implícita de ascendência dos estamentos sobre a
coroa, e a um desafio tácito ao princípio da hereditariedade.
Ladislau contara com o apoio de seu parente e protegido Frederico, duque da
Áustria, que logo viria a se tornar Frederico III, imperador germânico, e também com a
adesão dos mais ricos barões; o talentoso comandante checo Jan Jiskra, um partidário
dos Habsburgos, empregou a estratégia hussita com tanto êxito que conquistou e
manteve por vários anos grandes e ricos territórios no norte da Hungria, primeiro em
benefício de Ladislau, e depois em seu próprio proveito. No entanto, Vladislau
conseguiu fortalecer seu domínio sobre o restante do país, devido em grande parte aos
serviços de duas personalidades que se tornariam marcantes nos quinze anos seguintes:
Miklós Újlaki, um dos mais influentes barões de seu grupo, e János Huniade, que foi
projetado à proeminência e a uma trajetória sem paralelo por seu papel na pacificação
da região leste do reino, em 1441.

3
Ou fato consumado – em francês no original. (N.T.)

33
Nascido em uma família romena de aristocratas da Valáquia, Huniade era
criança quando, em 1409, seu pai, Vojk, obteve sua primeira propriedade na Hungria, a
herdade feudal de Hunyadvár (Vajdahunyad, Hunedoara). Criado na corte de vários
magnatas, ele passou dois anos a serviço do duque de Milão, tornando-se depois
cavaleiro da corte de Sigismundo e, em 1439, ban de Szörény. Vladislau o recompensou
por seus serviços promovendo-o (juntamente com Újlaki) a voivoda da Transilvânia,
ispán de vários condados e administrador do monopólio do sal; ele foi também
responsável por Belgrado e toda a linha meridional de defesa, e, já no final de sua vida,
possuidor de 25 castelos, trinta cidades e uma centena de aldeias. Újlaki e Huniade, cuja
amizade manteve-se surpreendentemente inalterada ao longo das incumbências que
exerceram em comum, compartilharam o pleno comando sobre a Hungria a leste do
Danúbio. Nos anos seguintes, a própria “província” de Huniade, a leste do Tisza,
tornou-se um oásis de paz em meio aos combates que grassavam por outros lugares do
país, e uma base sólida para as campanhas que ele empreendeu contra os otomanos, as
quais acrescentaram fama internacional a seu poder interno.
Ainda em 1441, Huniade invadiu o território sérvio e bateu as tropas do bei de
Szendro (Smederevo); em 1442, esmagou um enorme exército turco, que pilhava o sul
da Transilvânia, e derrotou os soldados do beglerbei da Rumélia, que era o comandante-
chefe das forças otomanas estacionadas na Europa, na altura do rio Ialomita, na parte
leste dos Cárpatos. Façanhas como essas tornaram Huniade, o primeiro em várias
décadas a lançar ofensivas bem-sucedidas, carismático aos olhos da nobreza húngara, e
ele veio a ser o candidato da administração papal para comandar uma cruzada
internacional contra os otomanos, solicitada pelo desesperado imperador bizantino João
VIII, que se dispunha até mesmo a aceitar uma união das Igrejas cristãs do Ocidente e
do Oriente sob a liderança da primeira. O cardeal Giuliano Cesarini foi enviado à
Hungria para negociar uma trégua entre os partidários dos “dois Ladislaus”, e, depois
que isso surtiu efeito, lançou-se a primeira operação militar de larga escala.
Na “longa campanha” do inverno de 1443-44, um grande exército húngaro
comandado por Huniade e pelo rei marchou até Sófia, e embora não tenha
reconquistado nenhum território, eles voltaram invencíveis depois de inúmeras batalhas,
causando um importante impacto psicológico sobre ambos os lados. Uma coalizão cristã
iniciou então os preparativos para a cruzada destinada a reconquistar os Bálcãs,
enquanto o sultão pedia a paz. Nas negociações que se seguiram, Murad II prometeu
desocupar a Sérvia e pagar um resgate, com a entrega de várias cidades e propriedades a

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Huniade por Brankovic, em retribuição por seu apoio e por seu papel naquele acordo.
Contudo, Cesarini não podia permitir que se perdesse a causa da cruzada. Convenceu,
assim, tanto o rei como Huniade de que o juramento prestado a infiéis não precisava ser
cumprido. No entanto, as notícias acerca da paz levaram os aliados a abster-se de se
juntar à campanha lançada logo depois, e na batalha de Varna, em 10 de novembro de
1444, as forças otomanas em superioridade infligiram uma derrota ainda mais
catastrófica do que aquela de Nicópolis ao exército húngaro-polonês. O rei e o núncio,
bem como diversos barões húngaros, tombaram; o próprio Huniade escapou por pouco.

[Mapa página 125]:

5. A Hungria e seus Vizinhos na Época dos Huniades

As campanhas de János Huniade e Matias I:

Huniade em 1443
Huniade e o rei Vladislau em 1444
Huniade em 1447
Huniade em 1448
Matias em 1463, 1464 e 1476
Matias em 1468 e 1474
Matias em 1485

Grande Ducado da Lituânia


Moldávia
Valáquia
Bulgária
Sérvia
Mar Negro
Império Otomano
República de Veneza
Mar Adriático
Estados Papais
Territórios Habsburgo

35
Reino da Boêmia
Sacro Império Romano
Reino da Hungria

A derrocada de Varna não demonstrou apenas a inutilidade dos planos de


cruzadas, nem somente debilitou a determinação dos povos balcânicos contra os
otomanos, mas também tornou a situação na Hungria confusa a um ponto que não se via
desde os tempos do desafio oligárquico, por volta de 1300. Já em meio à situação
anárquica de guerra civil, os tribunais deixaram de operar e inúmeros castelos foram
construídos sem autorização; agora, as duas facções batiam-se uma contra a outra
novamente, enquanto Frederico III ocupava fortalezas ao longo da fronteira ocidental, e
uma retaliação dos turcos pela violação da paz também podia ser esperada. Em meio a
tais circunstâncias, os barões chegaram a um compromisso na Dieta de 1445: um
conselho de sete “capitães”, majoritariamente de seguidores de Vladislau, foi eleito,
enquanto a reivindicação de Ladislau foi reconhecida sob a condição de que ele e a
sagrada Coroa fossem entregues por Frederico. Como isso não foi cumprido, o
restabelecimento da estabilidade política continuou sendo a única solução. A autoridade
central foi formalmente reconstituída com a criação de uma governança até que
Ladislau atingisse a idade adulta, tendo como governante ninguém menos que Huniade.
O governo de Huniade (1446-1452) ocasionou a consumação do Estado
corporativo. Estipulou-se que as Dietas deviam se realizar a cada ano; além da alta
nobreza, os delegados dos principais condados, de homens do clero e das cidades livres
também foram autorizados a participar delas; além disso, os nobres mantiveram o
direito de assisti-las pessoalmente (e em muitas ocasiões importantes isso aconteceu,
como na eleição de Huniade como governante, em 1446, e na de seu filho, Matias,
como rei, em 1458). Todavia, visto que muitos dos nobres eram dependentes dos
magnatas, seus votos com frequência favoreciam a política de facções; seja como for,
dificilmente podiam se permitir uma participação prolongada, deixando muitas vezes as
Dietas antes que as principais decisões fossem tomadas pelos quarenta e poucos barões
e membros do alto clero. Quanto às cidades, seus representantes logo perceberam que
seus votos tinham pouco peso face à preponderância dos barões e dos nobres.
Mesmo nos territórios em que o governante e os estamentos detinham
nominalmente o poder supremo, o exercício de prerrogativa de Huniade era limitado no
que se refere à jurisdição, à doação de propriedades e à utilização das rendas. Ainda

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assim, durante todo o seu mandato, ele lutou, geralmente sem êxito, para restaurar a
integridade do país. Em 1447, as conquistas de Frederico na parte ocidental da Hungria
foram confirmadas, e Huniade teve ainda de se reconciliar com o governo dos Cilleis na
Eslavônia. Suas campanhas no norte da Hungria contra Jiskra, que permanecia
intransigentemente fiel a Ladislau V e continuava a se autodesignar como seu “capitão
geral”, foram um completo fracasso. A sorte tampouco voltou à armada húngara na luta
contra os otomanos: uma campanha militar que visava apagar as lembranças de Varna
levou a um segundo desastre, dessa vez em Kosovopolje, em 1448.
Malgrado essa série de fiascos, a autoridade de Huniade entre a nobreza que o
apoiara desde o primeiro momento manteve-se inabalável, e sua posição foi até mesmo
reforçada com a formação de uma aliança com seu velho amigo Újlaki e com o palatino
László Garai, um líder do partido Habsburgo. Em decorrência disso, até mesmo
Frederico III reconheceu sua governança, que chegou ao fim em 1452, quando os
estamentos austríacos se rebelaram contra Frederico (que viajara a Roma a fim de fazer-
se coroar imperador). Uma das reivindicações dos rebeldes era a libertação de Ladislau,
que fora confirmado pela Dieta como o legítimo herdeiro do trono da Hungria – sem
que se discutisse sobre uma nova eleição ou coroação – em janeiro de 1453. Pela
primeira vez desde a morte de Alberto, o país tinha uma cabeça coroada reconhecida
como legítima por todas as facções. No interesse da reconciliação, uma anistia foi
proclamada a todos que lutaram contra Ladislau em prol de Vladislau; e várias das
propriedades reais ainda legalmente existentes foram sacrificadas. O governo real, com
as chancelarias e cortes, foi restabelecido; Újlaki juntou forças com Garai e Ulrik Cillei
a fim de recuperar a autoridade da corte régia; o novo chanceler secreto, János Vitéz, até
então um ardente seguidor do partido “nacional” e tutor do filho mais novo de Huniade,
Matias, agora dedicava seu excepcional talento e erudição a essa função. Huniade
recebeu todo tipo de recompensas por renunciar ao governo de: foi encarregado pela
administração das rendas régias, nomeado capitão-geral da Hungria e conde perpétuo de
Beszterce (o primeiro precedente de oferta de um título aristocrático na Hungria), e
continuou no controle do país. No entanto, em meio às novas circunstâncias ele se
tornou cada vez mais isolado e sua ambição de poder parecia agora um tanto arbitrária.
Ainda assim, ele era a única pessoa de quem se podia esperar uma resistência
bem-sucedida contra os turcos, o que consistia num atributo aparentemente
indispensável, depois da conquista otomana de Constantinopla, em 1453. Logo ficou
evidente que o sultão Mehmed II tencionava se apoderar do legado do Império

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Bizantino: em duas campanhas, em 1454 e 1455, ele conquistou aproximadamente toda
a Sérvia, e, em 1456, comandou um formidável exército de cerca de cem mil homens
contra Belgrado, a principal barreira do sistema de defesa meridional da Hungria. O
pânico causado pela queda de Constantinopla deu origem a contramedidas bastante
ineficazes, dentro e fora da Hungria. A Dieta anunciou uma insurreição geral dos
nobres, retomou algumas das reformas militares de Sigismundo e decidiu cobrar
tributos especiais, como haviam feito as Dietas imperiais germânicas de 1454-55; tudo
isso produziu resultados relativamente modestos. Os soberanos cristãos da Europa
deixaram de responder ao chamado do papa para uma cruzada, e as massas reunidas em
torno de Viena pelos zelosos pregadores franciscanos, no verão de 1456, nunca
marcharam contra os infiéis. Quando o exército profissional, bem treinado e bem
equipado, de Mehmed começou a cercar Belgrado, no início de julho de 1456, seus
defensores puderam apenas esperar pelo socorro dos soldados mobilizados por Huniade
entre seu séquito e suas propriedades, e pelos insurretos que se levantaram entre os
plebeus do sul da Hungria, inflamados pela pregação de Giovanni da Capestrano, um
velho monge franciscano da Itália. Somadas, essas forças chegavam a menos da metade
dos que faziam o cerco, mas, ainda assim, na decisiva batalha de 22 de julho, infligiram
uma derrota tão séria aos otomanos que o sultão se decidiu pela retirada. A
oportunidade de uma contraofensiva se perdeu; na verdade, deve-se admitir que, como
Varna e Kosovopolje haviam mostrado, essas tentativas não eram muito promissoras. O
feito de Huniade visava proteger o sistema de defesa no sul, o mais importante legado
de Sigismundo: e nenhuma outra tentativa turca de dimensões semelhantes ocorreu nos
65 anos que se seguiram. O papa decretou o dia em que recebeu a notícia da vitória
como feriado cristão. Embora Huniade tenha sido atingido pela epidemia que se
disseminou em seu acampamento após a vitória, seu carisma e a confiança em sua
missão tornaram-se mais fortes entre seus adeptos, e desse modo o caminho da ascensão
de seu filho ao trono estava pavimentado.
Mas não seria um caminho fácil: de imediato, a morte de Huniade sinalizou a
seus adversários a possibilidade de enfraquecer seu partido, e desencadeou outra etapa
de confronto civil. Cillei foi indicado capitão geral e exigiu que os filhos de Huniade
abandonassem os castelos reais e o direito às rendas. Lázló Huniade, o novo líder do clã,
simulou ceder, mas seus homens assassinaram Cillei quando ele marchava em direção a
Nándorfehérvár. A maioria de seus apoiadores, ignorando essa traição, passou então
para o lado do rei, que ganhou tempo, nomeando Lázló para o posto de capitão geral e

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acenando-lhe com a impunidade, mas, na realidade, aguardando apenas uma
oportunidade para retaliar. Ela surgiu em março de 1457, quando os dois irmãos
Huniade estavam em Buda, onde foram presos; Lázló foi levado à corte marcial e
condenado à morte. A viúva de Huniade e seu cunhado, Mihály Szilágyi, reagiram com
uma revolta armada, o que motivou Ladislau V a fugir do país rumo a Praga, levando
consigo seu jovem prisioneiro, Matias Huniade. Visto que o rei, sem ter completado
dezoito anos, morreu em Praga, os homens mais poderosos do partido da corte, como
Garai ou Újlaki, apenas puderam se dar conta de que não tinham chance de conseguir o
trono nem de governar o país como oligarcas; não havia tampouco algum pretendente
estrangeiro que pudesse vencer o poderoso clã Huniade e, ao mesmo tempo, assumir os
custos da defesa contra os otomanos. Assim, eles foram obrigados a firmar um
compromisso com os Szilágyis, de modo a garantir a preservação de sua própria
influência, enquanto Matias, o único candidato apto, era eleito rei da Hungria.

3. Matias Corvino, Rei da Renascença da Hungria

Nascido em 1443 (ou em 1440), Matias recebeu uma educação principesca. Seus
tutores, entre eles János Vitéz, introduziram-no não apenas nas letras e línguas, como
também nos rudimentos do novo ensino humanista. Ele adquiriu razoáveis
conhecimentos da ciência de governar, da diplomacia e da arte da guerra ao lado de seu
pai, e pôde também contar com o considerável prestígio e com os recursos econômicos,
políticos e militares do partido Huniade, os quais estavam à sua disposição. Se o
interregno de facto de 1444-1452 e o subsequente desempenho patético de Ladislau V
em meio à ameaça otomana tinham colocado o Reino da Hungria sob risco de
desintegração, a aclamação do filho do herói de Belgrado como rei pela nobreza,
reunida no gelado Danúbio, próximo a Peste, em 24 de janeiro de 1458, prenunciava
afastar esse risco.
O jovem monarca – libertado por seu homólogo boêmio George Podebrady,
eleito governador pelos estamentos checos depois da morte de Ladislau, e tornado rei no
ano seguinte, em troca de um resgate e da promessa de que Matias casar-se-ia com sua
filha Catherine – empenhou-se em restaurar a ordem e a autoridade central com
surpreendente vigor. Rompendo o acordo com sua família, rejeitando sua atitude
paternalista e confiando sobretudo no aconselhamento de Vitéz (seu chanceler, que logo
se tornaria também primaz da Hungria), ele frustrou as esperanças de Szilágyi de que

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desempenharia um papel similar ao cumprido por seu próprio pai como regente.
Substituiu os barões por seus abastados apoiadores nobres na chefia dos tribunais mais
importantes, do tesouro e do tribunal de Justiça, recém-criado a fim de administrar os
domínios régios. A legislação da Dieta de junho de 1458 também beneficiou a nobreza.
Decepcionados, os barões, liderados por Garai e Újlaki, convocaram e elegeram
Frederico III como rei; o imperador atacou então a Hungria em apoio àquela
reivindicação, na primavera de 1459. Por meio de uma hábil diplomacia, contudo,
Matias conseguiu dividir o campo inimigo, e logo Frederico sofreu um revés definitivo.
As prolongadas conversações de paz resultaram no acordo de compromisso de 1463.
Em troca de 80 mil florins, a santa Coroa rendeu-se a Matias, a quem Frederico adotaria
como filho; por sua vez, Matias pôde preservar o título de rei da Hungria, e Frederico
bem como seus sucessores seriam autorizados a herdar o trono se o próprio Matias
viesse a morrer sem deixar herdeiros. O tratado tornou-se, assim, a base da posterior
sucessão dos Habsburgos na Hungria (uma hipótese bastante improvável na época,
sendo Matias cerca de vinte anos mais moço do que o imperador). De imediato, porém,
o acordo permitiu que Matias fosse coroado em 1464, e o protegeu contra qualquer
contestação importante até o final de seu reinado.
A coroação foi também a primeira oportunidade de uma reconciliação entre
Matias e os barões, cuja maioria uniu-se então em seu apoio. Matias confiava nas velhas
táticas angevinas e de Sigismundo de renovar as fileiras da aristocracia com novi
homines; assim, algumas famílias que tinham influenciado a política húngara no meio
século que sucedeu à morte de Sigismundo, e mesmo depois, como as dos Szapolyai ou
dos Báthori, com efeito começaram a se projetar durante seu reinado. Ainda assim,
metade dos barões nomeados por Matias provinha da antiga aristocracia; além disso,
eram eles que mantinham seus cargos por mais tempo. De outro lado, apenas alguns dos
novos membros que receberam cargos – caso de seu tesoureiro, János Ernuszt, ou do
comandante Pál Kinizsi, ambos plebeus de origem – conseguiram se integrar entre os
magnatas, que começaram a despontar como uma classe hereditária distinta, nesse
período. Os magnatas, ou “barões naturais” (para se distinguir dos “barões verdadeiros”,
isto é, os principais titulares de cargos), eram senhores poderosos, convidados
pessoalmente às sessões do conselho régio pleno. É também importante lembrar que
Matias manifestava uma atitude extremamente indulgente para com a aristocracia:
apesar de uma rebelião e de uma conspiração, em que estiveram profundamente
implicados, não houve execução de aristocratas. Além disso – uma característica

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decisiva de sua estratégia relativa à elite política do país –, embora no início de seu
reinado tenha apelado ao apoio da nobreza contra os barões, Matias passou, depois, a
opor com frequência os barões contra os nobres, ou uma facção baronial contra outra,
enquanto ampliava continuamente sua própria autoridade e reduzia o círculo de cujo
apoio dependia. Isso pode ser demonstrado, entre outros fatos, pela frequência cada vez
menor das novas nomeações.
Matias foi com frequência responsabilizado por tentar centralizar a
administração do país, e mesmo de procurar assentar as bases de uma monarquia
absoluta. Na verdade, isso representa uma tentativa de traçar um paralelo entre ele e
alguns governantes ocidentais, mais ou menos seus contemporâneos, que consolidaram
seus reinados após períodos de turbulência por meio de medidas centralizadoras, tais
como Luís XI da França ou Henrique VII da Inglaterra (ainda que distorcida e simplista,
essa mesma imagem condiz com o caso destes dois monarcas). É, no entanto, verdade
que, especialmente na última metade de seu reinado, seu novo estilo de governar e a
pretensão de que como rei tinha “poder absoluto” e era “imune às leis” tornaram-no
extremamente impopular, recebendo acusações como a de tirano de parte de seus
súditos mais poderosos. Por fim, é ainda verdade que as estruturas corporativas que
tinham operado com tanto vigor nas duas décadas que precederam à sua eleição
perderam, então, um pouco de seu significado. As Dietas tornaram-se bastante
frequentes, porém algumas de suas funções básicas, como a votação de impostos, eram
frequentemente exercidas pelo conselho real (ou seja, apenas pelos dois primeiros
estamentos), enquanto o papel do “aparato”, ou seja, os organismos burocráticos,
judiciais, fiscais e militares, livres do controle dos estamentos, cresceu na
administração.
Todavia, a natureza dessas instituições sugere ressalvas, à medida que a
centralização de Matias deve ser reconhecida como resultado da capacidade e das
aspirações pessoais de um governante singularmente talentoso, mais do que de
condições específicas da Hungria do século XV. Mais importante ainda, o conselho real,
longe de se tornar um grupo de agentes com formação em direito, continuou o mesmo
organismo feudal como fora durante séculos. As chancelarias eram meros escritórios
auxiliares para emitir documentos; a inovação de Matias consistiu, neste caso, em
preferir contar com a chancelaria reduzida, ou secreta, em vez da grande chancelaria,
que era controlada pelo conselho. Muitas vezes, ele deixou o gabinete desta última
vacante, preenchendo o das pequenas chancelarias com plebeus, que podiam ser

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substituídos com maior facilidade. Foi na administração da justiça que a
profissionalização mais avançou. Os pequenos nobres e os plebeus, alguns deles
formados em universidades, embora a maioria praticasse apenas o direito
consuetudinário e estatutário do reino quanto aos assuntos cotidianos, e eram
promovidos aos tribunais centrais depois de um aprendizado na administração local ou
nos tribunais inferiores, constituíram o primeiro estrato significativo da intelligentsia
secular na Hungria. Perto do final do reinado de Matias, foram dados passos
importantes em prol da padronização dos códigos legislativos no país. A abrangente
legislação de 1486, por exemplo, não apenas ampliava a autoridade do palatino e a dos
condados, mas também tornava clara a lei processual. Em decorrência das reformas
judiciais, surgiu um senso rudimentar do Estado de direito e de proteção segundo a lei;
graças a seu esforço pessoal para combater a corrupção e os prepotentes potentados
locais, o rei recebeu o epíteto de “Matias, o Justo”, e se tornou o herói popular da
anedota folclórica, o qual viajava sob disfarce entre seus súditos a fim de descobrir e
punir malfeitores.
Todas essas mudanças têm significado secundário quando comparadas às
reformas fiscais e militares de Matias, que ajudaram, por sua vez, a sua ambiciosa
política externa. Quando da ascensão desse rei, as rendas da coroa eram de miseráveis
250 mil florins ao ano, o que mal dava para cobrir até mesmo as necessidades básicas de
defesa do país (sem falar nas outras despesas). A fim de remediar essa situação, Matias
empenhou-se em uma profunda reforma da administração financeira. Passou a cobrar
um subsídio “extraordinário” (geralmente de um florim por porta), em mais de quarenta
vezes durante os 33 anos de seu reinado, e o recolhia com maior eficiência à medida que
seu poder se consolidava. Isenções das receitas ordinárias (tais como as do monopólio
do sal, do lucrum camarae e do “trigésimo” imposto aduaneiro, renomeado como
vectigal coronae, ou imposto da Coroa) foram abolidas em 1467, passando a ser
magistralmente administradas por János Ernuszt, um negociante judeu convertido ao
cristianismo e brilhante especialista financeiro (posteriormente, senhor tesoureiro-geral
e ban da Eslavônia). Com frequência até maior do que no caso do sistema judiciário, os
funcionários do tesouro eram homens talentosos de origem relativamente humilde –
inclusive camponesa – e, assim, totalmente servis a Matias, que, portanto, deles podia
esperar irrestrita lealdade. Graças a essas reformas, Matias dobrou, pelo menos, as
receitas da coroa; e, nos anos em que um subsídio esporádico foi cobrado duas vezes, se

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for acrescentada a receita proveniente das províncias por ele conquistadas na segunda
metade de seu reinado, o montante total devia se aproximar da marca de um milhão.
Em termos absolutos, isso é, de fato, impressionante. No entanto, as
comparações orgulhosas da historiografia pregressa, entre os êxitos de Matias na área
fiscal e as receitas de países ocidentais, como França e Inglaterra, por exemplo,
basearam-se em dados ligeiramente defasados destes últimos, onde as receitas também
duplicaram no transcurso da segunda metade do século XV. Mais importante ainda, as
receitas do Império Otomano chegaram, em 1475, a 1,8 milhão de florins, pelo menos
duas, ou quase três vezes as da Hungria (e, com certeza, bem mais do que as de
qualquer reino europeu da época). À luz dessa enorme disparidade, é apenas
compreensível que quase todo esse superávit obtido por Matias fosse imediatamente
gasto em seu exército. Em outras palavras, embora enchesse o tesouro, ele o deixou
vazio ao fim de seu reinado, e sobrecarregou a economia do país de modo bastante
excessivo. Enquanto continuava a contar com a banderia real e baronial, a militia
portalis introduzida por Sigismundo e pela insurreição dos nobres, Matias foi também
capaz de manter um exército mercenário, o qual começou a formar com o recrutamento
dos antigos hussitas de Jiskra, pacificados no norte da Hungria em 1462. O “exército
negro”, multiétnico, consistia em cavalaria e infantaria pesadas, e também no modelo
hussita de carretas de guerra e de artilharia, que, juntamente com a banderia e a
cavalaria ligeira dos condados e banatos, podiam ser empregadas com sucesso na
aplicação das táticas tradicionais húngaras de ataque e fuga. Por ocasião de uma revista
das tropas em Wiener Neustadt, em 1487, o historiador italiano da corte de Matias,
Antonio Bonfini, avaliou que o exército permanente do rei era constituído de 20 mil
membros da cavalaria e 8 mil da infantaria, com 9 mil carretas de guerra – um número
impressionante para os padrões europeus da época. Havia outros 8 mil soldados
permanentemente guarnecidos nas fortalezas da esplêndida linha de defesa, organizada
no sul.
Essa força formidável precisava de um escoadouro (sobretudo porque, mesmo
tendo crescido, as receitas eram insuficientes para remunerá-la regularmente, e assim os
soldados tinham de complementar seus vencimentos com os saques); e durante todo o
seu reinado Matias esteve quase constantemente em guerra, lutando no sul, para afastar
a ameaça otomana, ou no norte e no oeste, para impor sua hegemonia na Europa
Central. Em relação aos turcos, o princípio básico da política de Matias era a defesa
ativa, ou seja, uma política que ia além de simplesmente repelir ataques, mas que

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visava, de tempos em tempos, transferir o palco da guerra para o território otomano e
alcançar objetivos estratégicos. Após ter concluído a conquista da Sérvia, em 1459,
Mehmed II também invadiu a Bósnia, em 1463. Matias não arriscou uma imediata
contraofensiva, que poderia pôr em risco a própria Hungria. Antes, firmou um tratado
de ajuda mútua com Veneza, também perplexa com o avanço otomano, e somente se
deslocou aos Bálcãs depois que as principais forças do sultão tinham saído. Após ter
pilhado a Sérvia ocidental, ele tomou Jajce, o mais importante castelo da Bósnia, depois
de um cerco exaustivo no final de 1463. Havia então três banatos húngaros instalados na
Bósnia, que, com efeito, ficou dividida entre a Hungria e o Império Otomano. No ano
seguinte, defendeu-se Jajce de uma tentativa turca de recuperá-lo, e o castelo se tornou a
pedra angular de uma “segunda linha de defesa”, que se estendia da fronteira da
Valáquia até o mar Adriático, por cem a 150 quilômetros ao sul, protegendo o coração
da Hungria. Na maior parte do restante do reinado de Matias, registraram-se apenas
pequenas escaramuças e incursões turcas ocasionais, como a que culminou na batalha
de Kenyérmezó (Campul Pâinii, no sul da Transilvânia), em 1479, na qual os turcos
foram derrotados pelo lendário comandante Pál Kinizsi.
Tais feitos pouco fizeram para ocultar o fato de que o equilíbrio militar pendera
perceptivelmente em favor do Império Otomano. Visto que uma das principais
esperanças depositadas na eleição de Matias fora, justamente, quanto à sua capacidade
de enfrentar o avanço turco, a nova situação causou certa impaciência com o que se
considerava como inércia de sua parte, especialmente entre a nobreza. Matias aplacou
esse descontentamento com uma campanha bem-sucedida, ao capturar a fortaleza de
Sabac, no baixo Danúbio, em 1476. Embora uma crise sucessória no Império Otomano
suscitasse, então, a perspectiva de uma grande e promissora campanha nos Bálcãs,
Matias voltou-se para seus planos ocidentais, que eram o principal foco de interesse de
sua política externa desde que conseguira estabilizar a situação na fronteira sul, em
1463-64.
Os tratados de 1463, com Veneza e com Frederico III, puseram fim ao
isolamento internacional de Matias. Nessa nova situação, com a morte de sua mulher,
em 1464, ele rompeu os laços com seu sogro, Podebrady, que, de todo modo,
representara mais um embaraço do que uma fonte de apoio em seu antigo embate com o
imperador. Então se ofereceu para liderar uma cruzada contra o rei hussita, George,
excomungado e proclamado usurpador pelo papa, em 1466. Uma vez que tanto Veneza
como o papa esperavam, antes, que ele lutasse contra os otomanos, a cruzada não se

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concretizou, e Matias só declarou guerra à Boêmia em março de 1468. Após
prolongados movimentos logísticos, mas na verdade com pouca luta e ainda menor
preparo diplomático, os barões checos católicos o elegeram rei da Boêmia, em maio de
1469. Tal medida se comprovou prematura. Os Habsburgos e os poloneses Jagiellos,
assim como os eleitores germânicos, preocupavam-se com a ambição de Matias de
dominar a região, e o príncipe Vladislau, filho do rei Casimiro IV da Polônia, aceitou a
coroa da Boêmia, que lhe fora oferecida conforme o desejo de George Podebrady,
quando este último faleceu em 1471.
O fracasso no estrangeiro coincidiu com dificuldades no plano interno. Matias já
tinha reprimido uma revolta entre os estamentos da Transilvânia, causada por medidas
de rigor fiscal, em 1467. Agora eram seus antigos confidentes, Vitéz e seu sobrinho, o
poeta humanista e bispo de Pécs, Janus Pannonius, que conspiravam contra ele – e de
maneira ostensiva, uma vez que o rei negligenciara o front otomano e dilapidara os
recursos do país com guerras inúteis no norte, mas, na realidade, porque eles mesmos
sentiam-se negligenciados e estavam dispostos a explorar o ressentimento causado pelas
pretensões de Matias a um poder arbitrário. Eles tencionavam substituí-lo por Casemiro,
o mais jovem dos príncipes Jagiello, quando este último invadiu a Hungria, no outono
de 1471. Matias sufocou o movimento, de fato apenas por ter voltado prontamente da
Boêmia, e ao aparecer diante de seus barões e nobres na Dieta.
Face à emergente coalizão austro-checa-polonesa, o objetivo de Matias, desde o
início da década de 1470, era formular um respeitável acordo de paz, o que lhe foi
facilitado pelo aprendizado dos repetidos erros militares de Vladislau e de seu pai. Em
1474, os coligados perderam uma oportunidade de ouro de quebrantar a ambição do rei
húngaro, cercado por forças muito superiores na cidade de Breslau (Wroclaw), na
Silésia. Matias foi salvo pelo erro de cálculo sobre o equilíbrio de forças cometido por
seus inimigos, e também porque seus comandantes cortaram as rotas de abastecimento
dos exércitos boêmio e polonês. Conforme os termos do armistício que se seguiu,
confirmados pelo acordo de paz de Olmütz (Olomouc), em 1478, Matias recebeu a
Morávia, a Lusácia e a Silésia (então a região economicamente mais desenvolvida da
Europa Central), enquanto Vladislau ficou somente com a própria Boêmia. E ambos
foram autorizados a usar o título de rei da Boêmia. Apesar de haver dois candidatos,
Frederico III inicialmente instalou Vladislau entre os eleitores germânicos,
posteriormente prometeu o mesmo a Matias, e na verdade tomou medidas para tê-lo

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reconhecido entre os príncipes do Império. Parecia que esses tratados de 1477 e 1478
tinham resolvido as questões da região em bases duradouras.
Na verdade, porém, a promessa do imperador já constara de um item de um
tratado de paz que encerrou uma guerra de curta duração, em 1477, entre ele e Matias,
extremamente bem-sucedida do ponto de vista deste último. Afora um breve período de
distensão após 1464, as relações entre os dois governantes ficaram tensas devido às
suspeitas mútuas (bastante justificáveis) de fomentarem conspirações e revoltas, e
também porque Frederico não pagou, por não poder, a Matias a soma estipulada no
acordo de 1463, além de não lhe prestar apoio contra os otomanos. O casamento de
Matias com a princesa Beatriz, filha do rei Ferdinando I, de Nápoles, em 1476,
propiciou-lhe novos aliados influentes na Itália, e ele mantinha como principal objetivo
conquistar nada menos que o trono imperial. As incursões turcas em território húngaro
reduziram o conflito a iniciativas diplomáticas até 1482, quando Matias declarou guerra;
e, em 1487, suas forças, muito superiores às do imperador, ocuparam a maior parte da
Estíria e a Baixa Áustria. Ele transferiu então seu trono para Viena, ocupada em 1485, e
assumiu o título de duque da Áustria. Embora os eleitores germânicos, amedrontados
com os sucessos militares de Matias, tenham escolhido o arquiduque Maximiliano, filho
de Frederico, como rei de Roma (ou seja, herdeiro do trono imperial), no final de seu
reinado Matias governou o seu verdadeiro e próprio império.
Desde então, a reorientação da política externa húngara por Matias foi objeto de
controvérsias. Mesmo em vida, ele foi acusado de negligenciar a ameaça turca em prol
da busca de prestígio pessoal no Ocidente. Outros sugeriram que, por não ter
praticamente recebido ajuda externa contra os turcos, ele procurou compensar a imensa
superioridade do Império Otomano, em termos de território e população, com a reunião
de recursos da Europa Central e Oriental, onde a tendência era, afinal de contas, a de
uma confederação dos Estados regionais em uniões pessoais.
Matias, de fato, reconheceu com clareza que as relações de poder tinham
mudado decisivamente em favor dos otomanos, e que, até que sólidas garantias para a
cooperação militar e financeira entre os governos cristãos, em escala muito maior do
que anteriormente, pudessem ocorrer, a melhor política era a coexistência pacífica ou a
“defesa ativa”, e não inúteis missões ofensivas. No entanto, os diferentes reinos da
região confederada em uniões pessoais, preservando sua independência nos assuntos
internos, dificilmente poderiam se organizar a ponto de adotar uma ação política e
militar conjunta. Embora Matias tenha, sem dúvida, se empenhado em garantir

46
fronteiras seguras na Europa Central, no exame de sua política externa a natureza do
Estado e o lugar nele ocupado pelo exército são fatores importantes a se considerar. Seu
exército foi criado de modo a responder às necessidades da consolidação interna
(depois, também à manutenção da ordem) e da defesa contra os turcos. Como
demonstraram as campanhas de 1463-64 e de 1476 no sul, contra o Império Otomano
mesmo este, que era o mais temível dos exércitos ocidentais da época, podia apenas
estabelecer objetivos limitados, já anteriormente referidos (levou-se mais de dois meses
para capturar Jajce, e cerca de outros dois para se tomar Sabac, construído às pressas
dois anos antes!). Uma vez que o exército já estava lá, porém, ele precisou ser ocupado;
e era melhor fazer ocupação no oeste, onde, como diz o provérbio, a “guerra alimenta-se
da guerra”, do que nos atrasados e devastados Bálcãs, que não garantiam saques para
compensar os pagamentos em atraso. Por fim, como na explanação sobre as ambições
ocidentais de Matias, devemos considerar seus antecedentes pessoais. Esse fundador
arquetípico de uma dinastia, arrogante e sedento de poder como certamente era, assoma
como alguém que era considerado um arrivista entre as dinastias estabelecidas da
região. O sucesso das armas podia lhe auferir o que a legitimidade negara.
Até certo ponto, pelo menos, isso guarda semelhança com o papel de Matias
como pródigo patrocinador das artes e do ensino, outro tópico importante de seus
gastos, além do exército. Para o neto de cavaleiro que emigrou da obscura Valáquia, a
reconhecida erudição – ele falava várias línguas e, além de colecionar, também lia livros
– e os cerca de 100 mil florins que investiu em patrocínio artístico constituíam uma
excelente propaganda. Humanistas de seu tempo incluíram Matias, quanto a esse
aspecto, entre os mais famosos mecenas da época: Giangaleazzo Maria Sforza, em
Milão, Federico da Montefeltro, em Urbino, e até Lorenzo de Medici, em Florença.
A história da recepção do humanismo renascentista na Hungria é sintomática da
ambivalência do desenvolvimento da cultura húngara em geral. Conquanto, na maior
parte da Europa ao norte dos Alpes, a nova educação tenha fincado raízes na virada do
século XV para o XVI, os vínculos dinásticos, políticos e econômicos forjados entre a
Itália e a Hungria na época dos Anjous tiveram seus desdobramentos na Hungria
consideravelmente mais cedo. Ainda sob Sigismundo, na década de 1420 o pintor
Masolino e um discípulo do arquiteto Brunelleschi trabalharam para Filippo Scolari; as
origens do famoso círculo de literatos em Nagyvárad, a sede episcopal de János Vitéz,
“o pai do humanismo renascentista na Hungria”, remontam aos anos de 1440. Foi nesse
grupo que surgiu Janus Pannonius, sobrinho de Vitéz, um dos mais talentosos poetas

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líricos de escrita latina da Europa da época. A esse mesmo grupo, constituído
principalmente de prelados formados em universidades italianas, pertenciam eminentes
humanistas, tais como o escritor e filósofo Galeotto Marzio, o neoplatônico e amigo de
Marsílio Ficino4, Francesco Bandini, ou o astrônomo germânico Regiomontanus, que
visitaram a Hungria entre os anos de 1460 e 1480.
Esse desabrochar precoce não foi, contudo, a ponta de algum iceberg de
florescimento cultural generalizado, mas a iniciativa bastante isolada de uma elite
intelectual em meio a circunstâncias de relativo atraso. A falta de escolas de ensino
superior foi uma inconfundível desvantagem. A universidade fundada por Sigismundo
em Óbuda, em 1395 (e refundada em 1410), logo seguiu o destino de sua predecessora,
em Pécs; tampouco a universidade criada por iniciativa de Vitéz em Pozsony, em 1467
(a Academia Istropolitana), sobreviveu por muito tempo a seu fundador, que morreu na
prisão logo após a conspiração de 1471. Já perto do final de seu reinado, Sigismundo
tentou, em vão, transformar a faculdade dominicana em Buda em uma universidade. A
maioria dos que receberam educação no próprio país estudaram em escolas de aldeias,
cidades ou cabidos, cujos métodos variavam conforme o mestre-escola tivesse ou não se
formado em uma universidade estrangeira. Futuros advogados adquiriam rudimentos do
direito consuetudinário nos “locais de autenticação” (hiteleshely). Para uma educação
universitária, muitos jovens da nobreza, e sobretudo plebeus, seguiam para o
estrangeiro: para Viena ou Cracóvia, onde estudantes húngaros contavam com escolas
próprias, ou para alguma universidade italiana. A maioria deles se satisfazia com um
currículo relativo às artes, e não ao direito ou à teologia, e ainda menos à medicina.
Todavia, depois de terem estudado fora, principalmente na Itália, voltavam com novas
perspectivas. De modo característico, Janus Pannonius, após passar anos estudando em
Ferrara ou Pádua, nunca mais se sentiu à vontade em face das condições do país, e
lamentou amargamente sua rudeza e barbárie.
Como seu tio, Janus morreu em decorrência da conspiração de 1471. Tivesse
vivido uma década a mais, talvez pudesse ter se reconciliado com a situação de um país
que, pelo menos no que se refere ao entorno imediato da corte de Matias, mudara
consideravelmente. Mestres italianos como Cimenti Camicia e escultores da Dalmácia e
da Toscana tinham, então, transformado os castelos de Buda e de Visegrád em
esplêndidos locais de residência principesca. Com efeito, o despontar de Buda como
4
O próprio Janus Pannonius (c. 1434-1472), tido como o primeiro poeta lírico húngaro, foi aluno do
filósofo Marsílio Ficino, considerado o maior representante do humanismo florentino, na Universidade de
Pádua; o poeta retornou em 1458 à Hungria, onde se tornou bispo de Pécs e chanceler real. (N.T.)

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uma digna sede real e cidade capital deve-se, além de Sigismundo, grande patrocinador
de construções seculares e eclesiásticas, em parte considerável a Matias. Ele ainda
patrocinou construções nos estilos gótico e renascentista em cerca de 110 localidades do
país. A precoce arquitetura renascentista na Hungria veio a disseminar o novo estilo
também entre os vizinhos do norte; a capela construída em Esztergom, no início dos
anos de 1500, e que recebeu o nome de Tamás Bakócz, o prelado de origem plebeia que
começou a ascender ao poder com Matias, foi a primeira capela renascentista construída
ao norte dos Alpes.
No entanto, a fama da corte de Matias na Europa deveu-se, principalmente, à sua
biblioteca, a Bibliotheca Corviniana, um singular monumento cultural da época. O
nome deriva da alcunha atribuída a Matias, inicialmente pelos humanistas italianos:
Corvinus era supostamente uma antiga família romana, em geral associada ao corvo (em
latim, corvus) que figurava no brasão huníade, mas possivelmente provinha de “Corvino
vico”, a aldeia de Keve no Baixo Danúbio, mencionada por Bonfini como domicílio do
pai de Matias. A biblioteca, formada segundo o modelo das de Vitéz e Janus, incluía
bem mais de dois mil volumes (apenas cerca de cem deles sobreviveram, encontrando-
se hoje espalhados pelo mundo), e, assim, em tamanho só teria sido superada pela dos
papas, no Vaticano (e quanto aos livros em grego, por nenhuma outra). Seu acervo
também era sempre atualizado: incluía o corpus completo então conhecido de todas as
disciplinas desenvolvidas pelos autores da Antiguidade e do helenismo, textos dos pais
da Igreja, da literatura bizantina e da escolástica, bem como, de modo incipiente, obras
do humanismo em versões bilíngue (grego e latim) – e, desse modo, a biblioteca
oferecia aos eruditos humanistas em visita a Buda excelentes condições de trabalho.
Embora, de 1473 em diante, o impressor germânico Andreas Hess tenha passado a
imprimir textos em Buda, a maioria dos títulos da biblioteca de Matias eram
manuscritos esplendidamente iluminados, no início encomendados na Itália e, depois,
produzidos com frequência cada vez maior nas oficinas instaladas por Matias em Buda.
Por fim, deve-se acrescentar que o mecenato de Matias não se limitava aos que
atuavam no novo ensino. Ele também convidou um admirável pensador da escolástica
tardia, o dominicano Petrus Nigri, posteriormente indicado para o posto de conselheiro
da escola dominicana de Buda. O autor da primeira crônica húngara a ser impressa, em
1488, János Thuróczy, foi pouco influenciado pelo humanismo, e seu pensamento
histórico defendeu a ideia do parentesco entre os húngaros e os hunos, que chegaram à

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Hungria provenientes da Cítia, tendo o “maior” deles eleito os primeiros governantes –
uma ideia que se tornou extremamente influente entre a nobreza.
Um exército triunfante e o esplendor cultural podem ter propiciado fama e
respeito a Matias, porém lhe faltou uma condição fundamental para estabelecer uma
dinastia: um legítimo herdeiro. Em vão, ele tentou garantir o trono, nos últimos anos de
sua vida, por meio de manobras diplomáticas, para seu filho natural, João Corvino,
nascido em 1473. A questão da sucessão não estava resolvida quando ele morreu, no
auge de suas vitórias, em 6 de abril de 1490, em Viena. “Matias está morto, e a justiça,
perdida”: foi esse comentário que a tradição do século XVI atribuiu ao homem comum
acerca de seu falecimento. “Matias está morto, os livros ficarão mais baratos na
Europa”: foi assim que Lorenzo de Medici supostamente teria comentado ao saber da
notícia da morte do soberano da Renascença da Hungria.

4. Crise Sócio-Política e o “Afastamento” Húngaro do Ocidente

A quase coincidência da morte de Matias com o descobrimento da América pode


ser considerada simbólica da sina da Hungria e, na verdade, de toda a Europa Central e
do Leste (o equivalente polonês de Matias, Casemiro IV, faleceu em 1492). O período
geralmente considerado como os primeiros primórdios da Era Moderna, quando o
desenvolvimento do comércio, das finanças e da indústria, dos corpos dos exércitos, da
marinha e da administração elevou, progressivamente, a Europa Ocidental à
preponderância mundial que veio a desfrutar nos séculos XVIII e XIX, marcou o início
de uma tendência em direção ao pouco que era “moderno” pelos padrões ocidentais na
região. Uma era de poder político relativamente forte chegara ao fim, e o potencial de
prosperidade econômica e de progresso social de longo prazo estava, também,
seriamente comprometido. Em poucas décadas, as classes possuidoras desmantelaram
as realizações da monarquia centralizada, e embora os irmãos Jagiello tivessem,
aparentemente, realizado o sonho de Matias de um “império” centro-europeu mediante a
distribuição dos tronos da região entre si, suas administrações e domínios fundiários
passaram progressivamente ao controle das diferentes facções nobres ou baroniais.
Ironicamente, o poder da nobreza na área foi reforçado pela nova “divisão de
trabalho” europeia que surgia com os descobrimentos geográficos. Uma vez que os
recursos do Novo Mundo eram transferidos para a Europa Ocidental, essa região se
tornou inquestionavelmente o centro do comércio, da indústria e das finanças no Velho

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Continente, enquanto o papel dos países da Europa Central e Oriental como
fornecedores de matérias-primas e produtos agrícolas também foi corroborado pelos
novos acontecimentos. O “preço da revolução” resultante do influxo do ouro e da prata
do ultramar na Europa do século XVI foi, em primeiro lugar, o de um amento constante
e acentuado no preço dos gêneros alimentícios. As oportunidades que surgiram com
essa situação não escaparam à atenção da nobreza rural, que decidiu elevar ao máximo
sua produção agrícola e as exportações, reforçando o controle sobre o campesinato. Por
meio das frequentes Dietas, dominadas por eles, os nobres rurais conseguiram impor a
legislação exigida para esse fim. Durante os reinados de Vladislau, de João Alberto e
seus sucessores na Boêmia, na Hungria e na Polônia, as Dietas emitiram múltiplos
decretos que visavam prender os camponeses à terra, reforçar os poderes jurisdicionais
da nobreza sobre eles e retomar a obrigação do serviço de mão-de-obra forçada
(corveia) na herdade feudal. Tais medidas culminaram com o surgimento de um sistema
denominado “segunda servidão”: a tendência anterior de transformar o serviço do
camponês em dinheiro, e o próprio camponês em proprietário, foi abolida, e esse
trabalhador foi relegado a uma posição mais parecida com a do semiescravo russo do
que com a do agricultor independente, que despontava no Ocidente. A repressão à
agitação camponesa daí decorrente aumentou ainda mais a autoconfiança da nobreza, o
que, por sua vez, enfraqueceu ainda mais a autoridade centralizada, criando as
condições favoráveis para conquistas de parte de forças externas.
As estruturas da sociedade húngara desenvolvidas na Idade Média favoreceram
uma reviravolta dos acontecimentos sob o estímulo das novas contingências. Mais de
sessenta por cento, ou até mais, das receitas fiscais de Matias advinham da agricultura.
Já se mencionou que as principais matérias-primas exportadas pela Hungria eram o
gado – cerca de 100 mil cabeças podiam deixar anualmente o país, no século XV –,
vinho e minerais. Além de ouro e prata, com os quais a Hungria abastecia a maior parte
da Europa antes do aparecimento dos metais preciosos da América e da África no
mercado, o cobre tinha se tornado cada vez mais importante no final do século XV.
Suas minas chegaram a ser mecanizadas por János Thurzó, um conselheiro da Cracóvia
de origem nobre húngara, que formou uma sociedade com os famosos Fuggers, da
cidade de Augsburgo, com vistas a monopolizar a indústria. Não havia, portanto, nada
de novo na ausência de produtos acabados entre as exportações. De outro lado, o
simples fato de que os únicos itens significativos da pauta de importações eram têxteis e
facas demonstra que a indústria local e o mercado interno funcionavam com suficiente

51
vigor. Entretanto, as “verdadeiras” cidades – os burgos livres régios, dotados de
fortificações e direitos de autonomia – em fins do século XV (que se supõe ter sido um
período de declínio ou estagnação para eles) chegavam apenas a trinta, com uma
população total que não ultrapassava 90 mil habitantes. Trata-se de um número
inexpressivo, se comparado com a massa de nobres, muitos dos quais possuíam pouco
mais que a arrogância, baseada em seus privilégios, além da pobreza material e
intelectual, embora pudessem agir como um fortíssimo grupo de pressão quando
lutavam por seus interesses, reais ou imaginários. Entre os cerca de 3,5 milhões de
súditos da coroa húngara, um em cada vinte, ou 25, era nobre (na França, esse número
era de um para cada cem), enquanto apenas um em cada quarenta era cidadão urbano
livre (na França, um a cada dez) – desde que aceitemos a convincente sugestão de que
os moradores das oppida, ou cidades mercantes, possuíam um nível mais alto de
“liberdades” camponesas, em vez de um nível mais baixo de liberdade urbana.
Essas circunstâncias se refletiram nas atitudes, bem como nas instituições e
costumes políticos, que, por sua vez, afetaram as relações sociais. Enquanto não
ocorreria a ninguém na Inglaterra ou na França que os representantes das cidades
dotadas de privilégios reais pudessem estar ausentes dos Parlamentos ou dos Estados
Gerais, respectivamente, ocorreu a alguns, e de maneira esporádica, que, com efeito,
tinham direito a estar representados na Dieta. Ao contrário, como a noção de uma
“sociedade política autônoma” começou a tomar forma no final do século XIII na
Hungria, e com maior ênfase a partir de 1400, acreditou-se, evidentemente, que os
deputados da nobreza representavam “todo o conjunto do reino”. No Ocidente, os
monarcas puderam contar com a força da economia urbana para superar a crise dos
séculos XIV e XV, e ainda mais porque enfrentavam nobrezas que tinham perdido
muito de seu prestígio, assim como a subordinação direta de seus camponeses, e
esperavam do Estado apenas cargos ou guerras. Na ausência de contingências como
essas para lhe impor limites, a poderosa nobreza húngara foi capaz de transferir a carga
da crise para o segmento da sociedade que se tornara o mais “ocidentalizado” nos
séculos precedentes: o campesinato, que assim perdia a luta pela preservação de seus
limitados direitos e liberdades, adquiridos naquele processo. Dessa forma, o colapso do
Estado erguido por Matias e a reorientação da economia mundial consolidaram as
estruturas da sociedade húngara, que mesmo antes disso já se afastava das estruturas
ocidentais, enquanto invertia os rumos que poderiam tê-la aproximado delas.

52
Depois do falecimento de Matias, uma Dieta foi convocada a fim de eleger seu
sucessor, em maio de 1490. Não faltaram pretendentes. Além de João Corvino, que
contava com o apoio tradicionalmente concedido pela nobreza ao clã Huníade, e possuía
enorme fortuna familiar, também Maximiliano de Habsburgo reivindicou o trono, com
base no tratado de 1463 entre Matias e Frederico III; como também o fizeram os dois
irmãos Jagiello, cuja mãe era neta de Sigismundo e irmã de Ladislau V. Além deles,
também a viúva, rainha Beatriz, aspirava suceder a seu marido.
Corvino provou, posteriormente, ser um bom soldado e bom organizador da
fronteira sul, mas se revelou um político bem menos hábil; de toda forma, ele foi
descartado pelos mais influentes oficiais e generais de seu pai, provavelmente em
consideração ao fato de que a recusa de todos os pretendentes estrangeiros podia lançar
a Hungria em complicações cujo desfecho seria difícil prever. Enquanto a pretensão de
Maximiliano se mostrava a mais forte, e também era dele que se poderia esperar um
apoio mais eficaz contra os otomanos (que, segundo se esperava, não tardariam a agir,
após a morte de Matias), o que as classes possuidoras queriam, antes de mais nada, era
um rei “cujas rédeas elas pudessem manter em suas mãos”; e, assim, identificaram em
Vladislau o candidato ideal. Ele foi coroado como Vladislau II, sob a condição de
assinar os compromissos de sua eleição, que incluíam a abolição dos subsídios
irregulares e outras “inovações danosas” introduzidas por Matias. Corvino foi
apaziguado com a concessão do título de duque da Eslavônia e a de continuar como o
mais rico magnata do país, deferências que pôde manter mesmo depois de ter mudado
de opinião, se revoltado, e ter sido derrotado por Kinizsi, outrora comandante de Matias.
Em 1491, as invasões lideradas por Maximiliano e o irmão de Vladislau, João Alberto,
também foram rechaçadas. O exército mercenário de Matias foi utilizado nesses
confrontos, porém, quando seus integrantes ficaram sem receber por vários meses,
começaram a pilhar o interior do país até que os remanescentes fossem, por fim,
dispersados por Kinizsi, em 1492.
Na superfície, a maior parte do reino de Vladislau vivia uma situação de
tranquilidade, tanto doméstica como nas fronteiras. A confusão que acompanhara a
sucessão despertou o apetite dos otomanos, que tentaram, sem sucesso, capturar
importantes fortalezas, ano após ano, até que a paz foi celebrada, em 1495. Esse acordo
foi renovado por várias vezes, com um breve intervalo, em 1501, quando Vladislau se
juntou à coalização do papa com Veneza; no entanto, o principal objetivo dessa união
era obter o lucrativo subsídio de seus aliados, e ele se absteve das batalhas ou cercos

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mais importantes. A situação mudou, em 1512, quando o otomano Selim I, mais
belicoso, depôs seu pai, Bajazeto II, e as hostilidades recomeçaram, com êxitos
alternados. De maneira geral, perdeu-se apenas o banato bósnio de Srebrenica para os
turcos. Mas o saldo foi bem mais desfavorável para os húngaros, uma vez que as
escaramuças e os ataques que continuavam, sem que houvesse uma guerra formal,
devastaram os territórios em torno das fortalezas construídas por Matias, cortando suas
linhas de abastecimento. Desde então, foi cada vez mais difícil enfrentar a pressão
otomana.
O único conflito significativo entre a Hungria e um país cristão foi a declaração
de guerra de Maximiliano, em resposta ao decreto das classes possuidoras húngaras,
segundo o qual nenhum estrangeiro deveria ser eleito rei da Hungria caso Vladislau
morresse sem deixar herdeiros. A questão foi resolvida pelo pacto de sucessão, de 1506:
Fernando, neto de Maximiliano, deveria se casar com a filha de Vladislau, cujo filho,
que ainda não tinha nascido, por sua vez deveria se casar com Maria, irmã de Fernando.
Quando o acordo foi revelado, foi a vez de as classes húngaras incitarem o rei a declarar
guerra ao imperador, mas como o filho de Vladislau, Luís, nascera alguns meses antes, a
guerra pareceu inoportuna.
A se fiar tão somente pela crônica dos acontecimentos, a política húngara foi,
então, mais pacífica do que em qualquer outra época desde o reinado de Sigismundo.
Vladislau não enfrentou tentativas para depô-lo, fossem pela força das armas ou da
astúcia. Todavia, a principal razão para isso foi que os senhores tinham encontrado
caminhos “legais” para assegurar seus interesses com o governante, bem como com
outros segmentos da sociedade. Eles não tomaram medidas para mudar as instituições
ou a maneira de governar legadas por Matias; elas foram, antes, “expropriadas” por eles.
O controle se transferiu para as mãos do conselho régio, cujas decisões Vladislau nunca
contestou (daí seu apelido, “Vladislau Dobre”: “o Muito Bem”). O chanceler tornou-se
uma figura particularmente poderosa. Durante a maior parte do reinado, o cargo de
chanceler principal, assim como o de chanceler secreto, foi preenchido por Tamás
Bakócz, cuja carreira espetacular começou como funcionário de origem plebeia, sob
Matias; mas, quando Vladislau chegou ao trono, ele já era bispo de Gyór, depois de
Eger, tornando-se por fim arcebispo de Esztergom e cardeal, além do posto na
chancelaria. Mesmo a cobrança de um subsídio extraordinário continuou regularmente,
com a diferença de que, na ausência do “exército negro”, ele passou a ser recolhido em
parte pelos barões, para manter sua banderia, e em parte pelos condados, para recrutar

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mercenários – com o resultado previsível de que, enquanto as forças de defesa do país
diminuíam consideravelmente, a receita régia caía para 200 mil florins, e até menos, ou,
em outras palavras, abaixo do nível no qual Matias outrora a tinha fixado.
A fim de definir claramente as obrigações militares (ou seja, o círculo dos que
eram autorizados a se apropriar dos subsídios), a Dieta de 1498 aprovou uma legislação
que também confirmava o processo em curso de diferenciação entre a nobreza. As leis
enunciavam os nomes dos 41 grandes latifundiários intitulados e obrigados a manter
tropas “banderiais”, em uma lista que se tornou a base de uma estrita demarcação entre
a aristocracia e as famílias nobres que tinham chegado ao poder nas décadas anteriores;
e também incluía o ponto de partida do desenvolvimento da Dieta em uma assembleia
bicameral, como viria a se tornar. Além da corte, a aristocracia e a média nobreza
tornaram-se os polos de complicadas disputas, travadas com frequentes mudanças de
posição e de alianças nas tumultuadas Dietas do período Jagiello. Uma vez que a
composição dos grupos de interesse especificamente baronial mudava com frequência, é
um pouco à custa de rigor histórico que a aristocracia tenha sido descrita como “pró-
Habsburgo”, e a nobreza como tendo, de outro lado, uma orientação “nacional”.
Certamente, os debates nas Dietas ressoavam com a retórica do patriotismo, dos valores
húngaros e do bem comum, formulados na linguagem do “citianismo” inscrita na
crônica de Thuróczy – de modo bastante irônico, em uma época em que o sistema de
defesa do país e sua posição estratégica relativa ao Império Otomano deterioravam-se
rapidamente. Como antes, a nobreza, baseada no sentimento tanto quanto na prudência,
fundou seu herói em uma pessoa provinda de suas próprias fileiras, desta vez, János
Szapolyai, voivoda da Transilvânia desde 1510. Foi com esse herói em mente que o
decreto de 1505 sobre reis estrangeiros e “nacionais”, aqui anteriormente mencionado,
foi aprovado.
A média nobreza, cada vez mais tolhida em uma mobilidade ascendente, tentou
compensar a si mesma às custas do campesinato e da oppida, que tirava a maior parte de
seus lucros por meio da circulação das matérias-primas agrícolas. Considerando-se que
esses nobres tinham relativamente poucos servos, eles foram adversamente afetados
pela livre migração dos camponeses, que sempre procuravam as propriedades maiores,
onde as relações de dependência eram mais favoráveis e a troca de mercadorias mais
pujante. Sob pressão das massas da média nobreza, desde 1492 as Dietas obrigaram,
primeiro, todos os proprietários (inclusive cidadãos urbanos que cultivavam terras) a
recolher a nona em espécie, e então reduziram a multa imposta para evitar que

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camponeses se transferissem de um patrão a outro; por fim, aboliram completamente o
direito à migração. Os latifundiários passaram a exigir cada vez mais de seus rendeiros
que praticassem a corveia, mais do que antes: embora um dia de corveia por semana
fosse considerado um tanto excessivo no reinado de Matias, três dias por semana
tornaram-se bastante comuns, à medida que avançava o período Jagiello. A ofensiva da
nobreza afetou um campesinato altamente estratificado, cuja camada superior
conquistara maior autoconfiança e uma visão mais ampla graças à afluência que tinha
auferido com o sucesso econômico ao longo do meio século precedente. Esses
prósperos, geralmente também bem-educados arrendatários e moradores da oppida,
muitos dos quais envolvidos em negócios lucrativos como o comércio de gado e a
viticultura, não demoraram a responder ao desafio. Além dos isolados protestos locais,
uma manobra insensata por parte da elite provocou uma revolta rural concertada, a
maior da história da Hungria.
Em 1513, Bakócz habilitou-se como candidato às eleições papais, e, como
compensação por ter perdido a disputa, Leão X o indicou como núncio papal para
organizar a cruzada contra os otomanos. Apesar da desconfiança entre os especialistas
em assuntos relativos aos otomanos no conselho régio, a respectiva bula papal foi
proclamada em Buda, em abril de 1514, e logo cerca de 40 mil cruzados camponeses
acorreram aos acampamentos – a maior parte deles ao acampamento central, próximo a
Peste, sob o comando de György Székely Dózsa, um oficial de cavalaria proveniente da
fronteira sul. O entusiasmo dos camponeses pode ter sido motivado tanto pelos
sentimentos contra os turcos como pela remissão dos pecados prometida aos
participantes da cruzada, mas constituiu, principalmente, um sintoma da insatisfação e
da agitação diante de sua sorte. Elas ainda aumentaram quando os nobres, relutantes em
deixar sua escassa força de trabalho abandonar suas propriedades, e preocupados com as
inevitáveis transgressões de uma tal massa rebelada, resolveram impedir que seus
camponeses fossem se juntar aos cruzados. No início de maio, já ocorriam lutas
sangrentas, em reação às quais Bakócz deu ordens para se cancelar a campanha e cessar
o recrutamento.
Contudo, os camponeses e Dózsa, que se mostrava sempre ansioso para marchar
contra os turcos, recusaram-se a se dispersar. Derrotaram as forças que tentaram detê-
los, e prosseguiram a ofensiva durante dois meses, incendiando casas feudais,
saqueando castelos, e destruindo minuciosamente documentos que registravam os
direitos senhoriais. Eles foram inflamados pela Ordem popular dos frades Franciscanos

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Observantes, originalmente encarregada da pregação do calvário, mas cujos membros
há tempos se mostravam impacientes com a injustiça social que testemunhavam nas
aldeias e na oppida, das quais provinham, desenvolvendo então uma ideologia peculiar
de “cruzada popular”. Esta se baseava na ideia de que, ao sabotar o sistema de defesa do
reino e obstar que o “sagrado exército da cruz” cumprisse sua missão, os senhores
feudais perdiam seus direitos, e que, em caso de sucesso da revolta, os camponeses
deveriam ser investidos das mesmas liberdades que os szekels da Transilvânia. Em fins
de junho, o rei e a nobreza despertaram do choque inicial, e logo os pequenos centros da
rebelião foram pacificados, enquanto o exército principal de Dózsa se rendeu a
Szapolyai, que, em 15 de julho de 1514, viera resgatar o castelo de Temesvár, sitiado
em vão pelos camponeses durante mais de um mês.
Dózsa foi executado de maneira bestial – foi queimado vivo em um trono de
ferro incandescente, e seus companheiros foram obrigados a comer sua carne queimada
antes de serem torturados até a morte. Mas, à parte cenas de brutalidade como essas na
imediata sequência da revolta, a maioria de seus participantes escapou de sérias
punições, obviamente que pelo reconhecimento de que sua mão-de-obra ainda era
necessária. Naturalmente, exigiu-se que os camponeses pagassem pelos prejuízos
causados. Como punição coletiva, a Dieta de outubro de 1514 aprovou uma legislação
que sujeitava os camponeses à “eterna servidão” (perpetua rusticitas); ou seja, eles
passavam a ser indistintamente proibidos de se transferir de um patrão a outro e de
portar armas, e exigia-se que executassem trabalhos forçados. Embora não de maneira
estrita, nem imposta igualmente o tempo todo, esse se tornou o status quo legal que
chegou até 1848.
Na mesma Dieta, o famoso Tripartitum, uma vasta coleção de leis
consuetudinárias húngaras compiladas, segundo ordenara a Dieta de 1498, por István
Werbóczy, foi apresentado aos deputados. Werbóczi era jurista e um zeloso partidário
de Szapolyai e da pequena nobreza na Dieta, e, portanto, insistiu – de modo nada
surpreendente, mas diante da realidade – em idênticas liberdades para todos os nobres,
bem como na ideia de que a comunidade de nobres é que constituía a “coroa” abstrata.
A noção de uma república de nobres, como a que fora desenvolvida na Polônia naquele
mesmo século, era apenas um passo adiante para isso, e assim tampouco poderia
surpreender que o texto não tenha sido nem promulgado, nem enviado aos condados
pelo conselho régio. Ainda assim, impresso em Viena, em 1517, esse projeto tornou-se

57
amplamente conhecido e, por três séculos, foi a base da efetiva aplicação da justiça, sob
incumbência principalmente dos tribunais locais dos condados nobres.
A consequência mais grave da guerra camponesa foi o prejuízo que causou, e
que se intensificou com o impacto da depressão econômica europeia iniciada em 1512,
em uma época em que os recursos se tornavam mais que nunca necessários. Mesmo no
final do século XIV, quando o território do Império Otomano não chegava a ser maior
que o do Reino da Hungria, os otomanos já eram muito superiores em termos militares e
estratégicos. As conquistas do século XV, sobretudo as de Murad II e de Mehmed II nos
Bálcãs e na Ásia Menor, alteraram o equilíbrio territorial, e os otomanos passaram a
reter mais que o dobro da área da Hungria; e as de Selim I, desde 1512, na Síria, no
Egito e no Iraque, elevaram sua área para o triplo do tamanho do reino húngaro.
Considerando-se que outros alvos eram, também, demasiado remotos ou menos
atrativos, a Hungria podia cogitar, com razão, que seria a próxima a ser invadida,
quando o filho de Vladislau, Luís II, subiu ao trono aos dez anos de idade, em 1516.
Quando Selim morreu, sendo sucedido pelo filho, Suleiman I (posteriormente
denominado “o Magnífico”), os barões húngaros que governavam em nome do rei,
ainda menino, sentiram-se tão reconfortados que deixaram de responder à oferta de paz
apresentada pelo novo sultão (na verdade, eles aprisionaram o enviado otomano). Foi
um grave erro de cálculo: logo no início do ano seguinte, Suleiman, ambicioso e
sentindo-se insultado, marchou em direção à Hungria. Sabac e Belgrado tombaram no
verão de 1521, deixando o país vulnerável à invasão pelo sul.
Visto que os diferentes projetos preparados pelas Dietas com o objetivo de
organizar a defesa se tornaram cada vez mais interligados com a política de facções, e
eram dessa forma mutuamente anulados, ou então se prestavam à mera declamação, em
1523 Luís II – já então persuadido por sua mulher, Maria de Habsburgo, e seguindo o
exemplo de seu cunhado Fernando, da Áustria – tentou resolver as coisas por si. As
mudanças no governo, em geral, não caminharam bem, e apenas reacenderam a divisão
e a instabilidade, a ponto de o clima político no país ser o de guerra civil até a Dieta de
1526, quando o rei consolidou sua posição – ironicamente, ao recorrer a uma sociedade
secreta, criada no ano anterior para proteger os interesses da nobreza. As mudanças
tampouco constituíram, aliás, iniciativas muito sensatas, e a revogação do contrato com
os Fuggers, relativo às minas do norte, não produziu o resultado desejado. A única
decisão de 1523 que se comprovou bem-sucedida foi a indicação de Pál Tomori,
arcebispo de Kalocsa, como capitão-mor. Tomori, assim como Szapolyai, obteve

58
algumas vitórias contra os turcos; mas estes, por sua vez, quebraram a espinha dorsal da
linha de frente das fortalezas. Em meio aos problemas ligados ao crescente conflito
entre as classes católicas e protestantes, à guerra camponesa germânica e à disputa com
a França de Francisco I, as Dietas imperiais e o outro cunhado de Luís, o imperador
Carlos V, se mantiveram indiferentes às dezenas de alarmantes pedidos de ajuda.
Enquanto a Dieta de 1526 era convocada, o exército de Suleiman,
consideravelmente maior do que em 1521, já estava a caminho para desencadear a
campanha que marcaria o início do desmembramento do Reino medieval da Hungria. O
país não se empenhou em preparativos importantes até o mês de junho, quando as tropas
húngaras finalmente foram mobilizadas e peças religiosas foram confiscadas para
efeitos de cunhagem [monetária]. O exército que, por fim, foi acionado contra os turcos,
em 29 de agosto de 1526, em Mohács, consistia na banderia real, com soldados das
fortalezas do sul, e na banderia baronial, com soldados principalmente da Hungria
meridional: eram cerca de 25 mil homens em face de um número aproximadamente três
vezes maior de otomanos. Os mercenários de Luís, vindos do reino boêmio, as tropas da
Croácia e as do voivoda Szapolyai não chegaram a tempo para a batalha, que foi curta e
catastrófica. Uma vez que a supostamente promissora cavalaria ligeira húngara
sucumbiu, o desfecho se decidira, e em duas horas o exército e o governo húngaros
sofreram um golpe mortal; pelo menos 10 mil soldados rasos, virtualmente o total da
cavalaria, e 35 prelados e barões morreram no campo de batalha. Em plena fuga, o rei,
protegido por armadura pesada, caiu de seu cavalo e afogou-se em um riacho. Suleiman
pôde, então, marchar até Buda a seu bel-prazer; assim como ocorrera após a batalha de
Muhi, em 1241, parecia, outra vez, que o Reino da Hungria estava à beira de ser
aniquilado.

59
Capítulo IV
Encravada entre Impérios
(1526-1711)

No século XV, a Hungria figurava como uma importante potência de médio


porte europeia. A capital do país fora o valoroso local de residência de um dos maiores
imperadores do Sacro Império Romano na primeira parte do século e a sede do primeiro
soberano renascentista do norte dos Alpes, na segunda parte. O lamento do poeta Janus
Pannonius, na década de 1460, acerca das bárbaras condições do país, embora não
inteiramente desprovido de fundamento, podia, ainda assim, ser interpretado no
contexto de uma tradição literária. Em contrapartida, quando, em 1620, Márton Szepsi
Csombor expressou sua angústia diante do vácuo sempre crescente entre as condições
do Ocidente e as de seu país natal, em seu relato de viagem significativamente intitulado
Europica Varietas, tratava-se de uma avaliação dolorosamente objetiva da situação.
Apesar de ela não ser amplamente compartilhada por seus contemporâneos, foi daquela
época em diante que esse sentimento de ter ficado para trás tornou-se um elemento
dominante nas considerações dos pensadores húngaros pelos séculos vindouros. Com
efeito, no final do século XVII, a Hungria se tornara arruinada, empobrecida e excluída
dos principais vetores do desenvolvimento europeu. O exame cuidadoso dessa situação
crítica, a árdua resistência a uma total subordinação às potências estrangeiras e a
simples sobrevivência ajudaram a Hungria a se manter como parte integrante da cultura
e do sistema de valores europeus, embora fosse bastante imprevisível quanto o capital,
sobretudo moral e intelectual, até então acumulado teria valia em meio às condições de
progresso acelerado do período subsequente.
De maneira bastante compreensível, as causas do declínio alimentaram com
frequência um dos mais discutidos e controversos tópicos da historiografia húngara, em
que a responsabilidade foi atribuída, alternadamente, à ira da oligarquia no período
Jagiellos, à subjugação do campesinato e seu alheamento da causa da defesa nacional

60
após 1514, ao isolamento face aos estímulos do mercado do Atlântico, à conquista
otomana e à “colonização” pelos Habsburgos. Já enfatizei, aqui, as precariedades
estruturais no início do desenvolvimento do país, as quais contribuíram para o impacto
adverso de alguns desses novos fatores. O enrijecimento da estrutura social foi
exacerbado, sem dúvida, pelas consequências da revolta de [György] Dózsa, e pela
segmentação do país; e especialmente pelo fato de suas áreas mais férteis terem sido
conquistadas pelo Império Otomano, uma potência cuja perspectiva era completamente
estranha aos padrões europeus. Ao mesmo tempo, a Polônia, embora não tenha chegado
a vivenciar importantes guerras camponesas naquele período, e escapou ao domínio
otomano, tornou-se um exemplo clássico de “segunda servidão”, assim como de uma
“democracia de nobres”, onde o vigor das estruturas corporativas minou a força do
Estado e levou à sua queda, em fins do século XVIII.
O trauma causado pela desintegração do Reino medieval da Hungria e o fato de
que seu território se tornou, por mais de um século e meio, um palco de guerra na luta
entre duas grandes potências expansionistas, a dos otomanos e a dos Habsburgos, foram
até certo ponto, seguramente, um “excedente” em comparação com a Polônia,
acentuando a decadência da fecundidade cultural e intelectual e da rebeldia que serviam
como um pano de fundo para o crescimento e a luta entre a Reforma e a
Contrarreforma. Isso apenas contribuiu para aumentar a visível perplexidade no período,
diante do fato de que, além do desastroso saldo demográfico e da destruição dos
recursos econômicos, os ciclos de prosperidade internacional não deixaram de atingir a
Hungria. Todavia, o boom agrário que continuou a estimular a economia húngara,
durante a maior parte do século XVI, não gerou uma transformação estrutural capaz de
levar à capitalização da agricultura ou ao crescimento das indústrias a ela vinculadas.
No que se refere à alegação de que um tal desenvolvimento era impedido pelo domínio
dos Habsburgos, deve-se ter em mente que os efeitos há pouco mencionados já eram
aparentes no início do século XVII, em uma época em que as classes possuidoras
húngaras tinham acabado de consolidar sua posição diante da corte de Viena, bem antes,
portanto, dos efeitos adversos do absolutismo húngaro no final do século. Certamente, a
perda parcial da soberania do Estado e o fato de que sua principal depositária, o
principado da Transilvânia, emergiu na parte do Reino medieval da Hungria onde as
estruturas ocidentais tinham menos avançado, e que era permanentemente obrigada a
uma oscilação diplomática entre as duas grandes potências vizinhas, não constituíram
uma vantagem. Ainda assim, deve-se levar em conta que no início do século XVI a

61
Hungria não era mais capaz de deter a expansão turca. O desfecho inevitável foi o de
que seus resquícios se tornaram uma zona-tampão entre o Império Otomano,
dependente dos Habsburgos, aos quais a morte de Luís II no campo de batalha de
Mohács ajudou, juntamente com a coroa húngara, a cumprir sua principal missão
europeia: conter e, no final do século XVII, expulsar da Europa Central o mais
agressivo conquistador oriental desde a ascensão do Ocidente.

1. Um Baluarte da Cristandade, ou a Hungria Tripartite

Doze dias depois da batalha de Mohács e pouco mais de uma geração após a
morte de Matias, o triunfante sultão e seu exército marcharam em direção a Buda,
evacuada pela corte da viúva rainha Maria, que fugira para Pozsony. A comitiva do
sultão também logo partiu, depois de incendiar a capital e parte considerável do interior
do país pelo caminho, retornando aos Bálcãs em meados de outubro com um imenso
botim que, até 1528, ainda fazia despencar os preços de escravos e de artigos de metais
preciosos no mercado de Sarajevo. Aparentemente, a Hungria fora abandonada à sua
própria sorte; mas, na realidade, a partir das guarnições deixadas nas fortalezas
ocupadas na região setentrional de Srem, os turcos podiam controlar qualquer
movimento no país que lhes parecesse desfavorável.
De fato, a situação política da Hungria dificilmente poderia ter sido mais
favorável para eles. Luís II não deixara herdeiros, dois pretendentes rivais
reivindicavam subir ao trono húngaro – um deles, segundo o decreto da Dieta de 1505
que postulava a eleição de um “rei nacional”, o outro, conforme os termos do contrato
de casamento Habsburgo-Jagiello, de 1506. Szapolyai, cuja hora tinha chegado, foi ele
próprio eleito como o rei João I, na Dieta convocada em 11 de novembro de 1526, em
Székesfehérvár, pela esmagadora maioria da nobreza. Com sua rápida reação, ele
esperava intimidar os Habsburgos, cujos adeptos eram alguns poucos magnatas reunidos
em torno da rainha Maria. Ela recusara um pedido de casamento de Szapolyai, mas,
ainda assim, mostrava-se decidida a seguir o exemplo dos estamentos checos ao
reconhecer Fernando, arquiduque da Áustria, eleito como Fernando I, em 17 de
dezembro, em Pozsony. Para os Habsburgos, que interferiram recorrentemente nos
assuntos da Hungria durante o reinado de Luís II, tornou-se imperativo apoderar-se de
sua herança e garantir as regiões oeste e norte do país, mesmo que não pudessem ter em
vista a eliminação dos turcos. Visto que as forças Habsburgo, ocupadas com as guerras

62
italianas do imperador Carlos V, puderam ser liberadas após o saque de Roma, em maio
de 1527, mercenários germânicos bem treinados começaram a repelir as tropas de
Szapolyai das áreas centrais da Hungria. Reconhecendo o status quo, a maioria dos que
antes apoiavam Szapolyai uniram-se a Fernando na Dieta de Székesfehérvár, em
novembro de 1527, enquanto o rei João inicialmente recuou até a Transilvânia, e então
buscou refúgio na Polônia.
Os otomanos tornaram-se, então, capazes de enquadrar dois em seu jogo de
ocupação por etapas, que fora bem praticado nos Bálcãs. Eles já haviam enfraquecido as
instituições econômica e militar da região por meio do poderoso primeiro ataque, e
abandonado guarnições em fortalezas-chave. Agora, havia também uma força política
no país que apenas poderia continuar no poder com o apoio deles, e que, em troca,
poderia legalizar sua presença: encorajado pela Porta 5, João buscou o socorro de
Suleiman contra Fernando. No tratado de Istambul de janeiro de 1528, ele foi
reconhecido como o único governante legítimo da terra conquistada pelo sultão pela
força das armas, e lhe foi prometida a ajuda solicitada. A nobreza que levara Szapolyai
ao trono pôde ser acalmada mediante a crença de que os turcos eram, de fato, aliados
que preparavam o caminho para um golpe final que culminaria na incorporação de uma
parte ou de todo o país pelo Império Otomano, ou que, pelo menos, o reduziria a um
Estado tampão dependente, como tinha sido o caso dos principados romenos vizinhos.
O terceiro passo seria dado em 1541, quando Buda foi finalmente capturada e
ocupada, ao longo dos 145 anos seguintes, pelos otomanos. Embora em 1529 eles
tenham ocupado Buda e forçado a corte de Fernando a fugir, o cerco posterior de Viena
não foi bem-sucedido; e, em 1532, uma segunda tentativa de invadir a sede dos
Habsburgos foi interrompida pelos defensores da minúscula fortaleza de Kószeg, na
Transdanúbia. Durante os “anos de paz” que se seguiram – na verdade, um período de
guerra civil intermitente, com choques frequentes entre os partidários dos dois reis –, o
sultão se satisfez em exercer um crescente controle sobre o país, com o apoio ostensivo
das tropas a Szapolyai em sua luta contra Fernando. Enquanto alguns estamentos,
apreensivos com o desmembramento do país, tentavam tomar a iniciativa propondo
“Dietas sem reis”, de modo a afastar ambos os monarcas, e as mutáveis lealdades de
outros resultassem na constante alteração das fronteiras entre os domínios de Fernando e
João, a maioria do país encontrava-se sob a jurisdição nominal deste último. Além da

5
No original, “Porte”; conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Porta, ou Sublime Porta,
era como se chamava o governo turco no tempo dos sultões, e, por extensão, o Império Otomano. (N.T.)

63
presença militar turca, a autoridade de João foi seriamente restringida por Ludovico
Gritti, um banqueiro veneziano (filho ilegítimo do doge), comerciante e favorito de
Suleiman, que fora tesoureiro de Szapolyai, governador e, por fim, comandante em
chefe. Quando ele foi morto por nobres da Transilvânia, em 1534, Suleiman, ocupado
com uma guerra na Pérsia, não se vingou imediatamente, mas, em 1536, expandiu o
domínio otomano ao avançar sobre a Eslavônia oriental.

Mapa pág. 151

(6) A Hungria Tripartite no Final do Século XVI


Cidades Importantes e Fortificações
---
Fronteiras dos Condados Húngaros Sobreviventes
.........
Fronteiras dos Vilaietes Turcos

Sacro Império Romano


Reino da Polônia
Moldávia
Valáquia
Império Otomano
República de Veneza
Hungria dos Habsburgos
Principado da Transilvânia

Depois da experiência do episódio Gritti e do fracasso da contraofensiva de


Fernando no ano seguinte, na Eslavônia, Szapolyai começou a se dar conta de que sua
insistência em obter o trono beneficiava os turcos, e começou a aceitar a ideia de deixar
o país, após sua morte, para os Habsburgos, que possuíam melhores recursos para
defendê-lo. Após prolongadas negociações entre os representantes dos dois reis,
chegou-se ao Tratado de Paz de Várad, em 24 de fevereiro de 1538, nos termos dos

64
quais Fernando deveria herdar o trono de Szapolyai, cujos herdeiros receberiam uma
grande compensação. Contudo, Szapolyai, sem filhos até então, casou-se no ano
seguinte com Isabela, a filha do rei Sigismundo I da Polônia, com quem teve um
menino, nascido em 1540. Prestes a morrer, o rei João obteve o juramento de seus
barões de que recusariam o Tratado de Várad, e seu todo-poderoso conselheiro e
tesoureiro, György Martinuzzi (o “Irmão György”, bispo de Várad), de fato conseguiu
eleger o infante João Sigismundo como rei João II, e essa eleição foi reconhecida pela
Porta. Em vão, Fernando enviou emissários à Transilvânia para que o tratado fosse ali
implementado, bem como tropas para tomar Buda nos anos de 1540 e 1541.
O cerco de Buda pelo exército de Fernando, no verão de 1541, deteve o avanço
das forças do sultão Suleiman, e foi determinado, conforme ele alegou, a fim de
proteger os direitos do rei infante. De fato, enquanto entretinha o séquito de João II em
seu acampamento, seus soldados ocuparam a cidade sem consumar um ataque, em 29 de
agosto de 1541. Dois dias depois, a família real deixou Buda rumo aos territórios a leste
do rio Tisza e da Transilvânia, designando Isabela e seu filho para o governo em troca
do pagamento de um tributo anual ao sultão. A tripartição do país, iniciada em 1526,
agora estava consumada. Entre a batalha de Mohács e a queda de Buda, a autoridade do
rei João já se tornara mais forte sobre a Transilvânia e alguns condados húngaros do
leste, ou “as Partes” (Partium), as quais, depois de 1541, ficaram sob administração
comum e começaram a desenvolver um novo Estado, o Principado da Transilvânia,
dependente do Império Otomano, porém com autonomia quanto aos assuntos internos.
O restante do país, teoricamente governado por João, se tornou, antes mesmo de 1541,
um palco de guerra da disputa entre as duas grandes potências, no qual a força militar
húngara desempenhava um papel subalterno. Em 1541, uma dessas potências, a dos
Habsburgos, já tinha criado nas partes norte e oeste do país as linhas gerais de uma
administração centralizada, operada a partir dos gabinetes instalados em Viena; e agora
a outra potência, a dos otomanos, também se empenhava em organizar as áreas centrais
como uma província do Império Otomano.
Quando os Habsburgos se estabeleceram na Hungria, uma rede de órgãos
administrativos, independentes do controle dos estamentos provinciais, tinha
despontado em Viena, inspirada em boa parte naquela que fora criada pelos duques de
Borgonha. Essa rede passou a contar com o funcionamento permanente de uma
burocracia formada por profissionais remunerados. Uma vez que Fernando, além de rei
da Hungria e da Boêmia, respondia pela administração das províncias hereditárias da

65
Áustria e governava, em nome de Carlos V, o Sacro Império Romano, os assuntos
relacionados a todos esses territórios não se distinguiam claramente uns dos outros. O
principal organismo de formulação e decisão política, o Conselho Particular do
soberano, era constituído de aristocratas e juristas germânicos e austríacos; as decisões
tomadas por esse conselho e também pelo Tribunal Fiscal eram emitidas pelo Tribunal
da Chancelaria, que tinha também uma participação na condução da diplomacia. Em
1556, criou-se ainda um tribunal do Conselho Militar. Este era o único tribunal vienense
cuja competência se estendia oficialmente também à Hungria. Uma vez que não
tencionava residir na Hungria, logo depois de ter subido ao trono Fernando instalou o
Conselho geral de governo, ou Gubernium, a ser chefiado pelo palatino, ou, caso esse
posto se encontrasse vago, por algum dos arcebispos ou bispos húngaros. Assim, tal
conselho nunca foi um mero instrumento dos Habsburgos, nem era considerado um
corpo estranho pelas classes, como ocorrera com o outro órgão criado em 1528, em
Buda, e reorganizado, em 1531, em Pozsony, o Tesouro Húngaro. Em princípio, os
novos organismos húngaros não eram dependentes de seus homólogos vienenses, mas
tanto o Tesouro húngaro como a Chancelaria húngara, que funcionavam na capital, até
certo ponto subordinavam-se a eles. Já que a Corte se instalara fora da Hungria, os
conselheiros húngaros do rei e outras figuras de proa conviviam de maneira
desconfortável em um ambiente estranho, e tinham pouca influência na formulação das
políticas governamentais.
Não obstante, havia dois limites importantes ao poder dos reis Habsburgos da
Hungria, os quais não podiam deixar de reconhecer que na administração desse país as
condições e leis húngaras deviam ser levadas em consideração. O primeiro desses
limites era o peso dos magnatas, cujas propriedades, que tinham advindo, em parte, das
enormes recompensas obtidas sempre que mudavam seu compromisso de fidelidade no
curso da disputa entre Fernando e João, podiam chegar até ao tamanho de províncias. A
autoridade dos organismos centralizados dificilmente ultrapassava as fronteiras desses
domínios. Os Batthyány, Báthori, Erdódy, Nádasdy, Zrínyi e outros obtiveram altos
postos em Pozsony ou como ispáns dos condados; capitaneavam a lealdade das hostes
da média nobreza local e mantinham exércitos particulares consideráveis, bem como
cortes principescas que se empenhavam deliberadamente em desempenhar papeis
sociais e culturais que antes concerniam às cortes dos reis da Hungria. O segundo limite
consistiu na reação das classes às medidas da administração Habsburgo que afetavam
seus direitos, como se elas fossem seus parceiros em pé de igualdade. O rei não podia

66
negligenciar a convocação da Dieta, porque, em princípio, não era autorizado a impor
tributos, a menos que fossem votados pelas classes, as quais geralmente se recusavam a
aprová-los até que extraíssem a promessa de que suas reivindicações seriam atendidas.
Embora o século XVI não tenha sido, por certo, uma época de “lutas contra os
Habsburgos”, como a historiografia romântica pretendeu nos fazer acreditar, ele foi um
século de divisão constitucional do poder entre Viena e as classes possuidoras húngaras.
Todavia, o papel das classes ficou restrito à liberdade de ação quanto aos
assuntos internos. Embora reivindicassem uma influência também nas questões externas
e militares, o fato de estas serem tratadas diretamente em Viena frustrou tal pretensão.
Ela também se tornou impraticável pela cota que a Hungria conseguiu assumir nas
despesas de manutenção do sistema de defesa. Depois da ascensão dos Habsburgos, as
cerca de cem fortificações existentes no país não se comprovaram suficientemente
fortes para resistir ao fogo de artilharia por mais de dois dias. Sua modernização e
conservação exigiam enormes aportes de capital, além do pagamento aos 15 mil a 20
mil soldados que as guarneciam mesmo em tempos de paz, o que chegava a um total de
cerca de 800 mil a um milhão de florins anuais entre meados e o final do século. A
receita obtida pelo Tesouro da Hungria era menor que a metade desses números, e tinha
forçosamente de ser complementada pelos consideráveis subsídios votados pela Dieta
Imperial Germânica (a Türkenhilfe: “ajuda turca”) desde 1530, assim como pelos
estamentos da Áustria (e que eram alocados, obviamente, em primeiro lugar nos
distritos adjacentes às suas próprias fronteiras). A diplomacia, especialmente a voltada
aos papas, e a boa reputação dos Habsburgos asseguravam recursos adicionais quando,
como geralmente acontecia nos anos de guerra, tudo isso se comprovava insuficiente.
Os contemporâneos apenas podiam reconhecer que, se não fosse por meio do acesso dos
Habsburgos a esses recursos, a Hungria poderia ter sucumbido em poucos meses.
Pouco depois de a família Szapolyai e seus próximos terem deixado Buda, os
otomanos puseram-se a organizar passo a passo os territórios ocupados, entre 1525 e
1541, como uma província de seu Império e uma base para posteriores operações. Como
antes nos Bálcãs, eles desconsideraram as divisões administrativas existentes no país.
Buda tornou-se o centro da província do vilaiete da Hungria, subdividido em sandjaks, e
em outras unidades menores. O paxá ou beylerbey de Buda era o governador militar,
administrativo e jurídico do vilaiete, e também podia convocar a ação de tropas do
vilaiete estabelecido anteriormente na Bósnia, bem como as do que foi criado depois
com as conquistas no reinado de Suleiman a leste do Tisza, cujo centro era Temesvár.

67
Os paxás eram auxiliados por diversos oficiais e assessorados pelo divã, um conselho
constituído pelos principais dignitários. Eles possuíam amplos poderes discricionários, e
seu âmbito de ação abrangia virtualmente tudo o que era do interesse político e militar
da Porta. Ao mesmo tempo, visto que não podiam escolher seus próprios subordinados,
que também eram indicados diretamente a partir de Istambul, eles mesmos podiam ser
afastados arbitrariamente pela Porta: em 145 anos, 99 paxás serviram em Buda. A
administração civil e militar dos sandjaks era de responsabilidade dos beis, porém os
kadis, ou juízes, eram independentes de sua autoridade e exerciam até mesmo certo
controle sobre eles. Na Hungria, diferentemente dos Bálcãs, instituições autônomas
locais também sobreviveram, desde que não pusessem em risco a supremacia otomana e
fossem capazes de cumprir suas funções administrativas. Por exemplo, tributos eram
recolhidos e a justiça exercida pelas autoridades húngaras nas oppida da Grande
Planície. Os conquistadores tampouco se mostraram interessados em promover
conversões ao Islã. Como nos Bálcãs, onde as igrejas ortodoxas gregas e eslavas
meridionais se integraram ao seu sistema de autoridade, na Hungria eles toleravam tanto
a Igreja católica como a protestante, conquanto elas se mostrassem compatíveis com
seus principais objetivos: a estabilidade do Império e a regularidade das rendas.
No rastro dos soldados turcos, logo chegaram os assessores tributários – o
primeiro longo relatório (defter) sobre os recursos do país foi compilado ainda em 1545
– e se desenvolveu um sistema de tributação que levava em conta as antigas práticas
húngaras. Sem dúvida, a estrutura de propriedade fundiária foi plenamente adaptada à
tradição otomana: a maior parte das fontes mais valiosas de receita (oppida, postos
aduaneiros, embarcações etc.) foi retida pelo tesouro imperial (propriedade haas),
enquanto as restantes foram atribuídas aos detentores dos principais cargos públicos em
usufruto pela duração de seus serviços, ou distribuídas entre soldados e oficiais menos
graduados em arrendamento (ziamet ou timar). No entanto, as unidades básicas e os
montantes de tributação não mudaram muito. O tesouro exigia um imposto comunitário
anual (haradzh ou dzhizye) cobrado por domicílio, cujo valor era de cinquenta akches
otomanas, o equivalente a cerca de um florim. Ademais, uma quantia semelhante devia
ser paga em dinheiro ao novo proprietário, além de contribuições ocasionais, serviço de
mão-de-obra e dízimos sobre a pecuária ou a produção de vinho (algumas localidades
eram autorizadas a transformar todos esses itens em uma quantia fixa anual).
Em suma, os tributos não diferiam muito dos existentes na época pré-otomana,
mesmo quanto ao montante. Dois fatores, porém, tornaram a nova situação bem mais

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opressiva do ponto de vista de quem pagava impostos. Primeiro, a frequente mudança
de proprietários, que, por conseguinte, pretendiam [se] beneficiar mais no menor
intervalo de tempo possível, e ações arbitrárias das autoridades tornaram a carga real
imprevisível. Segundo, e mais grave ainda, além dos dirigentes turcos, as autoridades
reais e eclesiásticas húngaras, que consideravam a ocupação otomana como uma
anomalia provisória, esperavam também que os servos das áreas sob domínio turco
continuassem a cumprir suas obrigações. Esses argumentos eram usados pelos soldados
das fortalezas, que faziam cumprir esse sistema de “dupla tributação” com muito mais
sucesso que seus homólogos otomanos em suas incursões além da região de fronteira.
Isso advinha principalmente do fato de que existiam brechas na aparente
supremacia dos otomanos na região triangular criada no território da Hungria.
Diversamente dos Bálcãs, onde a consolidação do domínio turco envolveu, entre outras
coisas, um alto índice de conversões ao Islã e a ascensão de muitos “renegados” a altos
postos (mesmo ao de grão-vizir), no exército ou na administração local, na Hungria,
especialmente depois da decepção com as políticas de Szapolyai, a cooperação com as
autoridades turcas era mínima. Considerando-se que boa parte dos 17 mil a 19 mil
soldados “turcos” a serviço nas fortalezas otomanas na Hungria era, na verdade, de
eslavos dos Bálcãs (como também o eram muitos soldados de fronteira nos fortes
húngaros), camponeses da Hungria, interessados em seguir uma carreira militar,
preferiam fugir através da divisa [fronteira], como tinham feito a maior parte da nobreza
e muitos moradores abastados das cidades e da oppida. Na Hungria, os conquistadores
deparavam-se com um ambiente fortemente hostil, deslocavam-se entre suas fortalezas
em comboios atentamente vigiados, e suas relações com os nativos limitavam-se mais
ou menos às justas [torneios] com os combatentes das fortalezas húngaras através da
fronteira.
Essas diferenças entre os Bálcãs e a Hungria, em grande parte decorrentes do
colapso do governo nativo no caso dos primeiros, e de sua preservação parcial, quanto à
segunda, resultavam elas mesmas da conjunção de dois fatores. O primeiro é o de que,
na Hungria, os otomanos encontraram uma estrutura social e política organizada, ainda
que incompleta segundo os padrões ocidentais, e os vários séculos de desenvolvimento
estável tornaram tais estruturas mais aptas à resistência do que aquelas, mais efêmeras,
de seus vizinhos balcânicos. O segundo consistiu em que, quando, no século XVI, a
Hungria decaiu a uma situação parecida à do norte dos Bálcãs no século XV, o núcleo
do poder Habsburgo comprovou-se bem mais forte para a preservação da Hungria como

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uma zona tampão no sudeste do que fora o caso da Hungria com os Jagiellos e com o
cinturão de defesa criado por Matias na Bósnia.
Ainda assim, Suleiman não abandonou os esforços para expandir ainda mais
seus domínios, e liderou ou ordenou campanhas na Hungria a intervalos regulares ao
longo do restante de seu reinado. Depois do ignominioso fracasso das forças imperiais
de Fernando para retomar Buda, em 1542, o sultão procurou garantir a zona de defesa
em torno da sede da província húngara, bem como as conquistas realizadas ao longo do
Danúbio, o que ele fez capturando Esztergom, Székesfehérvár, Tata, Pécs e Siklós em
sua campanha de 1543. Nos dois anos seguintes, as forças locais turcas tomaram ainda
fortalezas na Transdanúbia, ao sul, e na área entre os rios Danúbio e Tisza. Lutando com
o intuito de reforçar os castelos que tinham caído dentro da zona de fronteira nos anos
anteriores, Fernando não podia sequer considerar uma tentativa de recuperar os que
foram perdidos, malgrado o fato de que a sociedade húngara se adaptara às condições de
guerra contínua com uma pronta militarização: nobres e plebeus forçados a abandonar
suas terras, bem como os heyducks (hajdus, originalmente boiadeiros) livres, se
apresentavam ao serviço voluntário em número crescente. Em outubro de 1547,
contudo, Fernando firmou um armistício de cinco anos com o sultão em Edirne,
obrigando-se também a pagar um imposto anual de 30 mil florins à Porta pelas partes do
país que ele controlava.
Foi em meio a essas lutas que o Principado da Transilvânia começou a despontar
como um país distinto, embora seu governador, Martinuzzi, ao reconhecer o erro
cometido com a sabotagem do Tratado de Várad, inicialmente também tenha negociado
com Fernando em favor da reunificação do reino. Ainda que a rainha Isabela resistisse a
esses esforços, e o quadro institucional da antiga província começasse a ganhar a forma
de uma constituição em separado, o acordo de 1549 confirmou a antiga promessa de
Martinuzzi de entregar os domínios de João Sigismundo a Fernando, em troca de uma
indenização materializada nas propriedades ducais na Silésia. Os mercenários imperiais
enviados para ocupar a Transilvânia, em 1551, não eram suficientemente numerosos
para impedir a retaliação turca. Embora as fortalezas capturadas na curta campanha de
Mehmed Sokullu, o beylerbey da Romélia, logo fossem recuperadas, naquela nova
situação Martinuzzi sentiu-se forçado a fazer gestos para convencer a Porta acerca de
sua lealdade, mas sua atitude foi denunciada como traição pelo general imperial
Giambattista Castaldo, que o assassinou (com o conhecimento de Fernando) em
dezembro de 1551.

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Uma campanha otomana de maior dimensão, comandada por Ali, paxá de Buda,
e o vice vizir Ahmed Pasha, teve lugar no ano seguinte, durante a qual fortalezas
húngaras de grande importância estratégica se perderam; mas ela também demonstrou
que a combinação de circunstâncias favoráveis e o empenho de uma grande
determinação podiam, ainda assim, deter os temerosos turcos. Enquanto Ali capturava
Veszprém e algumas fortalezas menores ao norte da Curva do Danúbio, Ahmed tomou
Temesvár, e os dois exércitos se reuniram sob [a ponte de] Szolnok, recentemente
construída sobre o rio Tisza. Ao encerrar sua missão ali, os cerca de 70 mil homens do
poderoso exército marcharam em direção a Eger, “o portal da Alta Hungria”, cuja
guarnição seria reforçada com não mais do que dois mil homens dos arredores. Embora
o reforço que se esperava nunca tenha chegado, a defesa, comandada pelo legendário
István Dobó, resistiu a todas as tentativas dos turcos, cada vez mais exaustos, durante
um cerco de cinco semanas. Quando as forças dos paxás se retiraram no final da
temporada militar de 1552, o balanço era bastante melancólico para os húngaros, porém
o primeiro episódio de resistência bem-sucedida em Eger teve um grande impacto
psicológico no país.
No entanto, sucessos parciais como esse, e outros verificados nos anos seguintes,
não implicaram uma perspectiva de revide. Embora a grande distância e o tempo
relativamente curto de que dispunham para operações de maior porte comprometessem
a eficiência das campanhas otomanas, até mesmo as forças locais podiam, por vezes,
ampliar a área ocupada, como ocorreu em 1554 e 1555 na Transdanúbia do sul e na Alta
Hungria. De outro lado, Fernando não podia permitir que se tentassem recuperar
localidades, mesmo na ausência do exército do sultão, enquanto os recursos do Sacro
Império Romano estivessem à disposição de seu irmão, o imperador Carlos V, que
estava mais interessado no conflito religioso dentro do Império do que, de maneira
geral, na campanha contra os otomanos, que tanto se esperava dele. Porém, mesmo
depois da paz religiosa de Augsburgo, em 1555, e da abdicação de Carlos V, em favor
de Felipe II na Espanha, e de Fernando no Império, em 1556, a única realização
importante foi o estabelecimento de uma administração unificada e especializada do
sistema de fortalezas pelo recém-criado Conselho do Tribunal Militar.
Quando o envelhecido Suleiman lançou sua sétima e última campanha na
Hungria, em 1566, nenhum outro forte importante chegou a ser recuperado dos
otomanos. Enquanto as forças do vice vizir Pertav Pasha se apoderavam da importante
fortaleza de Gyula, no vale de Körös, após um cerco de seis semanas, o sultão marchou

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contra Szigetvár, a oeste de Pécs, no caminho para Viena. Os defensores do forte,
comandados por Miklós Zrínyi, um aristocrata de origem croata, cujos avô, tio e irmão
tinham morrido em combate contra os turcos, resistiram por mais de um mês, mas
quando o bombardeio pela artilharia otomana provocou o incêndio da fortaleza, eles
partiram rapidamente, deixando praticamente um único homem. Nesse ínterim, o
considerável reforço enviado por Maximiliano I (ou II, como imperador do Sacro
Império), que sucedera a Fernando em 1564, conseguiu recuperar Veszprém e algumas
fortalezas menores na Transdanúbia, estacionando então próximo a Gyór, a fim de
garantir a linha de frente de Viena. Quando Suleiman, o Magnífico, morreu, já nos
últimos dias do cerco a Szigetvár, os turcos retiraram-se, bem antes do término da
temporada militar, satisfazendo-se com aquisições menores.
O segundo acordo de paz de Edirne, celebrado entre Maximiliano e o sucessor
de Suleiman, Selim II, em 17 de fevereiro de 1568, reconheceu as conquistas turcas de
1552 e 1566, e foi mantido por um quarto de século. As incursões de saques, os ataques
e conflitos locais, que resultavam por vezes na transferência de redutos menores de um
controlador para outro, não foram considerados como violações do acordo nem
prejudicaram o equilíbrio de forças. Dois anos depois, um outro tratado estabeleceu, por
fim, o status quo das antigas regiões do Reino da Hungria. Em 1556, João Sigismundo e
sua mãe regressaram à Transilvânia, onde Fernando não conseguira consolidar seu
governo. Diversamente da época de Martinuzzi, quando a Porta interferia em questões
de menor monta, a Transilvânia começou então a conquistar independência crescente
em seus assuntos internos, embora o sultão esperasse que seus governantes adaptassem
suas políticas externas a seus próprios objetivos; com efeito, João Sigismundo
comandou a terceira etapa da ofensiva otomana de 1566, atacando o norte da Hungria a
partir do leste. No tratado de Speyer, de 16 de agosto de 1570, João Sigismundo
reconheceu Maximiliano I como legítimo soberano da Hungria, bem como sua
reivindicação sobre a Transilvânia após a extinção da dinastia de Szapolyai. Embora
este ponto não tenha sido posto em prática, essa reedição do Tratado de Várad, de 1538,
tornou-se a base das relações entre os dois Estados húngaros por mais de um século:
apesar de sua dependência da Porta, os príncipes da Transilvânia consideravam seu
domínio como uma parte inalienável dos territórios da Santa Coroa, e a si mesmos como
súditos do rei da Hungria (contra quem nunca hesitaram em se rebelar sempre que
parecia ser de seu interesse).

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Posteriormente denominada “Terra dos Contos de Fadas”, por conta de seu
glamour e apreço internacional durante o período de 1610 a 1640, a Transilvânia podia
também ser qualificada de única, em decorrência de sua atmosfera bastante enigmática,
advinda da ambivalência de sua condição política, social e cultural. Rica em recursos
naturais e etnicamente diversificada, ela fora uma região relativamente pobre, onde as
organizações e instituições de estilo ocidental eram as mais tênues entre os antigos
territórios do Reino da Hungria. Enquanto os burgueses e os agricultores saxônicos,
assim como os cidadãos livres siculotas e os nobres húngaros, pertenciam a diferentes
jurisdições – diversamente do quarto grupo étnico da região, os romenos, que
compunham cerca de um terço da população no século XVI e uma proporção ainda
maior no século XVII, e eram majoritariamente servos –, que os ajudaram a desenvolver
identidades distintas, as instituições corporativas eram ali as menos desenvolvidas de
toda a Europa. Isso, aparentemente, contradiz o fato de João Sigismundo e seus
sucessores terem realizado com frequência Dietas ali, ao menos duas e, por vezes, cinco
e até oito por ano. Todavia, a principal razão dessa recorrência é que essas Dietas
desempenhavam funções que, na Hungria, eram cumpridas por organismos com nível
mais baixo de autonomia, como os condados. Ademais, seu papel consistia em grande
parte na aprovação das propostas do príncipe. Este escolhia e dispensava os membros de
seu conselho quando queria, deixando com frequência os postos vagos. Fidelidade e
confiabilidade eram qualidades mais importantes na escolha de conselheiros do que o
nascimento ou a competência, e o mesmo ocorria no caso da maioria dos outros
funcionários da burocracia, ainda bastante rudimentar. Em lugar de uma centralização, e
menos ainda de empenhos absolutistas, é mais apropriado atribuir aos príncipes da
Transilvânia uma concentração específica de poder, decorrente da pressão de
circunstâncias igualmente específicas.
O poder principesco baseava-se, em primeiro lugar, no fato de que o tesouro era,
de longe, o maior proprietário de terras na Transilvânia, e uma vez que os príncipes
[locais] tiveram particular cuidado em manter essa situação, evitando a prática húngara
de transferir rendas para mãos privadas, nenhum latifúndio do tamanho de uma
província, nem centros de poder alternativo, similares aos existentes na Hungria, jamais
surgiram na Transilvânia. Além disso, considerando-se que, depois de João Sigismundo,
que morreu em 1571 sem deixar herdeiros, todos os príncipes foram eleitos pela Dieta,
sua legitimidade advinha, em boa parte, do atname, a carta de nomeação da Porta, em
que se garantia o apoio otomano contra ameaças internas e externas. Em decorrência do

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status especial do príncipe, muito se dependia de sua capacidade pessoal, e as fortunas
na Transilvânia aumentavam ou diminuíam segundo os talentos de seus governantes.
Embora Istambul, que considerava o Principado da Transilvânia como uma
criação de Suleiman, insistisse em sua condição de [Estado] vassalo e determinasse sua
política externa, o horizonte diplomático de seus príncipes foi cada vez mais ampliado.
Estabeleceram-se vínculos com a França, no século XVI, e com os países protestantes –
Inglaterra, Províncias Unidas dos Países Baixos e Suécia – no século XVII. Algumas
vezes, a Transilvânia esquivou-se da convocação da Porta para a guerra, e procurou
reafirmar as reivindicações de suserania dos reis medievais húngaros sobre a Valáquia e
a Moldávia, então vassalos do Império Otomano. Os habitantes da Transilvânia também
mantiveram a esperança de que a unidade do reino poderia ser logo restabelecida;
esperaram, no início, que as armas dos Habsburgos pudessem livrá-los do jugo dos
turcos, e mais tarde cultivaram a ideia de que a Transilvânia poderia ser o ponto de
partida da unificação. A sedução dessa ideia, bastante ilusória, considerando-se o fato
de que uma tal unificação era contrária aos interesses otomanos, que podiam com
facilidade frustrar tentativas como essa pela presença de suas tropas locais, os estimulou
a feitos além de suas forças. Uma vez que as instituições e a corte real húngara
encontravam-se fora do país, as existentes na Transilvânia foram valorizadas como
depositárias da soberania e da cultura húngaras.
Já a cultura se tornou, cada vez mais, imbuída do protestantismo. João
Sigismundo, que fora excomungado pelo papa por conta de ter-se aliado a um infiel, não
interferiu na disseminação da nova fé, e até mesmo adotou, ele próprio, diferentes
versões dela. Numa época em que o acordo religioso de Augsburgo, de 1555, obrigava
os germânicos a seguir o credo de seus suseranos, em que católicos e puritanos estavam
sujeitos a uma legislação penal na Inglaterra e a terceira guerra religiosa, de uma série
de oito, devastava a França, a Transilvânia tornou-se notável como uma terra de
tolerância religiosa, mesmo se considerarmos que a fé ortodoxa, seguida pelos romenos,
não se beneficiasse dela.

2. Protestantes e Católicos: uma Disputa Criativa

Pouco depois de Martinho Lutero ter sido denunciado por afixar suas teses na
porta da igreja do castelo de Wittenberg, elas começaram a repercutir na Hungria. O
interesse por suas ideias no país pode ser atribuído, inicialmente, sobretudo às

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contramedidas que foram tomadas. Em 1521, a bula papal que excomungou Lutero
tornou-se pública por meio do arcebispo de Esztergom; no mesmo ano, Webóczi, que
polemizara pessoalmente com Lutero na Dieta imperial de Worms, preconizou a adoção
de leis antiluteranas, as primeiras das quais foram aprovadas em 1523. Os decretos das
Dietas na década de 1520, motivados em grande medida pelo temor da perda do apoio
do papa na luta contra os otomanos, eram bastante severos, mas, embora alguns livros e,
inclusive, alguns pregadores tenham sido queimados numa primeira fase, a tendência
geral era mais de persuasão do que de perseguição.
Isso contribuiu para a propagação da nova crença, cujos primeiros adeptos
foram, por óbvias razões linguísticas, habitantes germânicos das cidades livres reais e
das saxônicas, e também, curiosamente, cortesãos do entorno da rainha Maria. Os
primeiros locais a partir dos quais o luteranismo se irradiou para o interior da Hungria
foram as herdades de magnatas, tais como as de Peter Perény, voivoda da Transilvânia,
em Siklós e Sárospatak, ou a do chefe de Justiça, Tamás Nádasky, em Sárvár, nos anos
seguintes à batalha de Mohács. Eles foram convencidos a apoiar a causa luterana por
estudantes formados em universidades estrangeiras, que reconheciam o valor e o
significado da reivindicação de Lutero de pregar-se no idioma vernáculo, ou por ex-
padres e frades católicos, alguns dos quais, sobretudo os franciscanos, tinham defendido
ativamente, por algum tempo, a renovação da fé cristã e da Igreja. Posteriormente, a
rápida expansão e a imensa popularidade do protestantismo deveram-se, em grande
parte, ao fato de que ele podia ser considerado um meio de se oferecer respostas
satisfatórias aos problemas que afligiam a sociedade húngara. É desnecessário dizer que
a mais relevante dessas questões se relacionava ao flagelo otomano. De acordo com a
interpretação católica, tal flagelo foi lançado aos húngaros como uma maldição de Deus
a fim de punir seus costumes idólatras; diante disso, a adoção da fé verdadeira resgataria
a graça de Deus sobre eles e os ajudaria a expulsar os turcos. Já do ponto de vista
protestante, os húngaros podiam ser vistos como um povo escolhido por Deus, e, como
tal, fora duramente provado; mas, ao mostrar firmeza em sua crença, eles seriam
libertados do jugo turco, como ocorrera com os judeus na Babilônia e nos cativeiros
egípcios.
Sob essas influências e considerações, e em virtude da devoção de veementes
pregadores originários principalmente da oppida, houve um divisor de águas no
sentimento acerca do protestantismo entre o povo comum na Hungria desde a década de
1540. Esse período foi significativo, pois denotava que todas as tendências importantes

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da Reforma surgiram quase simultaneamente, e de uma forma já bastante elaborada.
Portanto, quase não havia tempo suficiente para a organização de uma recém-surgida
Igreja luterana, pois ela logo perdia boa parte de seus seguidores para o calvinismo, que
vinha a ser, por sua vez, ameaçado pelo anti-trinitarianismo (o Unitarismo ou
Socianismo). De modo característico, as várias fases do movimento da Reforma foram
encarnadas nas carreiras individuais de alguns dos pioneiros de sua propagação. Um
exemplo é o erudito Mátyás Dévai Bíró, a quem se atribui o papel de primeiro difusor
da “praga de Lutero” entre os húngaros, e que transitou, passo a passo, primeiro do
catolicismo ao luteranismo e, em seguida, ao calvinismo. Muitos desses pioneiros, como
István Szegedi Kis, que cruzou quase toda a região sob ocupação otomana ao longo de
sua carreira de pregador, eram personalidades tão cheias de magnetismo que seus
rebanhos imediatamente os seguiam em suas conversões.
O principal método de disputa entre os credos era o debate teológico de
pregadores perante a audiência de uma paróquia, resultando com frequência na expulsão
daquele que era considerado o “perdedor”. As discussões na paliçada da fronteira da
Transilvânia eram especialmente acaloradas. Debatedores cuja fama chegava a toda
parte, como Péter Méliusz Juhász, o bispo calvinista de Debrecen, e Ferenc Dávid, o
incansável renovador da fé que procurou ir além do anti-trinitarianismo, eram
convocados, para que se avaliasse o poder de sua erudição e de suas convicções, à corte
de João Sigismundo, ele próprio antitrinitário no final da vida. Os católicos costumavam
perder, nesses debates, para seus rivais protestantes, que eram incomparavelmente mais
versados na Bíblia, e, na década de 1560, praticamente desapareceram entre os
disputantes. Embora a hierarquia da Igreja católica tenha sobrevivido, seus membros
ainda obtivessem altos postos e os dízimos continuassem a ser recolhidos, mesmo de
protestantes, restaram apenas ilhas dispersas do catolicismo no país; até mesmo o
luteranismo ficou confinado às áreas povoadas da Alemanha e da Eslováquia, enquanto
surgiam as seitas mais radicais da época (anabatistas, sabatistas). Por volta de 1580,
quando as divisões religiosas no país de certa forma se estabilizaram, o que durou cerca
de meio século, ao menos oitenta por cento dos habitantes da Hungria eram
protestantes, sendo os calvinistas a mais numerosa dentre todas as outras denominações
somadas. Os Habsburgos eram supostamente ardentes defensores do catolicismo, porém
mesmo em seus domínios houve mudanças, acompanhadas, surpreendentemente, de
pouca violência, voltada sobretudo contra os radicais. Considerando-se que a política
oficial na Hungria Real era a perseguição (bastante branda), e que as autoridades

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otomanas se mostravam indiferentes, a Dieta transilvana em Torda decretou, em 1568, o
livre culto das quatro denominações “aceitas” (recepta religio: católicos, luteranos,
calvinistas e antitrinitários). Embora outras propostas religiosas tenham sido proibidas
pelo sucessor católico de João Sigismundo, o príncipe István Báthori, o status quo foi
preservado ao longo do século XVII.
O advento da Reforma, bem como seu diálogo com outras tendências culturais
contemporâneas, em meio ao florescimento tardio de outras mais antigas, e a ruptura da
velha organização da cultura em decorrência das guerras tornaram o século XVI um
período particularmente estimulante na história cultural da Hungria. Nas primeiras
décadas do século, produziram-se as melhores obras da arte gótica tardia e da literatura
de sermões católicos. O tríptico esplendidamente entalhado de Mestre Paulo na igreja
paroquial de Lócse (Levoca), produzido entre 1508 e 1518, é o maior do gênero na
Europa. Pelbárt Temesvári e Osvát Laskai, os dois grandes inovadores da pregação
católica no início do século XVI, legaram homilias que continuaram a ser empregadas
ao longo das décadas seguintes, e inspiraram importantes seguidores. Um de cada
quatro dos 46 códices conhecidos em língua húngara foi copiado em mosteiros na
década que sucedeu à batalha de Mohács.
Ao mesmo tempo, o humanismo renascentista não morreu com o rei Matias. Ao
contrário, embora a maioria da nobreza, cujo gosto era bastante grosseiro naquela
época, considerasse a generosidade de Matias relativa aos assuntos culturais como algo
supérfluo, agora os nobres começavam a se mostrar interessados em um maior
refinamento, e a reconhecer a utilidade da cultura humanística para a análise e a visão
crítica das condições contemporâneas. O culto a Matias, cuja mão firme parecia ser
vista como uma bênção após 1526, aos poucos aflorou; o destino da Hungria inspirou
declarações de apreensão e de amor pela patria, cujo amadurecimento era surpreendente
nesse período; e essa mesma sina foi analisada sob a perspectiva dos temas da
historiografia humanista e do pensamento político. Como os protestantes, os humanistas
responsabilizaram os pecados dos húngaros por sua sorte miserável, mas eles eram
todos demasiado mundanos: por exemplo, o chanceler e bispo István Brodarics, em seu
relato sobre a catástrofe de Mohács, enfatizou a ambição, o espírito faccioso e a
corrupção, que eram generalizados entre a classe política, e abalou o vigor do sistema.
Os escritos históricos humanistas inclinavam-se a reforçar os compromissos patrióticos
e a autoconscientização nacional de várias formas: as canções narrativas do escriba
Sebestyén Tinódi, que registravam as façanhas históricas dos sentinelas das fortalezas

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húngaras entre 1541 e 1552, eram extremamente acessíveis às classes mais baixas; mas,
ao mesmo tempo, havia também obras em prosa que seguiam modelos clássicos e eram
escritas em latim refinado por, entre outros, o bispo Ferenc Forgách ou o vice palatino
Miklós Istvánfly.
Como no caso de Janus Pannonius um século antes, foi com a poesia lírica que a
literatura húngara chegou ao nível mais alto, com a obra de Bálint Balassi, o primeiro
poeta a escrever sobre assuntos não religiosos em húngaro. Isento de todo didatismo e
com muito engenho próprio, as imagens do amor, galhardia e piedade legadas por esse
soldado de origem aristocrática, no qual uma forte personalidade renascentista foi
enxertada na sensibilidade de um trovador, parecem ainda hoje mais vivas do que as de
muitos poetas modernos. Balassi também tentou o drama, traduzindo e adaptando uma
pastoral italiana, da qual resultou [A] Fine Hungarian Comedy [Uma Bela Comédia
Húngara]. Ao mesmo tempo, uma vez que esse gênero era geralmente um meio de
eficiente propaganda nas mãos dos protestantes, não é de surpreender que o único drama
húngaro desse período a ser levado ao palco com sucesso ainda hoje, seja uma
adaptação da obra-prima de Sófocles, a Electra Húngara, escrita pelo mestre de Balassi,
o pregador luterano Péter Bornemisza.
No que se refere à arte e à arquitetura criativas, o contexto da época dificilmente
poderia favorecer o seu florescimento; o papel desempenhado nessa área pela corte real,
então ausente, não pôde ser preenchido pelos príncipes da Transilvânia até o início do
período de prosperidade, com os Báthoris, no final do século. Além das vivendas
aristocráticas, reedificadas conforme os padrões ocidentais mais recentes, como a da
família Perényi em Sárospatak, ou a dos Nádasdys, em Sárvár, ou prédios urbanos,
como a Prefeitura ou a Casa Thurzó (ambos em Löcse), houve principalmente
fortificações erguidas por mestres italianos nas décadas de 1540 e 1550, que
exemplificam a arquitetura renascentista de maneira bastante clara. Os magnatas
transilvanos e os príncipes eram os patronos das construções mais suntuosas da
Renascença tardia, na primeira metade do século XVII, sobretudo a da sede do
principado de Gyulafehérvár, na época do príncipe Gábor Bethlen.
Os reformadores protestantes tinham muito em comum com as gerações de
humanistas, a anterior e a de seu tempo, e também aprenderam muito com elas. Os
reformadores, da mesma forma que os humanistas e, depois, os membros da “república
das letras” do Iluminismo, em decorrência das condições em que o protestantismo e sua
propagação vieram à tona, estavam sobretudo imbuídos do sentimento de pertencer a

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uma vasta comunidade continental de pessoas com um mesmo entendimento, que
mantinham contato permanente entre si. Isso tinha um significado particular para os
membros dessa comunidade que serviam em localidades, no mínimo, periféricas em
relação aos centros de formação intelectual europeia. A peregrinação a uma das
universidades alemãs ou suíças, tais como as de Wittenberg, Heidelberg, Genebra ou
Zurique, e as visitas aos locais de residência de renomadas figuras da Reforma não
apenas garantiam aos futuros pastores recompensas intelectuais, mas também os
tornavam conhecidos nesses centros. A rede de informações resultante desses
deslocamentos os ajudava, em condições extremamente adversas, a se manterem
atualizados acerca das descobertas culturais e intelectuais europeias, e até mesmo a
contribuir para esses avanços: os folhetos latinos e as summae teológicas de István
Szegedi Kis, compostos nos anos de 1560 na minúscula Ráckeve (ao sul de Peste, na
época na província otomana), foram considerados dignos de serem impressos na
Basileia, em 1585, e utilizados como material educacional nos centros ocidentais da
Reforma.
Talvez o maior serviço prestado pela Reforma à cultura húngara tenha sido a
elevação do vernáculo ao estatuto de língua de intercâmbio intelectual, o que deve ser
compreendido conjuntamente com outros dois avanços: o progresso educacional e a
cultura do livro baseada na palavra impressa. A ênfase luterana nos idiomas nativos
suscitou prontas respostas. O autor da primeira gramática húngara, publicada em 1538,
foi ninguém menos que Mátyás Dévai Biró, o “Lutero húngaro”. Três anos depois, a
primeira tradução completa do Novo Testamento para o húngaro foi publicada, e
embora a versão integral da Bíblia, realizada pelo ministro de Vizsoly, Gáspár Károli,
só tenha sido completada em 1590, dali em diante ela forneceu o padrão estilístico e
gramatical à cultura escrita protestante e à linguagem literária húngara em geral por
longo tempo.
As denominações protestantes tiveram todo o cuidado de desenvolver uma rede
funcional de instituições educacionais em todos os níveis. Professores de excelência não
eram incomuns, mesmo no ensino fundamental de pequenas aldeias, enquanto futuros
ministros e mestres não precisavam, forçosamente, ir buscar uma formação avançada no
estrangeiro: havia um bom conjunto de faculdades luteranas, calvinistas e antitrinitárias
no país, as mais renomadas das quais podiam ser encontradas em Pápa, Sárospatak,
Debrecen, Kolozsvár e Brassó (Brasov, Kronstadt). Essa rede era bem equipada com
numerosas máquinas de impressão, fixas ou móveis, instaladas nas cortes dos magnatas

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ou nas escolas, e depois em empreendimentos comerciais criados por pregadores ou
burgueses (como Johannes Honterus ou Gáspár Heltai, que eram também importantes
autores protestantes). Entre 1529, quando, após iniciativas efêmeras no século anterior,
a impressão de livros foi relançada na Hungria, e 1600, aproximadamente novecentos
títulos foram impressos, cerca de sessenta por cento dos quais sobre temas religiosos.
Eles destinavam-se a satisfazer não apenas necessidades educacionais, como também as
curiosidades em torno da Renascença de parte de um crescente e mutável público leitor.
A formação de bibliotecas públicas, como as que foram mantidas, para grande
admiração dos visitantes, pelas cidades, como as de Bártfa (Bardejov) ou Eperjes
(Presov), além de muitas outras particulares, evidencia o surgimento do “leitor” tal
como o conhecemos: alguém que consulta livros por pura curiosidade, tal como um
político o faz com um livro de astronomia, um burguês com outro sobre artilharia, um
magnata com uma obra de teologia, ou qualquer outra pessoa na Hungria do século XVI
com algum volume acerca das regiões recém-descobertas do globo. Enfim, deve-se
mencionar que as profundas mudanças no uso da cultura escrita tiveram também
importantes efeitos econômicos: ao passo que um livro no formato característico na
época de Matias, os códices iluminados, custava uma fortuna, um século mais tarde uma
obra impressa de Homero podia ser adquirida no mercado pelo preço de duas libras de
carne ou de um galão de vinho.
O crescente prestígio e refinamento do idioma húngaro não implicaram um
declínio do letramento em latim; na verdade, aparentemente, cresceu o emprego mais
generalizado do latim como língua falada entre os húngaros, ainda que – ao contrário do
que ocorrera antes e depois do período otomano – ele não fosse o idioma oficial em todo
o país: o húngaro tornou-se a língua das Dietas e das leis na Transilvânia e também a
língua de comunicação entre as autoridades e os nativos na província otomana, além de
ser empregada na administração, no nível dos condados e, a seguir, nos domínios dos
Habsburgos. Contudo, as mentes cultivadas, supostamente, eram versadas em latim, e
essa língua também continuou a ser o principal meio de comunicação com os
estrangeiros. Foi pensando nessa experiência húngara que, em 1620, Márton Szepsi,
referido no início deste capítulo, manifestou surpresa diante da dificuldade de encontrar
falantes de latim entre os homens que encontrava nas ruas de Londres. Em
compensação, uma geração depois, o viajante inglês Edward Brown admirou a
proficiência dos húngaros naquele idioma, ao verificar que não apenas nobres e
soldados, mas também condutores de carruagens ou barqueiros também eram bastante

80
fluentes nele. Relatos semelhantes despontam em relatórios dos missionários jesuítas
que foram enviados em número crescente à Hungria depois que o arcebispo de
Esztergom, Miklós Oláh, os convidou pela primeira vez, em 1562 (ainda que possa
parecer bastante plausível que eles tenham exagerado, a fim de desculpar-se por sua
incapacidade de aprender o húngaro).
Levou algum tempo até que o catolicismo se recuperasse do choque causado
pela procela da Reforma. Apenas no início do século XVII é que os ventos começaram a
mudar; e, apesar de o calvinismo continuar como religião majoritária na Transilvânia e
na província otomana, na década de 1660 a supremacia católica estava, de maneira
geral, restaurada na Hungria Real. No início, isso ocorreu com alguma interferência
direta de Viena, supostamente uma campeã da causa católica, e se deu com menos
violência do que em outros lugares (ao contrário do que se passou no final do século,
quando as medidas centralizadoras de Leopoldo I foram acompanhadas de muita
repressão física contra os protestantes na Hungria). Mais exatamente, foi porque as
classes possuidoras húngaras, tendo chegado a um compromisso político com o governo
Habsburgo após o primeiro movimento anti-Habsburgo, liderado por István Bocskai,
entre 1604 e 1606 (como será abordado adiante), ficaram convencidas de que o espírito
de oposição do protestantismo não era mais indispensável a elas, conquanto ele
continuasse a estimular a desobediência e a resistência entre as classes mais baixas.
“Convencidas”, foi assim que elas literalmente se tornaram: os que promoviam a
Contrarreforma dirigiam seus sermões prioritariamente aos magnatas e à nobreza, agora
em eloquente idioma húngaro, sem deixar de sublinhar a instabilidade geral inerente à
inclinação do protestantismo de incorrer em dissenções confessionais cada vez mais
numerosas.
A conversão de alguns magnatas realmente parecia produzir milagres, e o que
seu exemplo não pôde inspirar foi conseguido com a pressão que fizeram sobre os que
viviam em suas propriedades. Mas para se obter uma conversão generalizada, era
preciso contar com personalidades de habilidade incomum e capazes de empregar
táticas adequadas às condições particulares, do lado católico. Essas táticas incluíam
novas atitudes, novos métodos e estilos na difusão do Evangelho aos fiéis. Lutando
contra o protestantismo com suas próprias armas, os católicos da Contrarreforma
puseram grande ênfase na comunicação intensiva entre o clero e seus rebanhos, mas
com base tanto na experiência como na verdade da fé, o que era facilitado pelos sermões
na língua nativa não isentos de um jogo de alusões místicas, embora acessíveis aos

81
leigos. Ao mesmo tempo, recorriam às novas formas de expressão artística
proporcionadas pelo barroco. As imponentes igrejas católicas, ricamente ornamentadas,
procissões bem organizadas e celebrações nos dias santos comprovaram-se mais
eficientes na captura da imaginação popular do que as assépticas igrejas e hábitos
protestantes. Todas essas iniciativas foram em geral associadas à renovação do
catolicismo promovida, desde meados do século XVI, principalmente pelos jesuítas,
cujos mosteiros logo formaram uma densa rede por toda a Hungria. Outras ordens,
algumas tradicionais, como a dos franciscanos ou a dos paulinos, e outras mais recentes,
como a dos piaristas e a dos capuchinhos, também receberam o estímulo dos avanços
jesuítas.
O mais notável expoente da renovação católica na Hungria foi o cardeal Péter
Pázmány, arcebispo de Esztergom entre 1616 e 1637. Nascido em família calvinista, ele
foi convertido pelos jesuítas de Kolozsvár, e estudou em Cracóvia, Viena e, por fim, em
Roma, onde seu mentor era o grande teórico neoescolástico Roberto Bellarmino. Dali
em diante, ele se tornou professor de filosofia na universidade jesuíta de Graz, onde
escreveu folhetos influentes e polêmicos e foi em boa parte responsável pelo
desenvolvimento da variante húngara da oratória da Contrarreforma, já referida aqui.
Sua vasta erudição, que incluía até mesmo a literatura teológica protestante, e o forte
frescor de seu estilo foram as chaves de seu sucesso. Assim como os protestantes foram
os principais promotores da cultura vernacular no século XVI, deve-se em grande parte
a Pázmány o fato de que no século XVII a tendência à padronização e à modernização
da língua húngara tenha continuado, ainda que importantes resumos gramaticais (aceitos
de ambos os lados da clivagem religiosa) tivessem sido escritos por figuras como o
calvinista ortodoxo transilvano, bispo István Geleji Katona, ou o capelão puritano da
corte, Pál Megyesi, ou o mais influente deles, Miklós Misztótfalusi Kis. Quanto ao
poder de persuasão, Pázmány teve seu equivalente protestante no prolífico e versátil
erudito Albert Szenci Molnár, o qual, além de suas realizações na filologia e na
linguística (ele publicou o primeiro dicionário latim-húngaro, em 1604), empenhou-se
em contrapor-se a Pázmány com uma conjunção semelhante entre visão teológica, estilo
de sermão fácil de se compreender e preces de inspiração bíblica. Suas traduções das
preces de Calvino e Bullinger, assim como as dos antigos Institutos da Religião Cristã
(1624), ajudaram a Igreja Reformada da Hungria, em última instância, a assumir o seu
caráter calvinista, enquanto seu livro de Salmos traduzidos tornou-se um meio eficaz de
promoção da prática protestante da piedade.

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Embora no início do século as mansões aristocráticas e os castelos dos príncipes
da Transilvânia ainda fossem reconstruídos no estilo renascentista tardio, o barroco
chegara juntamente com o movimento da renovação católica, e logo se tornou o estilo
predominante na Hungria Real. O que é ainda mais notável, pois, visto que as suntuosas
construções inerentes ao barroco dependiam ainda mais de generosos patrocínios do que
as dos estilos anteriores, a corte real da Hungria se abstivera totalmente de
comprometer-se com eles. Seu papel foi preenchido pelas famílias aristocráticas da
Transdanúbia e da Alta Hungria, que construíram majestosas mansões para si mesmas,
além de terem financiado imponentes igrejas. As mansões das famílias Batthyány, em
Borostyánkõ (Bernstein), Pálffy, em Vöröskó (Rotenstein) e Esterházy, em Kismarton
(Eisenstadt) são particularmente dignas de se mencionar aqui. Os dois palatinos
Esterházy, Miklós e Pál, foram também os maiores patronos de edificações
eclesiásticas; a primeira delas, iniciada em 1629 e projetada com base na igreja Il Gesù
[de Jesus] de Roma, em Nagyszombat (Trnava), e que se deve a Miklós, é também uma
das mais esplêndidas. Além de alguns arquitetos nativos, a maioria dos mestres que
atuaram nessas construções era composta de italianos e austríacos, alguns dos quais
trabalharam continuamente na Hungria por várias décadas. A maior parte dos pintores
das imagens que decoravam os retábulos das igrejas ou as paredes dos palácios
aristocráticos – como os belos murais na mansão Nádasdy em Sárvár, retratando as
bravas façanhas de Ferenc Nádasdy contra os turcos – também era constituída de
estrangeiros.
Nagyszombat não é admirável apenas por sua igreja jesuíta há pouco referida,
mas também como sede da universidade fundada por Pázmány, em 1635, embora os
estudantes húngaros ainda precisassem seguir para o estrangeiro para se graduar em
medicina. Foi assim que a infraestrutura educacional jesuíta se tornou completa; além
da universidade, o instituto inaugurado em 1660, em Kassa, e a rede de ginásios jesuítas
por todo o país passaram a oferecer formação de alto nível de acordo com os padrões
comuns da ordem. Também proliferaram unidades educacionais de nível elementar:
aparentemente, até mesmo as menores aldeias do país contavam com um professor, a
maior parte deles formada em instituições de ensino superior, católicas ou protestantes.
A reputação das escolas e faculdades protestantes foi menos duradoura, mas a maioria
desses estabelecimentos se destacou durante pelo menos uma ou duas décadas do século
XVII. Entre 1650 e 1654, o Colégio de Sárospatak recebeu o mais notável [excepcional]
especialista do período, Comenius (Jan Amos Komensky). O Colégio de Gyulafehárvár

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(Alba Iulia) foi revigorado com o influxo de professores alemães, que fugiam da Guerra
dos Trinta Anos. A Alemanha [Germany] continuou a ser uma das principais fontes de
inspiração para a renovação do protestantismo, algo indispensável na competição com o
catolicismo: o pietismo começara a surgir entre os luteranos da Hungria em meados do
século. Outra grande influência sobre o protestantismo no século XVII foi a do
puritanismo, importado da Inglaterra, cujas universidades, assim como as dos Países
Baixos, eram frequentadas por um número significativo de jovens da Hungria
protestante (embora os destinos principais da peregrinação acadêmica, que envolveu
cerca de 5 mil húngaros ao longo do século, ainda fossem as universidades alemãs e
polonesas). Com efeito, o século XVII foi geralmente descrito como o século dos
jesuítas e dos puritanos na Hungria, onde, devido à ausência de uma forte intelligentsia
secular, os níveis mais altos de ensino eram revelados por personalidades oriundas
desses grupos.
Foi um puritano, expulso da ortodoxa e calvinista Gyulafehérvár em razão de
suas crenças, o influente educador János Apáczai Csere, quem enfocou em suas obras as
primeiras repercussões na Hungria da tendência intelectual dominante naquele século, o
pensamento científico em ascensão. Apáczai é referido por vezes como o primeiro
húngaro “moderno”. Sua fala inaugural em Gyulafehérvár, “Sobre o Estudo da
Sabedoria” (1653), foi uma defesa solidamente fundamentada da ideia de progresso
baseada no exame crítico de suas origens e prestígio; sua Enciclopédia Húngara,
publicada naquele mesmo ano, era cartesiana em sua filosofia da natureza, embora
referendasse teóricos do direito natural, como Johannes Althusius, e flertasse com ideias
de soberania popular e tiranicídio em sua teoria política e social. Havia poucas figuras
com semelhante opinião na Hungria da época. Uma delas era János Pósaházi, de
Sárospatak, que criou uma filosofia da natureza eclética e própria a partir de textos de
Bacon, e dissertou contra a versão do direito natural de Hobbes em sua tese defendida
em Utrecht, em 1654. Esses indivíduos, bastante isolados, atuaram em um ambiente em
que as escolas ortodoxas protestantes e católicas (da mesma forma que a maioria de suas
congêneres na Alemanha, e muitas outras, mais a oeste) se fundamentavam na
escolástica aristotélica, e onde os temas e métodos de pensamento político mais
característicos – solidariedade com a Europa cristã, compromisso com “a nação” e com
a “pátria”, razão de Estado ou a arte da prudência política – eram influenciados pela
difícil situação da divisão tripartite do país.

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3. Paz, Guerra, e o Século da Decadência Húngara

A tendência natural das mudanças políticas do século XVI foi a de deixar a


Hungria um tanto à parte do progresso do Ocidente, e acentuar as dissensões no interior
do antigo Reino da Hungria. Na última terça parte do século, contudo, dois fatores se
opuseram a essa tendência, assegurando que, mesmo quando ela se tornou ainda mais
intensa, no século seguinte, não fosse irreversível. Primeiro, como vimos, a Reforma
ajudou a Hungria a preservar sua identidade cultural unitária e a manter, e mesmo a
fortalecer e a multiplicar, seus laços com a civilização ocidental. Em segundo lugar, os
estímulos da economia europeia afetaram a Hungria de maneira ambígua, nesse período:
embora o potencial de modernização fosse, a longo prazo, reduzido, o país pôde auferir
benefícios a curto prazo, em decorrência dos quais sua coesão econômica e as relações
comerciais com o Ocidente também foram mantidas. Esse balanceamento foi abalado
pelos golpes sofridos com a série de guerras e epidemias que atingiram a Hungria desde
a virada do século; isso resultou na perda de vidas humanas e na devastação dos
recursos naturais, o que começou com a Guerra dos Quinze Anos, entre 1591 e 1606,
quando os otomanos foram expulsos do país, e a Hungria chegou a seu ponto mais
baixo, e a efetivação até mesmo do potencial limitado que o país possuía um século
antes parecia altamente improvável.
As guerras otomanas ocorridas entre 1526 e 1568 causaram, supreendentemente,
pouco prejuízo à trama medieval de povoados na Hungria. Embora muitas áreas tenham
se tornado desertas, aldeias abandonadas logo se povoaram novamente, e apesar de a
Hungria não ter participado da tendência geral de crescimento populacional, verificada
nesse período na Europa, a imigração de eslavos dos Bálcãs ao menos evitou o
decréscimo. O papel tradicional da Hungria como país exportador de matérias-primas e
alimentos, as novas condições da Europa Ocidental, o abandono de terras cultivadas e a
estagnação populacional contribuíram para moldar os padrões da economia húngara. Ao
passo que a importância das minas húngaras decrescera em decorrência do influxo de
metais preciosos do Novo Mundo, o crescimento demográfico no Ocidente gerou uma
demanda inédita de produtos agrícolas, em uma época em que a estagnação
populacional suscitava a retração do mercado interno da Hungria, e áreas abandonadas
ofereciam oportunidades ilimitadas para a pastagem de gado. Como consequência, a
Hungria encontrou-se em uma situação ideal para suprir a demanda ocidental, tornando-

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se o maior exportador mundial de carnes, passando a mandar para fora do país 200 mil
cabeças de gado anualmente, nos anos de 1580.
O país assim obteve um enorme superávit em suas exportações, porém uma parte
substancial dos lucros permanecia em mãos de mercantilistas estrangeiros, último ponto
da cadeia de comercialização, e o êxito do setor agrário húngaro acabou, em geral, por
favorecer a manutenção das velhas estruturas produtivas. Os produtos têxteis a bom
preço, peças de metalurgia e artefatos em geral, que compunham a maior parte das
importações húngaras, prejudicaram a produção de artesanato no país, que de toda
forma se encontrava em situação de fraqueza. O número de artesãos em atividade nas
cidades húngaras, os quais geralmente se limitavam a suprir sobretudo necessidades
básicas e eram obrigados a se manter dentro dos limites cada vez mais obsoletos das
guildas, oscilava entre um quarto e a metade do total de seus colegas alemães,
proporção similar à dos artesãos em relação à população urbana. Atividades industriais
que dependiam de forte concentração de capital, como a têxtil ou a de construção civil,
eram encontradas apenas em alguns importantes centros urbanos, e operavam em nível
bastante rudimentar.
Ao mesmo tempo, em meio a circunstâncias específicas, a opção pela pecuária a
céu aberto era uma vantagem relativa, bem como uma compensação à tibieza da
sociedade urbana e a tudo o que isso implicava para a probabilidade de uma
mentalidade capitalista e cívica. Estando à margem da estrutura feudal de produção,
cujo elemento fundamental era a porção de terra (sessio) do servo, a criação de gado não
era tributada pelos latifundiários, que se esforçavam inutilmente para manter essa
atividade longe das mãos dos camponeses e dos moradores da oppida, e tiveram de se
contentar com os enormes lucros auferidos com o fornecimento de grãos aos exércitos
do país. Além disso, embora a criação e o comércio de gado fossem em grande parte
baseados em contratos e em trabalho remunerado, eles resistiam às perspectivas de
capitalização da economia; e a participação de grande número de camponeses de
localidades antes isoladas nos deslocamentos de longa distância que essas atividades
implicavam os ajudou a alargar horizontes, a desenvolver novos hábitos de
comportamento e uma maior abertura à inovação. Algo similar aconteceu com o
negócio do vinho; os centros de produção tinham mudado da região de Srem, onde
grande parte da próspera viticultura entrou em declínio após a invasão turca no início do
século, para Tolna e Baranya, no sul da Transilvânia, e sobretudo para Tokaj no norte da
região do Tisza. (Então, o vinho começava até mesmo a substituir o gado como primeiro

86
item das exportações da Hungria, em consequência da crise econômica, desde a virada
do século, na Itália e na Alemanha, os principais destinos do gado húngaro, crise que
causou uma redução na demanda de carne.) Depois do retrocesso sofrido na sequência
da guerra camponesa de Dózsa, os tempos pareciam novamente auspiciosos para o
surgimento de um estrato dinâmico da “burguesia camponesa”. Enfim, visto que grande
parte do gado exportado provinha da Grande Planície, ocupada pelos otomanos e, desde
então, um território onde poucos mercadores ocidentais se arriscavam a entrar, e que, de
outro lado, os turcos e eslavos do sul não eram bem-vindos na Hungria Real, os serviços
dos comerciantes húngaros e de seu grupo, originários dessa região, tornaram-se
indispensáveis para a manutenção desse intercâmbio. Como, de outro lado, estes últimos
raramente se aventuravam além das fronteiras do país, os negociantes da Hungria Real
desempenharam um importante papel de intermediários, e o resultado evidente foi o de
que, apesar das discórdias políticas e dos postos aduaneiros construídos ao longo do
lado interno das fronteiras, a Hungria permaneceu uma unidade econômica coesa e um
mercado unitário.
Esse precário equilíbrio, que ainda deu origem a um cauteloso otimismo quanto
às condições e ao futuro do país, sustentou-se durante quase um quarto de século de paz
após o tratado de Edirne, mas foi desfeito pelos quinze anos de guerra que o sucederam.
Decerto, a paz oficial entre as duas grandes potências foi com frequência perturbada por
escaramuças, incursões de saqueadores, e mesmo por ataques surpresa que resultavam
na captura de pequenas fortalezas. Os turcos eram os principais responsáveis pela
constante instabilidade nas áreas de fronteira. Embora, desde a sua ascensão ao trono,
Rodolfo I (ou Rodolfo II, como chefe do Império) demonstrasse a ambição de expulsar
os otomanos, o Conselho militar acatou, em 1577, a proposta de Lazarus Schwendi,
capitão das forças da Alta Hungria, que recomendava a abstenção diante de provocações
e a preservação da paz, além do reforço das linhas de defesa (este último ponto da
proposta foi posto em prática de modo bastante ineficaz). Semelhante foi a atitude de
István Báthori, que em 1571 sucedeu a João Sigismundo como príncipe da Transilvânia,
e ainda veio a ser eleito rei da Polônia, em 1576. Báthori (e, em sua ausência, após
1576, seus governantes) consolidou sua posição contra seus adversários com o apoio da
Porta, e alimentou as esperanças de se trazer a Hungria Real para seu mando,
conquanto, ao mesmo tempo, começasse a reforçar a linha de defesa entre a
Transilvânia e a província otomana. Nenhuma “guerra de libertação” foi cogitada. As
figuras mais importantes falharam em reconhecer que, com a morte de Suleiman I, o

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poder otomano ultrapassara seu apogeu, e se mostraram relutantes, conforme palavras
do general húngaro Miklós Pálffy, em “abrir uma caixa” que acreditavam estar repleta
de “cobras venenosas, vermes e escorpiões”.
Mesmo quando, em 1591, 1592 e 1593, Hassan, o paxá da Bósnia, em flagrante
violação ao tratado de paz, que fora seguidamente renovado, tentou capturar a fortaleza
de Sisek, na Croácia, conquanto o desempenho de seu poderoso exército tenha sido
muito inferior ao das tropas de Habsburgo, foi o imperador quem se apressou a
apaziguar o sultão com a remessa de luxuosos presentes. Tudo em vão: Murad III
declarou guerra em agosto de 1593, e enviou o chefe do partido [comando] da guerra
em Istambul, o grão-vizir Sinan Pasha, contra a Hungria. O episódio de Sisek foi apenas
o gatilho que fez disparar a máquina de guerra. Uma revolta dos janízaros 6, desocupados
e mal pagos desde o término da longa campanha na Pérsia, em 1590, quase provocou a
falência da Porta no esforço de recompensá-los com conquistas e espólios, e o
reconhecimento de que os Habsburgos tinham consolidado suas posições na Europa
Central também incentivou retaliações.
A guerra começou com êxitos otomanos; Sinan capturou não apenas Sisek como
também importantes fortalezas na Transdanúbia, entre elas Vezprém e Várpalota. No
entanto, planos que em 1577 tinham sido adiados pelo Conselho militar foram então
retomados, e a nova estratégia se transformou em uma ofensiva durante o inverno,
estação que os otomanos tradicionalmente consideravam como imprópria para a guerra,
preferindo reservar as operações para o verão, quando temíveis exércitos turcos eram
enviados à Hungria para a campanha militar. Em outras palavras, o Conselho quis
explorar a possibilidade de as forças turcas terem atingido o limite de seu “raio de
ação”: a força de combate otomana em campanhas maiores dependia da participação
pessoal do sultão e das tropas que ele comandava, provindas da residência imperial, da
qual, todavia, ele nunca se afastava por um período mais longo do que a primavera e o
outono. Pela primeira vez desde Mohács, o exército da Hungria Real foi capaz de alterar
sua posição defensiva para a ofensiva, e conseguiu recuperar uma unidade territorial
relativamente pequena, mas vizinha aos turcos, no inverno de 1593-1594: após a vitória
obtida na batalha de Romhány, em novembro, as tropas de Pálffy forçaram as
guarnições turcas a se retirar da maioria das fortalezas do condado de Nógrád.
Sucessos inesperados como esse contribuíram significativamente para que se
retomasse a ideia de cooperação entre os países cristãos contra os otomanos. Isso tinha
6
Soldados do corpo de elite das tropas turcas, conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

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se tornado uma necessidade urgente, uma vez que o custo da guerra chegara a seis
milhões de florins por ano. De 1594 em diante, o papa Clemente VIII afiançara
subsídios (de cerca de três milhões de florins em dez anos) e, depois, também o auxílio
de tropas italianas à guerra na Hungria; mediante uma hábil diplomacia ele assegurou,
ainda, a neutralidade benevolente da França relativamente aos Habsburgos. Os Estados
imperiais da Áustria e da Boêmia também passaram a contribuir para o esforço de
guerra com montantes mais generosos, embora menos da metade dos 13 milhões de
florins aprovados pela Dieta imperial no decorrer da guerra tenha de fato chegado à
Hungria. Sobretudo, os principados romeno e transilvano também abandonaram o
campo otomano e se juntaram à Santa Liga. Na ausência de István Báthori, a
Transilvânia primeiro foi governada pelo seu sobrinho, Kristóf, como voivoda, e depois
por um conselho, em nome do filho de Kristóf, Zsigmond, que foi eleito príncipe
quando ainda era menor de idade após a morte de seu pai, em 1581. Homem de
consideráveis talentos, mas de caráter confuso, Zsigmond Báthori, tendo assumido
como príncipe em 1586, desenvolveu laços com os voivodas Mihai Viteazul, da
Valáquia, e Aron, da Moldávia, com o objetivo de desobrigar-se da tutela turca e
subjugar o “partido otomano” em meio aos estamentos transilvanos. Em janeiro de
1595, ele firmou ainda um tratado de aliança com Rodolfo. Além da cooperação militar,
o acordo envolvia o casamento de Báthori com a duquesa Habsburgo, Maria Cristina, e
o reconhecimento por ele dos termos do tratado de Speyer, de 1570.
Os eventos militares demonstraram que esses fatos neutralizaram a antiga
superioridade dos otomanos, porém eles não representaram uma completa guinada na
relação de forças. Os movimentos eram erráticos, e a guerra ainda se prolongou. No
verão de 1594, a tentativa do arquiduque Matias de tomar Buda fracassou quando as
forças já estavam à porta de Esztergom, enquanto Györ, considerada chave por Viena,
tombava sob as forças de Sinan. Em 1595, quando a Porta se viu forçada a lutar em duas
frentes guerreiras, o exército real do general Karl Mansfeld finalmente recuperou
Esztergom, Báthori tomou fortificações no vale de Maros e reuniu forças com o voivoda
Mihai, assim obtendo uma grande vitória em Djurdjevo, no Baixo Danúbio. A
campanha militar do ano de 1596, quando o novo sultão, Mehmed III, comandou
pessoalmente seu exército, oscilou novamente para o lado turco: eles capturaram Eger e,
revertendo o que inicialmente parecera uma completa derrota, bateram as forças de
Báthori e do arquiduque Maximiliano em uma batalha de três dias em Mezökeresztes,
um dos maiores combates em campo aberto do século. O ano de 1597 assistiu a esforços

89
vãos da Santa Liga para retomar Temesvár e Györ, porém esta última foi capturada em
um ataque surpresa de Pálffy, no ano seguinte. O cerco posterior a Buda foi
malsucedido, assim como os seguidos esforços para recuperar a capital húngara, em
1602 e 1603. À parte algumas vitórias duradouras, como a conquista otomana de Eger e,
em 1600, de Nagykanisza, tornada a sede do quarto vilaiete em território da Hungria, os
sucessos de ambas as partes consistiram, principalmente, na recaptura de fortalezas que
tinham sido perdidas anteriormente durante a guerra.
Depois das grandes esperanças da fase inicial, ocorreu a decepção,
especialmente considerando-se os enormes sacrifícios humanos e a destruição física
causados pela guerra. Nos territórios mais afetados pelo movimento das tropas, como o
vale do Danúbio, ao longo do qual os otomanos tinham avançado em suas campanhas,
os condados situados na linha de defesa transdanubiana, bem como os da Alta Hungria
no norte do Danúbio, ou partes da Transilvânia, o recolhimento de impostos registrou
um decréscimo de mais de 60, ou de até 70 por cento no número de portae, entre o
início e o fim da guerra. A frustração resultou em amargura, o que prejudicou os
esforços de cooperação contra os turcos, tanto dentro como fora do país. Os caprichos
de Báthori, que se tornou o elo mais fraco da corrente devido a seus transtornos mentais,
causaram a primeira ruptura. Tendo abdicado em favor de Rodolfo em troca das
propriedades ducais na Silésia, em 1598, ele não tardou a mudar de ideia e voltou a
ocupar o trono, para em seguida deixá-lo novamente, em 1599. Por pressão polonesa,
ele foi então substituído por seu sobrinho, o cardeal András Báthori, que desejava
comandar a volta da Transilvânia para o lado da Porta. Para evitar que isso ocorresse, o
voivoda Mihai, da Valáquia, incentivado por Viena, invadiu a Transilvânia, derrotando
Báthori e se tornando o governante Habsburgo da província. Zsigmond Báthori então
reapareceu em cena, pela última vez, em 1601. Foi eleito príncipe, novamente, porém as
forças de Mihai e as do general Habsburgo, Giorgio Basta, o expulsaram. Como os
últimos mercenários valões mataram o voivoda Mihai em um desdobramento da
batalha, o general se tornou então o senhor da abalada Transilvânia. Ele chefiou um
reinado de terror, agravando a fome que castigava o país, e com a perseguição em massa
dos protestantes, depredações temerárias em vilas populares pelos mercenários e
taxações impossíveis impostas às cidades que ainda exibiam marcas de prosperidade.
O consenso provisório forjado entre as classes possuidoras e a corte em
decorrência do esforço de guerra na Hungria Real também foi vítima do crescente
desespero causado por sua inutilidade. Mesmo antes da eclosão da guerra, as relações

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entre as duas partes eram dominadas por tensões, sobretudo porque o Conselho húngaro
fora cada vez mais negligenciado e pelo fato de estrangeiros serem indicados em
número crescente a cargos importantes da administração húngara. Depois, uma vez que
aumentava cada vez mais a dificuldade para a obtenção de subsídios estrangeiros, o
tesouro da Corte decidiu compensar esse déficit às custas da nobreza húngara, cuja
contribuição ao esforço de guerra era considerada insuficiente por esse órgão. O tesouro
instituiu processos legais contra diversos magnatas, a fim de recuperar as receitas fiscais
hipotecadas a eles, e os que resistiam eram condenados a perder a vida e as propriedades
por crime de alta traição. Particularmente ofensivo foi o julgamento do chefe de Justiça,
István Illésházy, um idoso magnata, que fora (como ocorrera com vários outros
implicados) um firme apoiador da corte. Ao lado da cláusula acrescentada pela corte às
leis aprovadas pela Dieta de 1604, que proibiam qualquer futura discussão de questões
religiosas pela legislatura, pareceu que uma ação coordenada foi tomada contra o
equilíbrio de poder entre a corte e as classes que se desenvolveram depois de Mohács.
A situação irrompeu quando, em outubro de 1604, Giacomo Belgiojoso, capitão
geral da Alta Hungria, atacou as fortalezas do magnata calvinista István Bocskai no
condado de Bihar. Bocskai fora um dos mais ferrenhos apoiadores da orientação política
de Habsburgo na Transilvânia, mas havia pouco ele também tivera problemas com a
corte por conta de receitas hipotecadas a ele, e agora se via acusado de se envolver com
os otomanos. Pressionado, Bocskai decidiu resistir. Primeiro, encontrou apoio entre os
hajdus: a reserva irregular de unidades das forças imperiais, originalmente boiadeiros
(daí o nome) ou camponeses marginalizados pela devastação da própria guerra. Bocskai
obteve uma pequena vitória e as pessoas se uniram em seu apoio; cidades e fortalezas
abriam-lhe as portas, e embora suas tropas precariamente organizadas sofressem derrota
após derrota, em meio a um ambiente em geral hostil às forças de Basta, que comandava
a perseguição contra ele, estas não puderam senão se retirar ainda mais para oeste. Em
21 de fevereiro de 1605, Bocskai foi eleito príncipe da Transilvânia; dois meses depois,
os estamentos da Alta Hungria aclamaram-no príncipe da Hungria, e conquanto os
magnatas da Transdanúbia mantivessem lealdade aos Habsburgos, ele chegou a
considerar até mesmo a reunificação dos dois territórios sob seu próprio cetro. E
solicitou uma coroa à Porta.
Foi provavelmente a ocupação otomana de Esztergom, no outono de 1605, que
sinalizou os perigos da aliança otomana, e o cauteloso aconselhamento do chefe de
Justiça, István Illésházy, e de outros, que reconheciam que os Habsburgos ainda eram

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indispensáveis à manutenção da linha de defesa, sugerindo assim um acordo de
compromisso, o que levou Bocskai a mudar de ideia. Ele aceitou a coroa, recebida em
novembro, apenas como um presente pessoal, não como uma insígnia, e iniciou
negociações com a corte – nomeadamente, com o arquiduque Matias, que precisava
muito da ajuda dos estamentos húngaros a fim de depor seu irmão, Rodolfo,
mentalmente perturbado; este passara a viver retirado em sua lendária corte de Praga,
entregando-se livremente, por vários anos, à sua paixão pelo ocultismo e pela alquimia,
além das artes e das ciências. O Tratado de Paz de Viena, assinado em 23 de junho de
1606, incluía entre suas requisições que os Habsburgos respeitassem os direitos dos
protestantes; preenchessem o posto de palatino, vago por décadas; evitassem a indicação
de estrangeiros para postos na administração húngara; e se abstivessem de ações
judiciais que violassem a lei. Bocskai, que nesse ínterim retribuíra o apoio recebido dos
hadjus assentando cerca de dez mil deles em localidades dotadas de amplos privilégios,
foi confirmado como príncipe da Transilvânia.
O acordo de paz que pôs fim ao primeiro movimento anti-Habsburgo das classes
possuidoras húngaras, com uma solução de compromisso altamente favorável a elas,
também estipulava que a guerra otomana devia ser encerrada. A Porta, pressionada pela
revolta na Anatólia e os ataques na Pérsia, tinha manifestado recorrentemente sua
disposição de obter a paz desde 1599, e agora que a revolta de Bocskai também minara
os resquícios de poder dos Habsburgos, a situação estava pronta para isso. A Paz de
Zsitvatorok, assinada em 11 de novembro de 1606, foi firmada com base no status quo
(ou seja, os Habsburgos retinham as pequenas conquistas obtidas no início da guerra, e
os otomanos preservavam Eger e Nagykanizsa); em vez de um estipêndio anual, o
imperador pagou apenas uma parcela única de 200 mil florins, e foi reconhecido para
todos os efeitos como um equivalente do sultão. Visto que a Porta reconhecera o
estatuto de isenção fiscal dos proprietários húngaros na periferia da zona ocupada, ela
não pôde exigir a proibição da tributação húngara em sua província. O sultão parecia ter
abandonado sua pretensão absoluta sobre toda a Hungria.
Sob muitos aspectos, os tratados de paz efetivaram uma resolução que parecia
duradoura, ao final de uma guerra cujos efeitos desastrosos sobre a cultura material e as
relações demográficas seria difícil exagerar. Até o fim do século XVI, a maioria dos
danos sofridos por conta da ocupação otomana parecia ser reparável. Mas, ao final da
longa guerra, ficou evidente que a Hungria nunca se tornaria o que seu potencial, ainda
que limitado, lhe destinava a ser um século antes. Em contraste com a situação anterior,

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grandes parcelas do exército turco, incluindo-se as forças auxiliares tártaras que
cultivavam hábitos particularmente violentos, mantiveram-se em caráter permanente no
país durante a guerra, transformando grande parte dele em terra arrasada, quando se
firmou a paz. O velho modelo de povoamento foi desestruturado; aldeias destruídas
nunca foram reerguidas. A população do país foi dizimada; e o que a guerra não
produziu foi causado pelas sucessivas pestes epidêmicas, que permaneceram endêmicas
na Hungria durante meio século, desde sua irrupção, em 1620.
Paralelamente ao fim do boom agrícola, e a consequente queda drástica nas taxas
de lucro das principais exportações húngaras, o que já teria causado sérias dificuldades
mesmo em condições normais, os efeitos da guerra acarretaram recessão econômica e o
colapso dos grupos mercantis, que tinham despontado vigorosamente nas décadas
anteriores. Tais efeitos levaram à perda do poder de competição não apenas das grandes
companhias monopolísticas financiadas pelo Estado, criadas na metade do século XVII,
mas também dos comerciantes “gregos” que chegavam do Império otomano com capital
mais modesto. Um importante, ou, antes, o mais promissor canal de modernização da
estrutura social da Hungria foi em grande parte bloqueado. A principal via de
mobilidade social dos camponeses transformou-se, então, em meio de acesso da classe
privilegiada para a obtenção de títulos de nobreza, fosse em troca de um modesto
pagamento ou de serviço militar, como soldado de uma fortaleza ou hadju. A tendência
anterior a uma nobreza numerosa e a tibieza da “classe intermediária” foram, assim,
reforçadas no século XVII, com profundas consequências para o sistema de valores
prevalecente.
Em termos demográficos, o efeito foi impressionante, não apenas quanto aos
números e à densidade populacional, mas também no que se refere à composição étnica.
O reino medieval da Hungria fora um país multiétnico, com pelo menos vinte por cento
de seus habitantes de outras origens. Muitas dessas minorias étnicas viviam em áreas
remotas, enquanto as vastas regiões centrais eram habitadas quase que exclusivamente
pelos falantes da língua húngara. Foram esses últimos territórios que se tornaram os
principais palcos da guerra; assim, o equilíbrio étnico começara a mudar em favor de
outras nacionalidades: eslovacos no norte, romenos no leste, sérvios no sul. A variedade
cultural daí resultante foi um ganho inequívoco. A mistura de características ortodoxas
com o substrato católico romano e o reformado teve um impacto muito maior sobre o
panorama civilizacional da Hungria do que algumas palavras turcas tomadas de
empréstimo e que se infiltraram na língua húngara ou certos pratos inspirados na

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culinária turca, bem como os banhos e as estruturas religiosas, legados pelos otomanos.
Contudo, esses ganhos foram obtidos à custa de tensões que se comprovaram insolúveis
com o advento da modernidade. As condições prévias do problema da nacionalidade
húngara, na forma como ele emergiu na época do despertar nacional, surgiram no século
da decadência húngara, iniciada com a Guerra dos Quinze Anos.
Ao mesmo tempo, enquanto os tratados consolidaram a divisão política do país,
recorrendo-se a uma isenção sensata pode-se agora perceber neles mais do que arranjos
temporários, e tentar criar mérito por necessidade. A experiência da história política da
guerra demonstrou que havia um caminho, embora estreito, aberto para que as elites
húngaras das diferentes províncias se equilibrassem de maneira eficaz entre as duas
grandes potências. Por intermédio dos Habsburgos, a Hungria Real podia assegurar o
indispensável apoio externo para conter o avanço otomano. Ao mesmo tempo, a
Transilvânia podia evitar – se necessário, com base na ajuda da Porta – com que os
Habsburgos tirassem a nobreza de suas posições na Hungria Real. Essa divisão de
trabalho raramente foi defendida de modo consciente e com frequência foi dificultada
pelas múltiplas clivagens da opinião pública, por suspeitas e hostilidades dos dois lados
da fronteira interna. Em decorrência, os políticos húngaros por vezes se desviaram
daquele caminho estreito, o que nunca deixou de ter graves consequências.
O acordo de 1606 inicialmente pareceu precário. O imperador Rodolfo, recluso
em Praga, ainda sonhava em expulsar os turcos e em punir os líderes da revolta de
Bocskai. Todavia, quando, depois de mais de um ano de procrastinação e de crescente
agitação entre os hadjus – que se recusavam a ser recrutados por Rodolfo contra os
estamentos húngaros –, se convocou a Dieta no início de 1608, a Paz de Viena foi
ratificada e as divergências religiosas foram dirimidas sob a liderança do arquiduque
Matias. O arquiduque obteve o apoio das classes possuidoras húngaras para obter a
abdicação de seu irmão; e Rodolfo, confrontado pela confederação das classes
austríacas, morávias e húngaras, na verdade cedeu a soberania desses territórios para
Matias (mantendo o trono da Boêmia até 1611 e o título de imperador até sua morte, em
1612). O preço que Matias pagou pela coroa foi a restauração do governo de
corporações, de maneira quase tão irrestrita como existira sob os Jagiellos, um século
antes. As “leis sobre pré-coroação” de 1608 privaram o monarca do direito de guerra e
de paz sem que se consultasse as classes possuidoras, e o palatino passou a ter o poder
de agir com plena autoridade em nome do governante ausente. Uma das leis selava um
importante projeto do século anterior: uma câmara em separado, no interior da Dieta, foi

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estabelecida pelo grupo dos barões permanentes, [vitalícios] que emergira sob Fernando
I (um grupo em que um estrato distinto de magnatas ascendia ao escalão de conde
imperial, ou mesmo de duque, destacando-se ainda mais). A mesma Dieta obrigou o rei
a prover a subsistência dos soldados que guarneciam as fortalezas, enquanto exigia
ainda que ele removesse os mercenários estrangeiros e passasse a designar apenas
oficiais húngaros. O rei perdeu o direito de emitir novas cartas [régias] concedendo
autonomia às cidades, e a regulação da livre migração de camponeses foi transferida à
autoridade dos condados. Na prática, porém, as classes possuidoras não eram
suficientemente poderosas nem tinham uma visão bastante clara de seus próprios
objetivos a ponto de limitar a autoridade das administrações governamentais.
Na Transilvânia, a situação continuou extremamente instável por vários anos
após a assinatura dos tratados de paz. Bocskai morreu antes do final de 1606 e seu
governador e sucessor, Zsigmond Rákóczi, foi substituído por Gábor Báthori, com o
apoio dos hadjus, em março de 1608. Libertino atraente e excêntrico, cuja personalidade
lembrava muito a do príncipe anterior da mesma família, Báthori governou por cinco
anos, marcados por uma série de iniciativas insensatas, que afastaram a maioria de seus
antigos apoiadores dentro e fora da Transilvânia. Ele iniciou seu reinado transgredindo a
autonomia das briosas cidades saxônicas, Nagyszeben (Sibiu, Hermannstadt) e Brassó;
em 1611, atacou a Valáquia para restaurar a hegemonia da Transilvânia sobre os
principados romenos, despertando a ira da Porta, assim como a da Polônia. Báthori
sobreviveu a muitas conspirações, algumas das quais engendradas pela Hungria Real,
até que seu antigo conselheiro, Gábor Bethlen, o substituísse com o apoio otomano, em
1613.
Levou algum tempo até que Bethlen fizesse esquecer as circunstâncias de sua
ascensão, ainda mais porque, em 1616, chegou a cercar seus próprios soldados em
Lippa, a fim de render aquela fortaleza, tal como prometera aos otomanos em
retribuição à ajuda que recebera inicialmente deles. Embora tivesse sido reconhecido em
Viena, com alguma relutância, no ano anterior, foi então denunciado como traidor, e
chegou-se até mesmo a encorajar um pretendente em um esforço malsucedido para
substituí-lo. Enquanto isso, porém, a extraordinária capacidade de organização de
Bethlen, assim como seu talento político, começou a causar impacto na Transilvânia.
Seu caráter e seus feitos foram muitas vezes comparados aos de Matias Corvino, e
certamente é possível fazer-se uma comparação entre ele e o primeiro soberano
renascentista da Hungria. Mas, no caso de Bethlen, não é somente apropriado, mas

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também deixou de ser anacrônico falar-se em um “Maquiavel húngaro”. Herdeiro de
uma família nobre de patrimônio modesto, que fora expulsa do condado de Temes pelos
turcos, as atitudes de Behtlen não eram as de um magnata, mas as de um conselheiro de
príncipes, e finalmente as do próprio príncipe. Para esse profissional húngaro da razão
de Estado por excelência, a virtude consistia, na verdade, em aproveitar as
oportunidades oferecidas pela sorte, e dessa forma cumprir os impositivos históricos –
noções de sabedoria política maquiavélica, adaptadas por Bethlen segundo sua crença
calvinista na predestinação.
Bethlen fez relativamente pouco para mudar a organização das instituições então
existentes, e se satisfez em explorar ao máximo o poder por tradição abrangente dos
príncipes transilvanos. Pôs fim aos confrontos sangrentos, e substituiu os rebeldes
hadjus por um exército regularmente remunerado (de fato, em grande parte recrutado
entre os próprios hadjus e os szekels). Contando com um grupo de auxiliares imediatos
escolhidos com grande habilidade, ele mostrou-se incansável na recuperação das
receitas do principado; consequentemente, a renda do tesouro saltou para inéditos um
milhão de florins anuais no final de seu reinado. Embora a Transilvânia deva ter perdido
cerca da metade de sua população durante a Guerra dos Quinze Anos, do ponto de vista
econômico ela sofreu menos que outras partes da Hungria, e as políticas mercantilistas
de Bethlen consolidaram o mercado interno, bem como o lugar da Transilvânia na
economia internacional. A autossuficiência do território foi preservada, e o fato de os
principados romenos vizinhos terem servido como celeiro do Império Otomano
estimulou suas indústrias; e a Transilvânia se manteve como um importante ponto de
passagem na rota comercial entre a Europa e o Império Otomano.
Com base nessas realizações econômicas, Bethlen deu alta prioridade ao
desenvolvimento da Transilvânia, e de modo especial à única corte principesca
remanescente na Hungria, em Gyulafehérvár, uma ilha cultural singular. “Não há nada
de bárbaro aqui”, exclamou um enviado especial, em 1621, encontrando dificuldade em
esconder seu espanto. O palácio principesco, destruído durante as guerras, fora
restaurado de maneira majestosa por arquitetos e escultores italianos, e suntuosamente
decorado com afrescos, tetos ornamentais, tapeçarias flamengas e italianas. Os bailes,
apresentações teatrais e musicais e outras formas de entretenimento em seu interior, os
objetos exóticos e variados, assim como as maneiras corteses, refletiam os padrões mais
altos de refinamento da época. Além de apoiar a peregrinação acadêmica, Bethlen
também criou a escola calvinista de Gyulafehérvár em nível colegial, em 1622, e

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recebeu vários renomados professores alemães, que buscavam refúgio durante a Guerra
dos Trinta Anos. Sob Bethlen, a Transilvânia se tornou sede de uma florescente tradição
da historiografia, que despontava como uma disciplina totalmente secular, a cargo de
István Szamosközy, Gáspár Bojti Veres, János Szalárdi e outros.
Foi também principalmente durante o governo de Bethlen que, por intermédio de
sua participação na Guerra dos Trinta Anos, a importância estratégica internacional da
pequena e periférica Transilvânia se firmou da maneira mais notável. A elite da
Transilvânia, predominantemente húngara, tinha um profundo, e mútuo, interesse nos
assuntos de sua homóloga na Hungria Real; esta última, por meio do elo Habsburgo,
tornou-se, por sua vez, um importante elemento a ser considerado nos jogos de poder
europeu; ao mesmo tempo, em contrapartida, os Habsburgos também relutavam em
abandonar sua reivindicação de soberania sobre a Transilvânia. Quando se lembra de
que mesmo seus príncipes católicos, como István Báthori, eram a favor da liberdade
religiosa, não é de surpreender que a Transilvânia fosse potencialmente um aliado ideal,
bem posicionado por trás dos Habsburgos, apesar de protestante, e integrasse forças
anti-Habsburgo na cena internacional. Behtlen reconheceu com clareza todas essas
implicações, e quando a lei, a ordem e a estabilidade econômica foram restauradas, ele
precisou apenas de uma oportunidade para começar a implementar seu sonho político: a
reunificação da Hungria e talvez, até mesmo, a restauração do “império” de Matias.
A oportunidade se apresentou com a revolta das classes possuidoras da Boêmia
contra Fernando, que subira ao trono para substituir o adoentado Matias, em 1617, e
que, renegando seu juramento de cumprir as leis locais, empreendeu uma violenta
Contrarreforma. Quando a revolta irrompeu, em 23 de maio de 1618, Fernando II já se
tornara também rei da Hungria, e após alguma contemporização, foram as classes
protestantes húngaras que estabeleceram uma causa comum entre os insurretos boêmios
e Bethlen. Visto que as classes boêmias preferiam, em última instância, o primeiro
candidato, Frederico V, eleitor do palatinato e líder da União Protestante Alemã, e não
Fernando, Bethlen foi o primeiro príncipe europeu a agir contra os Habsburgos: sua
ofensiva, no outono de 1619, foi tão vigorosa, que, tendo conquistado a Alta Hungria,
pôde unir forças com os exércitos boêmio e morávio para sitiar Viena. Embora tenha
sido forçado a se retirar, o armistício subsequente foi altamente favorável a Bethlen. Ele
também continuou no controle dos territórios ocupados durante a campanha; além do
mais, a Dieta húngara depôs os Habsburgos e aclamou Bethlen como rei da Hungria, em
25 de agosto de 1620. Bethlen considerou essa medida prematura. A Porta só

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concordaria com sua ascensão ao trono da Hungria se, simultaneamente, ele
abandonasse a Transilvânia: mas, trocar seu forte controle sobre esta última pela disputa
imprevisível com as classes possuidoras húngaras, podia ser um mau negócio. Além
disso, no outono de 1620, a revolta boêmia tornou-se uma guerra de toda a Europa, e a
maioria das potências mais significativas tomou o partido dos Habsburgos. Os torneios
de Bethlen foram insuficientes, e as forças auxiliares que ele enviou chegaram tarde
demais para poder evitar a esmagadora derrota das classes boêmias na batalha de
Montanha Branca, em 8 de novembro de 1620, a qual pôs fim à primeira fase da guerra,
bem como a qualquer resquício de autonomia nos domínios do imperador da Boêmia.
Esse desfecho dramático causou certo pânico entre as classes húngaras, que se
apressaram em assegurar sua lealdade a Fernando. De outro lado, Bethlen, sozinho no
campo de batalha, foi capaz de perseverar. Ele repeliu uma contraofensiva, e procurou
ganhar tempo para que as forças protestantes por toda a Europa se reorganizassem, e em
favor do acordo de paz de Nikolsburg para a Transilvânia (31 de dezembro de 1621).
Desistiu do título de rei e da insígnia, bem como da maioria dos territórios ocupados,
porém conseguiu os domínios ducais na Silésia e sete condados na Alta Hungria. É
significativo que aquele tratado tenha, pela primeira vez, deixado de mencionar a
reivindicação de Habsburgo quanto à Transilvânia. Uma semana depois, Fernando
garantiu às classes húngaras que seus privilégios, inclusive a Paz de Viena, seriam
respeitados, e a Dieta elegeu um palatino luterano.
Embora o principal teatro de guerra tenha sido transferido desde então para a
Alemanha [Germânia], Bethlen continuou implicado diplomaticamente nele, e
participou militarmente do conflito em outras duas ocasiões. Em 1623, o pretexto foi a
recusa de sua proposta de casamento com a filha de Fernando; e, em 1626, foi porque
atendera ao apelo da aliança anglo-dinamarquesa-holandesa. Nos dois casos, o resultado
do combate travado foi incerto, e os tratados de paz de Viena e de Pozsony apenas
confirmaram as cláusulas de Nikolsburg. Sobretudo no caso da segunda campanha, a
política de Bethlen não mais contava com apoio popular na Hungria: as classes
possuidoras a consideraram como mera afirmação de sua ambição de poder, levemente
disfarçada pela retórica das liberdades protestantes; e também se mostraram temerosas
de que um eventual fracasso pudesse colocar seus próprios privilégios em risco, em uma
época em que eles não eram diretamente ameaçados por Viena. Afora isso, as
realizações de Bethlen foram consideráveis. Ele foi o único membro da coalizão anti-
Habsburgo que podia se gabar de êxitos militares – dois dos melhores comandantes

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imperiais, Buquoi e Dampierre, morreram em combate contra ele, em 1621, e um
terceiro, Wallenstein, teve de recuar, forçado por ele, em 1623 – e a preservação da
integridade da Transilvânia fortaleceu a posição das classes húngaras, simpatizassem
elas com as políticas de Bethlen ou não.
Após a morte prematura de Bethlen, em 1629, houve uma sucessão de pequenas
crises na Transilvânia. Os termos do contrato de seu casamento com Catarina de
Brandemburgo previam que sua esposa, impopular e politicamente inexperiente, devia
suceder a Bethlen; disposição esta que a Dieta cumpriu, embora, ao mesmo tempo,
tenha indicado o medíocre irmão de Bethlen, István, como governante. A querela entre
os dois só fortaleceu os planos das classes católicas na Hungria Real, sob a liderança do
palatino Miklós Esterházy, de anexar a Transilvânia aos domínios Habsburgo. A Dieta
transilvana evitou que isso acontecesse, afastando a viúva e o irmão de Bethlen, e
elegendo um abastado magnata da Alta Hungria, e pessoa da confiança de Bethlen,
György Rákóczi, como príncipe. Ele provou ser o sucessor ideal de Bethlen: o que seu
antecessor realizara com desenvoltura e imaginação política, György I Rákóczi
confirmou com sua prudência e confiabilidade. Seus talentos eram inferiores aos de
Bethlen, mas, afortunadamente, ele reconhecia isso, e foi em grande parte devido à sua
autodisciplina que a fase dourada iniciada com Bethlen prosseguiu até o final do reinado
de György I. Ele preservou os principais avanços da política interna de Bethlen,
relativos ao absolutismo e ao mercantilismo, embora as políticas religiosas mais liberais
do antecessor – que apoiava a tradução jesuíta da Bíblia, de György Káldi, além de
permitir que os romenos ortodoxos tivessem seu próprio bispo e protegesse os
anabatistas – tendessem cada vez mais à ortodoxia calvinista: as liberdades civis dos
unitários foram reduzidas, enquanto os sabatistas, mais radicais, foram julgados e
condenados à prisão e à perda de propriedades.
Pouco depois de ter subido ao trono, Rákóczi foi pressionado pelas potências
protestantes a atacar os Habsburgos, o que ele não se apressou a fazer, mesmo depois de
ter repelido pretendentes como István Bethlen, que veio a reivindicar o trono da
Transilvânia com apoio otomano, em 1636. Por fim, Rákóczi aderiu à aliança sueco-
francesa, em 1644, e ao término de uma campanha travada com sucessos e derrotas,
suas tropas ocuparam a Alta Hungria e ingressaram na Morávia para reunir forças com
as do comandante sueco Lennart Torstensson. Com o acordo de paz de Linz, que adveio
no final de 1645, ele recuperou os sete condados da Alta Hungria que tinham sido
devolvidos aos Habsburgos na morte de Bethlen. Graças ao prestígio internacional

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suscitado por Bethlen e preservado por György I Rákóczi, a Transilvânia se tornou um
dos signatários dos tratados de paz de Westfália (Münster e Osnabrük) que encerraram a
Guerra dos Trinta Anos, em 1648.
Nesse mesmo ano, Rákóczi morreu, deixando como legado uma Transilvânia no
auge de sua prosperidade e na liderança da estratégia política dos dois maiores grupos
no interior da elite da Hungria Real. O primeiro deles podia ser descrito como “pró-
Habsburgo”, sem que se lembrasse que eram traidores corrompidos por doações e
cargos. Ao longo da Guerra dos Quinze Anos os membros desse grupo concluíram – ou
melhor, foram levados a confirmar essa convicção – que a grande missão da expulsão
dos turcos só seria exequível contando-se com os Habsburgos, e que todos os esforços
contra estes, como a revolta de Bocskai, beneficiariam a Porta, assim como as forças à
margem das estruturas corporativas (tais como os hadjus), e eram, assim, contrários aos
interesses da nação (os quais eles identificavam com seus próprios interesses). Depois
de 1608, quando os governantes, a breves intervalos, mostraram-se dispostos a respeitar
os privilégios corporativos, as classes possuidoras húngaras tinham pouco do que
reclamar, e a cooperação mais ou menos harmoniosa entre elas e Fernando II (e desde
1637, Fernando III) foi reforçada com o avanço da Contrarreforma em suas fileiras. Elas
então instaram por reformas no aparelho militar e no sistema tributário, e também por
comedimento vis-à-vis aos otomanos até que os Habsburgos sofressem menos pressão
das classes protestantes em seus territórios ocidentais, e – assim se acreditou – se
voltassem novamente para o sul. Portanto, elas se mostravam inquietas com os ataques
lançados durante a Guerra dos Trinta Anos contra os Habsburgos pela Transilvânia, que
viam também como um posto avançado do Império Otomano, assim como uma unidade
política sem grande interesse, por conta da centralização excessiva do poder
principesco. Daí as recorrentes ações do palatino Esterházy contra o principado. Já o
outro grupo acreditava simplesmente que a dominação externa devia se encerrar
primeiro, e esperava que a Transilvânia de Bethlen e, depois, de Rákóczi desse origem à
Hungria reunificada. Mas embora alguns se mostrassem um tanto deslumbrados com as
esperanças suscitadas pela revolta na Boêmia e os antigos sucessos de Bethlen, a ponto
de se permitirem deixar-se levar pela ideia do reestabelecimento do reino nacional, na
maior parte desse período tal ideia foi uma opinião minoritária.
Hic Rhodus, hic salta – devem ter dito as classes húngaras aos Habsburgos
depois que a paz de Westfália libertou suas forças no oeste, em 1648. Mas Fernando III
não era inclinado a saltar, nem mesmo a caminhar, na guerra contra a Porta. O Império

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Habsburgo, na verdade, encontrava-se exausto pela Guerra dos Trinta Anos, porém nada
poderia convencer aquele poderoso grupo de magnatas, predominantemente católico e
até então totalmente pró-Habsburgo, reunido em torno de Pál Pálffy, de que não chegara
a hora de concretizar as expectativas cultivadas por meio século. Em 1649, Pálfy foi
eleito palatino pela Dieta, com forte apoio de Zsigmond Rákóczi, o filho mais novo do
falecido príncipe da Transilvânia. Como marido de Henrietta do Palatinado, filha do rei
deposto da Boêmia, Zsigmond Rákóczi tinha se ligado pelo casamento a várias
potências protestantes, e a cidade sede de sua família, Sárospatak, na Alta Hungria,
tornou-se um centro político rival de Viena; até mesmo um novo movimento anti-
Habsburgo chegou a ser ali observado. No entanto, uma vez que tanto Pálfy como
Rákóczi logo vieram a falecer, as esperanças voltaram-se para o irmão de Zsigmond,
György II Rakóczi, como novo príncipe da Transilvânia – como as de, entre outros,
Miklós Zrínyi, ban da Croácia e proeminente apoiador de Pálfy. Zrínyi – a quem devo a
expressão usada no título deste capítulo – não era apenas um político talentoso e um
excelente comandante militar, mas ao mesmo tempo um poeta lírico de primeira linha,
que escrevera também o épico O Perigo de Sziget (1651), sobre a corajosa defesa de
Szigetvár empreendida por seu avô, em 1566; e ainda autor de importantes textos de
teoria política e militar, concebidos à maneira de Maquiavel, acerca da criação de um
exército nacional (O Destemido Tenente, 1653) e de uma monarquia nacional
(Reflexões sobre a Vida do Rei Matias, 1656).
A princípio, György II Rákóczi pareceu justificar as expectativas colocadas
sobre ele: como a interferência, em nome de demandantes apoiados pelas revoltas
populares, para que as voivodias da Moldávia e da Valáquia, em 1653 e 1655,
respectivamente, dessem a ele o reconhecimento de sua suserania sobre os dois
principados romenos. Foi na segunda empreitada que suas fragilidades – falta de
experiência e de discernimento político, imprudência e obstinação, associadas a uma
imensa ambição pessoal – o arruinaram, assim como a seu país. Seu pai tinha cogitado
conseguir o trono da Polônia para seu irmão, Zsigmond, quando Vladislau IV morreu,
em 1648, mas as classes polonesas elegeram o filho do falecido rei João Casimiro.
György II reiterou essa reivindicação quando Carlos X, rei da Suécia, invadiu a Polônia
em 1655, mas ao enfrentar uma coalizão formada pelos Habsburgos, a Rússia, os Países
Baixos e a Dinamarca, chamou o príncipe da Transilvânia em seu apoio, oferecendo-lhe
até mesmo a coroa polonesa.

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Seduzido por essa perspectiva, Rákóczi partiu com seus aliados romenos e
cossacos para a campanha em uma estação do ano totalmente imprópria, em janeiro de
1657. Mas ele não cuidou de reconhecer que os polacos católicos dificilmente
acolheriam seus entusiásticos planos de proselitismo protestante, como também
passaram-lhe despercebidas as profundas mudanças que estavam ocorrendo desde 1656
no Império Otomano, em decorrência das reformas do grão-vizir Köprülü Mehmed.
Tampouco levou em conta a ordem da Porta para abster-se de participar da campanha;
no entanto, no início, seus avanços pareciam irresistíveis e, em junho de 1657, ele
chegou a ocupar Varsóvia. Logo, porém, um ataque dinamarquês forçou o rei da Suécia
a retirar seu exército, enquanto uma contraofensiva polonesa penetrava na Transilvânia.
Rácóczi comprou a paz por um assombroso resgate, de 1,2 milhão de florins, e correu
de volta para casa, deixando atrás de si a maior parte de seu exército, que foi então
direcionado pelos tártaros às ordens dos otomanos. Conforme exigência da Porta, a
Dieta da Transilvânia depôs Rákóczi, cuja aventura imprudente comprovou que o
remoto rei da Suécia e os instáveis vizinhos do leste da Transilvânia podiam prestar
apenas escasso apoio ao principado, tratando-se de um conflito que ia, ao mesmo tempo,
contra os interesses dos otomanos e dos Habsburgos.
A era de ouro da Transilvânia chegou ao fim, mas, no outono de 1657, o próprio
Rákóczi obteve uma última chance de parte de um grupo de magnatas húngaros,
incluindo Zrínyi, o palatino Ferenc Wesselényi, o chefe de justiça Ferenc Nádasdy e o
arcebispo de Esztergom, György Lippay. Eles tinham conseguido evitar um ataque de
Habsburgo contra Rákóczi por ocasião da campanha polonesa, e agora lhe prometiam
ajuda armada a fim de consolidar sua posição no plano interno e vis-à-vis os turcos,
enquanto faziam pressão no mesmo sentido junto à corte de Viena. Em troca, tanto eles
como Rákóczi, deveriam apoiar o jovem Leopoldo I, que acabara de ascender ao trono
da Hungria, nas iminentes eleições no Império. Uma vez que a diplomacia francesa,
liderada pelo cardeal Mazarin, planejava frustrar a sucessão Habsburgo no Sacro
Império Romano, Leopoldo precisava de argumentos para convencer as classes
imperiais acerca de seus méritos superiores, e ostentar um posicionamento antiotomano
parecia adequado. O ambiente internacional de fato parecia auspicioso para a formação
de uma nova liga antiturca. Assim, prometeram a Rákóczi alguns milhares de homens
das tropas de Habsburgo, e ele reassumiu o principado no início de 1658, chegando a
vencer algumas batalhas.

102
Contudo, seu retorno foi efêmero. Pouco depois, em julho, Leopoldo foi eleito
imperador, e garantiu à Porta que não tencionava descumprir o acordo de paz feito em
prol de Rákóczi. Em um mês, 120 mil turcos e tártaros tombaram na Transilvânia, e a
destruição sistemática que se seguiu ultrapassou a que fora causada pela Guerra dos
Quinze Anos. Um quinto vilaiete otomano em território húngaro, criado na
Transilvânia, logo foi organizado, com seu centro em Várad. Rákóczi continuou a lutar
por mais dois anos, até morrer vítima dos ferimentos que sofreu na batalha de
Szászfenes. Foi, então, substituído como príncipe, por ordem de Köprülü, por Ákos
Barcsay, que por sua vez foi deposto, em 1661, por János Kemény, que fora o primeiro
comandante de Rákóczi. Kemény foi encorajado pela presença das tropas de
Habsburgo, comandadas pelo general Raimondo Montecuccoli, que chegara finalmente
à Transilvânia no ano anterior. No entanto, Montecuccoli também partiu, tão logo a
Porta deixou claro que não pretendia incorporar a Transilvânia ao Império Otomano,
indicando Mihály Apafi, um culto mas politicamente não muito conscientizado
conselheiro, como seu mais novo títere. Kemény morreu em combate, em junho de
1662, e Apafi ficou sozinho em cena depois de anos de tumultos, dos quais o antigo país
dos contos de fadas de Bethlen nunca se recuperou.
Em vista do papel que a Transilvânia desempenhou nas décadas anteriores, e que
se esperava que viesse a cumprir no futuro, sua queda, e em especial aquilo que
geralmente se considerava como cumplicidade do imperador nesse processo, causou
inicialmente grande perplexidade e decepção na Hungria. As classes católicas foram as
primeiras a reagir. Reconhecendo e explorando a disposição da Santa Sé de retomar
seus planos de uma liga antiotomana, no sínodo nacional de 1658 essas classes instaram
pela restauração da coerência religiosa, apresentada como uma precondição de força
nacional, no interesse da defesa nacional. O violento influxo da Contrarreforma, então
inaugurada, foi também “nacional”, no sentido de que os senhores que participaram da
decorrente apropriação de igrejas, escolas, gráficas e dos bens dos que tinham fugido, o
fizeram em parte com a finalidade de antecipar-se aos jesuítas estrangeiros. Essa
ofensiva determinou o ambiente das Dietas de 1659 e de 1662. Na primeira, em um
ambiente de dissensão generalizada, foi graças à autoridade de Zrínyi que se fez voltar a
atenção para a questão vital da reforma militar. Na de 1662, nem mesmo isso pôde
evitar que os insatisfeitos deputados protestantes deixassem a Dieta depois que seus
agravos religiosos foram ignorados. Ainda assim, os decretos da Dieta revelaram a

103
crescente influência da concepção de Zrínyi sobre como colocar o sistema de defesa do
país em uma nova base.
Embora, em 1649, a paz entre os Habsburgos e a Porta tenha sido renovada por
mais 22 anos, os habituais ataques de fronteira nunca cessaram, e o jovem Zrínyi teve
um papel importante neles. Ao mesmo tempo, a “Fênix” húngara “do século”
(definição que ele próprio empregara acerca do rei Matias) empenhou suas energias em
teoria e propaganda: enquanto censurava a indolência, a discórdia, o egoísmo e a
indiferença quanto às coisas públicas, que identificava como excessivos especialmente
em meio à nobreza húngara, ele exortava a uma retomada de seu espírito marcial e ao
incremento do exército permanente a partir das fileiras da nobreza, bem como dos
hadjus, dos soldados livres nas fronteiras e até camponeses, a serem remunerados
mediante um imposto sobre rendimentos. Boa parte desse projeto foi efetivamente
votada pela Dieta de 1662, e Zrínyi escreveu seu mais influente panfleto sobre o tema,
Remédio contra o Ópio Turco, em 1663, quando o novo grão-vizir, Köprülü Ahmed,
comandou outra campanha contra a Hungria.
O alto comando Habsburgo, sob Montecuccoli, que logo em 1662 ocupou a
Hungria à frente de um poderoso exército de cerca de 30 mil homens, ganhando fama
por suas atrocidades, não se preparou para enfrentar uma iminente ofensiva, e as
conquistas dos otomanos obtidas no outono de 1663 resultaram na criação do sexto
vilaiete, no norte do Danúbio. Em vez do relutante imperador, foi o palatino Wesselényi
quem solicitou e recebeu ajuda da Aliança Renana das classes imperiais; graças à
pressão das classes da Hungria, Zrínyi foi nomeado comandante das forças húngaras.
Nessa função, e com o apoio das tropas imperiais lideradas por Julius Wolfgang
Hohenlohe, Zrínyi dirigiu uma campanha espetacular, no inverno de 1664, penetrando
fundo na área há muito ocupada pelos otomanos no sul da Transdanúbia, liberando
diversas fortalezas e cortando as linhas de abastecimento turcas por meio do incêndio da
ponte de Eszék (Osijek) sobre o rio Drava. Em meio a aplausos da Europa, os quais
incluíam também ofertas entusiásticas de apoio da França e de Apafi, Zrínyi começou
então a cercar a grande fortaleza de Kanizsa, porém Köprülü iniciou a temporada de
campanha mais cedo do que de hábito. O cerco teve de ser abandonado, e o exército de
Montecuccoli, segundo ordens de que só deveria intervir se os turcos realmente
atacassem Viena, vigiou inutilmente enquanto o recém-construído forte de Zrínyi (o
“Novo Castelo de Zrínyi”) era capturado e demolido pelos turcos. O avanço otomano

104
foi finalmente interrompido em 1º de agosto de 1664: as forças cristãs unidas obtiveram
uma grande vitória na batalha de Szentgotthárd.
Dentro e fora do país, acreditou-se de maneira geral que o avanço estratégico
então obtido seria aproveitado para se lançar a tão esperada guerra de libertação contra
os turcos. Assim, causou um grande espanto que Leopoldo I tivesse preferido, antes,
usar aquela oportunidade para concluir a Paz de Vasvár. O imperador se liberava, assim,
para se concentrar na guerra contra a França, enquanto Köprülü podia voltar-se contra
Veneza na luta pela posse da ilha de Creta. A Porta preservaria as conquistas do ano
anterior, e o tratado obrigava ambas as partes a se abster de conceder ajuda à Hungria e
também a informar uma à outra sobre movimentações hostis dos húngaros. Zrínyi,
apesar de sua profunda decepção e ira, reconheceu que o ultraje causado pela paz na
Hungria poderia tão somente transformar-se em revolta contra Habsburgo, com apoio
otomano, o que aquele mesmo tratado tornava impossível. Ele decidiu então dar
sequência ao movimento político húngaro, baseado em um esforço sistemático em prol
de uma recuperação gradual do poder e da independência, que fora revelado desde a Paz
de Westfália, e que sobreviveu à morte de Rákóczi, ao domínio militar de Montecuccoli
e à campanha de Köprülü. Zrínyi visava a uma organização política modernizada na
Hungria, com uma nobreza tributada e um campesinato protegido pelo Estado, um
exército permanente, em união confederada com a Croácia e a Transilvânia e a
libertação do domínio otomano no prazo de duas décadas. Bethlen à parte, Zrínyi foi o
mais clarividente e consistente personagem político do século, mas permaneceu por um
período muito mais curto do que a agenda que concebera permitiria: três meses depois
de Vasvár, ele morreu em um acidente de caça.
Seus colaboradores, tendo à frente o palatino Wesselényi, o arcebispo Lippay, o
chefe de Justiça Nádasdy, o irmão de Zrínyi e sucessor como ban da Croácia, Péter, e
Ferenc Rákóczi (filho de György II e genro de Péter Zrínyi), renitentes em se reconciliar
com o status quo, porém frustrados com a estreiteza de seu próprio escopo de ação,
transformaram o movimento em uma conspiração. Depois de buscar, em vão, o apoio de
Luís XIV e de Veneza, eles procuraram a Porta com a oferta de reconhecimento da
suserania otomana se a Constituição húngara e o direito de eleições livres fossem
preservados, e que não mais pediriam tropas húngaras para participar das campanhas
militares do sultão. Isso exigia riscos distintos: podia lançar o país em uma situação tão
irremediável como a que ocorrera com o bastante criticado acordo de paz de Vasvár, e
deixava de garantir sua segurança em face da rápida militarização do poder Habsburgo.

105
Assim, deve ter ficado claro aos conspiradores que Szentgotthárd não foi um mero
acidente, mas o resultado e sintoma do declínio do poder otomano. Autoridades na
província ocupada pelos turcos encontravam-se impotentes diante dos ataques de
soldados na fronteira húngara. Boa parte da administração dos territórios ocupados
mudara para as mãos dos “condados de refugiados”, e mesmo para os “condados de
camponeses”, formados espontaneamente pelos plebeus dessas áreas para sua defesa e
autogoverno. A propensão era de se desenvolver um condomínio turco-húngaro,
considerando-se a dependência prevista como algo meramente formal, mas surgiu a
questão da vantagem de se depender de um poder incapaz de defender o país contra os
Habsburgos.
Os conspiradores foram salvos do dilema pela resposta sem entusiasmo da Porta,
e decidiram fazer um levante por conta própria. O fato de os mais capazes dentre os
líderes remanescentes, Lippay e Wesselény, terem morrido, em 1666 e 1667,
respectivamente, não favorecia o sucesso, e a primeira tentativa, em 1668, foi abortada:
os planos foram revelados a Viena por alguns dos próprios conspiradores. Na primavera
de 1670, Rákóczi lançou uma rebelião na Alta Hungria, mas ela não chegou a se
disseminar por todo o país e nem os turcos e tampouco os aliados ocidentais (afastados
justamente pelas propostas feitas pela Porta) interferiram, e os rebeldes correram outra
vez em busca de clemência da corte vienense. O tempo não permitiu: em abril de 1671,
Zrínyi, seu cunhado, Ferenc Frangepán, e Nádasdy foram executados, destino do qual
Rákóczi escapou ao pagar um alto resgate (ele era o mais rico magnata do país) e ao
demonstrar um cuidado extraordinário em renegar e denunciar seus “maus
conselheiros”. Cerca de outros duzentos envolvidos foram julgados por cumplicidade na
rebelião.
A retaliação foi muito além do processo empreendido contra as classes
possuidoras da Boêmia, cinquenta anos antes (em Praga, 27 cabeças tombaram e mais
de seiscentos nobres foram sentenciados a ter as propriedades confiscadas depois da
batalha da Montanha Branca): as dimensões incomparavelmente mais reduzidas desse
novo evento e seu insulamento internacional não a justificariam, e a situação militar e
política do país (a realidade da Transilvânia, a presença dos turcos e o fortalecimento
das estruturas corporativas nas décadas anteriores) tornaria impraticável a completa
destruição da independência das classes. Ainda assim, como fizera Fernando no caso
relativo aos boêmios, Leopoldo agora declarava que, por seus recorrentes atos de
infidelidade, os húngaros teriam confiscados seus direitos de governo autônomo e que

106
faziam jus à suspensão de sua Constituição, passando então a ser governados por meio
de decretos imperiais a partir da burocracia centralizada. Um Gubernium de sete
membros passaria a administrar o país, que foi inundado de mercenários germânicos a
fim de completá-lo, e impostos proibitivamente altos passaram a ser cobrados. Ao se
depararem com dificuldades para recolhê-los, os mercenários compensavam a si
mesmos com pilhagens, enquanto a corte (com o apoio entusiástico do alto clero da
Igreja católica húngara) dava início a uma violenta perseguição dos protestantes. Em
1674, mais de setecentos pregadores foram interpelados em um julgamento sumário, e
acusados, entre outras coisas, de negociar com os turcos; e os 42 mais “obstinados”
dentre eles (isto é, os que se recusaram a se converter ao catolicismo ou, ao menos, a
abandonar seus rebanhos) foram vendidos como escravos galerianos em Nápoles (onde
foram libertados pela esquadra holandesa, dois anos depois).
Entretanto, a resistência da população dificultou o confisco de igrejas e escolas,
e as denominações protestantes tampouco puderam ser proscritas. As principais funções
corporativas também não foram abolidas, apenas o posto de palatino foi deixado vago.
Aliás, com a debandada de dois terços dos soldados das fortalezas húngaras depois do
confisco das guarnições pelo exército alemão, a corte de fato criou uma força de
combate ao mesmo tempo insatisfeita e hábil, que manteve aceso o espírito de revolta.
Ao se retirar para a Transilvânia ou para a zona de fronteira, onde conseguiam apoio dos
otomanos, eles se autodenominavam inicialmente “fora-da-lei” (budjosó, literalmente:
“foragidos”) e, posteriormente, kuruc (supostamente, referindo-se aos cruzados de
[György] Dózsa, mas na verdade uma expressão de etimologia duvidosa); e, desde o
outono de 1672, recomeçaram a causar dores de cabeça à administração Habsburgo.
O movimento kuruc oscilava entre sucessos alternados e muita discórdia interna,
até se ver fortalecido com o Tratado de Varsóvia, entre França, Polônia e Transilvânia,
em 1677. Luís XIV, que sofrera reveses na luta contra o imperador no front ocidental,
ofereceu a Apafi um vantajoso subsídio anual em troca pelo apoio prestado aos “fora-
da-lei”. Contando com um grupo de competentes conselheiros, Apafi foi se equilibrando
surpreendentemente bem sobre uma corda bamba entre a Porta e Viena; colocou as
finanças do país em ordem e consolidou sua própria posição (de fato, o último dos
príncipes da Transilvânia governou por mais tempo que qualquer de seus antecessores).
Todavia, o principal beneficiário do tratado de Varsóvia foi o novo e talentosíssimo
comandante do kuruc, Imre Thököly, jovem e ambicioso herdeiro de uma família
relativamente nova de magnatas. Ele introduziu certa ordem na conduta militar e civil

107
do que antes era uma massa de refugiados irregulares bastante indisciplinada, e se
mostrou pronto a destinar certa soma de sua renda privada a esse objetivo, bem como a
compartilhar sua sorte. No verão de 1678, o movimento redundou no levante de
Thököly. Durante a campanha desse ano, assim como na de 1680, a cavalaria kuruc
atacou territórios, como os da remota Morávia, capturando também diversas fortalezas e
cidades na Alta Hungria; ainda que, pela falta de uma poderosa infantaria, eles não
tenham podido manter o território ocupado por muito tempo, Thököly ganhou renome
internacional e cresceu o número de seguidores dos “novos kuruc” entre as famílias
estabelecidas na Hungria Real. Tanto em Viena como de parte da Porta, se reconheceu
que o principal elemento com que se podia contar na Hungria era Thököly, mais do que
Apafi, que viu as iniciativas do movimento com indisfarçável ciúme.
A lição extraída pela corte Habsburgo sobre a impossibilidade de se eliminar a
“rebelião” húngara consistiu em uma revisão das políticas absolutistas iniciadas uma
década antes. O Gubernium e a reforma fiscal foram abolidos, o direito de livre culto
dos protestantes foi reconhecido, e a Dieta convocada em 1681 elegeu um palatino;
portanto, a divisão de poder entre as classes e a coroa foi restabelecida. Embora
convidado, o kuruc se recusou a participar da Dieta. Thököly preferiu voltar-se para os
turcos, que tinham interesse nele pelo fato de, depois de encerrarem uma guerra contra a
Rússia, estarem se preparando para um confronto final com Viena. Apafi parecia
relutante em acatar as ordens da Porta para iniciar ataques contra a Hungria Real, em
1681 e também em 1682. De outro lado, Tököly, embora continuasse em combate, não
só se casou com a viúva de Ferenc Rákóczi, Ilona Zrínyi, expandindo, assim, as bases
de seu poderio pessoal graças às imensas propriedades da família Rákóczi, como
também aceitou ser designado pela Porta como príncipe da Alta Hungria, uma quarta
unidade territorial do antigo Reino da Hungria, após a captura de Kassa, no outono de
1682.
Com o vigor característico e excelente capacidade de organização, Thököly
dedicou-se a criar o arcabouço de um Estado que ele acreditava poder substituir a
decrépita Transilvânia como repositório do estatuto do Estado húngaro até que a plena
soberania pudesse ser restaurada. Contudo, o medíocre Apafi provou ser um melhor
Realpolitiker que o brilhante Thököly. O ponto em que divergiam concernia à avaliação
da relação de forças entre os Habsburgos e a Porta, e essa diferença era crucial. Apafi,
que cautelosamente se recusara a aceitar o domínio sobre uma união da Transilvânia e
da Hungria sob autoridade otomana, foi, no curto prazo, ao menos, justificado; ao passo

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que Thököly, e todos os seus incontáveis contemporâneos que acreditavam que a
campanha turca, lançada em 1683, em parte estimulada pelo seu próprio sucesso,
romperia o poder Habsburgo, provaram-se equivocados. O terceiro cerco otomano de
Viena fracassou, e se tornou o ponto de partida para a guerra que expulsou os turcos da
Hungria, conquanto aniquilando primeiro o efêmero Estado de Thököly, e, alguns anos
mais tarde, também o Principado da Transilvânia.

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4. Hungaria Eliberata? A Expulsão dos Otomanos e a Guerra de Independência de
Rákóczi

Em 12 de setembro de 1683, o grão-vizir Kara Mustafa e seu poderoso exército


de 150 mil homens mantinham um cerco à capital Habsburgo que durava quase dois
meses. Todavia, as fortificações recentemente modernizadas e os desesperados
defensores resistiam ao bombardeio e às investidas; e, naquele dia, a política de alianças
de Leopoldo, formada meses antes, deu frutos. Enquanto a diplomacia do papa
Inocêncio XI evitava que a França atacasse a Áustria pela retaguarda, as forças
imperiais, comandadas por Carlos, duque de Lorena, unidas às tropas de João III
Sobieski, rei da Polônia, que foram apoiá-las, como o fizeram os Eleitorados da Bavária
e da Saxônia, infligiram uma esmagadora derrota aos sitiadores. O grã-vizir, em
retirada, recusou a proposta de paz que lhe foi imediatamente oferecida; em decorrência,
as forças cristãs perseguiram sua retaguarda, vencendo novas batalhas e capturando
Esztergom, bem próximo a Buda. Ficou claro que aquilo que há muito tempo se
afigurava desejável agora também era factível, e o imperador decidiu, com relutância,
envolver-se na expulsão dos turcos da Hungria.
A decisão coincidiu com as expectativas e o ambiente predominantes na Europa,
aos quais o papa reagiu organizando, em março de 1684, a Santa Liga do Imperador,
Polônia e Veneza. Leopoldo deveria lançar uma ofensiva contra os otomanos na
Hungria, Sobieski na Ucrânia e o doge Marcantonio Giustiniani no Mediterrâneo. O
principal acontecimento de 1684 foi a tentativa malsucedida de retomada de Buda.
Aprendendo a lição, no ano seguinte Carlos de Lorena voltou-se contra os flancos
turcos, incluindo o principado de Thököly na Alta Hungria, e em fins de 1685 a maioria
das fortalezas kuruc passara ao controle de Habsburgo (uma só, Munkács, ainda resistiu
sob comando da corajosa esposa de Thököly, Ilona Zrínyi, até o início de 1688). O
próprio Trököly, que prudentemente evitara envolver-se no cerco de Viena, e aproveitou
a confusão para ampliar seus domínios, agora era considerado na Porta como causa de
todos os malfeitos, e foi preso pelo paxá de Várad, em outubro de 1685. Embora logo

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tenha sido solto, ele foi, por fim, obrigado a deixar a Hungria, juntamente com as tropas
turcas. Seu talento superior, que fizera com que a Porta o preferisse a Apafi, acabaria
por acelerar o caminho de sua queda quando o plano otomano se revelou perdedor. Seu
descortino de política europeia foi insuficiente para justificar a presunção de seu
empenho em livrar-se do domínio Habsburgo na Hungria; mas, ironicamente, foi seu
comprometimento, tragicamente equivocado, com os otomanos, em 1683, que catalisou
a rápida consecução do que ele considerava como a próxima etapa: a libertação do país
do domínio turco.
Foi também, em grande medida, o colapso do poder de Thököly que tornou
possível uma contribuição significativa da Hungria aos esforços militares dos aliados
cristãos. Quando a guerra irrompeu, a maior parte do potencial da força de combate
húngara se alinhou do lado turco – situação antes temida por Zrínyi, que preconizava a
criação de um exército nacional precisamente com o objetivo de evitar as consequências
previsíveis de virem a ser libertados do jugo otomano exclusivamente por forças
estrangeiras. Cerca de 15 mil soldados húngaros tomariam parte na libertação de Buda,
em 1686, e mais de 30 mil nas operações posteriores da guerra, a maioria deles de
antigos apoiadores de Thököly. Ao lado das forças das potências aliadas, que utilizavam
ao máximo os avanços da revolução militar europeia, eles desempenharam
principalmente o papel de auxiliares: os hadjus húngaros regulares e os regimentos
hussardos no exército imperial não passaram de um décimo do contingente total.
Já os sacrifícios materiais feitos pelo país em prol da causa de sua libertação,
sobretudo em vista de sua exígua capacidade após as tribulações do século e meio
anterior, foram, proporcionalmente, muito mais consideráveis. A cada ano de guerra,
cinquenta a setenta por cento dos tributos dos países Habsburgo eram coletados na
Hungria, sem contar o fornecimento de guarnições às fortalezas, as doações privadas de
magnatas e a força de trabalho que era enviada para o transporte de munições, a
construção de muralhas ou escavação de trincheiras; sem falar, ainda, nas cobranças
arbitrárias dos exércitos, cujas demandas superavam até mesmo as mais caras
exigências. No século XVII, a bestialidade dos soldados rasos desfavorecidos e de
oficiais gananciosos era lugar comum. O caso da Hungria foi especial porque as
medidas que eram geralmente tomadas pelas autoridades para proteger a população civil
e seus bens eram totalmente ineficazes. Apenas a oppidum de Debrecen, onde as tropas
do famoso general Antonio Caraffa ficaram aquarteladas no inverno de 1686, pagou
como um simples resgate perto de um milhão de florins, mais do que o total da

111
Türkenhilfe dos três distritos mais ricos do Império germânico. Um ano depois, Caraffa
abateu-se sobre a cidade de Eperjes, onde instalou uma corte marcial; e, sob acusações
falsas de conspiração em favor de Thököly, fez com que 24 nobres e burgueses (todos
eles protestantes e ricos) fossem sentenciados a perder a vida e os bens. A Europa
repercutia as notícias das pilhagens na Hungria (enquanto, paradoxalmente, a
propaganda de Leopoldo, que o apresentava como o herdeiro do status de “baluarte da
cristandade” da Hungria, e a Hungria de Thököly como “a inimiga da cristandade”,
também causava impacto). Na Hungria, considerava-se, de maneira geral, que o país
pagou mais aos alemães [germânicos] do que aos otomanos em um século e meio. Sem
dúvida, isso é um exagero grosseiro; ainda assim, é também sugestivo, e contribui para
explicar a amargura do sentimento anti-Habsburgo que aflorava no país ao fim da
guerra de libertação.
A guerra seguia a pleno vapor em 1686 quando os exércitos aliados, sob o
comando de Carlos de Lorena, cercaram por dois meses e meio a cidade de Buda. Dessa
vez, seus esforços tiveram sucesso: em 2 de setembro, a capital húngara – então um
amontoado de cinzas, com suas poucas centenas de moradores miseráveis expostas por
três dias a saques desenfreados feitos por soldados exaustos, permitidos pelo alto
comando – foi libertada dos turcos, depois de 145 anos. De Roma a Amsterdã e de
Veneza a Madri, fogos de artifícios, festividades e procissões de ação de graças
celebraram a vitória da conquista europeia da época: vitória da diplomacia papal, dos
bancos internacionais, do gênio militar polonês e germânico [alemão], da tecnologia
militar francesa e italiana, da indústria veneziana, estíria e silesiana, dos soldados de
dezenas de nacionalidades e dos sacrifícios humanos e materiais húngaros.
A ofensiva continuou, e, antes do final do ano, recuperou Pécs e Szeged, e as
conquistas de 1686 foram confirmadas com o triunfo espetacular das forças da Santa
Liga na batalha de Nagyharsány, em agosto de 1687. Essa vitória pavimentou o
caminho para a retomada de Belgrado, um feito do Eleitor da Bavária, Maximiliano
Emanuel, em setembro de 1688; no ano seguinte, as forças imperiais, então comandadas
por Luís, margrave de Baden, tiveram êxito nos combates ao longo do Baixo Danúbio.
Muitas das fortalezas ainda em poder dos turcos, em meio a essa vigorosa ofensiva,
ficaram isoladas, e foram abandonadas de maneira mais ou menos pacífica (como Eger
em 1687, Székesfehérvár em 1688, Szigetvár em 1689 ou Nagykanizsa em 1690).
A Transilvânia também passou ao controle Habsburgo no decurso da guerra.
Ainda demasiadamente cauteloso para aceitar, em 1684, o convite para se juntar à Santa

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Liga, no outono de 1687 Apafi, malgrado a preservação aparente da independência da
Transilvânia, teve de aceitar a proteção do imperador. Isso implicava o pagamento de
um tributo anual a Viena, de valor mais alto que o que era exigido anteriormente pela
Porta, além de o país ser virtualmente ocupado pelas forças de Carlos de Lorena. A
consequência lógica veio em 1690, quando Apafi morreu, e Viena se recusou a
reconhecer a sucessão pelo seu filho. Pela última vez, Thököly tentou intervir, sendo ele
próprio indicado príncipe pelo sultão e eleito pela Dieta transilvana; ele ainda obteve
uma grande vitória contra as tropas Habsburgo, que, no entanto, por fim saíram
vencedoras e o forçaram a partir para sempre. Thököly morreu em Nicomédia, em 1705.
Em 16 de outubro de 1690, o imperador promulgou o Diploma Leopoldinum, que
estabeleceu o estatuto constitucional da Transilvânia até 1848: ela deveria ser
administrada (no início, por um novo Gubernium e, posteriormente, pela chancelaria
transilvana) como uma província separada do Reino da Hungria, segundo suas próprias
leis.
Após quatro anos de avanços contínuos, os aliados cristãos foram,
provisoriamente, contidos por uma combinação de fatores. No final de 1688, Luís XIV
denunciou o tratado de paz formulado quatro anos antes, e os melhores regimentos e
generais de Habsburgo foram deslocados para o front ocidental, enquanto o novo grão-
vizir, Köprülü Mustafa, fazia esforços desesperados em contra-ataque. Em 1690, ele
conseguiu recuperar não apenas as fortalezas que tinham sido perdidas no ano anterior
no norte dos Bálcãs, como também Belgrado. Apesar da participação da Inglaterra na
Grande Aliança do imperador contra os franceses e de as classes imperiais e as
Províncias Unidas terem apoiado os Habsburgos no lado ocidental, o que logo resultou
em uma grande vitória em Szalánkemén em setembro de 1691, as forças imperiais
estiveram quase sempre na defensiva, o que durou até o fim da guerra contra a França,
em 1697. Em 11 de setembro desse ano, foi desencadeado o ataque decisivo contra as
forças de combate otomanas, exauridas após quinze anos de guerra. Na batalha de Zenta
(Senta) – em muitos aspectos, o inverso de Mohács –, o exército enviado pelo sultão
para reconquistar a Transilvânia ou a Alta Hungria quase foi exterminado. O vencedor
não era outro senão Eugênio de Savóia, cuja carreira impressionante começou depois de
ter deixado a corte de Luís XIV a fim de combater os turcos que sitiavam Viena em
1683; ele lutou nas guerras contra os otomanos até 1688, e depois no norte da Itália
contra a França, até retornar à frente oriental como comandante supremo. Em
reconhecimento pelos serviços prestados, Eugênio foi recompensado com uma vasta

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propriedade em Ráckeve (ao sul de Peste), onde construiu um dos mais suntuosos
palácios barrocos da Hungria. Em 26 de janeiro de 1699, assinou-se a paz entre as
potências da Santa Liga e a Porta, em Karlóca (Karlowitz). Os Habsburgos ficaram com
a maior parte de toda a Hungria, exceto áreas do Temes e a região de Srem.
Depois que o palco da guerra foi transferido para a região da fronteira sul, a
situação interna do país se normalizou, enquanto, pela mesma época, o governo de
Leopoldo se preparava para implementar sistematicamente seus planos. Na Dieta de
1687, ainda sob o impacto dos malfeitos de Caraffa em Eperjes, as classes húngaras
mostraram-se bastante dispostas a ceder à demanda do imperador para modificar a
Constituição e também expressar sua gratidão por ele ter intervindo em seu favor contra
os turcos; isso foi feito pelo reconhecimento do direito de hereditariedade dos
Habsburgos ao trono da Hungria e pela renúncia ao direito de resistência que lhes era
garantido na Bula Dourada de 1222.
A submissão das classes húngaras podia ser considerada como um gesto, bem
como uma base, de cooperação na administração dos novos domínios Habsburgo entre a
corte e a elite local, que preservara boa parte de sua jurisdição sobre os territórios
ocupados pelos otomanos. Mas não a Leopoldo, que arcava com grande parcela de
responsabilidade pessoal pela deterioração das relações entre os Habsburgos e a
Hungria. Dentre os vários projetos a ele submetidos, os que foram escolhidos tinham
por objetivo quebrar a espinha dorsal das classes, sem acolher as propostas de reforma
que também elas tinham apresentado. O que a corte esperava com as novas anexações
territoriais era dinheiro para cobrir o déficit, que se avizinhava de 30 milhões de florins,
em decorrência da dívida contraída durante a guerra. Os novos territórios foram
delegados à competência da Câmara imperial, onde uma comissão (a Neoacquistica
Commissio) foi instalada, passando a exigir dos titulares de propriedades nas áreas
recuperadas que produzissem documentos jurídicos de posse; e mesmo quando eles
conseguiam fazê-lo, eram obrigados a pagar os reparos dos danos causados pela guerra.
Muitas dessas propriedades foram, assim, arrendadas por meio de leilões a generais
estrangeiros, aristocratas e contratados do exército. Os regimentos húngaros foram
dispersados, assim como os soldados das fortalezas, que vieram a ser demolidas; a nova
linha de defesa no sul foi confiada a aproximadamente 200 mil sérvios, que fugiram
com a volta dos turcos, em 1689, sob o comando do patriarca Arsenije Cernojevic. De
maneira geral, também se percebeu na época que a prerrogativa da política de Leopoldo
para repovoar as áreas desabitadas da Grande Planície e da Transdanúbia era dirigida

114
contra os húngaros, que ele considerava indisciplinados e rebeldes. Os católicos
germânicos (“suábios”, como passaram a ser conhecidos na Hungria) foram assentados
na Transdanúbia, a Ordem teutônica recebeu áreas extensas entre os rios Danúbio e
Tisza como garantia, e os sérvios de Cernojevic obtiveram abrangente autonomia civil e
eclesiástica – no momento em que o mesmo era categoricamente denegado aos
protestantes húngaros, cujas cantigas populares falavam em um “reino de sacerdotes
(católicos)”.
O descontentamento irrompeu primeiro na primavera de 1697, quando antigos
oficiais de Thököly, depois de mais de um ano de preparativos, reuniram apoio
suficiente para desencadear uma revolta em meio ao campesinato da região vinícola de
Tokaj, que até recentemente mantivera aparências de prosperidade, mas que fora
arruinada devido aos altos impostos. A rebelião foi sufocada pelo fato de que seus
organizadores não conseguiram garantir o envolvimento de homens influentes, em
particular o jovem Ferenc Rácókzi, que tinham convidado para liderá-los. O neto de
György II da Transilvânia, e enteado de Thököly, foi separado de sua mãe, Ilona Zrínyi,
depois que o castelo de Munkács foi capturado, e veio a receber, de parte dos jesuítas,
no sul da Boêmia e na Universidade de Praga, uma educação destinada a aristocratas de
uma futura corte. Já como duque do Sacro Império Romano, ele se casou com uma
duquesa germânica [alemã], e sentiu grande estranheza em sua terra natal quando
regressou a seus vastos domínios na Alta Hungria, em 1694. Declinando do convite do
kuruc, ele correu a Viena para livrar-se de suspeitas, e propôs até mesmo trocar seus
próprios domínios por outros na Alemanha. Ao ter essa proposta recusada, regressou, a
fim de reformar e modernizar suas propriedades.
A comunicação assídua com seus vizinhos, sobretudo com magnatas
protestantes que se percebiam excluídos do pequeno círculo de aristocratas húngaros
autorizados a exercer algum cargo governamental, e que estavam, sobretudo, aflitos
com as restrições econômicas, constitucionais e religiosas impostas pela corte
Habsburgo, mudou completamente suas atitudes em dois anos. Miklós Bercsényi, em
particular, causou forte impressão sobre Rákóczi, despertando seu senso de vocação
principesca e de responsabilidade para com seu país. Uma vez que, em 1700, Luís XIV
reiterou uma reivindicação dos Bourbon ao trono da Espanha, que se tornara vago com
a morte de seu último governante Habsburgo, Carlos II, que não deixara herdeiros, e a
Europa se encontrava na iminência de uma nova guerra, a situação internacional se

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tornou favorável para se buscar apoio contra os Habsburgos. Semanas depois da morte
do rei da Espanha,
Rákóczi enviou uma carta dos húngaros descontentes a Luís XIV, que, contudo, foi
entregue em Viena por seu mensageiro. Em abril de 1701, Rákóczi foi preso juntamente
com vários de seus companheiros conspiradores, e ficou detido em Wiener Neustadt,
enquanto Bercsényi conseguiu fugir para a Polônia. Foi em Varsóvia que os dois
voltaram a se encontrar, alguns meses mais tarde, depois que Rákóczi conseguiu escapar
de seu cativeiro em circunstâncias românticas. Mas o rei da França, embora a Guerra da
Sucessão espanhola já tivesse se desencadeado, na primavera de 1701, mostrava-se
relutante em assumir compromissos concretos; a Polônia se fragmentara com a guerra
do norte, contra Carlos XII da Suécia; e os laços estabelecidos entre Rákóczi e o exilado
Thököly, em 1702, tampouco foram além das diferentes promessas. Em suma, a
situação parecia sem esperança.
Na Hungria, entretanto, a situação era de turbulência. A pressão dos impostos,
agravada ainda por causa dos monopólios e dos direitos aduaneiros excessivos, deu
origem a um crescente comércio de contrabando, que contribuiu para interligar todo o
país e para compatibilizar as ações isoladas do clandestino kuruc. Além disso, a
presença militar Habsburgo era consideravelmente reduzida na Hungria quando
ocorreram os primeiros êxitos dos franceses na guerra ocidental. Em 1703, visto que o
kuruc tinha avançado até o Tirol, chegou mesmo a parecer que, se seus membros
podiam atuar de forma concertada, eles também podiam, afinal, unir forças com os
franceses para sitiar Viena. Desde fins de 1702, o principal coordenador do movimento,
Tamás Esze, um camponês empreendedor par excellence, envolvido com o comércio de
sal, procurava novamente um novo líder. Depois da prisão de Rákóczi, seguida de uma
fuga fabulosa e do posterior exílio, o que acrescentou certo carisma a sua condição e
experiência, ele próprio parecia ser um candidato ideal. Ao receber a visita de Esze no
pequeno castelo de Brzezany, no sudeste da Polônia, Rákóczi aceitou [a função], e, em
6 de maio de 1703, lançou um manifesto exortando à libertação da Hungria do “jugo
ilegal e intolerável”. Um mês depois, ele chegava de volta à Hungria sob estandartes
enfeitados com o slogan Cum Deo pro Patria et Liberate (Com Deus, pela Pátria e a
Liberdade).
O povo simples acorreu a seu acampamento, a princípio bastante pequeno, ainda
mais depois da carta patente de 28 de agosto de 1703, que prometia isenção de impostos
e favores senhoriais aos servos que se juntassem às forças de Rákóczi. Por invocar razão

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de Estado, isso equivalia a uma ingerência nas relações entre senhor e servo. A nobreza,
que, a princípio, adotara a posição de esperar para ver, foi tranquilizada com a intenção
de Rákóczi de manter a disciplina no exército, bem como a lei e a ordem no país,
mediante a emissão de estatutos militares, e acompanhou seus servos sob a bandeira de
Rákóczi. A força numérica foi, assim, conjugada com a hierarquia e a autoridade, em
uma união temporária de interesses; por conseguinte, o país devastado mostrou-se capaz
e disposto a manter um exército nacional de cerca de 70 mil soldados por vários anos
(os subsídios recebidos de Luís XIV eram suficientes para suprir apenas uma fração
desse número). Os êxitos obtidos pelas armas kuruc no outono de 1703, quando as
forças Habsburgo foram expulsas das regiões mais ricas, no noroeste do país, suscitaram
mais apoio a Rákóczi, e embora a campanha do general Sándor Károly na
Transdanúbia, em 1704, logo tenha fracassado, Rákóczi foi eleito, primeiramente,
príncipe da Transilvânia, e em seguida, na Dieta de Szécsény, em setembro de 1705,
príncipe comandante da Hungria.
Rákóczi, que revelara um talento notável para a organização, governou o Estado
kuruc com um Senado composto de prelados, aristocratas e nobres, e as tarefas
importantes da diplomacia foram atribuídas à chancelaria, dirigida por Pál Ráday,
enquanto um conselho econômico tornou-se responsável pelo incremento das receitas.
Este era um problema crucial e, afinal, insolúvel, em um país esgotado pelas tribulações
das décadas anteriores. Ironicamente, os impostos instituídos por Rákóczi eram mais
altos do que os que tinham provocado a guerra que ele comandou. Ao mesmo tempo,
pioneiro na Europa Central, seu sistema tributário foi concebido para abranger toda a
sociedade e englobar todos os recursos nacionais, incluindo os da nobreza. Não é de
surpreender que não havia uma forma adequada de arrecadação de receitas, e o príncipe
também fez experiências com o método impopular, e igualmente ineficaz, da
desvalorização da moeda. Enquanto as dificuldades econômicas se multiplicavam, a
solidariedade social do início diminuiu. Os líderes pioneiros, de condição modesta, se
irritaram quando os postos de oficiais foram ocupados por aristocratas que aderiram
posteriormente ao movimento; afinal, estes últimos não eram propriamente entusiastas
das perspectivas de emancipação camponesa, que constituíram a esperança que levou
muitos servos a lutar “pela Pátria e pela Liberdade”. Rákóczi manteve um equilíbrio
entre essas duas forças, tentando encontrar uma forma de conciliar suas promessas
iniciais aos soldados camponeses. Por fim, não obstante a ênfase no empenho de
harmonizar os interesses dos diferentes estratos sociais, definiu-se a natureza do Estado

117
como “confederada” – e não escapou à atenção de seus ciumentos magnatas que aquilo
que Rákóczi realmente pretendia era uma crescente centralização, contando em ampla
medida com a baixa nobreza próxima a ele. Malgrado todas essas tensões, a dinâmica da
luta e a força unificadora do objetivo de independência foram suficientes para acarretar,
no auge da guerra, na Dieta de Ónod, em 13 de junho de 1707, a deposição dos
Habsburgos.
Àquela altura, mudanças na cena internacional e nas relações militares há tempo
tinham tornado evidente que a separação do país da monarquia Habsburgo por força das
armas não era factível, e que o objetivo realista da luta devia ser o compromisso
político. Depois da grande derrota dos exércitos francês e bávaro na batalha de
Höchstädt (Blenheim), sob o comando do duque de Marlborough e de Eugênio de
Saboia, em 13 de agosto de 1704, não foi mais possível contar com apoio militar
externo, e as forças kuruc, não obstante seu entusiasmo e moral, eram muito inferiores
em relação às tropas Habsburgo. Embora Rákóczi fizesse árduos esforços para adequar
suas tropas húngaras, acostumadas a guerras não convencionais, às exigências de
operações organizadas e modernas, ele pouco podia fazer; afinal, percebia que, além dos
precários equipamentos de seus soldados, era por causa da considerável inépcia do
comando do corpo de oficiais que, em oito anos, nenhuma batalha importante tivesse
sido ganha por eles. Os feitos de algumas exceções, como o do renomado János Bottyán
(“o Cego”), que conquistou a Transdanúbia em uma brilhante campanha, no outono de
1705, contribuíram significativamente para manter o moral elevado. Ainda assim, de
maneira geral, a ampla superioridade numérica dos kuruc na etapa inicial pôde ser
explorada, sobretudo contra unidades imperiais relativamente pequenas, em ataques
surpresa; mas, em uma batalha extensa, alguns milhares de labanc (a alcunha dos
legalistas, provavelmente por conta das desgrenhadas perucas, isto é, os loboncos
germânicos, que usavam) podiam derrotar um número de adversários pelo menos duas
ou três vezes maior que os kuruc. Mesmo assim, até 1708, a maior parte da Hungria
esteve sob o controle de Rákóczi: a Alta Hungria e a Grande Planície, de maneira
bastante firme, e a Transdanúbia e a Transilvânia, alternando-se entre o controle kuruc e
o de Habsburgo. Em 1708, sob o impacto de notícias desencorajadoras sobre a sorte dos
combates da coalizão internacional contra os Habsburgos, o exército kuruc começou a
recuar, e a derrota humilhante na batalha de Trencsén, em 3 de agosto de 1708, já
prenunciava o desfecho da luta pela independência.

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O fato de isso ter se confirmado somente quase três anos depois deve-se ao fato
de que o persistente compromisso ocidental do imperador José I, que em 1705 sucedera
a seu pai, Leopoldo, ter posições um pouco diferentes também relativamente à Hungria.
Demasiado prudente para resguardar suas novas aquisições na Itália, ele se satisfez por
um tempo em manter um equilíbrio de forças na Hungria, onde fez concessões à
pequena representação das classes que se reuniu na Dieta de Pozsony, em 1708. Tudo
isso criou uma oportunidade para que Rákóczi tentasse dar forma a uma base
internacional favorável a seus planos. Depois da deposição dos Habsburgos, a coroa
húngara foi oferecida a Maximiliano Emanuel, o Eleitor da Bavária, enquanto o próprio
Rákóczi alimentou esperanças de ser eleito rei da Polônia. O primeiro desses planos não
prosperou, enquanto o segundo demandava preparativos cuidadosos e dependia do
apoio de Pedro I, da Rússia. Rakóczi percebeu com clareza que, naquela situação, era
vital ganhar tempo e perseverar, até que o acordo húngaro pudesse ser incluído no
sistema de um tratado de toda a Europa: seus enviados participaram das conversações
de paz que começaram em Gertruydenberg, em 1710, e se mostraram dispostos a aceitar
os Habsburgos, porém insistiram em alguns pontos: uma lei de sucessão, a tolerância
religiosa, um exército húngaro e garantias internacionais. Quando o equilíbrio de forças
militares se tornou irremediável, do ponto de vista kuruc, Rákóczi autorizou o general
Sándor Károlyi a ganhar tempo nas negociações com o novo comandante Habsburgo,
János Pálffy, ban da Croácia. Em um encontro pessoal com Pálffy, Rákóczi enfatizou
que apenas poderia aceitar um acordo que ocorresse entre os Habsburgos e a Hungria na
condição de um Estado confederado, mas não o arranjo baseado em indulto pessoal e
em concessões, ainda que generosos, de parte do soberano. Ele então partiu para a
Polônia, a fim de participar de conversações com Pedro, o Grande. Enquanto os dois se
encontravam, Károlyi, autorizado pela maioria dos Estados confederados, assinou o
acordo de Paz de Szatmár, em 30 de abril de 1711, e no dia seguinte o exército kuruc se
rendeu.
Os termos do acordo pareceram tão brandos aos desapontados magnatas
legalistas que, depois, eles vieram a se queixar amargamente da arrogância dos líderes
kuruc, “como se tivessem vencido o imperador”. Com efeito, a anistia incluía não
apenas a impunidade, mas também a restituição das propriedades aos que retomassem o
compromisso de fidelidade ao imperador (até mesmo Rakóczi e Bercsényi deviam
retomar); o soberano prometeu observar os direitos e as liberdades no país, cooperar
com a Dieta na administração da Hungria em conformidade com suas próprias leis e

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costumes, garantir a liberdade de culto e abolir organismos como a Neoacquistica
Commissio. Assim, a Paz de Szatmár retrocedeu, salvo uma posição um tanto mais
firme da coroa, ao status quo anterior a 1670: a divisão do poder entre os Habsburgos e
as classes húngaras, que temporariamente se transferiu em benefício dos primeiros em
consequência da guerra de libertação antiotomana. Para os membros do kuruc que
tinham como principal objetivo a recuperação dos privilégios corporativos, e achavam a
independência cada vez mais ilusória, isso era nada menos que uma vitória, sobretudo
porque somente eles sabiam muito bem que uma esmagadora derrota era iminente.
Nesse sentido, Károlyi, geralmente repudiado como um traidor, foi um Realpolitiker.
Ao mesmo tempo, sem garantias internacionais, o acordo apoiava-se na
confiabilidade de Carlos III, o sucessor de José I, que falecera duas semanas antes do
tratado de Paz de Szatmár: o novo monarca enfatizou que a “tranquilidade dos húngaros
era do interesse vital da Áustria”, e que, portanto, a nação “devia ser tratada com maior
simpatia”, devendo-se convencê-la de que “confio e os respeito como faço com os
demais”. De outro lado, o acordo estava muito distante dos objetivos de inúmeros outros
kuruc, incluindo-se desde os insurgentes pioneiros que tinham pertencido à primeira
facção, predominantemente popular, do movimento, até o próprio Rákóczi e seus mais
próximos colaboradores. Não foi isento de uma obstinada, quixotesca perseverança
contra todas as probabilidades, o fato de ele nunca mais ter voltado à Hungria, e de ter
ainda buscado uma oportunidade de retomar os combates – da Polônia, seguiu para a
França e, finalmente, para a Turquia, onde morreu em 1735 –, ainda que sua convicção
de que ainda havia alguma chance de sucesso estivesse desvinculada da realidade. Não
eram os adereços da independência o que o atraía e o animava, mas a perspectiva,
inerente à própria luta pela independência e à sua concretização, de estimular o
progresso socioeconômico e elevar o país aos padrões ocidentais. Sua experiência de
unir interesses, no início da guerra, embora tenha durado pouco, foi crucial sob esse
ponto de vista. Ele pensava que uma Hungria propensa à abolição dos privilégios
fiscais, à emancipação dos servos, a uma administração profissional e a um exército
nacional, poderia se tornar mais competitiva do que aquela onde as estruturas
corporativas e a servidão perpétua tinham se tornado petrificadas.
Consistisse ou não em Realpolitik, naquelas circunstâncias, isso foi e será tema
de debate entre os historiadores. A conquista de Rákóczi foi a de ter demonstrado que,
mesmo em tempos de adversidade, houve na Hungria, pelo menos no plano daquele
corajoso, ainda que vão, esforço, uma alternativa ao que se segue: testar os limites do

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possível num processo muitas vezes frustrante de lenta recuperação de forças em meio a
condições de relativo atraso socioeconômico e limitada soberania política. Como tais
condições determinaram a maior parte da história da Hungria na era moderna, o período
e o resultado da guerra de Independência de Rákóczi são notáveis, também, porque ela
introduziu um dos temas recorrentes dessa história: os dilemas causados pelas precárias
relações entre a independência constitucional, a sobrevivência nacional e a
modernização política, socioeconômica e cultural.

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